Oscar WILDE_O Fantasma de Canterville

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  • O C R I M E D E L O R D E A R T H U R S A V I L E

    raios de sol, ela tomou repentinamente entre as suas a mo da dona da casa e perguntou-lhe: - Voc feliz, Sybil? - Claro que sou feliz, cara Lady Windermere. A senhora no ? -No tenho tempo de ser feliz, Sybil. Sempre gosto da ltima

    pessoa que me apresentam; mas, via de regra, logo que a conheo, canso-me dela. - E seus lees, Lady Windermere, no a satisfazem? - Oh, querida, no! Os lees servem apenas para uma tempo-

    rada. Logo que perdem as jubas, so as criaturas mais inspidas que existem. Ademais, portam-se muito mal, se a gente os trata realmen- te bem. Lembra-se daquele horrvel senhor Podgers? Era um grande impostor. Claro que isso pouco se me dava e, at mesmo quando ele queria dinheiro emprestado, eu o perdoava, mas no podia supor- tar seus galanteios. Na verdade, ele fez com que eu odiasse a quiro- mancia. Dedico-me, agora, telepatia. muito mais divertida. - A senhora no deve falar nada, aqui, contra a quiromancia,

    Lady Windermere; o nico assunto sobre o qual Arthur no gosta que as pessoas gracejem. Asseguro-lhe que ele a encara muito a srio. - No vai me dizer que ele acredita nisso. - Pergunte a ele, Lady Windermere. Ei-10. Lorde Arthur atravessava o jardim com um grande ramo de

    rosas amarelas na mo, e os dois filhinhos a danarem sua volta. - Lorde Arthur. - As suas ordens, Lady Windermere. - Voc no me dir que acredita em quiromancia, dir? - Claro que acredito - respondeu o jovem, rindo. - Mas por qu? - Porque devo a ela toda a felicidade de minha vida - mur-

    murou ele, lanando-se sobre uma cadeira de vime. - Meu caro Lorde Arthur, que que deve a ela? - Sybil - respondeu ele, entregando as rosas esposa e fitan-

    do-lhe os olhos cor de violeta. - Que tolice! - exclamou Lady Windermere. -Jamais ouvi

    tolice semelhante em toda minha vida.

    O fantasma de CantervilPe Fantasia hilo-idealista

    Quando o senhor Hiram B. Otis, o ministro americano, comprou Canterville Chase, todos lhe disseram que estava fazendo uma gand asneira, pois no havia dvida de que o lugar era mal- assombrado. Na verdade, o prprio korde Canterville, homem extremamente escrupuloso, achou que era de seu dever mencionar o fato ao senhor Otis, quando discutiram as condies do negcio. - Ns mesmos no quisemos mais morar na casa - disse

    Lorde Canterville -, desde que minha tia-av, a viva Duquesa de Bolton, foi acometida de um ataque, do qual jamais se recuperou, por sentir pousadas em seus ombros as mos de um esqueleto, quando se vestia para o jantar. E creio ser de meu dever dizer-lhe, senhor Otis, que o fantasma j foi visto por vrios membros de minha famlia que ainda esto vivos, e tambm pelo cura da par- quia, o Reverendo Augustus Dampier, que membro do King's College, em Cambridge. Depois do infeliz acidente ocorrido com a duquesa, nenhum de nossos criados mais jovens quis continuar a servir-nos, e Lady Canterville passou vrias noites sem dormir, em , conseqncia de misteriosos rudos que vinham do corredor e da biblioteca. - Meu lorde - respondeu o ministro -, eu ficarei com os

    mveis e o fantasma sob inventrio. Venho de um pas moderno, onde temos tudo que o dinheiro pode comprar; e como os nossos jovens, mal despertos, endeusam o Velho Mundo, e levam suas melhores atrizes e prima-donas, creio que se houvesse algo como

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    um fantasma, na Europa, ns o teramos em pouco tempo em um de nossos museus pblicos ou nos espetculos ambulantes. - Receio que este fantasma exista - disse Lorde Canterville,

    sorrindo -, embora possa ter resistido s propostas dos mais dinmicos empresrios americanos. H trs sculos, desde 1584, que ele bem conhecido, e costuma aparecer sempre antes da mor- te de algum membro de nossa famlia. - Quanto a isso, Lorde Canterville, o mdico da famlia faz a

    mesma coisa. Mas os fantasmas no existem, senhor, e eu acredito que as leis da Natureza no vo deixar de funcionar em homena- gem aristocracia inglesa. - Os senhores so realmente muito naturais, na Amrica -

    respondeu Lorde Canterville, que no entendera bem a ltima observao do senhor Otis -, e se o senhor no se importa de ter um fantasma em casa, est tudo bem. Lembre-se, porm, de que eu o avisei.

    Poucas semanas depois, foi efetuada a compra e, ao terminar a estao, o ministro e sua famlia mudaram-se para Canterville Chase. A senhora Otis, que fora em solteira a srta. Lucrcia R. Tappan, de West 53rd Street, uma famosa beldade nova-iorquina, era agora uma bela mulher de meia-idade, de lindos olhos e sober- bo perfil. Muitas senhoras americanas, ao deixarem seu pas natal, adotam um ar de m sade cronica, supondo que isso seja uma forma de refinamento europeu; mas a senhora Otis jamais incorre- ra em tal erro. Tinha uma constituio magnfica, e uma quantida- de realmente estupenda de pura vitalidade animal. Para dizer a verdade, era em muitos sentidos inteiramente inglesa e constitua um excelente exemplo do fato de que, hoje em dia, ns temos tudo em comum com os Estados Unidos, exceto, naturalmente, o idio- ma. Seu filho mais velho, batizado pelos pais, num momento de patriotismo, com o nome de Washington - o que ele jamais dei- xava de lamentar -, era um jovem louro, mais ou menos bonito, que se qualificara para a diplomacia americana ao vencer os ale- mes, durante trs estaes consecutivas, no cassino de Newport,

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    , que mesmo em Londres era conhecido como excelente bailarino. Suas nicas fraquezas eram as gardnias e a nobreza. Quanto ao mais, era muito sensato. A srta. Virginia E. Otis era uma garota de quinze anos, bela e esguia como uma cora, e com uma estupenda liberdade em seus grandes olhos azuis. Era uma admirvel amazo- na, e havia disputado certa vez com o velho Lorde Bilton, em seu pijnei, duas voltas no parque, ganhando por um corpo e meio e terminando a corrida exatamente diante da esttua de Aquiles, para imenso prazer do jovem Duque de Cheshire, que lhe propuse- ra imediatamente casamento e fora enviado na mesma noite a Eton, por seus tutores, mergulhado num mar de lgrimas. Depois de Virginia, vinham os gmeos, que eram comumente chamados "The Star and Stripes", porque recebiam contnuas surrasl. Eram ambos meninos encantadores e, com exceo do digno ministro, os nicos republicanos autnticos da famlia.

    Como Canterville Chase se acha situada a sete milhas de As- cott, a estao ferroviria mais prxima, o senhor Otis havia soli- citado telegraficamente uma waggonettez, e a famlia empreendeu a viagem no mais alegre estado de esprito. Era um formoso entar- decer de julho, e o ar estava impregnado da deliciosa fragrncia dos pinheirais. De quando em quando, ouviam uma pomba silves- tre a meditar sobre sua prpria e doce voz, ou viam, oculto entre OS fetos farfalhantes, o peito liso do faiso. Pequenos esquilos os espiavam das faias, e coelhos corriam velozmente atravs dos arbustos e por sobre montculos cobertos de musgo, com suas brancas caudas erguidas. Quando, porm, penetraram na alameda de Canterville Chase, o cu se cobriu de repente de nuvens, uma curiosa quietude se apoderou da atmosfera, um grande bando de

    '

    gralhas passou em silncio por sobre suas cabeas, e, antes que os

    - ' Aluso ao pavilho norte-americano, no caso "star and stripes" significando "estrelas e verges" produzidos pelas surras. (N. do T.)

    Carro de quatro rodas com dois bancos laterais, para seis ou mais pessoas. (N. do T. )

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    viajantes chegassem casa, comearam a cair algumas grandes gotas de chuva.

    Uma velha de vestido de seda zelosamente cuidado, touca e avental brancos, esperava-os nos degraus da escada. Era a senho- ra Umney, a governanta, a quem o senhor Otis, atendendo ao insistente pedido de Lady Canterville, consentira em conservar em seu emprego. A senhora Umney fez a todos uma profunda revern- cia, medida que desciam do carro, e disse com um modo arcaico, antiquado: - Sejam todos os senhores bem-vindos a Canterville Chase. Seguindo-a, os Otis atravessaram o belo salo Tudor e chega-

    ram biblioteca, um aposento longo e baixo, de carvalho negro trabalhado, no fim do qual havia uma grande janela policromada. Ali, encontraram j o ch preparado e, depois de tirarem seus abri- gos, sentaram-se e puseram-se a olhar em torno, enquanto a senhora Umney os servia.

    De repente, a senhora Otis percebeu no assoalho, perto da la- reira, uma mancha vermelho-escura e, sem compreender em abso- luto o que significava aquilo, disse senhora Umney: - Receio que tenham derramado algo aqui. - Sim, senhora - respondeu a velha governanta, em voz bai-

    xa. - Nesse lugar, derramou-se sangue. - Mas que coisa horrvel! - exclamou a senhora Otis. -

    No me agrada ter manchas de sangue numa sala. Quero que seja removida imediatamente.

