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Fernando de Castro Fontainha Christiane Jalles de Paula Izabel Saenger Nuñez [orgs.] Carlos Velloso 7 História Oral do Supremo [1988-2013]

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Fernando de Castro FontainhaChristiane Jalles de PaulaIzabel Saenger Nuñez[orgs.]

Carlos Velloso

7

História Oral do Supremo [1988-2013]

7

Todos os direitos desta edição reservados à FGV DIREITO RIO

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EDIÇÃO FGV DIREITO RIO

Obra Licenciada em Creative Commons Atribuição – Uso Não Comercial – Não a Obras Derivadas

Impresso no Brasil / Printed in BrazilFechamento da 1ª edição em novembro de 2015Este livro consta na Divisão de Depósito Legal da Biblioteca Nacional.Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.

Coordenação Sacha Mofreita Leite, Thaís Teixeira Mesquita e Rodrigo ViannaProjeto gráfico e capa eg.design Evelyn GrumachDiagramação Antonio ValérioRevisão Gypsi Canetti

História oral do Supremo (1988-2013), v.7: Carlos Velloso / Fernando de Castro Fontainha, Christiane Jalles de Paula, Izabel Saenger Nuñez (orgs.). – Rio de Janeiro : Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, 2015.

174 p.

Em colaboração com a Direito GV e o CPDOC.Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-63265-54-8

1. Brasil. Supremo Tribunal Federal. 2. Velloso, Carlos, 1936- . I. Fontainha, Fernando de Castro. II. Paula, Christiane Jalles de. III. Nuñez, Izabel Saenger. IV. Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas. V. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. VI. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil.

CDD – 341.4191

Carlos VellosoFernando de Castro FontainhaChristiane Jalles de PaulaIzabel Saenger Nuñez[orgs.]

História Oral do Supremo <1988-2013>

Projeto desenvolvido por FGV DIREITO RIO, FGV DIREITO SP e FGV CPDOC

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Sumário

1 Apresentação 06

2 Prefácio à entrevista do ministro Carlos Velloso 08

3 Roteiro do ministro Carlos Velloso 16

Fontes 25

4 Entrevista com o ministro Carlos Velloso 28

Apresentação: nascimento e infância em Entre Rios de Minas 29

Infância: mudanças pelo interior de Minas Gerais e para Belo Horizonte 29

O curso de Direito 32

Primeiras experiências profissionais 32

Faculdade de Direito: movimento estudantil e vida universitária 35

Concursos públicos 49

A justiça federal e a vida docente 51

A ditadura militar 58

Nomeação como ministro do Tribunal Federal de Recursos 62

O Tribunal Regional Eleitoral 73

O Tribunal Superior Eleitoral 77

A criação do Superior Tribunal de Justiça 84

A nomeação como ministro do Supremo Tribunal Federal 101

A posse como ministro do Supremo Tribunal Federal 117

A rotina no Supremo Tribunal Federal 123

A mudança para Brasília 125

Primeira sessão como ministro do STF 126

No STF: o Caso Collor 129

No STF: a relação com o Executivo 132

No STF: a TJ Justiça 134

No STF: as decisões 136

O Conselho Nacional de Justiça 137

No STF: os assessores 139

No STF: casos importantes 141

No STF: a presidência do Supremo 147

A CPI do Judiciário 154

O convite para o Ministério da Justiça 159

A sabatina para o STF 165

Aposentadoria como ministro do STF 167

5 Equipe do projeto 172

Em cinco de outubro de 1988, foram concluídos os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte e foi promul-gada a nossa Constituição Federal, vigente até hoje. Chamada por Ulysses Guimarães de “o documento da liberdade, da dig-nidade, da democracia e da justiça social”, a CF/88 é marco inquestionável de uma nova fase da história do Brasil.

Desde então, tem havido uma grande convergência inte-lectual, um enorme esforço dos acadêmicos brasileiros para compreender o impacto deste documento no Brasil contempo-râneo. Várias áreas das ciências humanas, por meio de diversas abordagens, vêm privilegiando estudos em que a nossa Consti-tuição e o Supremo Tribunal Federal encontram centralidade.

Várias são as instituições e atores sociais que, no seu dia a dia, dão vida e existência concreta à nossa Constituição. Neste contexto, surgiu a ideia de contribuir de forma inovadora para este tão profícuo e importante debate: a aplicação do método-fonte-técnica da História Oral ao Supremo nesses primeiros vinte e cinco anos de vigência da Constituição.

Seguindo sua tradicional missão institucional de contri-buir para o conhecimento e o aprimoramento das instituições democráticas e republicanas do Brasil, a Fundação Getulio

Apresentação

Joaquim Falcão, Diretor da FGV DIREITO RIOOscar Vilhena Vieira, Diretor da FGV Direito SP

Celso Castro, Diretor do FGV/CPDOC

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Vargas decidiu mobilizar esforços no sentido da construção de uma inédita base de dados qualitativos sobre o Supremo, com-posta por entrevistas realizadas com aqueles que compuseram a corte entre 1988 e 2013.

Para tanto, uniram-se as suas duas escolas de Direito, do Rio de Janeiro e de São Paulo, e a Escola de Ciências Sociais/CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Con-temporânea do Brasil). Ambas as escolas de Direito da FGV, mesmo com apenas pouco mais de dez anos de atividade, já se firmaram no ensino jurídico nacional como instituições pro-pulsoras de um pensamento arrojado, inovador, multidiscipli-nar e conectado com os desafios da atualidade. E em um olhar sobre o Brasil. Já o CPDOC traz quase quarenta anos de exper-tise em pesquisas em História Oral, uma vez que atua nesta frente de trabalho desde 1975.

Este volume, assim, é parte integrante do projeto “Histó-ria Oral do Supremo”, uma contribuição da FGV para a história contemporânea do Brasil. Nas páginas a seguir, o leitor encon-trará a narrativa do ministro Carlos Velloso sobre sua própria trajetória, marcada notadamente pela atividade de magistrado na nossa mais alta corte. Boa leitura!

Prefácio à entrevista do ministro Carlos Velloso

Nelson JobimFernando Fontainha

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9Carlos Velloso

Esta pesquisa pretende trazer às comemorações dos 25 anos da Constituição Federal um novo discurso científico sobre a Suprema Corte brasileira: sua história oral. Numa em-preitada da FGV DIREITO RIO, em conjunto com a Direito GV e o CPDOC, pretende se reconstruir e reinterpretar a história recente do STF a partir de entrevistas com os magistrados que a compuseram nestes últimos 25 anos, com recurso ao méto-do-fonte-técnica da História Oral. A perspectiva dos atores que compuseram a corte e a maneira como eles reinterpretam fatos à luz de experiências vividas permitirão a construção de uma narrativa sobre os aspectos sociais e políticos da história recente do Supremo. Contando-nos a história da sua relação com a instituição, nos contarão a história da instituição.

Sete etapas foram previstas para a realização da pesqui-sa: (1) um breve programa de capacitação metodológica a ser ministrado pelos pesquisadores aos assistentes de pesquisa e bolsistas de iniciação científica, (2) a coleta de dados sobre o STF no período em questão, (3) a coleta de dados específica so-bre cada um dos ministros a serem entrevistados, (4) a conso-lidação dos dados coletados e a elaboração dos roteiros de en-trevista, (5) a realização das entrevistas com os ministros, (6) o tratamento e a análise dos dados coletados, e, finalmente, (7) a elaboração dos produtos finais da pesquisa, entre os quais se destaca a presente entrevista com o ministro Carlos Velloso.

O que efetivamente esta pesquisa visa produzir é uma história oral temática, não uma história oral tradicional, no seu sentido mais amplo. O que se pretende é a construção de uma biografia institucional do STF com o marco temporal da vigência da Constituição Federal de 1988, sendo certo que esta se consubstancia numa espécie de biografia coletiva daqueles que o integram e o integraram nesse período. O interesse é esta-belecer conexões entre a trajetória dos seus ministros e ex-mi-nistros – e não sua biografia ou sua história de vida – e a corte. Note-se a existência de uma dupla perspectiva: individual e ins-

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titucional. Num primeiro momento, deve-se investigar como foram construídas trajetórias profissionais que permitiram o ingresso dos nossos colaboradores no STF. Em seguida, é pre-ciso constatar como a experiência de ser um ministro daquela corte vai complementar suas trajetórias, marcar suas vidas.

Tornar-se parte e habitar uma instituição implica um processo longo, complexo e reflexivo. Do ponto de vista estrita-mente formal, podemos extrair um critério básico que distin-gue insiders e outsiders do STF, e que foi crucial para o recorte da população de entrevistados: existe um procedimento objeti-vo e racional de escolha, investidura e exercício das funções de ministro. No entanto, este critério não nos leva mais longe. É necessário ver para além dos requisitos e procedimentos legais de admissão, bem como além dos misteres funcionais dos mi-nistros do Supremo. Cada um dos colaboradores entrevistados traz na sua trajetória um acúmulo de capital social (jurídico, político, econômico...) que sustentou seu ato de candidatura e permitiu seu ingresso efetivo na corte, bem como autorizou ou limitou seu repertório de ação enquanto ministro da corte.

