Hans Eijkelboom Gerrit Willems Performatusperformatus.net/wp-content/uploads/2014/07/Hans... ·...
Transcript of Hans Eijkelboom Gerrit Willems Performatusperformatus.net/wp-content/uploads/2014/07/Hans... ·...
performatus.net
1
Inhumas, ano 2, n. 11, jul. 2014
ISSN 2316-8102
DOCUMENTOS DA VIDA COTIDIANA
Gerrit Willems
Hans Eijkelboom por Sheila Matthes
performatus.net
2
Hans Eijkelboom já fotografa há mais de vinte e cinco anos. A lista de
exposições em museus, galerias e outros espaços expositivos é extensa.
Contudo não é frequente encontrarmos o seu trabalho numa síntese da
fotografia neerlandesa. E isso revela algo sobre essas fotografias. Hans
Eijkelboom não tira fotografias a partir de uma visão fotográfica. Ele não presta
especial atenção à composição, preocupa-se pouco com a perfeição técnica e
não se reconhece uma assinatura pessoal nas suas fotografias; em muitos
casos, nem sequer fotografou nenhuma. Além de que, essas fotografias
também não se caracterizam por assuntos espetaculares ou dramáticos.
Eijkelboom utiliza a máquina fotográfica para registar, e só isso. Apenas as
séries de fotografias encenadas que tirou na segunda metade dos anos de 1980
constituem aqui uma exceção.
As fotografias excluem-se igualmente de uma divisão por gênero
fotográfico. Muitas vezes fotografa pessoas, mas não podemos considerar esses
trabalhos como verdadeiros retratos. Há edifícios e ruas nas fotografias, mas
não se trata de verdadeiras paisagens urbanas. Uma vez falando de fotografias
de imprensa ou de publicidade, até mesmo essas são imitações. De algumas
séries podemos dizer que estamos diante de um documentário, mas não como
uma narrativa em imagens, que pretende informar sobre acontecimentos sociais
importantes. O melhor é comparar muitas fotografias com aquela foto
cotidiana, e isso no sentido mais direto. Eijkelboom não promove propriamente
um estilo de instantâneo ou snapshot, mas quer transpor o seu assunto o
melhor possível em imagens. “Comigo nunca é sobre o fotografar em si, mas
sobre o que está na fotografia”1, afirma.
Não é, pois, surpreendente, que as fotografias de Eijkelboom não sejam
contabilizadas entre os cânones neerlandeses da fotografia. A qualidade das
fotografias não está no modo de fotografar, embora esse modo de fotografar
seja decisivo para qualidades despercebidas. O interesse das fotografias reside
na ideia com que foram tiradas e o pensamento que visam acentuar. Isso
1 Ver em: Conversa em 26 de novembro de 1998. Ver também em: Trudy van Riemsdijk-Zandee, “De strategie van het kiekje”. Het Blad, 1999 (129), p. 24-28.
performatus.net
3
significa que uma apreciação tem de se dirigir sobretudo àquilo que as
fotografias trazem à colação.
Em suma, a obra fotográfica de Hans Eijkelboom consiste enormemente
na pesquisa de como a vida em sociedade se apresenta no seu aspecto
cotidiano. Para essa pesquisa, Eijkelboom tomou a sua própria vida como ponto
de partida. Consequentemente, traz a sua experiência cotidiana e o seu
ambiente direto para a imagem, sendo crítico, sem se tornar irônico, reservado,
mas não tentando chegar a um registro puramente objetivo. Nas fotografias das
séries anteriores, tratava-se sobretudo de como a personalidade de cada
indivíduo é determinada pelo papel social, pela aparência e subcultura. Nas
fotografias posteriores, Eijkelboom registra o modo como o ambiente cultural se
cristaliza nas imagens da vida cotidiana.
Ambiente Construído e Social
Na exposição Sonsbeek buiten de perken, de 1971, Hans Eijkelboom se
lançou com aquilo que se pode apelidar de uma ideia espacial. Pendurou um
galhardete comprido numa torre alta, que era movimentado pelo vento e,
separadamente, apresentou um filme no Gemeentemuseum de Arnhem, com
árvores dobradas de forma pouco natural, aos solavancos. O seu contributo para
a exposição não pode ser visto como arte autônoma, como escreveu ele num
comentário. Foi apenas uma das muitas possibilidades de utilizar um fenômeno
natural como o vento para moldar o ambiente cotidiano. O exemplo apresentado
não foi devidamente apreciado, “porque encontrou um espaço ainda demasiado
enfático no âmbito de uma exposição, em vez do lugar da evidência de fazer
parte do ambiente cotidiano”2. Sonsbeek buiten de perken foi um momento
importante na história da arte neerlandesa. O responsável pela exposição, Wim
Beeren, não quis se limitar à reunião de imagens e conjuntos de imagens no
parque Sonsbeek, mas sim organizar uma manifestação em que se mostrasse a
arte mais recente. Beeren enfatizou a arte conceitual, a escultura minimal, a
land art, o filme e o vídeo. Para poder incluir todas essas diferentes abordagens
2 Ver em: G. van Beijeren e C. Kapteyn (eds.). Sonsbeek buiten de perken: Catálogo da Exposição. Arnhem, 1971, p. 114-115.