    A velha sorriu e respondeu na mesma voz baixa, misteriosa: - o sangue de Lady Eleanore de Canterville, que foi assassi-

    nada nesse mesmo lugar por seu prprio marido, Sir Simon de Canterville, em 1575. Sir Simon sobreviveu a ela nove anos, e desapareceu subitamente, em circunstncias muito misteriosas. O cadver dele jamais foi descoberto, mas seu esprito culpado ainda hoje assombra Canterville Chase. A mancha de sangue tem sido muito admirada por turistas e outras pessoas, e no pode ser re- movida.

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    - Isso no passa de uma tolice -exclamou Washington Otis. O removedor de manchas Pinkerton's Champion e o detergente

    paragon limparo tudo num instante. E, antes que a horrorizada governanta pudesse interferir, ele j

    se havia posto de joelhos e esfregava rapidamente o assoalho com uma barra de algo que se assemelhava a um cosmtico negro. Em poucos instantes, no se via mais nenhum sinal de sangue. - Eu sabia que o Pinkerton resolveria isto! - exclamou triun-

    falmente o rapaz, lanando um olhar famlia, que o fitava com admirao.

    Mal acabara de proferir tais palavras, porm, quando um re- lmpago terrvel iluminou a sombria sala e um tremendo reboar de trovo fez com que todos se levantassem, enquanto a senhora Umney desmaiava. - Que clima monstruoso! - comentou calmamente o minis-

    tro americano, enquanto acendia um longo charuto. - Creio que este velho pas est to superpovoado que no h um clima decen- te para todos. Eu sempre fui de opinio que a emigrao era o ni- co remdio para a Inglaterra.

    -Meu caro Hiram - exclamou a senhora Otis -, que que podemos fazer com uma mulher que desmaia? - Cobr-lo na conta dos objetos quebrados - respondeu o

    ministro. - Ela no desmaiar mais depois disso. Poucos momentos depois, efetivamente, a senhora Umney

    recobrou os sentidos. No havia dvida, porm, de que estava profundamente perturbada, e advertiu severamente ao senhor Otis de que ele devia acautelar-se contra futuras complicaes na casa. - Tenho visto coisas, com meus prprios olhos, meu senhor

    - disse ela -, que arrepiariam os cabelos de qualquer cristo, e muitas e muitas noites no consegui dormir, devido s coisas terr- veis que aqui acontecem.

    Tanto o senhor Otis como sua mulher, porm, afirmaram calo- rosamente honesta senhora que no tinham medo de fantasmas, e aps invocar as bnos da Providncia para seus novos patres,

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    e fazer arranjos para um aumento de salrio, a velha governanta dirigiu-se, trpega, para seu prprio quarto.

    A tormenta rugiu violenta durante toda aquela noite, mas nada de particular ocorreu. Na manh seguinte, porm, ao descerem para o desjejum, encontraram de novo no assoalho a terrvel mancha de sangue. - No creio que possa ser uma falha do detergente Paragon

    - disse Washington -, pois j o experimentei em tudo. Deve ser o fantasma.

    Removeu pela segunda vez a mancha de sangue, mas na manh seguinte ela reapareceu de novo. Na terceira manh, tam- bm l estava, embora a biblioteca tivesse sido fechada pelo pr- prio senhor Otis, que levara a chave consigo para cima. Toda a famlia estava, agora, bastante interessada; o senhor Otis comeou a desconfiar de que fora demasiado dogmtico na negao da exis- tncia de fantasmas, a senhora Otis manifestou a inteno de tor- nar-se membro da Sociedade Psquica, e Washington preparou uma longa carta aos senhores Myers e Podmore sobre o tema da Permanncia de Manchas de Sangue quando relacionadas com algum crime. Naquela noite, porm, todas as dvidas quanto existncia de fantasmas foram afastadas para sempre.

    O dia tinha sido quente e ensolarado; e, na fresca da noite, toda a famlia saiu para um passeio de carro. No voltaram seno s nove horas, quando comeram uma ligeira refeio. A conversa no girou, de forma nenhuma, sobre fantasmas, de modo que no havia sequer aquelas condies primrias de expectao receptiva, que no raro precede a apresentao de fenmenos psquicos. Os assuntos discutidos, como fiquei sabendo atravs do senhor Otis, foram simplesmente os que constituem a conversa habitual dos americanos cultos de melhor classe, como por exemplo a imensa superioridade da Srta. Fanny Davenport sobre Sarah Bernhardt,

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    corno atriz; a dificuldade de conseguir milho verde, bolos de trigo- sarraceno e canjica, mesmo nas melhores casas inglesas; a impor- tncia de Boston no desenvolvimento do esprito da humanidade; as vantagens do sistema dos bilhetes de bagagem nas viagens fer- rovirias; e a doura do sotaque de Nova York, comparado maneira de falar arrastada de Londres. Referncia alguma foi feita ao sobrenatural, nem se aludiu, de modo algum, a Sir Simon de ~anterville. As onze horas, a famlia recolheu-se, e l pelas onze e meia todas as luzes estavam apagadas. Algum tempo depois, o senhor Otis foi despertado por um curioso barulho no corredor, do lado de fora de seu quarto. O rudo soava como o tinir de metal, e parecia cada vez mais prximo. O senhor Otis levantou- se imediatamente, riscou um fsforo e olhou as horas. Era exata- mente uma hora. Ele estava absolutamente calmo, e tomou o pr- prio pulso, que no estava, de modo algum, febril. O estranho barulho ainda sontinuava e, com este, distinguiu rudo de passos. Calou os chinelos, tirou do guarda-roupa um pequeno frasco, e abriu a porta. Bem sua frente, sob o lvido luar, viu um velho de aspecto terrvel. Os olhos eram vermelhos como brasas; os longos cabelos grisalhos caam-lhe sobre os ombros em cachos iguais; as vestes, de corte antiquado, estavam manchadas e esfarrapadas; e de seus pulsos e tornozelos pendiam pesados grilhes e algemas enferrujados. - Meu caro senhor - disse o senhor Otis - eu realmente

    devo insistir em que lubrifique essas correntes, e trouxe-lhe, para tal fim, um pequeno vidro do amany Rising Sun Lubricator. Dizem que inteiramente eficaz em apenas uma aplicao, e no invlucro h vrios testemunhos neste sentido de parte dos nossos mais eminentes telogos nativos. Deixo-o aqui, perto das velas da cama, e terei prazer em fornecer-lhe mais, caso o senhor o deseje.

    E, com essas palavras, o ministro dos Estados Unidos deixou o vidro sobre uma mesa de mrmore, aps o que, fechando a porta, voltou para a cama.

    Por um momento, o fantasma de Canterville permaneceu intei-

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    ramente imvel, tomado de natural indignao. Depois, lanando violentamente o vidro sobre o assoalho polido, seguiu s pressas pelo corredor, emitindo gemidos cavos e desprendendo uma espan- tosa luz verde. Quando chegava justamente ao topo da grande esca- da de carvalho, porm, uma porta se escancarou de repente, duas pequenas figuras vestidas de branco apareceram, e um grande tra- vesseiro passou zunindo por perto de sua cabea! No havia, eviden- temente, tempo a perder, de modo que ele, adotando apressadamen- te a quarta dimenso espacial como meio de fuga, desapareceu atra- vs de um armrio, e a casa quedou-se inteiramente quieta.

    Ao chegar a um pequeno aposento secreto, na ala esquerda, o fantasma, a fim de recobrar o flego, recostou-se num raio de luar e comeou a tentar compreender sua situao. Jamais, numa bri- lhante e ininterrupta carreira de trezentos anos, fora to grosseira- mente insultado. Pensou na viva herdeira, a quem ele causara um ataque de susto, quando ela se achava diante do espelho com seu colar de brilhantes; nas quatro criadas que tiveram ataques hist- ricos, quando ele simplesmente lhes sorrira atravs das cortinas de um dos quartos de hspedes; no cura da parquia, cuja vela ele apagara com um sopro, quando ele saa muito tarde, certa noite, da biblioteca, e que estivera desde ento sob os cuidados de Sir William Gull, um perfeito mrtir das desordens nervosas; e na ido- sa Madame de Tremouillac, que, tendo acordado cedo certa manh, e vendo um esqueleto sentado numa cadeira de balano junto lareira, a ler o seu dirio, ficara presa cama por seis sema- nas, com um ataque de febre cerebral e, em sua convalescena, reconciliara-se com a Igreja e rompera sua ligaso com aquele notrio ctico, Monsieur de Voltaire. Lembrou-se da noite terrvel em que o mau Lorde Canterville fora encontrado asfixiado em seu quarto de vestir, com um valete de ouros enfiado at a metade da garganta, e confessara, pouco antes de morrer, que ganhara frau- dulentamente, com aquela mesma carta, 50 mil libras esterlinas de Charles James Fox, em Crockford's, jurando que o fantasma a fizera engolir. Todos os seus grandes feitos lhe vinham de novo 5

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    mente, desde o caso do mordomo que se suicidara com um tiro, na copa, porque vira uma mo verde batendo na vidraa da janela, at o da bela Lady Stutfield, que se viria obrigada a usar sempre uma fita de veludo negro em volta do pescoo, a fim de ocultar a marca de cinco dedos que lhe haviam queimado a pele alva, e que acabara por suicidar-se, finalmente, lanando-se no viveiro de car- pas ao fim de King's Walk. Com o entusistico egosmo do verda- deiro artista, relembrou suas mais famosas estripulias, e sorriu amargamente para si mesmo, ao recordar sua ltima apario, como "Red Ruben, ou o Beb Estrangulado", seu dbut como "Gaunt Gibeon, o Vampiro de Bexley Moor", assim como o furo- re que causara numa solitria noite de junho, simplesmente por haver jogado ninepins3, com seus prprios ossos, na quadra de tnis. E, depois disso tudo, vinham uns miserveis americanos modernos oferecer-lhe o lubrificante Rising Sun e jogar-lhe traves- seiros na cabea! Era inteiramente insuportvel. Alm do mais, fantasma algum, em toda a histria, jamais havia sido tratado de tal maneira. Resolveu, pois, vingar-se, e ficou at o nascer do dia entregue a uma atitude de profunda meditao.