Um dos problemas de pesquisa enfrentados foi: como se re-lacionam a trajetória profissional e as interações e negociações que precedem a nomeação? Em outras palavras: como ocorre fina e efetivamente este processo de circulação simbólica do ca-pital social acumulado previamente no momento de uma disputa pela nomeação? A pesquisa não supôs que seria descoberta uma “trajetória modelo” e igualmente processos de nomeação simila-res. Trabalhamos com a hipótese de que existem múltiplas ma-neiras de acumular capital social o mais variado a ponto de alçar alguém à posição de “supremável”. Portanto, além de mapear essas trajetórias, tentando até traçar conexões e convergências entre elas, a pesquisa terá a ambição de determinar como ocorre a determinação do turning point entre construir num longo pra-zo uma trajetória elitária (no Direito, na política...) e construir deliberadamente um ato de candidatura ao STF.

11Carlos Velloso

Assim, pretende-se estabelecer, num segundo momento, como a trajetória profissional, seguida pelo plano deliberado de candidatura, vai determinar o enquadramento institucional do processo formal de negociação, indicação, sabatina e nome-ação de um ministro do Supremo. O longo processo de ingresso na corte, compreendendo estas três etapas – acúmulo de capi-tal social ao longo de uma trajetória, planejamento estratégico de um ato de candidatura e procedimento formal de investidu-ra no cargo – pode nos fornecer chaves imprescindíveis para determinar o quadro interacional e institucional dentro do qual cada ministro se encontrava ao ingressar na corte e qual sua força compromissória na continuidade da sua atuação.

A alçada ao estatuto de ministro do Supremo é fato que inaugura novo capítulo na trajetória de qualquer jurista. Assim, viver experiências semelhantes produz trajetórias semelhantes e discursos sincrônicos: uma memória coletiva da instituição. No entanto, não podemos esperar que assim ocorra, não apenas porque as experiências vividas por cada indivíduo podem conter particularidades: a maneira como eles vivem e relatam essas ex-periências – ainda que as vivenciem – pode ser diferente.

É neste ponto que se reafirma a necessidade de construir determinantes estáveis a partir de todo o processo que culmi-nou com o efetivo ingresso na instituição. Ainda que não se consiga precisar como atua um ministro do STF, teremos pa-râmetros minimamente objetivos para mapear algumas conti-nuidades acerca de repertórios de ação de um ministro do STF. No lugar dos conceitos de status e função, devemos considerar o papel que cada um deles ocupa e desempenha no seio e diante da dinâmica da instituição, e como esta objetiva suas expecta-tivas na forma de restrições – internas ou externas – ao possí-vel alargamento do repertório de ação individual.

Desta forma, foram escolhidos dois enfoques principais para a construção desta demonstração. Primeiramente, é necessário saber como – e se – o cotidiano do STF contribui

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para a internalização de práticas institucionais relativamen-te uniformizadoras, que se perpetuam através das gerações de ministros pela rotinização (e não inculcação). Em outras palavras: como se resolve a dicotomia entre a determinação individual autônoma de um repertório de ação e a contextu-alização institucional de um quadro fixo de condutas perti-nentes. Em segundo lugar, numa abordagem oposta, deve ser desbastada a ampla rede de interações que acaba por cons-truir o sentido do “extraordinário” no seio da instituição. A maneira como cada membro distingue o trabalho rotineiro do trabalho relevante e reconhece determinada tarefa como crucial, decisiva ou hierarquicamente mais importante nos fornecerá pistas para determinar como um determinado caso se transforma efetivamente num hard case, ou leading case, o que pode ser academicamente aproveitado na forma de um caso gerador, conforme proposição de Paulo Freyre.

Feito isto, a pesquisa terá condições de investigar mais detidamente como se formam os consensos, as coalizões e as disputas em torno destes casos, diante da necessidade prática de se julgar em colegiado, tendo em vista ainda a eventual per-missividade institucional do julgamento monocrático.

Assim, serão quatro os momentos privilegiados na trajetó-ria de nossos entrevistados a serem explorados na composição de uma história oral do STF: sua trajetória prévia, o ingresso, o cotidiano e o hard case.

Não podemos tratar da pertença ao STF sem o uso da no-ção de elite. Por força de seu contexto institucional, o Supre-mo é muito mais do que o lugar onde se reúne a elite judiciária brasileira. Muito embora ele seja a Corte de maior hierarquia do sistema judicial, não é – necessariamente – uma trajetória de carreira exemplar no seio do Poder Judiciário que garante o ingresso de um novo membro. A ruptura com a tradicional subida de hierarquia burocrática da Justiça produz uma mul-tiplicidade de possibilidades no que tange à reconversão dos

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mais variados tipos de capital social, notadamente o político e o jurídico. De igual sorte, o regime formal de administração do trabalho cotidiano afasta bastante a rotina de um magistra-do de primeiro ou segundo grau da de um ministro do STF. Os primeiros se aproximam de burocratas tradicionais – funcio-nários públicos – enquanto no Supremo os membros se organi-zam de forma semelhante aos agentes políticos parlamentares. Finalmente, a brusca diferença de impacto entre as decisões proferidas pelo Supremo e as dos demais tribunais da Repúbli-ca, per se, põe esta corte na posição de produtora dos critérios distintivos e do conteúdo do “marcante” e do “relevante” no mundo da Justiça e do Direito.

Portanto, seguem algumas questões de pesquisa que compuseram nosso esforço de coleta de dados por entrevista:

Quais são as trajetórias que tornam alguém “supremável”?

Quando se começa a trabalhar objetivamente para ser do STF?

Como se passa o processo de escolha e indicação pelo presidente?

Como se passa a sabatina no Senado? Ela é mesmo pro forma?

Como um ministro “novato” é recebido no Supremo?

Como é a rotina de trabalho de um ministro do STF?

Como interagem e/ou competem os ministros entre si?

Como é o convívio com demais atores internos (assessores, funcionários...)?

Como é o convívio com demais atores externos (advogados, políticos, imprensa...)?

Qual foi o impacto da instituição da transmissão televisiva das sessões?

Como um determinado caso se torna um hard case?

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Como surgem consensos na separação do trabalho “ordinário” do “relevante”?

Quais atores externos influem na construção de um hard case (imprensa, políticos...)?

Como se compõem coalizões e se resolvem divergências no julgamento dos hard cases?

O caráter profano do Direito enquanto pretensa área do conhecimento ou ramo da ciência vem sobretudo da sua proxi-midade com o exercício do poder político. A história do Direito, das profissões e das instituições jurídicas se confunde com o desenvolvimento de uma atividade que jamais conseguiu rei-vindicar e efetivar plenamente sua autonomia em relação à política e à razão de Estado. Não se sabe até hoje se existe para regulá-la ou é por ela regulado.

Entretanto, no lugar de alimentar mais uma discussão normativa e conceitual sobre a relação entre Direito e Políti-ca, a reconversão do capital manejado no campo jurídico e no campo político por atores concretos pôde, enfim, ser objeto de mais uma pesquisa empírica. A partir da construção das tra-jetórias individuais dos ministros, da memória coletiva e da história oral do Supremo, esta pesquisa pretende contribuir profundamente para o conhecimento que possuímos acerca de nossa recente história republicana.

História essa que, contada através da narrativa do minis-tro Carlos Velloso, nos guia, em princípio, através das suas ori-gens sociais e do seu nascimento no interior de Minas Gerais, na cidade de Entre Rios de Minas. Em seguida, passamos por sua infância, vivida em diversas cidades do interior de Minas Gerais, em razão do ofício do pai - promotor de justiça e, pos-teriormente juiz. Chegamos a sua formação acadêmica, na Fa-culdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte, período em que também iniciou

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a militância no movimento estudantil e a vida profissional. Depois de sua formatura, após ser aprovado em diversos con-cursos públicos, vem sua nomeação como juiz federal da Seção Judiciária de Minas Gerais, seguida, posteriormente, de sua nomeação para o Tribunal Federal de Recursos. Após a trans-formação do antigo TFR (Tribunal Federal de Recursos) em Superior Tribunal de Justiça e sua atuação no Tribunal Supe-rior Eleitoral, temos a sua nomeação para o Supremo Tribunal Federal e, por fim, o relato sobre sua atuação na Corte Supre-ma, ao longo de mais de quinze anos.

Neste volume, apresentamos a entrevista com o minis-tro Carlos Velloso, buscando a divulgação de importante fon-te sobre a história recente do Supremo. Esperamos que esta postura metodológica cumpra dois objetivos muito caros para a área de Direito. Em primeiro lugar, ela colabora na va-lorização dos dados brutos coletados por pesquisadores como verdadeiros produtos científicos. Em segundo lugar, preten-de alçar o aspecto metodológico ao coração da produção aca-dêmica, seja pela disponibilização pública de uma fonte, seja pela explicitação dos meios empregados para produzi-la. Por estas razões, neste volume, o leitor encontrará o roteiro utili-zado – com suas respectivas fontes – antecedendo a transcri-ção da entrevista.