performatus.net
4
em uma mesma ideia, Beeren escolheu o tema “relações espaciais”, com o qual
indicou não se tratar apenas de objetos no espaço mas também “dos meios com
os quais o espaço é experienciado”3. Assim pôde dar lugar tanto aos artistas que
colocavam em imagem aspectos da experiência do espaço com fotografias,
filme e vídeo, como aos artistas que intervinham com a sua arte na paisagem ou
no ambiente urbano, e ainda aos artistas que se movimentavam efetivamente
pelo espaço com projetos especiais. Em consequência, a exposição não podia
ficar dentro dos limites do parque e procuraram-se, então, locais por toda a
Holanda. Num desaterro perto de Emmen, Robert Smithson fez o seu Broken
Circle/Spiral Hili, em areia e água, Joseph Beuys organizou em Zeeland uma
volta de bicicleta, Ed Ruscha fotografou os seus passeios por pontes na
província de Groningen, ao passo que Douglas Huebler se limitou a colocar um
ponto no catálogo.
A estreia de Hans Eijkelboom nesse grupo de artistas de renome não foi
na verdade o início de um período em que ele se ocuparia do ambiente
construído. Foi antes um encerramento desse período. Já durante a formação na
academia de Arnhem, tinha se afastado progressivamente do estilo
monumental. Não por ter ficado claro para ele que pouco poderia contribuir para
melhorar os desolados bairros novos, como aquele em que ele próprio crescera,
mas porque fazia coisas que não se adequavam ao programa do departamento
da arte monumental. “Eu já não queria trabalhar com cor sobre formas e
estruturas de padrões concebidos para pavimentos e esse tipo de coisas”4. Fez
então experiências com chuva e vento e procurou pesquisar como esses
fenômenos podiam ser aplicados à arquitetura. Isso o levou a projetos que já
não podiam caber sob a responsabilidade do departamento de arte
monumental.
Imediatamente depois de Sonsbeek buiten de perken, Hans Eijkelboom
teve a oportunidade de participar nos Ateliers ‘63, ainda em Haarlem. Mas, logo
após um ano, abandonou a formação, achando não ter produzido nada de
3 Ibidem, p. 7. 4 Ver em: Hans Eijkelboom fala com Louwrien Wijers, em uma entrevista a propósito de um projeto no Brooklyn Museum, em Nova York. Typoscript não editado, Nova York, 1978, p. 2.
performatus.net
5
significativo. Contudo, nesse ano concretizaram-se importantes mudanças. As
fotografias com que documentou os projetos e planos para o ambiente
construído tornaram-se progressivamente mais importantes que os próprios
planos. Deu, assim, o passo efetivo da arte aplicada para a arte autônoma. O
surgimento da arte conceitual, que por volta de 1970 estava no auge,
desempenhou seguramente um papel nesse desenvolvimento. Os artistas
conceituais utilizavam a máquina fotográfica para registrar com ela
determinadas ações, acontecimentos ou objetos e apresentavam as fotografias,
também em combinação com textos, como obras de arte autônomas. Ed
Ruscha, por exemplo, editou livros como Twenty-Six Gasoline Stations (1962) e
Various, Small Fires and milk (1964), respectivamente com fotografias
cotidianas de bombas de combustível e algumas fogueiras e um copo de leite.
Dan Graham, também representado na exposição Sonsbeek, publicou na revista
Arts Magazine um ensaio com fotografias de filas de casas iguais pré-fabricadas
sob o título Homes for America (1966). E em Variable Piece #34 (1970), Douglas
Huebler fotografou quarenta pessoas depois de lhes dizer que tinham uma cara
bonita. Eijkelboom adaptou essa estratégia conceitual aos seus próprios
projetos. O que não mudou foi o seu interesse pelas circunstâncias da vida
cotidiana. Há não muito tempo, Eijkelboom documentara os seus planos para o
ambiente construído, mas apresentou uma pesquisa fotográfica do ambiente
social da própria vida como arte visual autônoma.