    Na manh seguinte, quando a famlia Otis se reuniu para o desje- jum, houve uma mais ou menos longa discusso sobre o fantasma. O ministro dos Estados Unidos ficara naturalmente um tanto aborrecido, por verificar que o seu presente no havia sido aceito. - No desejo de forma alguma - disse - causar qualquer .

    dano pessoal ao fantasma, e devo acrescentar que, considerando o tempo que ele tem estado na casa, no me parece de modo algum delicado que se atirem travesseiros contra ele.

    - 3Jogo de boliche, jogado com nove pinos. (N. do T.)

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    Observao muito justa, que - lamento diz-lo - fez com que os gmeos rompessem em gargalhadas. - Por outro lado - prosseguiu o ministro -, se ele realmen-

    te se recusa a usar o lubrificante Rising Sun, teremos de tirar-lhe os grilhes. Seria inteiramente impossvel dormir com tal barulho junto s portas do quartos.

    Pelo resto da semana, porm, eles no foram incomodados, e a nica coisa que continuou ainda despertando alguma ateno foi a constante renovao da mancha de sangue no assoalho da biblioteca. Aquilo era bastante estranho, certamente, pois a porta era sempre fechada, noite, pelo senhor Otis, e as janelas manti- das completamente trancadas. A cor camalenica, tambm, da mancha, suscitava muitos comentrios. Certas manhs, era verme- lha (quase escura), depois escarlate, depois purpurina, e um dia, quando os Otis chegaram para as preces familiares, segundo os simples ritos da Igreja Episcopal Americana Reformada e Livre, encontraram-na cor de esmeralda, muito viva. Tais mudanas cali- doscpicas divertiam muito, naturalmente, o grupo, e todas as noites se faziam livremente apostas sobre o assunto. A nica pes- soa que no participava da brincadeira era a pequena Virginia, que, por alguma razo inexplicada, se mostrava sempre bastante angustiada vista da mancha de sangue, e quase sempre chorava nas manhs em que esta era verde-esmeralda.

    A segunda apario do fantasma foi na noite de sbado. Logo aps terem ido deitar-se, foram subitamente alarmados por tre- mendo barulho no salo. Descendo s pressas, verificaram que uma antiga armadura havia sido destacada do seu estrado e cara sobre o piso de pedra, enquanto o fantasma de Canterville, senta- do numa cadeira de alto espaldar, esfregava os joelhos com urna expresso de vivo sofrimento no rosto. Os gmeos, que haviam trazido consigo os seus lanadores de ervilhas, dispararam imedia- tamente dois gros contra ele, com aquela exatido de alvo que somente se consegue mediante longa e meticulosa prtica contra um professor, enquanto o ministro dos Estados Unidos lhe aponta'

    va o revlver e intimava-o, de acordo com a etiqueta californiana, a erguer as mos para o alto! O fantasma ps-se de p com um gande grito de dio e lanou-se sobre eles como uma nvoa, apa- gando, ao passar, a vela de Washington, e deixando-os a todos em completa escurido. Ao chegar ao topo da escada, refez-se e resol- veu lanar a sua famosa e demonaca gargalhada, cuja eficincia descobrira em mais de uma ocasio. Dizia-se que ela tornara os

    de Lorde Raker inteiramente grisalhos numa nica noite, e levara, sem dvida, trs das governantas francesas de Lady Can- terville a abandonarem o emprego antes do fim do ms. Deu, assim, a sua mais horrorosa gargalhada, que reboou repetidas ve- zes pelas abbadas do velho teto. Mal o terrvel eco se extinguiu, porm, a porta abriu-se e a senhora Otis saiu de seus aposentos com uma leve camisola azul. - Receio que o senhor no esteja passando nada bem - dis-

    se ela -, e trouxe-lhe uni vidro da tintura do dr. Dobell. Se for indigesto, o senhor ver que se trata de um excelente remdio.

    O fantasma fulminou-a com um olhar furioso, e ps-se ime- diatamente a preparar-se para converter-se num grande co preto, proeza que o tornara justamente renomado e qual o mdico da famlia sempre atribura a permanente idiotia do tio de Lorde Canterville, o nobre Thomas Horton. O rudo de passos que se aproximavam, todavia, f-lo hesitar em seu terrvel propsito, de modo que se contentou em tornar-se levemente fosforescente e a desaparecer com um profundo gemido cemiterial, bem no momen- to em que os gmeos dele se aproximavam.

    Ao chegar ao seu quarto, o fantasma fraquejou por completo, tornando-se presa de violenta agitao. A vulgaridade dos gmeos, assim como o total materialismo da senhora Otis eram-lhe, por "to, extremamente molestos, mas o que o angustiava mais, na "alidade, era no ter podido usar sua armadura. Julgava que at americanos modernos se sentiriam impressionados ante o espet- culo de um espectro com armadura, se no por qualquer outra "230, pelo menos por respeito ao seu poeta nacional Longfellow,

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    cuja atraente e graciosa poesia at a ele mesmo o distrara durante muitas horas tediosas, quando os Canterville se encontravam na cidade. Alm disso, era o seu prprio traje. Usara-o com xito no torneio de Kenilworth, e fora muito elogiado pela prpria Rainha Virgem. No entanto, ao vesti-lo, sentira-se completamente sobre- pujado pelo peso da enorme couraa e do elmo de ferro, e cara pesadamente sobre o piso de pedra, ferindo bastante os joelhos e esfolando os ns dos dedos da mo direita.

    Durante alguns dias, ficou bastante doente, e dificilmente saiu de seu quarto, exceto para conservar devidamente a mancha de sangue. Todavia, cuidando-se com grande ateno, restabeleceu-se e resolveu fazer uma terceira tentativa de assustar o ministro dos Estados Unidos e sua famlia. Escolheu uma sexta-feira, dia 17 de agosto, para seu reaparecimento, e passou a maior parte daquele dia a examinar seu guarda-roupa, decidindo-se finalmente por um grande chapu desabado com uma pena vermelha, uma mortalha com babados nos punhos e no pescoo, e uma adaga enferrujada. Quase ao anoitecer, desabou uma violenta tempestade, com um vento to forte que todas as portas e janelas da velha casa batiam e rangiam. Era, na verdade, o tempo que ele adorava. Seu plano de ao era o seguinte: entraria silenciosamente no quarto de Washington Otis, falaria com ele de um modo incompreensvel, ao p da cama, e se apunhalaria trs vezes na garganta, ao som de msica suave. Sentia particular ressentimento por Washington, pois sabia muito bem que era ele quem tinha o hbito de remover a famosa mancha de sangue de Canterville, com o detergente Paragon, de Pinkerton. Depois de reduzir o imprudente e temer- rio jovem a um estado de abjeto terror, seguiria para o aposento ocupado pelo senhor Otis e sua esposa, e ali colocaria uma mo pegajosa sobre a testa da senhora Otis, sibilando ao ouvido de seu trmulo marido os espantosos segredos do' ossrio. Quanto pequena Virginia, ainda no havia tomado nenhuma deciso defi- nitiva. Esta jamais o ofendera de modo algum, e era linda e am- vel. Uns poucos gemidos, vindo do guarda-roupa, pareceram-lhe

    que suficientes, ou, caso no conseguisse despert-la dessa maneira, poderia puxar o cobertor com dedos crispados. Quanto aos gmeos, estava absolutamente resolvido a dar-lhes uma boa lio. A primeira coisa a fazer, sem dvida, era sentar sobre o pei- to dos dois, para causar-lhes a asfixiante sensao do pesadelo. Depois, como suas camas se achavam muito prximas uma da outra, deitar-se-ia entre ambos adotando a forma de um cadver verde e gelado, at paralis-los de medo, e finalmente, se libertaria da mortalha e se arrastaria pelo aposento, com ossos esbranquia- dos e um s olho, errante, desempenhando o papel de "O Idiota Daniel ou o Suicdio do Esqueleto", um role no qual havia causa- do muitas vezes grande efeito e que considerava comparvel sua famosa criao de "Martin, o Manaco, ou o Mistrio Mas- carado".