Roteiro do ministro Carlos Velloso

Izabel Saenger NuñezAlexandre Neves Júnior

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17Carlos Velloso

1936 Nasceu em Minas Gerais, na cidade de Entre Rios de Minas, no dia 19 de janeiro de 1936. Filho do então promotor de justiça Achilles Teixeira Velloso e de d. Maria Olga da Silva Velloso.

Quando criança queria ser cantor, jogador de futebol

1939 - 1946 Mudou-se para Abre Campo, em Minas Gerais, onde o pai atuava como promotor de justiça. Viveu na cidade dos 4 aos 10 anos de idade.

1947 Retornou à cidade onde nasceu, Entre Rios de Minas/MG, na qual o pai assumiu o cargo de juiz de Direito.

1953 Concluiu o curso ginasial no Colégio Santo Antônio de São João del Rei, Minas Gerais, em regime de internato.

1954 Começou a trabalhar como oficial escrevente em Belo Horizonte/MG.

1957 Concluiu o curso clássico no Colégio Estadual de Minas Gerais, em Belo Horizonte.

1958 Iniciou a faculdade de Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte.

1959 Prestou vestibular para a Universidade Católica de Petrópolis, na qual cursou Direito por um breve período até retornar para Belo Horizonte.

1960 - 1963 Retornou para Belo Horizonte, onde concluiu o curso na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

1964 Foi aprovado em 3o lugar no concurso de provas e títulos para promotor de justiça do Estado de Minas Gerais.

1966 Foi aprovado em 2º lugar no concurso público de provas e títulos para o cargo de juiz seccional do Estado de Minas Gerais. No mesmo ano foi aprovado em 5o lugar, em concurso público de provas e títulos, para juiz de Direito do mesmo Estado.

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1967 - 1977 No mês de março foi indicado para o cargo de juiz federal em Minas Gerais, no qual permaneceu até 1977. Foi diretor do Foro e corregedor da seção judiciária de Minas Gerais entre os anos de 1970 e 1971.

1975 - 1977 Prestou concurso para magistério da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e foi chamado para lecionar. Assumiu o cargo de professor auxiliar da cadeira de Direito Constitucional na UFMG, na qual ficou até 1977.

1977 No mês de dezembro foi nomeado para o cargo de ministro substituto do Tribunal Federal de Recursos e se mudou para Brasília/DF.

1978 - 1989 Foi ministro do Tribunal Federal de Recursos. Transferiu-se, como professor, para a Universidade Nacional de Brasília. Integrou as comissões de jurisprudência e regimento interno do TFR (1978-1980). Foi diretor da Revista do TFR (1978-1981). Foi membro suplente e, posteriormente, efetivo do Conselho da Justiça Federal (1980-1983). Foi ministro do Tribunal Superior Eleitoral na vaga do TFR (1983–1985). Exerceu o cargo de corregedor geral da Justiça Eleitoral durante as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte (1985-1987).

1989 Com a mudança do TRF para STJ, passou a integrar o Superior Tribunal de Justiça. Participou da elaboração do Regimento Interno do STJ.

1990 Em junho, foi nomeado por Fernando Collor como ministro do STF, na vaga aberta em decorrência do pedido de exoneração do ministro Francisco Rezek.

1991 Ministro do STF.

Passou a integrar novamente o Tribunal Superior Eleitoral.

Publicou capítulo de livro:

19Carlos Velloso

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. O Superior Tribunal de Justiça: competências originária e recursal. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Recursos no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Saraiva, 1991. pp. 3-47.

1992 Ministro do STF.

Ministro do TSE.

Publicou capítulo de livro:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. As novas garantias constitucionais: o mandado de segurança coletivo, o habeas data, o mandado de injunção e a ação popular para defesa da moralidade administrativa. In: SANTOS, Ernane Fidelis dos (Coord.). Atualidades jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 1992. v. 2 pp. 121-137

1993 Ministro do STF.

Ministro do TSE.

Votou contra Fernando Collor de Mello, no mandado de segurança impetrado pelo ex-presidente para anular a decisão do Senado que, no ano anterior, decretara seu impeachment e afastamento da vida política por oito anos. O pleno do STF não concedeu a liminar a Collor, sendo mantida a decisão do Senado.

1994 Ministro do STF.

Foi eleito presidente do TSE.

Votou contra o ex-presidente Fernando Collor, dessa vez no processo em que o ex-presidente era acusado de corrupção passiva. Foi voto vencido, porém, tendo o julgamento terminado em cinco votos a três, a favor da absolvição.

Publicou livro:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Temas de direito público. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

20 História Oral dO supremO [volume 7]

Publicou capítulo de livro:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Problemas e soluções na prestação da Justiça. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). O Judiciário e a Constituição. São Paulo: Saraiva, 1994. pp. 93-115.

1995 Ministro do STF.

Presidente do TSE.

Instituiu uma comissão de notáveis para a reforma da lei eleitoral, o que desagradou os deputados que queriam exclusividade nessa discussão. Os trabalhos da comissão foram concluídos em julho, sendo enviado ao presidente Fernando Henrique Cardoso um conjunto de sugestões para a reforma da legislação eleitoral e partidária, que incluía a redução do número de partidos, a adoção do voto distrital misto e a criação de recibos como forma de evitar doações clandestinas para as campanhas políticas.

Também deu início aos trabalhos relacionados ao projeto de instalação das urnas eletrônicas, já nas eleições municipais de 1996.

Publicou capítulo de livro:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Do Poder Judiciário: organização e competência. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord). Perspectivas do direito público: estudos em homenagem a Miguel Seabra Fagundes. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. pp. 219-244.

1996 Ministro do STF.

Deixou o TSE em maio.

Publicou livro:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva; ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord.). Direito eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. pp. 11-30.

21Carlos Velloso

Publicou capítulo de livro:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. O Poder Judiciário do século XXI: perspectivas, experiências, problemas e soluções. In: JUSTIÇA: promessa e realidade: o acesso à justiça em países iberoamericanos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. pp. 13-32.

1997 Assumiu a Vice-presidência do STF.

Negou liminar em ADIn, movida pelo PDT e PT contra a privatização da telefonia móvel celular, chamada “banda B”.

Foi relator de mandado de segurança contra a privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Acolheu o pedido do governo para arquivamento da ação.

Concedeu liminar, suspendendo a quebra de sigilo telefônico de Pedro Neiva, ex-coordenador da dívida pública de São Paulo e testemunha da CPI que investigava esquema de corrupção na compra e venda de títulos da dívida pública. Essa decisão foi tomada como uma ameaça à soberania da CPI, causando forte reação do Congresso, principalmente de ACM, dando início a um grande conflito entre Legislativo e Judiciário.

Publicou capítulo de livro:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Jurisdictional protection of fundamental rights in the Brazilian juridical order. COTRAN, Eugene; SHERIF, Adel Omar (Ed.). The role of the Judiciary in the protection of human rights. London: Kluwer Law International, 1997. pp. 257-276.

Publicou capítulo de livro:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Reforma constitucional, cláusulas pétreas, especialmente a dos direitos fundamentais, e a reforma tributária. In:

22 História Oral dO supremO [volume 7]

MELLO, Celso Antônio Bandeira de (Org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1997. v. 2, pp. 162-178.

1998 Ministro do STF.

Vice-presidente do STF.

Rejeitou a concessão de liminar com a qual o PT pretendia suspender a realização do leilão da Telebras. Seguindo o voto do relator, o plenário do STF votou unanimemente contra a concessão.

Concedeu liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade, suspendendo o aumento salarial autorizado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) a todos os juízes da Justiça do Trabalho, retroativo a fevereiro de 1995. O plenário do STF confirmou a suspensão por dez votos a um.

1999 Ministro do STF.

Vice-presidente do STF.

Assume a Presidência do STF no mês de maio (1999-2001).

Durante sua gestão, o STF recebeu diversos recursos referentes aos processos de privatização em curso desde o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Também foi chamado a participar de diversas CPIs instaladas na Câmara.

Aposentou-se voluntariamente da UnB e recebeu dessa universidade o título de professor emérito.

Publicou capítulo de livro:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A reforma eleitoral e os rumos da democracia no Brasil. In: DINIZ, José Janguiê Bezerra (Coord.). Direito constitucional. São Paulo: Consulex, 1998. pp. 517-523.

23Carlos Velloso

2000 Ministro do STF.

Presidente do STF.

Enfrentou grave crise com o poder executivo, uma das muitas que marcaram a relação dos dois poderes nas últimas décadas. A origem do problema foi a decisão do governo federal de efetuar cortes no orçamento do Judiciário por suposta queda na arrecadação federal, mas que se atribuiu à retaliação do poder executivo às diversas decisões desfavoráveis que a corte proferira contra ele.

2001 Ministro do STF.

Presidente do STF.

Deixou a presidência do STF no mês de maio.