Een buitje regen (1971) foi a primeira obra fotográfica que se concretizou
dessa forma. Numa série de seis fotografias, vemos como a aparência de
Eijkelboom se perde com a chuva. A ideia de representar as consequências da
chuva ainda se integra completamente nas experiências com o ambiente
construído. Mas a série de fotografias apresenta também todas as
características do trabalho posterior, em que o vestuário e a influência do
ambiente na aparência são temas importantes.
Identidade e Sociedade
As fotografias de Hans Eijkelboom podem incluir-se na arte conceitual.
“Arte conceitual, para mim, é um trabalho no qual a ideia é primordial e o
performatus.net
6
material é secundário, ligeiro, efêmero, barato, despretensioso e/ou
desmaterializado”5, escreveu Lucy Lippard no catálogo Reconsidering the Object
of Art: 1965-1975. Ideia e significado são primordiais, forma e material são
subordinados. A fotografia sempre foi um meio importante para a arte
conceitual expressar pensamentos; para além disso, as fotografias dão a
possibilidade de escapar aos aspectos materiais da obra de arte.
As fotografias de Eijkelboom apresentam igualmente características da
fotografia documental. É difícil dar uma descrição precisa dessa forma de
fotografia. Não só o gênero é muito vasto, como está permanentemente em
desenvolvimento e são díspares as ideias sobre como deve ser um
documentário. Contudo, em praticamente todas as descrições se parte da
“relação natural que a fotografia tem com a realidade”, e a fotografia é
considerada como uma cópia fiel da realidade.6 O fotógrafo foi testemunha
ocular de um acontecimento e a sua fotografia é a prova disso.7 O documentário
é quase sempre encarado como uma pesquisa com o objetivo de informar o
público. Em muitos casos, a ênfase é colocada numa utilização crítica da
máquina fotográfica. Isso significa que o fotógrafo não registra apenas algo,
mas também revela o seu envolvimento.8 As fotografias de Eijkelboom, nesse
sentido, são fotografias documentárias, fixam a realidade, são a base de uma
pesquisa e mostram envolvimento social. Mas, ao mesmo tempo, essas
fotografias percorrem exatamente as características referidas.
5 Ver em: Lucy Lippard, “Escape Attemps”. In: Ann Goldstein e Anne Rorimer (eds.). Reconsidering the Object of Art: 1965-1975: catálogo da exposição. Museu de Arte Contemporânea, Los Angeles, 1995, p. 17. 6 Ver em: Ton Hendriks, "Naar een nieuwe documentaire fotografie". In: Hripsimé Visser e Oscar van Alphen (eds.). Een woord voor het beeld. Amsterdam, 1989, p. 63. 7 “‘Documento’ significa ‘prova’, e pode ser reconduzido a documentum, um termo medieval para papel oficial: por outras palavras, prova inquestionável, um registro verídico apoiado pela autoridade da lei. E a fotografia documentária, enquanto gênero, assentou-se invariavelmente nessa estrutura de autoridade e significado”. Ver em: Graham Clarke. The Photograph. Nova York: Oxford University Press, 1997, p. 145. 8 “A fotografia documentária, como aqui se refere, tem sobretudo a forma de uma reportagem, uma série (uma narrativa em imagens ou foto-essay, tradicionalmente em preto e branco), que serve de base a uma pesquisa (jornalística) aprofundada e que tem quer uma função informativa quer opinativa”. Ver em: Frits Gierstberg. “De kunst van het beschrijven voorbij. Ontwikkelingen in de documentaire fotografie”. In: B. Stigter (ed.), Sti lstaande Beelden. Opkomst en ondergang van de fotografie. Kunst en beleid in Nederland (7), Amsterdam, 1995, p. 178.
performatus.net
7
Eijkelboom mostra a realidade de violência regulada colocando algo em
cena. Não informa intencionalmente, mas deixa frequentemente que o acaso
desempenhe um papel. E, não obstante o seu empenho político, Eijkelboom
nunca trabalha com a retórica visual da reportagem social ou tenta impor o
envolvimento com imagens comoventes.
A forma como Eijkelboom encara o trabalho faz amiúde lembrar os
métodos de pesquisa da sociologia e da antropologia, mesmo não se tratando
de fatos objetivamente determináveis. Utiliza, por exemplo, o questionário e a
entrevista para obter dados em projetos como De Ideale Man (1978) e o projeto
de vestuário para o Gemeentemuseum de Haia (1981). Por vezes, aplica uma
amostra aleatória, como nos projetos Honderd Dagen (1979), em que andou
permanentemente com uma máquina fotográfica durante cem dias e a cada
hora fotografava num lugar aleatório, ou cem dias em que tirava uma fotografia
todos os dias no mesmo local. Em certos casos, pode-se falar de uma espécie de
laboratório em que são realizadas experiências sociais, como no projeto de
vestuário no Brooklyn Museum de Nova York (1979). E, de longe na maior parte
das séries, Eijkelboom visa estabelecer tipologias de rostos, casas ou vestuário e
classifica pessoas ou interiores com base em semelhanças exteriores.