    As dez e meia, ouviu que a famlia se recolhia. Por algum tem- po, incomodaram-no os brbaros gritos e risadas dos gmeos, que, com a despreocupada alegria dos colegiais, se divertiam a valer, antes de repousar. As onze e quinze, porm, tudo ficou em silncio e, ao soar meia-noite, o fantasma saiu de seu quarto. A coruja batia as asas de encontro s vidraas, o corvo grasnava no velho teto e o vento vagava gemendo ao redor da casa, como uma alma penada; mas a famlia Oris dormia inconsciente de sua condena- so, e acima da chuva e da tormenta, o fantasma ouvia o ronco regular do ministro dos Estados Unidos. Saiu furtivamente de seus aposentos, com um sorriso maligno na boca cruel e enrugada, e a lua ocultou o rosto atrs de uma nuvem, quando ele passou junto grande janela do mirante, onde suas armas, bem como as de sua assassinada esposa, brilhavam em ouro e azul. Deslizava como uma perversa sombra e, enquanto avanava, as prprias trevas , pareciam odi-lo. A certa altura, julgou ouvir que algum chama- va e deteve-se; mas era apenas o ladrar de um co da Fazenda Ver- melha, e ele prosseguiu em sua marcha, proferindo estranhas pra- gas do sculo XVI, a brandir de vez em quando a enferrujada ada- ga no ar da meia-noite. Chegou, finalmente, curva do corredor

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    que conduzia ao aposento do desventurado Washington. Detevese um momento, o vento soprando seus longos cabelos grisalhos e fazendo esvoaar em grotescas e fantsticas dobras o indescritvel horror da sua mortalha cadavrica, e nesse instante o relgio soou as doze e quinze.

    Era chegado, ele achou, o momento oportuno. Sorriu gostosa- mente consigo mesmo, ao dobrar a curva do corredor, mas, mal o fez, retrocedeu com um lastimoso gemido de terror, e ocultou o plido rosto nas longas e ossudas mos. Diante dele, achava-se parado um espectro horrvel, imvel como uma esttua esculpida e monstruoso como o sonho de um louco! Tinha a cabea calva e brilhante, o rosto redondo, gordo e branco, e um riso repulsivo parecia deformar-lhe as feies, convertendo-as num eterno sorri- so. Seus olhos expeliam raios de luz escarlate, a boca era um amplo manancial de fogo, e uma vestimenta horrvel, como a do prprio fantasma de Canterville, envolvia com suas silenciosas neves suas formas de tit. Sobre o peito, via-se um carto onde se achava escrito algo em caracteres antigos, ao que parecia um per- gaminho de ignomnia, um relatrio de insanos pecados, um calendrio espantoso do crime, e, na mo direita, empunhava uma cimitarra de ao cintilante.

    Jamais tendo visto antes um fantasma, o fantasma de Can- terville foi, naturalmente, tomado de terrvel pnico e, aps lanar um segundo e apressado olhar a medonha apario, fugiu de volta ao seu quarto, embaraando-se na longa mortalha enquanto cor- ria pelo corredor e deixando cair, por fim, a enferrujada adaga dentro das botas do ministro, onde foi encontrada, na manh se- guinte, pelo mordomo. Na intimidade de seus prprios aposentos, lanou-se sobre uma pequena enxerga que lhe servia de -leito e ocultou o rosto sob as cobertas. Decorridos alguns minutos, porm, o valente e antigo esprito dos Canterville prevaleceu e ele resolveu falar com o outro fantasma logo que amanhecesse. Assim, mal o alvorecer prateou as colinas, voltou ao lugar onde vira pela primeira vez o espantoso espectro, pensando que, afinal de contas,

    C O N T O S E N O V E L A S DE O S C A R W I L D E

    dois fantasmas valiam mais do que um, e que com a ajuda de seu novo amigo poderia haver-se com os gmeos sem perigo. Mas, ao ,--legar l, deparou com um espetculo terrvel. Algo havia ocorri- do, evidentemente, com o outro espectro, pois seus olhos fundos careciam por completo de luz, a cintilante cimitarra lhe havia ca- do da mo e ele estava apoiado parede, numa atitude forada e incmoda. O fantasma de Canterville lanou-se sobre ele, tomou- o nos braos, e ento, para seu grande horror, a cabea do espec- tro se desprendeu e rolou pelo cho, o corpo adotou uma postura reclinada, e o fantasma de Canterville percebeu que estava abra- $ando um alvo cortinado de cama, uma vassoura e uma faca de cozinha, e que um nabo oco jazia a seus ps! Incapaz de compreen- der aquela curiosa transformao, apanhou o carto com mpeto febril e, ali, luz cinzenta do alvorecer, leu estas terrveis palavras:

    O FANTASMA DE OTIS nico Verdadeiro e Original Cuidado com as Imita~es.

    Todos os Outros So Falsificados.

    Compreendeu tudo, ento, com absoluta clareza. Fora vtima de uma farsa; haviam-no vencido e superado em seu engenho! O velho ar dos Canterville surgiu em seus olhos; apertou as desden- tadas gengivas e, erguendo as enrugadas mos sobre a cabea, jurou, de acordo com a pitoresca fraseologia da escola antiga, que quando Chantecler fizesse soar duas vezes sua alegre trompa, fei- tos de sangue teriam lugar, e o crime sairia ronda com silencio- sos passos.

    Mal havia feito esse terrvel juramento, um galo cantou sobre 0 telhado vermelho de uma herdade distante. O fantasma de Canterville deu um riso longo, grave e amargo e esperou. Esperou hora aps hora, mas o galo, por algum estranho motivo, no tor- "OU a cantar. As sete e meia, finalmente, a chegada das criadas

  • O F A N T A S M A D E C A N T E R V I L L E

    obrigou-o a abandonar sua horrvel viglia, e ele voltou com passo majestoso a seus aposentos, pensando em sua v esperana e malo- grado propsito. Consultou vrios livros antigos de cavalaria, que muito lhe agradavam, e constatou que em todas as ocasies em que o seu juramento fora usado Chantecler sempre havia cantado pela segunda vez. - Maldito seja esse perverso galo! - murmurou. -J houve

    um dia em que, com minha forte lana, lhe atravessei a garganta e o fiz cantar para mim, e foi um canto de morte!

    Acomodou-se, depois, num confortvel atade de chumbo e l ficou at o anoitecer.

    No dia seguinte, o fantasma sentia-se muito fraco e fatigado. A ter- rvel excitao das ltimas quatro semanas comeava a revelar seus efeitos. Seus nervos estavam completamente arrasados e ele se sobressaltava ao mais leve rudo. Durante cinco dias permaneceu no quarto e, por fim, resolveu deixar de lado o detalhe da mancha de sangue do assoalho da biblioteca. Se a famlia Otis no a que- . ria, era porque, evidentemente, no a merecia. Tratava-se, positi- vamente, de gente que vivia em plano inferior, entregue a uma exis- tncia material, e que era de todo incapaz, assim, de apreciar O valor simblico dos valores sensoriais. A questo das aparies fantasmais e o desenvolvimento dos corpos astrais eram, sem dvi- da, assunto bastante diferente e, na realidade, escapava por com- pleto sua percepo. Seu dever solene era aparecer no corredor, uma vez por semana, e dizer coisas ininteligveis da grande janela do balco coberto, de estilo ogival, na primeira e na terceira quar- ta-feira de cada ms, e ele no via meio de faltar honrosamente a essas obrigaes. Sua vida havia sido, certo, bastante desventura- da, mas, por outra parte, ele era muito escrupuloso quanto a todas as coisas relacionadas com o sobrenatural. Assim, nos trs sbados

    C O N T O S E N O V E L A S D E O S C A R W I L D E

    atravessou o corredor, como fazia habitualmente, entre a meia-noite e as trs horas, tomando todas as precaues poss- veis para evitar que o ouvissem ou vissem. Tirou as botinas, andou com toda a leveza possvel por sobre o velho assoalho j carcomi- do, usou uma grande capa de veludo negro e teve todo o cuidado de empregar o lubrificante Rising Sun para azeitar suas correntes. Devo reconhecer que lhe custou muito adotar este ltimo tipo de proteo. Certa noite, porm, quando a famlia estava jantando, entrou furtivamente nos aposentos do senhor Otis e levou consigo o frasco. Sentiu-se, no primeiro momento, um tanto humilhado, mas logo se mostrou bastante razovel para compreender que o invento tinha muito de bom, e que at certo ponto servia a seus objetivos. Mas, apesar de tudo, no deixou de ser importunado. Estendiam-lhe continuamente barbantes atravs do corredor, nos quais tropeava no escuro, e certa vez, quando estava preparado para desempenhar o papel de "Isaac, o Negro, ou O Couteiro de Hugley Woods", foi vtima de uma cilada cruel, e pisara numa escorregadeira que os gmeos haviam preparado desde a entrada da Alcova dos Tapetes at o topo da escada de carvalho. Esta lti- ma ofensa enfureceu-o tanto que ele resolveu fazer um esforo final para afirmar sua dignidade e posio social, e decidiu visitar os insolentes jovens de Eton na noite seguinte, em sua famosa caracterizao de "O Temerrio Rupert ou o Conde Sem Cabea".