Publicou capítulos de livros:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A arguição de descumprimento de preceito fundamental. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito contemporâneo: estudos em homenagem a Oscar Dias Corrêa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. pp. 34-43.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A justiça e o seu problema maior: a lentidão; a tripeça em que se assenta a segurança pública: justiça, Ministério Público e polícia; o juizado de instrução. In: SILVA, Ives Gandra Martins da; NALINI, José Roberto (Coord.). Dimensões do direito contemporâneo: estudos em Homenagem a Geraldo de Camargo Vidigal. São Paulo: IOB, 2001. pp. 275-291.

2002 Ministro do STF.

2003 Ministro do STF.

Ministro do TSE.

24 História Oral dO supremO [volume 7]

Publicou capítulos de livros:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Da jurisdição constitucional: aspectos inovadores no controle concentrado de constitucionalidade. In: CALMON, Eliana; BULOS, Uadi Lammêgo (Coord.). Direito processual: inovações e perspectivas: estudos em homenagem ao ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. São Paulo: Saraiva, 2003. pp. 167-187.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A evolução da interpretação dos direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. pp. 347-383.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A extradição e seu controle pelo Supremo Tribunal Federal. In: BRANT, Leonardo Nemer Caldeira (Coord.). Terrorismo e direito: os impactos do terrorismo na comunidade internacional e no Brasil: perspectivas político-jurídicas. Rio de Janeiro: Forense, 2003. pp. 115-150.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Processo judicial tributário: medidas judiciais que o integram e a legitimidade do Ministério Público para a ação civil pública que tem por objeto o não-pagamento de um tributo. In: WALD, Arnaldo (Coord.) Aspectos polêmicos da ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2003. pp. 101-113.

2004 Ministro do STF.

Ministro do TSE. Assumiu a vice-presidência do TSE.

Votou a favor da liminar que tornava possível a interrupção da gestação dos fetos comprovadamente anencéfalos.

25Carlos Velloso

Publicou capítulo de livro:

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. O controle do devido processo legislativo pelo Supremo Tribunal Federal. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. pp. 269-279.

2005 Ministro do STF.

Ministro-Presidente do TSE.

Presidiu o TSE pela segunda vez, até sua aposentadoria. Durante o mandato, presidiu o Referendo das Armas.

No STF, foi relator de vários mandados de segurança impetrados pelos envolvidos no “mensalão”.

2006 Aposentou-se como ministro do STF em razão do limite de idade. Passou a advogar com seu filho.

Fontes

Dicionário Histórico Biográfico-Brasileiro (CPDOC/FGV):

Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb>. Acesso em: 3 abr. 2013.

Pasta do ministro no Portal do Supremo Tribunal Federal:

Currículo do ministro

Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servi-co=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaPastaMinistro&pagina=Car-losVellosoPrincipal>. Acesso em: 8 mai. 2012.

Páginas na internet:

Currículo disponível na página da Academia Mineira de Letras. <http://academiamineiradeletras.org.br/academicos/carlos-mario-da-silva-velloso/>. Acesso em 8 mai. 2013.

26 História Oral dO supremO [volume 7]

Notícias em Jornais

VELLOSO, Carlos. Como eliminar a lentidão da Justiça?. Folha de São Paulo. São Paulo. 4 out. 1998. Opinião.

VELLOSO defende aumento para juízes. Folha de São Paulo. São Pau-lo. 18 set. 1999. Reportagem Local.

RS obtém vitória no Supremo sobre PR. Folha de São Paulo. São Paulo. 14 jan. 2000. Sucursal de Brasília.

VELLOSO, Carlos. A TV Justiça deveria parar de transmitir ao vivo as sessões do Supremo Tribunal Federal?- A TV Justiça e seu papel. Folha de São Paulo. São Paulo. 2 mai. 2009. Opinião.

VELLOSO, Carlos. A extradição e seu controle pelo STF. Folha de São Paulo. São Paulo. 25 nov. 2009. Opinião.

VELLOSO, Carlos. O STF e o Conselho Nacional de Justiça. Folha de São Paulo. São Paulo. 28 dez. 2011. Opinião.

VELLOSO, Carlos. A greve de policiais militares. Folha de São Paulo. São Paulo. 13 fev. 2012. Opinião.

Material audiovisual:

ESPAÇO Memória. Entrevista com o ministro Carlos Velloso. Coor-denação Editorial Pedro del Picchia. Núcleo de Memória Histórica do Supremo Tribunal Federal. TV Justiça, 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m2AYsSSO8ok>. Acesso em: 3 mar. 2012.

DEPOIMENTOS Magistrais. Carlos Mário Velloso. IBDP. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/tvdireito/depoimentos-ma-gistrais/carlos-mario-velloso>. Acesso em: 5 mai. 2012.

RODA Viva. Entrevista Carlos Velloso. Disponível em<http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/321/entrevistados/carlos_velloso_2005.htm>. Acesso em: 20 mai. 2015.

Entrevistas

RESGATE DA MEMÓRIA DO JUDICIÁRIO FEDERAL. Entrevista concedida à Jornalista Dione Tiago. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/PastasMinistros/CarlosVelloso/Entrevis-tas/2007_out_15.pdf>. Acesso em 5 mai. 2012.

CORREIO Brasiliense. STF em Pauta. Entrevista com o ministro Carlos Velloso. 19 jan. 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/PastasMinistros/CarlosVelloso/Entrevistas/2006_jan_19.pdf>. Acesso em: 7 abr. 2012.

27Carlos Velloso

Entrevista com oministro Carlos Velloso

PROJETO > História Oral do Supremo (1988-2013)ENTREVISTADO > Carlos Mário da Silva Velloso LOCAL > Brasília, DFENTREVISTADORES > Christiane Jalles de Paula; Fernando de Castro Fontainha; Izabel Nuñez; Nelson JobimTRANSCRIÇÃO > Maria Izabel Cruz BitarDATA DA TRANSCRIÇÃO > 7 de novembro de 2012CONFERêNCIA FIDELIDADE > Izabel NuñezDATA DA CONFERêNCIA > 09 de outubro de 2013DATA DA ENTREVISTA > 25 de setembro de 2012

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29Carlos Velloso

Apresentação: nascimento e infância em Entre Rios de Minas

[F e r n a n d o F o n ta i n h a > F F] — Ministro, eu poderia começar nossa entrevista perguntando para o senhor o seu nome comple-to, a data e o local do seu nascimento, o nome do seu pai e o nome da sua mãe.

[C a r Lo S V e L Lo S o > C V] — Meu nome: Carlos Mário da Silva Velloso. Nasci na cidade de Entre Rios de Minas. É uma peque-na cidade, cerca de 18 mil habitantes, situada no sudoeste mi-neiro, no caminho de São João del Rei e de Tiradentes, a cerca de 60 quilômetros de Tiradentes. Lá eu nasci, há 76 anos. Meu pai, Achilles Teixeira Velloso. Ele gostava de dizer, brincando: “Meu nome é Achilles, com “chá” e dois eles.” Minha mãe, Ma-ria Olga da Silva Velloso. Meu pai, meu avô paterno e minha avó paterna nasceram também em Entre Rios de Minas. Os Velloso, oriundos de Braga, Portugal, localizaram-se no sul da Bahia e no norte de Minas, no final do século XVIII. O meu nú-cleo familiar foi para o oeste de Minas, Formiga e Pains, e de lá para Entre Rios de Minas, ainda no século XIX. A minha mãe é natural de Diamantina, é da família Caldeira Brant, por parte de sua mãe. Seu pai chamava-se Manoel Dias da Silva, natural de Teófilo Otoni, nordeste de Minas. Mais o quê perguntou?

[ C h r i S t i a n e Pa U L a > C P] — Quem era o seu pai?

Infância: mudanças pelo interior de Minas Gerais e para Belo Horizonte

[C V] — Quando eu nasci, em 1936, meu pai era advogado em Entre Rios de Minas. Eu tinha três anos e meio de idade quan-do ele foi nomeado promotor de justiça da comarca de Abre Campo, na mata mineira. Eu lembro, vagamente, que fizemos uma longa viagem, de jardineira - um pequeno ônibus -, numa

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estrada de terra esburacada, e de trem, para a cidade de Abre Campo, meu pai, minha mãe, meu irmão, Waldir, a minha irmã, Teresinha, e eu. Isso foi no final do ano de 1939. Meu pai foi promotor de justiça naquela cidade, até 1946. Em 1946, ele prestou concurso para juiz de Direito em Minas, foi aprovado e nomeado juiz substituto de Teófilo Otoni, no nordeste minei-ro. Em dezembro de 1946, nós fomos para Entre Rios de Minas, e meu pai foi assumir o cargo de juiz na cidade de Teófilo Otoni, no início do ano de 1947. Algum tempo depois, ele foi removi-do, a seu pedido, para a cidade de Carandaí. A família mudou-se para Carandaí, por volta de 1948. Em 1950, meu irmão Wal-dir, a minha irmã Teresinha e eu, fomos estudar em São João del Rei, em regime de internato.

[C P] — Onde?