Nas fotografias, projetos e performances até 1986 eram recorrentes os
mesmos temas: acerca de vestuário e de aparência; sobre a decoração da casa e
do local de trabalho; sobre pais e filhos; sobre as expressões do rosto; os sinais
de poder; a imagem da rua. Todos esses temas são variações de um mesmo
assunto: a interação entre a sociedade e o indivíduo. Para Eijkelboom é fulcral
questionar em que medida e de que forma a identidade pessoal é determinada
pelo ambiente social assim como cada indivíduo separadamente pode
determinar o seu próprio ambiente. Cada série de fotografias é repetidamente
um novo tratamento dessa questão. As primeiras fotografias dizem
essencialmente respeito a um autoexame. Não um exame psicológico da própria
personalidade, mas um exame da pessoa como identidade social. Eijkelboom
faz-se fotografar envergando roupas de outra pessoa ou fotografa outras
pessoas nas suas roupas. Ele disfarça-se e encena fotografias de família, em
que surge como filho com diferentes pais ou como pai com diferentes filhos e
performatus.net
8
companheiras. Faz-se fotografar enquanto cavaqueia animadamente em pé de
igualdade com políticos e artistas conhecidos. Faz-se retratar por um ministro,
toma lugar por detrás da secretária do burgomestre ou atavia-se conforme
descrições de outros. Em Identiteiten (1977) recorre ao que um grupo de pessoas
do seu passado pensa em que ele se terá tornado. Em De ideale man (1978)
parte das descrições que as mulheres fazem do seu tipo ideal de homem.
Em séries posteriores, Hans Eijkelboom desempenha um papel menos
enfático. O vestuário, a aparência e o interior são então mais direcionados para a
questão de como normas sociais formam a identidade e a autoimagem de
outros. Faz sociogramas visuais, por exemplo em Mooi (1979), em que relaciona
séries de retratos de pessoas que se acham mutuamente bonitas (mooi).
Retrata crianças e idosos nas roupas com que mais gostariam de se ver
reciprocamente ou pede a pessoas que partilhem a sua convivência em grupos,
como em Ode aan August Sander (1982). Eijkelboom fotografa esses grupos
partindo das características exteriores e apresenta o resultado juntamente com
a fotografia de como tinha feito a divisão. Em Hanôver, Eijkelboom fotografa
setenta e dois interiores em bairros claramente distintos na composição da
população. Fotografa homens em impermeáveis verdes e posições armadas no
centro da cidade de Arnhem.
Um tema que também regressa repetidamente na obra de Eijkelboom, é
o papel da própria fotografia. A arte conceitual, pode se dizer, é de tipo
especular; coloca questões críticas sobre a função e funcionamento das artes
visuais. Os artistas que utilizam a fotografia analisam esse meio e também seus
respectivos mecanismos sociais e implicações ideológicas. “A fotografia nunca é
inocente, é antes emoldurada por formas de representar que contêm sempre
uma carga ideológica”, afirma o crítico britânico Tony Godfrey na sua síntese
sobre a arte conceitual. “[...] uma arte conceitual da fotografia tem de ser sobre
o modo como as fotografias são usadas para criar significados”9. Uma fotografia
não é apenas uma representação da realidade, mas sempre também uma
interpretação da realidade. Essa perspectiva consiste igualmente na teoria da
9 Ver em: Tony Godfrey. Conceptual Art. Londres: Phaidon, 1998, p. 301.
performatus.net
9
fotografia. “Embora exista um sentido no qual a máquina fotográfica
efetivamente capta a realidade, não se limitando a interpretá-la, as fotografias
são tanto uma interpretação do mundo como as pinturas e os desenhos”10,
escreveu Susan Sontag em On Photography. Seguramente, na fotografia
documentária, os fotógrafos estão devidamente cientes de que as fotografias
podem confirmar ou invalidar valores e opiniões socialmente dominantes. Nas
suas séries de fotografias e projetos, Hans Eijkelboom não examina apenas a
influência recíproca de indivíduo e ambiente social, mas também o papel
mediador que a fotografia aí desempenha. As fotografias têm a possibilidade de
confirmar códigos visuais existentes mas também de criar novos significados. O
poder imaginativo da fotografia chega tão longe que consegue até mesmo
invocar uma nova realidade. Assim, as fotografias num álbum de família podem
construir uma história de família, as fotografias de jornal fazem as notícias e as
fotografias publicitárias têm a capacidade de influenciar fortemente o nosso
comportamento e a nossa aparência.