    O fantasma no aparecia com esse disfarce havia mais de setenta anos; na verdade, deixara de us-lo desde que assustara de tal maneira a formosa Lady Barbara Modish que ela rompera seu compromisso com o av do atual Lorde Canterville e fugira para Gretna Green com o belo Jack Castleton, declarando que nada a induziria a casar-se com o membro de uma famlia que permitia que to horrendo fantasma passeasse, meia-noite, pelo terrao. O pobre Jack fora morto em duelo, mais tarde, por Lorde Canterville, em Wandsworth Common, e Lady Barbara sucumbira trespassada de dor em Tunbridge Wells, antes de terminado o ano - de modo que fora um grande xito. Tratava-se, no entanto, de

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    uma "caracterizao* extremamente difcil, vinculada a um dos grandes mistrios do mundo sobrenatural, ou, para usar um termo mais cientfico, do mundo natural superior, e o fantasma necessitou de trs horas inteiras para fazer seus preparativos. Finalmente, tudo ficou pronto e ele se sentiu muito satisfeito com seu aspecto. As grandes botas de montaria, que faziam parte de seu traje, ficavam- lhe um pouco folgadas, e ele s conseguiu encontrar um dos dois trabicos, mas, de um modo geral, ficou muito satisfeito; e, uma e quinze, saiu sorrateiramente da sala revestida de lambris e seguiu pelo corredor. Ao chegar ao aposento ocupado pelos gmeos, que, convm notar, se chamava Alcova Azul, devido cor de suas colga- duras, deparou com a porta entreaberta. Desejando fazer uma entrada espetacular, escancarou-a de chofre e recebeu sobre si um pesado cntaro cheio de gua, que o ensopou at os ossos, e do qual conseguiu livrar o ombro esquerdo apenas por algumas polegadas. No mesmo instante, ouviu risos abafados, que vinham do leito de quatro colunas. Foi to intenso o abalo que sofreu o seu sistema nervoso que voltou correndo, com a maior diligncia possvel, aos seus aposentos, e no dia seguinte ficou prostrado no leito, acometi- do de grave resfriado. A nica coisa que o consolou, em todo aque- le caso, foi no haver levado consigo a cabea, pois, se o tivesse fei- to, as conseqncias poderiam ter sido sumamente graves.

    Renunciou, ento, a toda esperana de inspirar temor quela grosseira famlia norte-americana e contentou-se em deslizar pelos corredores com chinelos listrados, um grosso cachen em torno do pescoo, por temor s correntes de ar, e um pequeno arcabuz, a fim de defender-se caso fosse atacado pelos gmeos. O golpe final de que foi vtima ocorreu a 19 de setembro. Havia descido ao grande salo de recepo, certo de que ali, pelo menos, no seria importunado, e divertia-se fazendo observaes sardnicas acerca das grandes foto- grafias Saroni do ministro dos Estados Unidos e sua esposa, que substituam agora os retratos de famlia dos Canterville. Vestia com simplicidade, mas tambm com dignidade, uma longa mortalha sal- picada de mofo tumular, tinha a mandbula envolta numa faixa de

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    linho amarelo, e empunhava uma pequena lanterna e uma p de Na realidade, estava caracterizado para o papel de "Jonas,

    o hsepulto, ou O Ladro de Cadveres de Chertsey Barn*, uma de suas mais notveis criaes, que os Canterville tinham razo de sobra para recordar, pois que constitua a verdadeira origem de sua rka com o vizinho Lorde Rufford. Eram mais ou menos umas duas e quinze da madrugada e, segundo parecia, no havia movimento algum na casa. Mas quando se dirigia biblioteca, para ver se ainda restava algum sinal da mancha de sangue, dois vultos saltaram subi- tamente sobre ele, vindos de um canto escuro, e, agitando frenetica- mente os braos no ar, gritaram-lhe ao ouvido: "Buu!"

    Tomado de pnico, o que, dadas as circunstncias, era simples- mente natural, o fantasma lanou-se em direo escada, mas veri- ficou que Washington Otis l o esperava, empunhando a grande mangueira do jardim. Vendo-se assim cercado por seus inimigos, e posto quase contra a parede, o fantasma desapareceu nc' interior do grande aquecedor de ferro, que por sorte no estava aceso, e teve de retornar a seu quarto atravs de tubos e chamins, l chegando em tremendas condies de sujeira, desordem e desespero.

    Depois disso, no tornou a ser visto em nenhuma expedio noturna. Os gmeos estiveram sua espera em diversas ocasies, e cobriram os corredores de casca de nozes, para grande desagrado de seus pais e dos criados, mas isso de nada serviu. Era por demais evidente que o fantasma estava to ofendido que no queria apa- recer. O senhor Otis, por conseguinte, reiniciou sua grande obra sobre a histria do Partido Democrtico, a que vinha se dedicando havia muitos anos; a senhora Otis organizou um maravilhoso piquenique, em que foram servidos mexilhes com milho assado sobre pedras quentes, o que assombrou todo o distrito; os meninos . dedicaram-se ao lacrosse4, ao euchres, ao pquer e a outros jogos nacionais norte-americanos; e Virginia, enquanto isso, cavalgava

    'Jogo de bola canadense, semelhante ao futebol. (N. do T.) Nome de um jogo de cartas. (N. do T.)

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    pelas alamedas em seu pnei, em companhia do jovem Duque de Cheshire, que viera passar sua ltima semana de frias em Can. terville Chase. A suposio geral era a de que o fantasma embora, e na verdade o senhor Otis chegou a escrever uma carta a respeito a Lorde Canterville, que, em resposta, lhe manifestou seu grande prazer por essa notcia, enviando as melhores congratula- es digna esposa do ministro.

    Os Otis, porm, estavam enganados, pois o fantasma ainda continuava na casa e, apesar de achar-se agora quase invlido, no estava disposto a deixar as coisas assim, principalmente ao ficar sabendo que, entre os convidados, se achava o jovem Duque de Cheshire, cujo tio-av, Lorde Francis Stilton, apostara certa vez uma centena de guinus com o Coronel Carbury, dizendo que teria um jogo de dados com o fantasma de Canterville, e fora encontra- do na manh seguinte num estado de paralisia to irrecupervel que, apesar de continuar vivendo at idade avanada, jamais con- seguiu dizer outra coisa seno "Seis duplos". Na poca, essa hist- ria foi muito difundida, embora, naturalmente, em respeito aos sentimentos das duas nobres famlias, se tivesse feito todo o poss- vel por conserv-la em segredo; mas uma narrao completa de todos os fatos relacionados com esta pode ser encontrado no ter- ceiro tomo das Recordaes do prncipe regente e de seus amigos, de Lorde Tattle. Assim, o fantasma sentia-se muito ansioso, natu- ralmente, por demonstrar que no havia perdido sua influncia sobre os Stilton, aos quais, na verdade, se achava ligado por paren- tesco distante, pois sua prima-irm se casara em secondes noces com o sieur de Bulkeley, descendendo em linha direta dessa unio, como todos sabem, os duques de Cheshire. Por conseguinte, to- mou as medidas necessrias para aparecer ao jovem enamorado de Virginia, em sua famosa caracterizao "O Monge vampiro ou O Beneditino Exangue", uma criao to medonha que, ao v-la, a idosa Lady Startup, numa vspera de Ano-Novo fatal, em 1764, lanara os mais penetrantes gritos, que culminaram em violenta apoplexia, da qual morrera decorridos trs dias, depois de deser-

    C O N T O S E N O V E L A S D E O S C A R W I L D E

    dar os Canterville, seus parentes mais prximos, e de deixar todo o seu dinheiro ao seu boticrio de Londres. No ltimo momento, porm, o terror que lhe inspiravam os gmeos impediu o fantasma de abandonar seus aposentos, e o pequeno duque dormiu em paz, sob o grande dossel emplumado da Alcova Real, e sonhou com Virginia.

    Poucos dias depois, Virginia e seu cavalheiro de cabelos encaraco- lados foram cavalgar pelos prados de Brockley, onde a jovem ras- gou de tal forma o vestido, atravessando uma sebe, que, ao voltar para casa, resolveu subir pela escada de servio, a fim de no ser vista. Ao passar correndo pela Alcova dos Tapetes, cuja porta esta- va por acaso aberta, pareceu-lhe ver algum l dentro, e supondo se tratasse da criada de sua me, que s vezes levava para ali o seu trabalho, deu uma olhada para pedir-lhe que lhe cosesse as vestes. Com enorme surpresa, porm, deparou com o prprio fantasma de Canterville! O velhinho estava sentado junto janela, contem- plando o adejar do envelhecido ouro das rvores amarelas e a dan- a louca das folhas avermelhadas ao longo da extensa alameda. Tinha a cabea apoiada na mo, e toda a sua atitude revelava pro- funda depresso. Na verdade, parecia to desamparado e em to pssimas condies que a pequena Virginia, cuja primeira inteno fora a de correr e trancar-se em seu quarto, se sentiu cheia de pie- dade e disposta a procurar consol-lo. To leve era o seu pisar, e to grande a melancolia do fantasma, que este s percebeu sua . Presena quando a jovem lhe dirigiu a palavra. - Lamento muito a sua situao - disse Virginia. - Meus

    irmos, porm, regressam amanh a Eton, e ento, se o senhor se Portar bem, ningum o importunar. - absurdo pedir-me que me porte bem - respondeu o fan-

    tasma, fitando com assombro a linda jovenzinha que se atrevia a

  • E CONTOS E NOVELAS DE OSCAR W I L D E O F A N T A S M A D E C A N T E R V I L L E falhar-lhe. - Inteiramente absurdo. Preciso fazer soar minhas cor- rentes, e gemer atravs das fechaduras, e rondar pela noite, se a isso que a senhorita se refere. Esta a minha nica razo de existir. - Isso no uma razo para existir, e o senhor sabe que foi

    muito mau. A senhora Umney nos disse, no dia de nossa chegada, que o senhor havia matado sua esposa. - Bem, admito-o - replicou, impaciente, o fantasma. - Mas

    tratava-se de um assunto exclusivamente familiar e que s a mim dizia respeito. - uma coisa muito errada matar os outros - disse Virginia,

    que em certas ocasies revelava uma doce gravidade puritana, her- dada de algum antigo antepassado da Nova Inglaterra. - Oh, detesto a severidade barata da tica abstrata! Minha es-

    posa era muito feia, sua gola nunca estava devidamente engoma- da, e no sabia nada de cozinha. Matei um cervo em Hugley Woods, um animal magnfico ... e sabe como ela o mandou mesa? De qualquer forma, isto agora no interessa, pois est tudo acaba- do, e no me parece nada bem que os irmos de minha mulher me tenham feito morrer de fome, apesar de eu a haver matado. - Morrer de fome? Oh, senhor fantasma ... digo, Sir Simon ...