[C V] — No Colégio Santo Antônio, de São João del Rei, meu irmão e eu. A minha irmã, num colégio de freiras. Meu irmão e eu com os frades franciscanos. Fomos alunos internos do Colégio Santo Antônio, de São João del Rei. Passei quase cinco anos no interna-to do Colégio Santo Antônio, de São João del Rei. Ali recebemos boa formação intelectual e moral, formação franciscana, que foi muito importante para mim. Eu me lembro, com gratidão, dos frades, enfim, dos professores do colégio. De lá, concluído o cur-so ginasial, fui para Belo Horizonte, no ano de 1954, fazer o curso científico no Colégio Santo Antônio, de Belo Horizonte. No final de 1954, percebi que a minha vocação era para o Direito, eu que-ria estudar Direito. Então, prestei concurso para o Colégio Esta-dual de Minas Gerais, um colégio público de excelente qualidade, que se situava no Barro Preto, um bom bairro de Belo Horizonte. Ali se ingressava mediante exame vestibular. É uma pena que não seja o mesmo, hoje. Prestei o exame vestibular para o cur-so clássico, para o segundo ano do curso clássico, porque fizera o primeiro ano do científico no Santo Antônio. Fui aprovado. O diretor do Estadual, professor Hilton Cardoso, me chamou ao

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seu gabinete e me aconselhou: “Você deve voltar ao primeiro ano, porque você fez o primeiro ano científico e não cursou filosofia, não estudou latim, e você quer estudar Direito. Meu conselho é que você volte ao primeiro ano.” Aceitei o conselho e fiz o curso clássico no Colégio Estadual, lá já estavam o José Guilherme Vil-lela e o José Paulo Pertence. Concluí o curso em 1957. Tive um professor, que, aliás, era meu parente, um mestre fascinante [...]

[C P] — Quem era?

[C V] — [...] Arthur Versiani Velloso, de formação germânica, doutor por universidade alemã, professor de filosofia, um ho-mem sábio. Eu estava tão impressionado com as aulas do pro-fessor Velloso, que fui estudar Filosofia. Aprovado no vestibu-lar, matriculei-me na Faculdade de Filosofia da UFMG. Mas, lá na faculdade, um dia, ele me disse: “Seu lugar não é aqui; seu lugar é ali”, e apontou para a Faculdade de Direito.

[C P] — Além do seu pai, seu avô também seguiu carreira jurídi-ca? Ou não?

[C V] — Ele era tabelião. Não é bom falar que ele era tabelião, porque tabelião tem fama de rico. Ele era o contador, distribui-dor e partidor do foro de Entre Rios de Minas, uma pequena co-marca, ganhava o suficiente para viver e fazer pequena econo-mia. Ele não era um homem rico, era muito econômico, tinha fama de “pão duro”, fama de que gozam os Velloso. Era uma espécie de rábula o meu avô. Ele era, na verdade, serventuário da Justiça, e assim se aposentou. Era o distribuidor, contador e partidor. Partidor, o que é partidor, na linguagem forense? É aquele que faz a partilha nos inventários, em ações demarcató-rias e possessórias etc. O contador é o que calcula a indeniza-ção, as custas etc., e o distribuidor é aquele que distribui a ação ao juiz, ao cartório. Realmente, tanto o meu pai quanto o meu avô eram homens que trabalhavam na Justiça.

[C P] — E aí o senhor vai, termina o clássico e vai...

32 História Oral dO supremO [volume 7]

O curso de Direito

[C V] — Aí termino o curso clássico, faço dois anos de filosofia, e fui para a Faculdade [de Direito].

[C P] — Qual faculdade?

[C V] — Eu comecei... Porque foi uma coisa interessante. O pro-fessor Arthur Velloso disse: “É lá, na Faculdade de Direito, [gesto apontando], que você deveria estar.” Fiz o vestibular na Universidade de Petrópolis e fui aprovado, ali fiz o primeiro ano. Estava disposto a fixar-me no Rio de Janeiro... Todo mi-neiro gosta muito do Rio de Janeiro; não é só mineiro de Juiz de Fora1 que gosta do Rio. Estava no Rio quando meu pai me fez uma carta: “Você foi aprovado no concurso para servidor do TRT, de modo que venha para Belo Horizonte.”

[C P] — Isso era que ano?

[C V] — Isso foi no início do ano de 1960. Tomei posse no cargo de oficial judiciário, do TRT, em fevereiro de 1960. Assumi o cargo e me transferi para a Universidade Federal de Minas Ge-rais, para a Faculdade de Direito, onde me diplomei na turma de 1963, uma turma notável.

Primeiras experiências profissionais

[ i Z a B e L n U Ñ e Z > i n] — Essa função que o senhor desempenhou foi a primeira que o senhor desempenhou na Justiça, ministro? Ou antes...?

[C V] — Não. Eu comecei a trabalhar muito cedo, logo que completei 18 anos, em 1954. Meu pai mantinha, estudando

1 O entrevistado refere-se a Fábio Ferraz de Almeida, mineiro de Juiz de Fora e, que, atualmente, reside no Rio de Janeiro. Fábio estava presente no início da entrevista quando, em conversa informal, ao ouvir seu sotaque, o ministro perguntou de onde era e iniciou-se uma conversa entre eles.

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em Belo Horizonte, três filhos – eu, meu irmão, Waldir, e a minha irmã, Teresinha – e eu percebia como isso era difícil para ele, juiz do interior. Então, pleiteei um emprego no fó-rum, e, com a ajuda do então juiz José Pereira de Paiva, fui admitido, tomando posse no cargo de escrevente no dia 13 de agosto de 1954, uma sexta-feira, escrevente juramentado da 3ª Vara Criminal de Belo Horizonte. Lá fiquei até maio de 1958, quase quatro anos. Trabalhei na Companhia Siderúr-gica Belgo-Mineira antes de ingressar no TRT. De maio ou junho de 1958 até fevereiro de 1960, trabalhei na iniciativa privada. Quer dizer, nunca parei de trabalhar desde os meus 18 anos de idade.

[C P] — Em um escritório, na iniciativa privada, um escritório de advocacia, ou em outra coisa?

[C V] — Na Belgo-Mineira.

[C P] — Ah, na Belgo-Mineira?!

[C V] — Na Belgo-Mineira, na Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira.

[C P] — E aí como é que o senhor vai para a Belgo-Mineira?

[C V] — Tive que fazer um teste, uma espécie de concurso inter-no. Prestei o teste, fui aprovado e fui admitido imediatamente. Trabalhei na Belgo-Mineira um ano e pouco, depois de servir ao Exército, no CPOR de Belo Horizonte, em 1956.

[C P] — Fazendo o quê?

[C V] — Eu trabalhava no departamento de compras da Belgo-Mineira. Foi um período curto.

[ i n] — Nessa época, o senhor estudava filosofia?

[C V] — Filosofia. Na Faculdade de Filosofia da UFMG.

[C P] — Aí o senhor vai então... O senhor sai de Petrópolis, retorna

34 História Oral dO supremO [volume 7]

para Minas...

[C V] — Retorno para Minas.

[C P] — [...] para BH, e lá o senhor...

[C V] — Eu nunca, na verdade, deixei Minas. Nunca deixei Belo Horizonte. Porque a Faculdade de Direito da Universidade Ca-tólica de Petrópolis nos dispensava da frequência diária me-diante a apresentação de trabalhos. Era uma boa escola, é uma escola de excelentes professores.

[n e L S o n J o B i M > n J] — Na época, era frequência livre, não era?

[C V] — Era mais ou menos isso.

[n J] — Era frequência livre. Não precisava frequentar aula.

[C V] — Era mais ou menos isso, frequência livre. Então eu nun-ca deixei Belo Horizonte. Quando eu pretendia mesmo residir no Rio, veio o chamado do meu pai. Foi um período interessan-te. Aliás, quando eu completei 50 anos de serviço, o ministro Jobim era o presidente do STF e me conferiu a medalha de 50 anos de serviço público. Eu já completara, entretanto, 51 anos de serviço. Porque o tempo, um ano e pouco, trabalhado na Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira foi contado – conta-gem recíproca, qualquer coisa assim.

[C P] — Entendo. Aí o senhor vai para a faculdade [...]

[C V] — Ah, sim!

[C P] — [...] num período importante: chegando nos anos 60.

[C V] — Foi um período importante, sem dúvida. Muito impor-tante. Eu me formei em 1963, em dezembro de 1963. Em março de 1964 eclodiu o movimento revolucionário.

[C P] — Mas nesse período que o senhor estava lá, tem as refor-mas de base, tem a renúncia do Jânio, tem a tentativa de impe-dimento de posse do Jango. Então, tem aí muitos eventos. Tem o

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final do governo de Juscelino, não é?

[C V] — Isso. Tem o final do governo Juscelino, em 1960.

Faculdade de Direito: movimento estudantil e vida universitária

[C P] — Como é que era, um jovem universitário, de direito, nesse momento? Como é que era o ambiente da universidade?