Em séries como In de krant (1973), na qual durante dez dias era possível
ver pelo menos uma fotografia de notícia no jornal, e no projeto Affiche (1978),
em que substituiu o modelo original de conhecidos cartazes publicitários,
Eijkelboom especula de forma muito direta sobre o poder construtivo da
fotografia. Também noutras séries, Eijkelboom remete para o papel mediador
da fotografia. Nas fotografias de família encenadas, por exemplo, indica o
funcionamento normativo do álbum fotográfico que é mantido em quase todas
as famílias. Em Poseren (1984), Eijkelboom mostra, numa série de retratos,
como as pessoas pensam que têm de se comportar quando sabem que vão ser
fotografadas. E, numa série como Mooi, Eijkelboom não só relaciona retratos de
pessoas que se acham reciprocamente atraentes, mas evoca também
implicitamente que muitas vezes apelidamos um rosto bonito de fotogênico.
O Instantâneo como Método
A fotografia de circunstância, que sem pretensão e normalmente de
10 Ver em: Susan Sontag. On Photography. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 1973, p. 6.
performatus.net
10
forma pouco prática registra os acontecimentos da vida cotidiana, é admirada
por alguns fotógrafos por ser mais sincera que a fotografia profissional. “Sou
uma amante apaixonada da snapshot porque esta é a imagem fotográfica que
chega mais perto da verdade”11, escreveu a fotógrafa norte-americana Lisette
Model, numa edição especial da revista de fotografia Aperture sobre a fotografia
do cotidiano. Para poder reproduzir a vida de modo mais direto, muitos
fotógrafos deixaram-se inspirar pelo instantâneo. O instantâneo, ou snapshot,
representa tradicionalmente a inabilidade do fotógrafo de família mas também,
e ultimamente mais do que nunca, a captação do imediato e a autenticidade,
qualidades que são a bandeira de muitos jovens artistas. “Desde que fotógrafos
como Nan Goldin e Wolfgang Tillmans, num estilo ligeiro, de tipo instantâneo,
mostram o seu ambiente direto, amigos e vida (sexual) até aos pormenores
mais pessoais a um público museológico, a fotografia considerada não
profissional ganhou significado”12, escreveu Hripsimé Visser a propósito de
fotografias de Uwe Laysiepen e Martine Stig. Nas artes visuais, a reprodução
espontânea da realidade exerceu uma enorme atração nos artistas, uma vez que
a captação imediata está diretamente relacionada à verdade. Foi assim nas
tendências realista e naturalista na pintura do século XIX e continua a ser dessa
forma. O naïf envolve-se na atraente aura do puro. O recente furor em torno da
Lomo Kompakt Automat, uma máquina fotográfica russa com algumas falhas
técnicas, confirma-o de novo. “Na arte detecta-se uma crescente repugnância
pela forma”, escreveu Bas Heine no NRC Handelsblad. “É considerada uma
barreira entre o artista e a sua experiência. Na fotografia [...] temos
presentemente o fenômeno das chamadas fotografias Lomo, homens e
mulheres disparam as suas máquinas a torto e a direito, para captar a ‘realidade
cotidiana, não maquiada’”13.
O artista Jeff Wall, num interessante ensaio, descreveu como a
fotografia de circunstância e a fotografia jornalística, em experiências de arte
11 Ver em: Jonathan Green (ed.), “The Snapshot”. Aperture, 1974 (19), n. 1, p. 6. 12 Ver em: Hripsimé Visser, “Ulayen Martine Stig”. Nieuwsbrief Bureau Amsterdam (40), 1998. 13 Ver em: Bas Heine, “‘Echt’ zegt niets”. NRC Handelsblad. Suplemento Cultural, 27 de nov. de 1998, p. 25.
performatus.net
11
conceitual, influenciaram a fotografia cotidiana.14 Segundo Wall, a fotografia
não pode afastar-se da imagem, como a pintura. Contudo, para renovar o meio,
os artistas procuraram outras possibilidades. Uma dessas possibilidades foi
uma nova reflexão sobre a fotografia documentária e a outra foi a discussão das
habilidades profissionais do fotógrafo.
Wall argumenta que os artistas conceituais, nos anos de 1960 e 1970,
aceleraram um desenvolvimento que estava já em curso na fotografia. A
fotografia pictural, ou seja, a fotografia direcionada para a pintura, foi criticada e
os fotógrafos começaram a partir cada vez mais das próprias possibilidades
específicas da máquina fotográfica. O modelo para essa inovação foi a fotografia
jornalística, mais determinada pela rapidez do obturador e o ângulo do visor do
que pela composição artística comedida. A arte conceitual apropriou-se do
documentário.