    Tem fome? Tenho aqui alguma coisa no cesto. Acaso lhe agradaria? - No, obrigado. Agora no como mais coisa alguma: mas,

    de qualquer forma, a senhorita muito boa e muito mais amvel que o resto de sua horrvel, grosseira, vulgar e desonesta famlia. - Um momento! - exclamou Virginia, batendo o p. - O

    senhor que grosseiro, horrvel e vulgar, e quanto ao que se refe- re desonestidade, o senhor sabe muito bem que roubou as tintas de minha caixa para dar mais realce a essa ridcula mancha de san- gue da biblioteca. Primeiro, tirou todos os meus vermelhos, inclu- sive o vermelho, e eu no pude mais pintar crepsculos; depois, levou o verde-esmeralda e o amarelo-cromo; finalmente, s me ficaram o ndigo e o branco de zinco, de modo que eu s podia pintar cenas de luar, que so sempre de aspecto deprimente e no muito fceis. Eu jamais o delatei, embora o assunto me aborreces-

    se e me parecesse ridculo, porque ... Quem j ouviu falar de sangue verde-esmeralda? - Bem, realmente ... que que eu podia fazer? - respondeu o

    fantasma, um tanto humildemente. - Hoje, muito difcil conse- guir-se sangue autntico, e quando seu irmo comeou a lanar mo do detergente Paragon, no vi certamente razo pela qual no devesse apoderar-me de suas tintas. Quanto a cores, trata-se sem- pre de uma questo de gosto: os Cante~i l le tm sangue azul, o mais azul, por exemplo, da Inglaterra, mas sei que vocs, os ame- ricanos, no se interessam por coisas desse tipo. - O senhor nada sabe a esse respeito, e a melhor coisa que

    pode fazer emigrar e procurar desenvolver-se mentalmente. Meu pai sentir-se-ia muito satisfeito se pudesse dar-lhe uma passagem gratuita e, embora os espritos de toda a espcie paguem elevados impostos aduaneiros, no haver dificuldade com a Alfndega, pois que todos os seus altos funcionrios so democratas. Ao che- gar a Nova York, estou certa de que o senhor ter grande xito. Conheo uma poro de gente que daria cem mil dlares para ter um av, muito mais do que isso para ter um fantasma na famlia. - No creio que a Amrica me agradasse. - Suponho que por no termos runas nem curiosidades -

    disse, num tom mordaz, Virginia. - No tm runas! No tm curiosidades! - replicou o fan-

    tasma. - E sua marinha? E seus costumes? - Boa noite. Vou pedir a papai que consiga mais uma semana

    extra de frias para os gmeos. - Por favor, no v embora, Srta. Virginia -exclamou o fan-

    tasma. - Sinto-me muito solitrio e infeliz, e na verdade no sei o . que fazer. Quero dormir e no posso. - Isso inteiramente absurdo. Basta que se meta na cama e

    sopre a vela. A gente tem muita dificuldade, s vezes, de conser- var-se acordado, sobretudo na igreja, mas no h dificuldade algu- ma quanto a dormir. Pois se at os bebs sabem faz-lo, e eles no So, por certo, muito inteligentes.

  • O F A N T A S M A D E C A N T E R V I L L E

    - H trezentos anos que no durmo - disse tristemente o fantasma, e os belos olhos azuis de Virginia se dilataram de assom. bro. - H trezentos anos que no durmo e estou cansadssimo.

    Virginia a.dotou um ar muito grave, e seus pequenos lbios tre- - meram como ptalas de rosa. Aproximou-se do fantasma e, ajoe- lhando-se a seu lado, fitou-lhe o rosto velho e enrugado. - Pobre, pobre fantasma! - murmurou. - Acaso no tem

    onde dormir? - L longe, alm do pequeno pinheiral, h um jardinzinho -

    respondeu ele, em voz baixa e sonhadora. - L, a erva alta e profunda, h as grandes estrelas brancas da flor do abeto, e duran- te toda a noite canta o rouxinol. Canta durante a noite toda, e a lua fria, de cristal, olha a terra, e o teixo estende seus braos gigan- tescos sobre os que dormem.

    Os olhos de Virginia embaaram-se de lgrimas e ela ocultou o rosto entre as mos. - O senhor se refere ao Jardim da Morte - murmurou. - Sim, a Morte. A Morte deve ser to formosa ... Jazer na ter-

    ra macia, trigueira, a erva ondulando sobre a cabea, a escutar o silncio. No ter ontem nem amanh. Esquecer o tempo, esquecer a vida, estar em paz. A senhorita pode ajudar-me. Pode abrir para mim o portal da casa da Morte, pois o Amor est sempre com a senhorita, e o Amor mais forte que a Morte.

    Virginia tremeu, um calafrio percorreu-lhe o corpo, e durante alguns momentos fez-se o silncio. Sentiu como se estivesse mergu- lhada num terrvel sonho.

    O fantasma, ento, tornou a falar, e sua voz soava como o Sus- piro do vento. - Leu alguma vez a antiga profecia que est na janela da

    biblioteca? - Oh, vrias vezes - exclamou a jovenzinha, erguendo os

    olhos. - Conheo-a bastante bem. Est pintada com estranhas letras negras e difcil de ler. Consta apenas de seis versos:

    C O N T O S E N O V E L A S D E O S C A R W I L D E

    Quando uma menina loura possa obter Uma prece dos lbios do pecado, Quando a estril amendoeira florir E uma meninazinha verter suas lgrimas, Ento haver quietude na casa E a paz reinar e m Canterville.

    Mas no sei o que significam tais versos. - Significam - disse tristemente o fantasma - que a senho-

    rita deve chorar por meus pecados, porque no tenho lgrimas, e rezar comigo por minha alma, porque no tenho f. E depois, se a senhorita for sempre boa, meiga e delicada, o Anjo da Morte ter piedade de mim. A senhorita ver formas espantosas no escuro, e vozes maldosas lhe surrurraro ao ouvido, mas no lhe causaro 'dano, porque as foras do Inferno no podem prevalecer contra a pureza de uma menina.

    Virginia no respondeu, e o fantasma retorceu as mos tomado de grande desespero, ao olhar sua loura cabea curvada. De repen- te, ela se levantou, muito plida, e com uma estranha luz nos olhos. - No tenho medo - disse firmemente. - Pedirei ao Anjo

    que tenha piedade do senhor. O fantasma levantou-se de sua poltrona com um dbil grito de

    alegria e, tomando-lhe a mo, inclinou-se com antiquada cortesia e beijou-a. Seus dedos eram frios como o gelo e seus lbios quei- mavam como fogo, mas Virginia no titubeou quando ele a condu- ziu atravs do aposento mergulhado em penumbra. Sobre os des- botados tapetes verdes havia, bordados, pequenos caadores, que tocaram suas trompas adornados de borlas e lhe fizeram sinais, . com minsculas mos, para que retrocedesse. - Volte, pequena Virginia! - exclamaram. - Volte! Mas o fantasma segurava-lhe firmemente a mo, e a jovem

    fechou os olhos ante os caadores. Animais horrveis, com caudas de lagarto e olhos saltados, olharam-na a piscar os olhos, da larei- ra entalhada, e murmuraram:

  • O F A N T A S M A D E C A N T E R V I L L E

    - Cuidado, pequena Virginia, cuidado! Talvez no tornemos a v-la!

    Mas o fantasma deslizava mais rapidamente ainda, e Virginia no os escutava. Quando chegaram ao fim do aposento, o fantas- ma deteve-se e murmurou algumas palavras que ela no com- preendeu. Virginia abriu os olhos e viu que a parede se desvanecia lentamente como a bruma, e percebeu diante dela uma grande caverna negra. Um vento spero e frio os envolveu, e ela sentiu que alguma coisa a puxava pelo vestido. - Depressa, depressa! - exclamou o fantasma. - Ou ser

    demasiado tarde! Num momento, os lambris fecharam-se atrs dele e a Alcova

    dos Tapetes ficou deserta.