[C V] — Eu tive participação intensa no ambiente político da Universidade. O estudante do meu tempo era um estudante participativo. Quando lecionava na UnB, um certo dia, chegan-do à Faculdade, vi que nas paredes estavam afixados cartazes: “Hoje, forró no Lago Sul”. Eu falei aos estudantes: “No meu tempo, aos sábados, à tarde, nós íamos para a faculdade. Tínha-mos um Centro Acadêmico...” Tinha e continua tendo o Cen-tro Acadêmico Afonso Pena, representativo dos estudantes. O braço cultural do Centro Acadêmico Afonso Pena era o Centro Acadêmico Pedro Lessa (CAPL), que acho que não existe mais. Tínhamos reuniões, aos sábados, à tarde. Tínhamos aulas de oratória, que eram ministradas por um professor idealista, o promotor Alberto Pontes, um brilhante promotor, promotor do júri, grande orador. Ele ministrava as aulas gratuitamente para os estudantes de Direito. Tínhamos acalorados debates. Eu me lembro dos debates sobre a exploração de minérios, so-bre o monopólio do petróleo, debates acirrados, direito de gre-ve, reformas de base e por aí ia.

[C P] — Sim, porque nesse momento essa é uma questão muito importante. E para o mineiro é mais importante ainda.

[C V] — Exato. Havia até um slogan: “minério não dá duas sa-fras”. As montanhas de Minas são, na maior parte, montanhas de minério de ferro. Justamente naqueles anos, os debates em

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relação à Petrobras: “O petróleo é nosso.” Nós estávamos na-quela fase de muito idealismo. Queríamos salvar o Brasil. Eu não tinha posição marcada de esquerda. Nunca tive. Também nunca fui de direita. A minha posição era mais de centro. E ha-via uns esquerdistas bravos. E nós nos enfrentávamos. Os deba-tes eram acirrados, vez ou outra havia briga, de esforço pessoal.

[C P] — O Centro Acadêmico era dirigido, nesses anos que o se-nhor esteve lá, estudando, por quem? O senhor lembra?

[C V] — Lembro-me de Nilson Reis e do Danilo Passos Coelho Fonseca, que sucedeu ao Nilson. Nilson Reis e eu não éramos do mesmo partido, mas comungávamos das mesmas ideias. Éramos bons amigos. Nilson Reis, hoje, é desembargador apo-sentado do Tribunal de Minas e advogado militante.

[C P] — Qual era o seu partido?

[C V] — O meu partido era a UDU (União Democrática Universi-tária), que era também o partido do José Paulo Sepúlveda Per-tence. O José Paulo tinha uma posição mais de esquerda, mas nós nos entendíamos bem. Integrávamos a União Democrática Universitária, e o partido do Nilson Reis era a FAR – Frente... Não lembro mais. Aliás, eram dois partidos que se uniam, o FAR e o ADA, que chamávamos de FARADA. [risos] O Nilson Reis, hoje, é desembargador aposentado do Tribunal de Minas e advoga. Foi advogado antes de ingressar na magistratura, o que se deu pelo quinto constitucional. Praticamente todos aqueles do meu tempo de estudante estão aposentados. Alguns já morreram. Ou morreram ou estão aposentados.

[C P] — E quem eram os seus amigos nesse momento?

[C V] — Bom, eu tinha muitos amigos. O José Paulo Sepúlveda Pertence sempre foi um bom amigo. Maurício Corrêa, faleci-do recentemente, foi meu amigo desde os tempos da faculda-de. Ambos estavam mais adiantados do que eu; formaram-se

37Carlos Velloso

antes de mim, porque antes fui estudar filosofia. São tantos os amigos. O Sálvio Figueiredo Teixeira, o Nilson Reis, o Orlan-do Vaz Filho, o Décio Mitre, o Dídimo Paiva, hoje um ícone do jornalismo, o Faid Tam Sab, o Antônio Alvarez da Silva, o Mer-cedo Moreira, o José Maria de Alkmim Filho, o Alexandre do Amaral Resende, o José Antero Monteiro Filho, o Sérgio Mar-ques, o Gudesteu Biber Sampaio, o Juarez Távora de Freitas, o Juarez Machado, o Sérgio e o Edelberto Lellis Santiago, o Cid Isnard, o Fábio Silva, o Bady Cury, o Lauro Pacheco de Medei-ros Filho, o Thomaz Leôncio, o hoje embaixador Geraldo Muz-zi, o Lúcio Urbano. Um grande número de amigos. Citei alguns de memória.

[C P] — E os professores? Nesse momento, um professor que te-nha... ou professores que marcaram.

[C V] — Sim. Professores que exerceram influência, que mar-caram a nossa personalidade, foram vários. Por exemplo, eu fui aluno de Caio Mário da Silva Pereira, um mestre notável. Darci Bessone foi outro notável. Fui aluno de Lourival Vilela, grande ser humano, e de Lídio Machado Bandeira de Melo, este de direito penal, um sábio; Lourival Vilela, de processo penal, quando me formei, convidou-me para seu assistente, o que foi importante para a minha vida profissional, apesar de não ter podido assumir as funções de professor na época. De Washington Albino Peluso de Souza e de Edgar Matta Ma-chado fui também aluno. Fui aluno de Mário Casassanta e de Raul Machado Horta, ambos de Direito Constitucional; de Alberto Deodato e de Wilson Melo da Silva, de Direito Civil, que foi nosso paraninfo. Deodato, professor de Ciência das Finanças, era de inteligência fulgurante. Inscreveu-se para o concurso de catedrático de Ciência das Finanças e foi escre-ver a tese. É o que corria na Faculdade. Fui aluno do profes-sor Valle Ferreira, de Direito Civil, que foi colega de turma de meu pai na Faculdade de Direito. Fui aluno dos professores

38 História Oral dO supremO [volume 7]

Onofre Mendes Júnior e Paulo Neves de Carvalho, grandes mestres. Voltando aos amigos, um amigo muito estimado, que tive na universidade, meu colega de turma, é o hoje advo-gado Orlando Vaz Filho, que era um líder político na época, da UDN. Ele era um jovem estudante que despontava como líder político. Era amigo do Carlos Lacerda, brigava com o Maga-lhães Pinto, porque a UDN do Lacerda era muito mais brava, mais ativista. Ingressei na UDN, no departamento estudantil da UDN, sob a liderança de Oscar Corrêa, de Milton Campos, de Bilac Pinto, de Pedro Aleixo.

[C P] — Ah, o senhor ingressou, foi filiado à UDN?

[C V] — Fui filiado à UDN.

[C P] — Nesse momento?

[C V] — A partir de 1954, ou um pouco depois.

[n J] — Com a morte do Getúlio.

[C P] — Pouco antes da morte do Getúlio? Ou depois? Porque é importante.

[C V] — Mais ou menos por essa época. Pouco antes da morte de Getúlio eu já tinha participação política no departamento estudantil da UDN.

[C P] — É?

[C V] — Quando o Getúlio morreu, em agosto de 1954, eu já esta-va no departamento estudantil da UDN.

[C P] — O senhor já estava filiado.

[C V] — Eu era do departamento estudantil da UDN, que tinha como presidente o Orlando Vaz Filho. Integrei a UDN desde os tempos de estudante do curso científico e do curso clássico.

[n J] — Em conflitos com o PSD?

[C V] — Em conflitos com o PSD. Tive bons amigos na UDN. O

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dr. Milton Campos, com quem convivi, o professor Pedro Alei-xo, Oscar Corrêa, Bilac Pinto, Alberto Deodato, o próprio Ma-galhães Pinto, governador do Estado a partir de 1960.

[C P] — E o senhor era mais próximo a essa ala da UDN?

[C V] — Sim, de Milton Campos, Pedro Aleixo, Guilherme Ma-chado, Rondon Pacheco, Franzen de Lima, Bilac Pinto, Alberto Deodato, Carlos Horta Pereira. Eu era um jovem metido a bes-ta: conversava e debatia com eles, ia à casa do doutor Milton e do professor Pedro Aleixo conversar sobre política.

[C P] — E onde o senhor conheceu o doutor Milton?

[C V] — Em Belo Horizonte. Nos movimentos políticos, comí-cios etc. Ele era um homem simples, dava atenção aos jovens e era uma espécie de conselheiro de todos. Era um homem inte-ressante, um homem bom, muito culto, extremamente hones-to. O José Aparecido também foi meu amigo na UDN. Mas eu tive amigos no PSD também.

[C P] — Imagino. Porque...

[C V] — O Gustavo Capanema, eu o admirava, falava, vez ou ou-tra, com ele. Meus amigos, muitos deles, eram mais velhos do que eu. Fui amigo de Tancredo Neves, de Pio Canedo, de José Maria de Alkmim, pai de meu colega de turma, José Maria de Alkmin Filho. O Murilo Badaró, do PSD, foi um bom amigo, que conheci por volta de 1955/1956. O Eugênio Klein Dutra foi e é outro bom amigo. Ao Juscelino eu fui apresentado somente nos anos 1970.

[C P] — O senhor acha que era mais fácil o acesso de um jovem estudante a essas grandes figuras da elite brasileira, da elite po-lítica brasileira, do que seria hoje?