Bruce Nauman e Richard Long fotografaram as suas performances e
ações. Dan Graham, Douglas Heubler e Robert Smithson imitaram o
fotojornalismo nas suas experiências intelectuais. Em muitas experiências, a
reportagem só é utilizada como meio para documentar acontecimentos e ações.
Houve, portanto, uma deslocação da fotografia pictural no sentido da
fotodocumentação despretensiosa.
Para trazer à discussão as habilidades tradicionais do fotógrafo, Wall
considera a Pop Art importante. A Pop Art trouxe todo o tipo de expressões da
cultura popular produzida em massa no domínio das artes visuais. Imagens e
objetos fabricados de forma não artística. Também Joseph Beuys, que queria
democratizar a arte, no sentido político, com o slogan “todos são artistas” e
esbater a barreira social entre a arte e o kitsch, entre o talentoso e o não
talentoso, contribuiu para a mistura da cultura “elevada” e “baixa”. A arte
conceitual levou a pesquisa para a não arte, o objeto cotidiano e a arte amadora,
ao limite. E isso significou que o instantâneo passou a estar envolvido no idioma
da fotografia. “Muitos exemplos dessa mimese amadorista podem ser retirados
14 Ver em: Jeff Wall, “‘Marks of Indifference’: Aspects of Photography in, or as, Conceptual Art”. In: Ann Goldstein e Anne Rorimer (eds.). Reconsidering the Object of Art: 1965-1975: catálogo da exposição. Museu de Arte Contemporânea, Los Angeles, 1995, p. 247-267.
performatus.net
12
do corpus do fotoconceitualismo e poderia provavelmente dizer-se que quase
todos os fotoconceitualistas lhe cederam em alguma medida”15.
Logo desde os primeiros trabalhos, Hans Eijkelboom recorreu
expressamente às possibilidades do instantâneo. Na maior parte dos casos, as
suas fotografias não são mais do que um meio utilizável para criar um projeto
num sistema simples de documentação ou para documentar uma performance
sem aparatos. O caráter profissional das fotografias é frequentemente
acentuado também pela utilização de carimbos com data e local e pela adição de
mensagens e inscrições. Eijkelboom não imita instantâneos, tira as fotografias
normalmente para que a forma destas não desvie a atenção do assunto. Quando
fotografa o seu ambiente cotidiano, o instantâneo funciona essencialmente
como meio de colocar a realidade em imagem, o mais direta e espontaneamente
possível.
Mesas e Garrafas, Montes e Interiores
Em 1985, Eijkelboom mudou completamente de tema. As pessoas foram
substituídas por objetos, o ambiente social deu lugar ao ambiente do estúdio de
fotografia. Em consequência, modificou-se também o modo de fotografar. As
qualidades pictóricas das fotografias tornaram-se mais importantes e o formato
e a impressão converteram-se em partes essenciais da obra. Essa mudança
brusca e radical pode ser considerada lateral na obra de Eijkelboom, mas, por
outro lado, também se pode falar de um quase elo, incontornável, no seu
desenvolvimento.
Para Eijkelboom, tornou-se cada vez mais difícil fotografar pessoas,
secreta ou abertamente, e usar seguidamente esses retratos em séries
apresentadas ao público. Muitas vezes emperrou, além disso, em projetos nos
quais trabalhava em estúdio as fotografias tiradas na rua, alterando o contexto
dessas fotografias. Juntava fotografias de pessoas com fotografias de objetos,
por exemplo, representando vários tipos de cadeiras ao lado dos retratos.
Eijkelboom considerava, assim, estar violentando em demasia a realidade e
15 Ibidem.
performatus.net
13
intervinha desnecessariamente na esfera da vida de terceiros. Para ultrapassar
esse impasse, Eijkelboom decidiu avançar numa outra direção. Limitou o seu
campo de trabalho ao estúdio onde fotografou composições com diferentes
objetos. Dessa forma, podia criar a própria realidade, sem violentar a verdade e a
dignidade de outros. Como decidiu então criar o próprio mundo, desapareceu a
necessidade do instantâneo. Eijkelboom não documentava e não tentava
reproduzir a realidade cotidiana da forma mais direta possível. O que ele queria
era pôr em imagem, da forma mais bonita que poderia conseguir, as
composições que criava no ateliê.