    Passados uns dez minutos, a campainha tocou anunciando o ch e como Virginia no descesse, a senhora Otis mandou um dos cria- dos cham-la. Pouco depois, o criado voltou e informou que no conseguira encontrar a senhorita Virginia em parte alguma. Como a jovem tinha o hbito de sair ao jardim todas as tardes, a fim de colher flores para a mesa do jantar, a senhora Otis, a princpio, no se sentiu alarmada; mas quando soaram as seis horas, sem que Virginia aparecesse, ficou realmente agitada e mandou os rapazes procurarem-na, enquanto ela e o senhor Otis revistavam todos OS aposentos da casa. As seis e meia, os gmeos voltaram e disseram no ter achado sinais de sua irm em lugar algum. Todos se acha- vam tomados de grande excitao e no sabiam o que fazer, quan- do o senhor Otis lembrou de repente que, alguns dias antes; auto- rizara a um grupo de ciganos acampar no parque. Assim, em com- panhia de seu filho mais velho e dois caadores, dirigiu-se imedia- tamente a Blackfell Hollow, onde os ciganos se encontravam. O pequeno Duque de Cheshire, ansiosamente, rogou que lhe permi-

    C O N T O S E N O V E L A S D E O S C A R W I L D E

    tissem ir tambm, mas o senhor Otis no o quis permitir, receando um incidente com os ciganos. Todavia, ao chegarem ao lugar em

    constataram que os ciganos j l no estavam, e era evi- dente que sua partida havia sido bastante repentina, pois o fogo ainda ardia e restavam alguns pratos sobre a relva. Depois de haver mandado Washington e os dois homens percorrerem o dis- trito, o senhor Otis correu para casa e enviou telegramas a todos os inspetores de polcia do condado, dizendo-lhes que procuras- sem uma jovenzinha sequestrada por vagabundos ou ciganos. Ordenou, depois, que lhe mandassem seu cavalo e, aps insistir para que a mulher e os trs filhos se sentassem para jantar, dirigiu- se Ascot Road com um palafreneiro. Mal havia, porm, percor- rido algumas milhas, ouviu que algum galopava atrs dele, e ao voltar-se viu o pequeno duque, que se aproximava em seu pnei, o rosto muito afogueado e sem chapu. - Lamento muitssimo, senhor Otis - disse o rapaz, com voz

    entrecortada -, mas no consigo comer coisa alguma enquanto Virginia no for encontrada. Rogo-lhe que no se zangue comigo. Se o senhor tivesse permitido o nosso noivado no ano passado, jamais teria havido toda esta complicao. O senhor no me man- dar embora, no ? Eu no posso ir! Eu no irei!

    O ministro no pode conter um sorriso ante o belo e estouva- do jovenzinho, e sentiu-se muito comovido por ver sua dedicao a Virginia, de modo que, inclinando-se em seu cavalo, deu-lhe umas palmadinhas no ombro, dizendo-lhe:

    -Bem, Cecil, se voc no quer voltar, creio que deve acompa- nhar-me; mas devemos conseguir um chapu para voc em Ascot. - Ah! Para o diabo o chapu! Eu quero Virginia! - gritou, ,

    rindo, o duquezinho, e ambos seguiram, a galope, para a estao da estrada de ferro.

    L o ministro perguntou ao chefe da estao se tinha visto na plataforma alguma garota que se parecesse com Virginia, mas no conseguiu nenhuma notcia dela. O chefe da estao, entretanto, enviou telegramas para todas as outras esta~es da linha, assegu-

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    rando-lhe que rigorosa vigilncia seria estabelecida no sentido de encontr-la, e, depois de ter o ministro comprado um chapu para o pequeno duque, numa casa comercial que j estava fechando as portas, cavalgaram rumo a Bexley, localidade situada a umas qua- tro milhas dali, e que, segundo lhes haviam dito, era um lugar mui- to frequentado por ciganos, pois que por perto existiam amplas terras comunais. Uma vez l, despertaram o guarda rural, mas no puderam obter dele a menor informao, e, aps haverem cruzado a cavalo toda a extenso das terras pertencentes comunidade, fizeram girar seus animais na direo de Canterville Chase, l che- gando, exaustos e quase desalentados, cerca das onze horas. Washington e os gmeos os aguardavam, com lanternas, no porto da propriedade, j que a alameda de acesso era muito escura. No se descobrira o mais leve traqo de Virginia. Os ciganos haviam sido apanhados nos prados de Broxley, mas Virginia no se achava em sua companhia. Explicaram sua sbita partida, afirmando haver confundido a data da feira de Chorton, de modo que rumaram pressurosamente para l, temendo chegar tarde. Haviam, com efei- to, sentido muito ao saber do desaparecimento de Virginia, pois se sentiam muito gratos ao senhor Otis, por haver permitido que acampassem em seu parque, e quatro deles voltaram a fim de par- ticipar da busca. O tanque das carpas tinha sido dragado, e todo o Chase percorrido, mas sem qualquer resultado. Era evidente que, pelo menos durante essa noite, Virginia estava perdida para OS Otis - e foi num estado de profunda depresso que o senhor Otis e seus filhos se encaminharam para casa, seguidos pelo criado, que conduzia os dois cavalos e o pnei. No saguo, encontraram um grupo de criados assustados; estendida no sof da biblioteca acha- va-se a pobre senhora Otis, quase fora de si de terror e ansiedade, acompanhada pela velha governanta, que lhe banhava a testa com gua-de-colnia. O senhor Otis insistiu com a esposa para que comesse algo, ordenando que servissem a ceia para todo o grupo. Foi uma ceia melanclica, aquela, pois quase ningum falou, e at os gmeos estavam espantados e deprimidos, j que gostavam mui-

    C O N T O S E N O V E L A S DE OSCAR W I L D E

    da irm. Finda a refeio, o senhor Otis, apesar das splicas do pequeno duque, ordenou que todos se recolhessem, dizendo que nada mais podiam fazer aquela noite, e que pela manh telegrafa- ria Scotland Yard, pedindo-lhe que enviasse imediatamente

    detetives. No momento exato em que saam da sala de jan- tar, o relgio da torre comeou a dar, sonoramente, as doze bada- ladas da meia-noite e, quando a ltima delas soou, ouviram um

    seguido de sbito e agudo grito. Um espantoso reboar de trovo abalou a casa, um fluxo de msica extraterrena flutuou pelo ar, um painel de lambris caiu do alto da escada com grande barulho e, no patamar, muito plida e branca, tendo na mo um cofrezinho, apareceu Virginia. Todos correram, no mesmo instan- te, para ela. A senhora Otis apertou-a apaixonadamente em seus braos, o duque afogou-a com violentos beijos e os gmeos execu- taram, em volta dela, uma violenta dana guerreira. - Santo Deus, minha filha! Onde esteve voc? - indagou, um

    tanto zangado, o senhor Otis, julgando que Virginia Ihes havia pregado uma pea muito tola. - Ceci1 e eu percorremos todo o condado sua procura, e sua me passou por um susto espantoso. Voc no deve mais fazer brincadeiras assim. - Exceto com o fantasma! Exceto com o fantasma! - grita-

    ram os gmeos, dando pulos de contentamento. - Minha querida, graas a Deus a encontramos. Voc no

    deve jamais sair de meu lado - murmurou a senhora Otis, enquanto beijava a trmula menina, alisando-lhe o ouro emara- nhado dos cabelos. - Papai - disse tranqilamente Virginia -, estive com o fan-

    tasma. Ele morreu, e vocs devem ir v-lo. Foi muito mau, mas . arrependeu-se sinceramente de tudo o que fez e deu-me, antes de morrer, este cofre de belas jias.

    Toda a famlia ficou a olh-la, tomada de mudo assombro, mas Virginia estava muito grave e sria; e, voltando-se, conduziu todos, atravs da abertura que se fizera no lambris, por um estrei- to corredor secreto, com Washington a empunhar uma vela que

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    apanhara em cima da mesa. Chgaram, finalmente, a uma grande porta de carvalho, com muitos pregos enferrujados. Quando Virginia a tocou, a porta girou em seus pesados gonzos, e a fam- lia Otis viu-se num pequeno aposento, de teto em forma de abba-- da e uma minscula janela gradeada. Presa parede, havia uma grande argola de ferro e, ligado a ela, um ossudo esqueleto, esten- dido sobre o piso de pedra, que parecia querer agarrar com seus longos e descarnados dedos um antiquado trincho e um jarro, colocados fora de seu alcance. O jarro, evidentemente, tinha esta- do antes cheio de gua, pois agora o seu interior se achava todo coberto de um mofo verde. Nada havia no trincho, salvo um mon- te de p. Virginia ajoelhou-se ao p do esqueleto e, juntando as pequenas mos, ps-se a rezar em silncio, enquanto o resto do grupo contemplava, tomado de assombro, a terrvel tragdia cujo segredo agora lhe era revelado. - Olhem! - exclamou de repente um dos gmeos, que se

    havia debruado janela a fim de tentar descobrir em que ala da casa estava localizado o aposento. - Olhem! Essa velha e resse- quida amendoeira floresceu. Posso ver claramente as flores luz do luar. - Deus o perdoou - disse, com gravidade, Virginia, pondo-

    se de p, e uma formosa luz comeava a iluminar-lhe o rosto. - Que anjo voc ! - exclamou o jovem duque, pondo-lhe OS

    braos em volta do pescoo e beijando-a.

    Quatro dias depois desses estranhos incidentes, um cortejo fne- bre saiu de Canterville Chase, cerca das onze horas da noite. O carro funerrio era puxado por oito cavalos negros, cada um dos quais levava sobre a cabea um grande penacho de penas de aves- truz que se agitavam, e o atade de chumbo estava coberto com um rico pano morturio cor de prpura, no qual se via bordado

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    ouro o escudo de armas dos Canterville. Junto ao carro fne- bre e aos coches, caminhavam os criados com archotes acesos. O desfile era estupendamente imponente. Lorde Canterville era a principal pessoa enlutada, tendo vindo especialmente de Gales para participar do funeral, e ia sentado na primeira carruagem, ao lado da pequena Virginia. Depois, vinham o ministro dos Estados unidos e sua esposa, em seguida Washington e os trs rapazes, e na ltima carruagem, a senhora Umney. A opinio geral era a de que,

    sido atemorizada pelo fantasma durante mais de cinqenta anos, tinha direito de presenciar o seu fim. Profunda fossa fora cavada no canto do cemitrio, debaixo daquele mesmo velho tei- xo, e o servio religioso foi lido, da maneira mais solene imagin- vel, pelo Reverendo Augustus Dampier. Terminada a cerimnia, os criados, segundo velho costume observado pela famlia Cantervil- le, apagaram seus archotes, e, quando o caixo foi baixado se- pultura, Virginia adiantou-se e ps sobre ele uma grande cruz, fei- ta de flores cor-de-rosa e brancas de amendoeira. Ao faz-lo, a lua surgiu de detrs de uma nuvem e inundou de argntea luz o peque- no cemitrio. Um rouxinol comeou a cantar num arbusto distan- te. Virginia lembrou-se da descrio que o fantasma fizera do Jardim da Morte, seus olhos se encheram de lgrimas e ela quase no disse nada durante o regresso casa.