[C V] — Acho que sim, porque os jovens participavam inten-samente e eram recebidos pelos notáveis do Partido. É que os jovens participavam e os líderes do Partido apreciavam

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aquela participação.

[C P] — Sim.

[C V] — Os líderes partidários, os políticos notáveis, davam atenção aos jovens. Eu lembro que, na convenção da UDN, por mais de uma vez, interpelei notáveis da UDN, em termos até, de certa forma, ásperos. Dizíamos, brincando, que integrávamos a UDN da “calúnia”. Contra a corrupção, em defesa do dinheiro público, valia tudo, até a calúnia, brincávamos. E eles compre-endiam que aquilo tudo não passava de entusiasmo juvenil.

[C P] — Próprio da juventude.

[C V] — Próprio da juventude. E eles entendiam. Não ficavam agastados. Depois nos chamavam para conversar. Participáva-mos intensamente. O José Aparecido de Oliveira era um amigo e conselheiro.

[C P] — O senhor não chegou a ser convidado para, de repente, disputar o Centro Acadêmico ou fazer parte de diretoria?

[C V] — Eu nunca quis disputar, pelo seguinte: no curso clássi-co, no Colégio Estadual, eu participei intensamente da política estudantil e cheguei a ser o presidente da Associação Cultural, Esportiva e Recreativa do Colégio Estadual (ACERCE), do curso noturno – eu estudava à noite, porque já trabalhava.

[C P] — O senhor estudava à noite?

[C V] — Sim, eu já trabalhava como escrevente. O José Paulo era o presidente da ACERCE diurna. E nós, do curso noturno, tí-nhamos uma participação menor: “A ACERCE do curso notur-no era um diretório secundário”, diziam. A de primeira classe era a do José Paulo Pertence. Ele até brincava que eu era o côn-sul dele à noite. Bom, essa minha participação redundou em quê? Em prejuízo nos estudos. Eu fiz essa avaliação. Eu achei que aquela participação me levou a estudar menos. Então, não

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quis ocupar, na universidade, cargo de representação, não quis disputar nenhum cargo. Participava dos movimentos estudan-tis, porém sem ter cargos. Não cheguei então a me candidatar, porque eu achava que podia ser prejudicial ao meu curso. No Colégio Estadual, no curso clássico – acho que esse dado é in-teressante – nós tínhamos uma entidade que se chamava Grê-mio Lítero-Social Gilberto Freyre. Nós nos reuníamos aos do-mingos, à tarde. Fazíamos júris simulados de figuras da nossa história. Frei Caneca foi um dos réus. Foi absolvido, defendido pelo hoje desembargador Lúcio Urbano Silva Martins e por El-zenor Nunes Filho, que era poeta e que faleceu precocemente.

[ i n] — Litero-Social...

[C V] — Lítero-Social Gilberto Freyre.

[ i n] — ...Gilberto Freyre.

[C V] — Menciono, por exemplo, dentre os integrantes do Grê-mio, Elzenor Nunes Filho, poeta e grande orador, falecido precocemente. Dionísio Afrânio Barreto, também já falecido, Lúcio Urbano Silva Martins, hoje desembargador aposentado; José Luciano de Castilho Pereira, ministro do TST, aposenta-do. O Betinho, muito solidário, bom amigo. O hoje cientista po-lítico Luís Otávio Cintra muito estudioso. Éramos bem jovens. Achávamos que poderíamos “salvar o Brasil”.

[n J] — Aposentado.

[C V] — Estão todos aposentados. [risos] José Luciano de Casti-lho Pereira aposentou-se como ministro do TST. Foi um notá-vel magistrado. Hoje advoga.

[C P] — Eu ia perguntar... Eu tenho duas perguntas para o senhor. Uma é essa, o Betinho, que vai ser uma liderança muito impor-tante, tem uma liderança da juventude, da juventude católica...

[C V] — Foi meu colega de turma no Colégio Estadual e no Grêmio.

42 História Oral dO supremO [volume 7]

[C P] — Eu ia perguntar isso. O senhor tinha algum envolvimento com os jovens católicos mineiros nesse momento?

[C V] — Tinha.

[C P] — Da JUC?

[C V] — Eu comecei na JOC (Juventude Operária Católica).

[C P] — O senhor começou na JOC?

[C V] — Estou tentando lembrar o nome do padre que era... Enfim... Interessantíssimo, culto, inteligente, humano, amigo do Betinho.

[C P] — Padre Henrique Vaz?

[C V] — Não. Não foi o padre Henrique Vaz, que também co-nheci. Depois eu fui para a Juventude Universitária Católica, quando já na universidade, aí com o frei...

[C P] — Daqui a pouco o senhor lembra.

[C V] — Rocha é o sobrenome. Frei Mateus Rocha, dominicano. Esse frade foi importante, também, na minha formação. Ele era um humanista, seguidor de Jacques Maritain. O frei Mateus me fez ler o Humanismo Integral, de Jacques Maritain, em francês, e foi muito importante para os jovens, o frei Matheus Rocha.

[C P] — Uma descoberta.

[C V] — Me despertou inclusive para aperfeiçoar-me na língua francesa. No Colégio Santo Antônio e no Colégio Estadual estu-dávamos francês para valer. Eu consegui entender o Humanis-me Intégral de Maritain. Confesso, entretanto, que para ler Jac-ques Maritain tive que comprar um dicionário de ciência social. Teimoso, li todo o livro. Foi importante na minha formação.

[C P] — O que o senhor destaca desse livro? Eu conheço. Eu também o li.

[C V] — Justamente esse comportamento... Por exemplo, eu acho que o capitalismo constrói riquezas e é capaz de fazer feli-

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zes as pessoas. Todavia, com regramento, com regulação, com um pouco de intervenção do Estado, realizando-se a democra-cia social. Defluem, sobretudo, do Humanismo Integral, a com-preensão e aceitação da doutrina social da Igreja, que constitui um marco. Mas vamos para um lado, os amigos para outro, nos dispersamos. Eu me formei em Direito e o frei Mateus mudou-se de Belo Horizonte para Goiás. Eu já estava em Brasília, no Tribunal Federal de Recursos, quando dele tive notícia atra-vés do dr. Habib Curi, médico do tribunal, católico praticante e amigo do frei Mateus. Marcamos encontro na minha casa, para daí a um mês, quando viria ele a Brasília. E o frei Mateus aca-bou morrendo num desastre de automóvel, em Goiás, poucos dias antes de nosso reencontro. Foi uma pena.

[C P] — Aí o senhor se afasta um pouco? O senhor se afasta da JUC? É isso?

[C V] — Eu me afastei completamente ainda quando fazia o quarto ou o quinto ano do curso de Direito.

[C P] — Deixa de ter contato.

[C V] — Achei que aquilo não era mais para mim. Aquilo era para o pessoal mais jovem. Aí já tinha outras preocupações: precisa-va de trabalhar. Casei-me cedo.

[C P] — Precisava sobreviver.

[C V] — Eu me casei quando ainda estudante de Direito.

[C P] — Ah, o senhor se casou ainda estudante?

[C V] — É. Foi muito bom, porque eu criei meus filhos, pude vê--los crescidos e estou convivendo com os meus netos, o mais velho já com 21 anos de idade, estudante de Direito. De outro lado, impediu-me de fazer algumas coisas. Por exemplo, tive de renunciar a bolsas de estudo na França e na Universidade de Lisboa, esta quando eu já era juiz. Não tinha condições de

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deixar o emprego e não ficava bem, na época, licenciar-me do cargo de juiz. Naquela época não havia possibilidade, como hoje há, de viajar para o exterior recebendo salário ou venci-mentos do cargo.

[n J] — Não tinha [inaudível].

[C V] — Não é? [risos] Não tinha possibilidade de ir para a Fran-ça com salário. Renunciei à bolsa de estudo na Universidade de Lisboa. Tinha que trabalhar. Fiz o curso de doutorado com o Sálvio Figueiredo Teixeira. O Sálvio, já ministro do STJ, escre-veu e defendeu a sua tese de doutorado.

[ i n] — Lá na UFMG?

[C V] — Na UFMG. Ele requereu, já ministro, já professor e com quase 70 anos de idade, a defesa da tese. A tese dele mereceu distinção. Doutorou-se já ministro do STJ. E eu perguntava: “Para quê, Sálvio?” No nosso tempo, o doutorado não consti-tuía exigência fundamental. No nosso tempo, o importante eram os concursos que se faziam para as carreiras jurídicas, o Ministério Público, a magistratura. Importava o conhecimen-to adquirido com a experiência. Isso é que importava. Hoje, os mestrados e os doutorados são importantes. E o Sálvio disse para mim: “Vou escrever a tese e defendê-la, a fim de satisfazer um desejo íntimo.” Achei muito bonito.

[C P] — É bonito, muito bonito!