A primeira série desses novos trabalhos de fotografia consistia em
composições com cadeiras e mesas. Eijkelboom utilizou modelos em escala que
interligava com construções criadas por ele próprio. Embora já não surjam
pessoas nessas fotografias, os vestígios da sua presença são claramente
detectáveis. Nesse sentido, pode até dizer-se que os temas dos primeiros
trabalhos continuam a desempenhar um papel. As fotografias evocam
associações com conversas que as pessoas podem ter, desde reuniões com
rigorosas ordens de trabalho até conversas soltas e diálogos ligeiros. Alude-se
igualmente à forma possível que podem assumir as relações mútuas numa
conversa dessas: quem importa e quem não importa, quem leva a sua avante e
quem não. Numa série subsequente de fotografias de garrafas, continuam
presentes as recordações do comportamento humano, mas de modo menos
enfático. Com as naturezas-mortas de garrafas pintadas de preto, Eijkelboom
virou-se drasticamente para a tradição desse gênero na pintura. Com a ordem, o
enquadramento estreito em que são colocadas e a forma como se olha para as
garrafas no sentido ascendente, essas naturezas-mortas tornam-se também
símbolos de poder e sedução, de domínio e de subordinação.
A aproximação à pintura aumentou ainda mais nas fotografias que se
seguiram às séries com garrafas. Eijkelboom fez estranhos montes e
construções arcaicas com escadas altas, em gesso, que despontam áridos e
inacessíveis em paisagens abandonadas. E, numa série subsequente, moldou os
interiores desses montes e construções. Através da ilusão perspectivista e do
formato das fotografias, por vezes com uns bons dois por três metros, o olhar é
performatus.net
14
atraído para um enorme espaço, seguido de uma sensação de mal-estar. Nesses
trabalhos fotográficos, Eijkelboom procurou invocar mais uma sensação de
beleza, a beleza da imponência.
Nessa última série, as fotografias tornaram-se equivalentes a pinturas.
Composição e perspectiva, tonalidades e formato são elementos importantes na
fotografia, a realidade é reduzida a construções abstratas da própria lavra do
autor. No entendimento, Eijkelboom, com essa série, chegou a um ponto em
que já tinha experimentado todas as possibilidades da fotografia pictórica, e
então, regressou ao tema inicial.
Memória Organizada
A 8 de novembro de 1992, Hans Eijkelboom iniciou um diário fotográfico,
que deveria manter até 8 de novembro de 2007. Durante quinze anos, queria
tirar entre uma e oitenta fotografias por dia, seis dias por semana. No ano 2000
passa da máquina comum para a fotografia digital. Até à data, o diário é o
projeto mais abrangente de Eijkelboom e contém muitos elementos do seu
trabalho anterior. O motivo para manter um diário é uma vez mais o desejo de
registar o seu ambiente cotidiano em imagens. Eijkelboom apresenta o mundo
pelo qual ele é formado e mostra simultaneamente o mundo tal como é
moldado por ele. Num caleidoscópio de imagens, em que cada mês é
apresentado um episódio num outro lugar, vêm-se as pessoas que encontra
diariamente, amigos e transeuntes na estrada, pessoas em reuniões e encontros
políticos, em recepções e aniversários, em inaugurações de exposições e em
todo o tipo de eventos similares. Ele mostra as imagens da televisão e a
publicidade, mostra o próprio interior e o dos outros, a decoração de lojas e
edifícios públicos. Fotografa bairros novos e partes antigas da cidade, praças e
parques, casas isoladas e ruas. Deixa-se fotografar fazendo compras, lavando a
louça, ou sentado numa esplanada. Para distribuir a sua atenção o melhor
possível e para obter a maior variedade de fotografias, Eijkelboom recorre a
esquemas. Divide a semana nos dias em que tira um determinado número de
fotografias e relaciona o número variado de fotografias a diferentes temas. Em
geral, Eijkelboom tira apenas uma fotografia de paisagens urbanas e, de partes
performatus.net
15
de uma cidade, tira, em regra, quatro. Para grupos de pessoas, por exemplo em
reuniões e recepções, Eijkelboom tira mais fotografias e o número de fotografias
aumenta proporcionalmente com o seu envolvimento na pesquisa. Para
classificações como posições armadas, casas com bandeiras, pneus ou todos os
homens com um determinado tipo de vestuário, Eijkelboom precisa de várias
fotografias, bem como para amostras em que fotografa, por exemplo, todos os
que passam numa esquina de uma determinada rua entre as duas e as três
horas da tarde.