    Na manh seguinte, antes que Lorde Canterville seguisse para a cidade, o senhor Otis teve uma entrevista com ele acerca das jias que o fantasma tinha dado a Virginia. Eram verdadeiramen- te magnficas, sobretudo certo colar de rubis de antigo engaste ve- neziano, que constitua soberbo espcime do artesanato do sculo XVI, e o valor das jias era to elevado que o senhor Otis sentia considerveis escrpulos em permitir que sua filha as aceitasse. - Meu lorde - disse -, sei que neste pas a instituio da

    mo-morta se considera aplicvel tanto a quinquilharias quanto a terras, e clarssimo para mim que estas jias so, ou devem ser, bens hereditrios da famlia Canterville. Devo pedir-lhe, pois, de conformidade com isso, que as leve para Londres e as considere

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    simplesmente uma parte de seus bens, que lhe foi devolvida em ter. tas circunstncias estranhas. Quanto minha filha, no passa de uma criana e, por enquanto, alegra-me diz-lo, pouco interesse. tem por tais bens de luxo ocioso. Fui informado tambm pela senhora Otis, que, permita-me dizer-lhe, tem alguma autoridade quanto a questes de arte - pois, quando menina, teve a oportu. nidade de passar vrios invernos em Boston -, de que essas jias so de grande valor monetrio e, se postas venda, obteriam alto preo. Em tais circunstncias, Lorde Canterville, o senhor decerto compreender que me seria impossvel permitir que elas ficassem de posse de um membro de minha famlia; e, com efeito, todos esses vos enfeites e quinquilharias, embora adequados ou neces- srios dignidade da aristocracia britnica, ficariam completa- mente deslocados entre aqueles que foram educados de acordo com os princpios severos - e, segundo creio, imortais - da sim- plicidade republicana. Talvez eu deva dizer-lhe que Virginia est bastante ansiosa que o senhor lhe permita guardar o cofrezinho como uma recordao de seu infortunado e transviado ancestral. Como ele bastante antigo, e est, por conseguinte, em muito mau estado, talvez possa parecer-lhe conveniente satisfazer o pedido de Virginia. Quanto a mim, confesso-lhe que me surpreende muito descobrir em minha filha simpatia pelo medievalismo, em qual- quer das formas que este se apresente, e s posso explicar tal fato por ela haver nascido num de seus subrbios de Londres, logo aps a senhora Otis haver voltado de uma viagem a Atenas.

    Lorde Canterville ouviu com muita gravidade o discurso do digno ministro, cofiando de vez em quando o bigode grisalho, a fim de ocultar um sorriso involuntrio, e depois, quando o senhor Otis terminou de falar, apertou-lhe cordialmente a mo e disse: - Meu caro senhor, sua encantadora filha prestou ao meu

    infortunado ancestral, Sir Simon, importante servio, e tanto eu como minha famlia lhe ficamos muito gratos por sua estupenda coragem e presena de esprito. As jias so, evidentemente, dela e, ademais, creio que, se eu fosse bastante desapiedado para lhas tiraG

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    meu velho e perverso parente sairia de sua tumba dentro de quinze dias, convertendo-me a vida num inferno. Quanto a constiturem uma herana, nada herana, salvo se houver qualquer referncia num testamento ou documento legal, e a existncia de tais jias era inteiramente desconhecida. Asseguro-lhe que no tenho mais direto a elas do que seu mordomo, e quando a senhorita Virginia for maior de idade, agradar-lhe-, atrever-me-ia a afirmar, possuir coisas to belas para usar. Alm disso, o senhor se esquece, senhor Otis, de que ficou com o mobilirio e o fantasma sob inventrio, e de que tudo o que pertencia ao fantasma passou, simultaneamente, a ser seu, pois fossem quais fossem as atividades noturnas a que se dedicava Sir Simon, pelos corredores, no terreno legal estava verdadeiramente morto, e o senhor adquiriu sua propriedade por compra.

    O senhor Otis lamentou muito a negativa de Lorde Canterville, pedindo-lhe at que reconsiderasse sua deciso, mas o bondoso Par do Reino mostrou-se muito firme e induziu finalmente o ministro a que permitisse sua filha a conservar o presente que o fantasma lhe dera, e quando, na primavera de 1890, a jovem Duquesa de Cheshire foi apresentada, por ocasio de seu casamento, no salo de recepo da rainha, suas jias despertaram admirao geral. Pois Virginia recebeu a coroa ducal, que a recompensa de todas as boas mocinhas norte-americanas, e casou com seu jovem enamora- do logo que ele atingiu a maioridade. Eram ambos to encantado- res, e se queriam tanto, que todos se sentiram satisfeitssimos com seu enlace matrimonial, salvo a velha Marquesa de Dumbleton - que procurara apanhar o duque para uma de suas sete filhas soltei- ras, e oferecera, com esse objetivo, trs dispendiosos banquetes - e, por estranho que parea, o prprio senhor Otis. O senhor Otis

    '

    gostava muito, pessoalmente, do jovem duque, mas do ponto de vista terico repudiava os ttulos e, para usar suas prprias pala- vras, "no deixava de sentir-se apreensivo ante a possibilidade de que, devido s enervantes influncias de uma aristocracia amante do prazer, fossem esquecidos os princpios autnticos da simplici- dade republicana". Suas objees, porm, foram inteiramente ven-

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    cidas, e creio que, quando pefcorreu a nave da Igreja de St, George, na Hanover Square, com a filha apoiada em seu brao, no havia homem mais orgulhoso em toda a Inglaterra.

    O duque e a duquesa, aps a lua-de-mel, foram a Canterville - Chase, e no dia imediato sua chegada dirigiram-se, tarde, ao soli- trio cemitrio situado junto ao bosque de pinheiros. A princpio, haviam-se apresentado grandes dificuldades quanto inscrio na lpide de Sir Simon, mas finalmente resolvera-se gravar nela, sim- plesmente, as iniciais do velho cavalheiro e os versos da janela da biblioteca. A duquesa levou consigo algumas belas rosas, que espa- lhou sobre o tmulo, e, depois de haverem ficado algum tempo jun- to campa, os dois caminharam at o presbitrio em runas da velha abadia. Ali, a duquesa sentou-se num pilar cado, e o marido se pos- tou a seus ps, fumando um cigarro e fitando-lhe os belos olhos. De repente, o duque jogou fora o cigarro, tomou-lhe a mo e disse-lhe: - Virginia, uma esposa no deveria ter segredos para seu

    marido. - Querido Cecil! No tenho segredos para voc. - Tem sim - replicou ele, sorrindo. - Voc jamais me disse

    o que Ihe aconteceu quando ficou a ss com o fantasma. - Eu no o disse a ningum, Cecil - respondeu, gravemente,

    Virginia. - Eu sei, mas bem que poderia dizer-me. - Por favor, no me pea isso, Cecil. No posso dizer-lhe.

    Pobre Sir Simon! Devo-lhe muitssimo. Sim, no ria, Cecil; devo-o realmente. Ele me fez ver o que a Vida, o que a Morte significa e por que razo o Amor mais forte que ambas.

    O Duque de Cheshire levantou-se e beijou carinhosamente a mulher. - Pode guardar seu segredo, enquanto eu possuir seu corao

    - murmurou.

    - Voc sempre o possuiu, Cecil. - E voc o dir a nossos filhos algum dia, no verdade? Virginia enru besceu.

    A esfinge sem segredo

    EU estava sentado a uma mesa de calada do Caf de la Paix, ter- ta tarde, e observava o esplendor e a misria da vida parisiense, meditando diante de meu vermute sobre o estranho panorama de orgulho e pobreza que desfilava minha frente, quando ouvi algum chamar meu nome. Voltei-me, e vi Lorde Murchison. No nos encontrvamos desde os tempos da universidade, de modo que muito me alegrou rev-lo, e trocamos um caloroso aperto de mo. Framos grandes amigos em Oxford. Eu gostava imensamente dele: era muito animado, alegre e cavalheiresco. Dizamos dele que teria sido o melhor dos colegas, no fosse o seu hbito de dizer sempre a verdade, mas creio que o admirvamos mais ainda por sua franqueza. Agora, eu o achava muito mudado. Parecia preocu- pado e perplexo, e dir-se-ia que duvidava de alguma coisa. Julguei que no poderia ser o ceticismo moderno, pois Murchison fora o mais decidido dos tories, e acreditava to firmemente no Penta- teuco quanto na Cmara dos Lordes; e assim, concluindo que se tratava de uma mulher, perguntei-lhe se j se casara. - No compreendo as mulheres bastante - respondeu ele. - Meu caro Gerald - disse-lhe - as mulheres devem ser

    amadas, e no compreendidas. - Eu no posso amar algo em que no posso confiar. - Pois eu acho que voc tem algum mistrio em sua vida,

    Gerald - repliquei. - Conte-me. -Vamos dar uma volta de carro -props-me ele. -Aqui h

    gente demais. No. Um carro amarelo, no. De qualquer outra cor. Aquele. Aquele verde nos servir.