À medida que o diário avança, ultrapassa a vida pessoal, e a quantidade
crescente de fotografias revela, a pouco e pouco, algo da vida que partilha com
outros. “Um diário é uma espécie de lupa”, escreve Stefan Kanfer, escritor norte-
americano. “Começa por refletir o diarista. Mas acaba a revelar o leitor”.16 Isso
aplica-se igualmente a esse diário fotográfico. As fotografias não são, aliás,
tiradas com a intenção de “mostrar o exclusivo ou especial desta vida”, mas
para “deixar ver o aspecto em mudança desta convivência”, escreveu
Eijkelboom.17 Ele continua a dar atenção ao vestuário, à expressão do rosto e à
imagem da rua, mas em menor grau do que nos seus trabalhos iniciais; a ênfase
agora está nos temas e relações sociais. Eijkelboom, no diário, opta por uma
perspectiva cultural histórica mais abrangente, trazendo o seu biótopo cultural
para a imagem e criando, assim, um arquivo no qual o tempo passa de forma
visível.
Nesse arquivo, as qualidades do instantâneo são aproveitadas ao
máximo. Segundo Eijkelboom, as fotografias permitem uma visão informal, sem
estilização, sem expressão, quase como se um autômato produzisse imagens do
fluxo da vida cotidiana, a informação mais fiável sobre um determinado período.
E não está desacompanhado nesta opinião. O fotógrafo e escritor Hans Aarsman
expressou ideia similar, nos seguintes termos:
Nos primeiros anos da fotografia, a técnica era ainda tão incipiente e complicada, que os fotógrafos raramente chegavam a um assunto. Já
16 Ver em: Hans Warren. Het dagboek als kunstvorm. Amsterdam: Bert Bakker, 1987, p. 13. 17 Ver em: Hans Eijkelboom, convite para a exposição no mês de janeiro de 1994, Slotervaartziekenhuis, Amsterdam.
performatus.net
16
se davam por satisfeitos se, depois do disparo, parecesse ficar alguma imagem na chapa sensibilizada. Talvez por isso as fotografias do século passado tenham um conteúdo de tanta realidade, como se olhássemos por uma janela para o exterior e o mundo passasse diante de nós. Chega-se à fotografia posterior, em que continuam a tentar causar impressão. A interpretação é considerada importante, todos querem ter visão, expressar-se, aproximar em zoom, seguir o que é interessante. Mas como pode alguém agora saber o que é interessante? Só cerca de cem anos depois se sabe. E por essa altura conseguir-se-á determinar, receio bem, que no século XX não se percebeu que havia demasiado muito conceito e demasiado pouco olho. Numa escala imaginária de autenticidade, as máquinas do nosso tempo não fariam má figura.18
Obviamente Eijkelboom não parte apenas de uma perspectiva pessoal.
Apenas não é agora possível olhar para o mundo com um olhar completamente
inocente, como um autômato. Eijkelboom seleciona, ordena e segue esquemas.
Organiza a sua memória. Mas tirando fotografias todos os dias durante um
período tão longo, por repetições e comparações, controlando o acaso e
registrando aquilo que habitualmente não é considerado, Eijkelboom atinge
uma certa validade global. Evidentemente, Eijkelboom desenvolveu, entretanto,
enquanto fotógrafo, uma competência especial, pela qual as suas fotografias
valem o esforço, mesmo a título individual. Porém, com a sua forma de
fotografar, também nesse sentido a sua assinatura pessoal é reduzida.
No diário fotográfico, Hans Eijkelboom consegue relacionar o pessoal
com o comum. E desse modo reforça aquilo que as fotografias já fazem:
objetivam a realidade. As fotografias paralisam o tempo eternamente e
estilhaçam o mundo em pequenos fragmentos. Tirar fotografias ao mundo, uma
série infinita de coisas: um sorriso, uma rua, um prato com comida, um quarto
de hotel, trastes velhos, alguém atrás de um balcão, tudo pode acabar numa
fotografia. Todas essas coisas podem ser ordenadas e comparadas, estudadas e
interpretadas. As fotografias colocam o mundo a uma certa distância, distância
essa que dá espaço ao pensamento. Quem folheia o diário de Hans Eijkelboom é
incentivado a pensar sobre o mundo que vê desfilar perante si, a refletir sobre
como o tempo se fixa nos sinais da rua, como a personalidade é um papel que
tem de ser desenhado, embora possam existir diferenças em semelhanças, ou 18 Ver em: Hans Aarsman, “Rijksweg A2 ter hoogte van Zaltbommel”. In: Kunstschrift (1996), p. 44-45.
performatus.net
17
como uma recordação se torna uma fotografia e como uma fotografia se
transforma em uma recordação.
PARA CITAR ESTE TEXTO
WILLEMS, Gerrit. “Documentos da Vida Cotidiana”. eRevista
Performatus, Inhumas, ano 2, n. 11, jul. 2014. ISSN: 2316-8102.
Tradução do neerlandês para o português de Susana Canhoto
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e o autor