[C V] — Foi realmente bonito ele ter feito isso. Mas, por ter acu-mulado tantas coisas, ele, que se preparou tão bem para pre-sidir o STJ e ser juiz do Supremo, foi acometido de um derra-me cerebral e teve que se afastar de tudo. Foi uma pena. Não se pode fazer muitas coisas ao mesmo tempo, não é? O Sálvio dava aulas, ministrava palestras, escrevia, doutrinava, era um notável juiz e professor. De vez em quando, fico pensando: “Mas para que, nesta altura da vida, escrever uma tese e sub-meter-se a uma banca, se isso não faz falta?” Sim, me afastei

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dos movimentos políticos, prestei concurso para o Ministério Público. Antes, ainda no quinto ano, prestara concurso, tam-bém, para a Procuradoria do Estado, para a Advocacia do Esta-do, como procurador estagiário, penso que o nome era esse. Os aprovados, que foram nomeados, ao serem diplomados, foram promovidos a procurador.

[C P] — Antes de o senhor continuar por aí, o senhor também se afasta da UDN, quando começa a prestar os concursos?

[C V] — Em termos.

[C P] — Por exemplo, na campanha de 1960, o senhor chega a atu-ar na campanha de 1960?

[C V] — Cheguei. E intensamente.

[C P] — Porque é um momento em que é [candidato a vice-pre-sidente], na chapa Jânio, o Milton Campos. O senhor atua ativamente ali?

[C V] — Ativamente, intensamente.

[C P] — O que o senhor faz?

[C V] — Eu era do departamento estudantil, fazíamos comícios, fazíamos arruaças... [risos]

[C P] — E a decepção com a...?

[C V] — Um notável juiz, desembargador do TRF da 1ª Região, em Brasília, Carlos Olavo Pacheco de Medeiros, que também integrava a UDN, num discurso, no tribunal, lembrou que nós tivemos que sair correndo de um bairro, em Belo Horizonte, onde fomos fazer comício, porque nos apedrejaram, o pessoal do PTB. [risos] Era um bairro da periferia. As pedras choviam sobre nós e eu disse: “Vamos cair fora.” O Carlos Olavo é que lembrou essa divertida passagem daquele nosso tempo. Eu já me esquecera.

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[C P] — [...] E com a renúncia do Jânio, o senhor ficou muito decepcionado?

[C V] — Fiquei, e muito. Foi uma decepção terrível. Eu não acre-ditava que aquilo pudesse ter ocorrido. Não, isso é um pesade-lo, não é possível, eu pensava. Porque foi uma grande luta que foi perdida. E o Magalhães, governador de Minas. Ele se elegeu governador de Minas. Ganhou do Tancredo Neves. Tancredo Neves foi meu amigo, mas trabalhei pelo Magalhães, da UDN. Por que Tancredo foi meu amigo? As coisas vão surgindo. Por-que, em 1953, ele, ministro da Justiça de Getúlio Vargas, vai a São João del Rei, sua terra natal. Ele estudara no Colégio Santo Antônio e era amigo da Casa.

[C P] — Sim. Que é um colégio muito importante e tradicional de São João del Rei.

[C V] — Exatamente. Então ele vai visitar o colégio, uma visi-ta oficial. Frei Felicíssimo era o diretor do colégio. Eu fazia uns discursinhos. Tinha meus 16 ou 17 anos. Frei Felicíssi-mo, então, me chamou ao seu gabinete e determinou: “Você vai saudar, em nome dos alunos, o ministro da Justiça, o doutor Tancredo Neves.” Eu retruquei: “Ah, não, isso não, frei. Eu não tenho capacidade para isso.” “Tem sim”, disse o frei Felicíssimo. “Então o senhor me ajuda a fazer o dis-curso?” “Não. Isso é com você. Você é que tem que fazer o discurso. Senta aí e pensa.” Ele era um holandês de cara fe-chada, rigoroso, bravíssimo, mas um homem bom. E eu es-crevi e fiz o discurso para o doutor Tancredo, que, a partir daí, ficou meu amigo, lembrava sempre o meu pequeno dis-curso. Eu lembro como terminei esse discurso. Mais ou me-nos assim: “Vossa Excelência, como mineiro, não faltará a Minas, e Minas nunca faltou ao Brasil.” Aí foi um mundo de palmas dos colegas, e Tancredo me abraçou. E mandou um abraço para o meu pai, o juiz Achilles Velloso, então juiz de

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Lagoa Dourada, cidade próxima de S. João del Rei. Ficamos amigos. Mas não trabalhei pela sua candidatura ao governo de Minas, em 1960. Eu era da UDN e não poderia ficar con-tra o Partido. Na eleição de 1960, trabalhei, sim, em favor de Magalhães Pinto, da UDN.

[C P] — O senhor tinha uma boa relação com o Magalhães Pinto?

[C V] — Olha, eu tinha uma relação melhor e maior com o doutor Tancredo.

[C P] — Do que com o Magalhães. É, porque...

[C V] — Mas eu integrava um partido e eu tinha amigos na UDN: o doutor Milton Campos, nessa época, eu já mantinha conví-vio com ele. Com o Magalhães eu convivi muito pouco. Porque o Magalhães era um homem mais pragmático, mais caladão, mais arredio, mais banqueiro, um gênio, aliás, nessa atividade. Depois, quando ele presidente do Senado, estive com ele, aqui, em Brasília. Ele me recebeu com muita cordialidade. Mas o meu relacionamento com o doutor Tancredo foi bem maior do que com o doutor Magalhães Pinto. E depois tem até um episó-dio de que mais na frente falaremos, quando do meu ingresso no Supremo Tribunal.

[C P] — E aí, então, em 64 o senhor vai começar uma carreira como promotor. É isso?

[C V] — Prestei concurso para o Ministério Público de Minas. Fui aprovado em terceiro lugar e nomeado, em 1964, para Rio Piraci-caba, uma cidade próxima de Belo Horizonte. O governador Ma-galhães Pinto fez as nomeações com observância da classificação no concurso e mandou chamar-me ao Palácio da Liberdade.

[C P] — E não era o costume nomear [de acordo com] a classificação?

[C V] — Não, não era. A UDN sustentava a necessidade da obser-vância da ordem de classificação em todos os concursos públicos.

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[C P] — Não? Ou seja, os interesses, as redes...

[C V] — O sujeito tinha que ter apoio político. Eu não mexi uma palha. Magalhães mandou chamar-me ao Palácio da Liberda-de e me disse: “Acabo de nomeá-lo promotor de justiça de Rio Piracicaba, parabéns.” Agradeci, conversamos um pouco e me despedi. Mas eu já tinha uma pequena advocacia e tinha um cargo público. Aceitei o cargo somente para fins de currículo. Somente para título no currículo. E continuei em Belo Hori-zonte. Em 1966, prestei concurso para a magistratura – juiz seccional e juiz de direito. Aprovado em ambos, nomeado, re-solvi também não assumir.

[C P] — Por quê? Pelo mesmo motivo?

[C V] — Porque era sempre uma dificuldade mudar de cidade, de residência. Eu já tinha filhos que estudavam, tinha uma peque-na advocacia – humilde, porém dava algum dinheirinho para sobreviver – e tinha o cargo público.

[ i n] — O TRT.

[C V] — Eu voltei a estudar mais, a partir daí.

[C P] — Estudar mais, como assim?

[C V] — Eu me desvinculei, por exemplo, da atividade política. Continuei integrando, porém, a UDN. Foi quando fiz o curso de doutorado e estudava para os concursos. Queria ser também professor de Direito. Tinha, pois, que estudar, que batalhar.

[F F] — O senhor lembra mais ou menos quando fez o curso de doutorado, de que ano a que ano?

[C V] — Em 1964 e 1965. Depois, em 1967, voltei ao doutorado. Porque eu fiz primeiramente o curso na área de direito pri-vado; depois, descobri que eu gostava era do direito público. [risos] Eu tive professores muito bons de direito civil: o Caio Mário, o Wilson Melo e o Vale Ferreira; tive também um pro-

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fessor de direito comercial excelente, o professor João Euná-pio Borges. O Caio Mário foi meu professor na graduação e no doutorado. No doutorado, de direito comparado. Edgar Matta Machado, de filosofia do direito. Não se pode dizer que o pro-fessor Caio Mário era simplesmente um privatista. Ele era um grande mestre que ensinava direito civil de par com princípios de direito público. Ele, principalmente, me levou, é certo, ao doutorado na área do direito privado, fazendo-me despertar, entretanto, para o direito público, que eu sentia que era a mi-nha vocação. Há um juiz e professor em Minas, meu amigo, o juiz e professor Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, que também exerceu influência para que eu fosse para o direito público. Certo é que ficamos devendo muito de nossa formação jurídica a pessoas nas quais confiamos. Paulo Emílio Ribeiro de Vilhe-na me aconselhava a direcionar os meus estudos para o direito público, recomendando-me livros.

[C P] — Que livros?

[C V] — Os neurônios já estão cansados. [risos] Foram livros de filosofia do direito, de teoria geral do direito público. Hans Nawiasky, por exemplo, Miguel Reale.

[C P] — Um manual.

[C V] — Também manuais para o take-off, para a arrancada, para o passo inicial.

Concursos públicos

[C P] — Entendo. Nesse momento, o senhor está fazendo concursos – primeiro o senhor faz para o Ministério Público e depois o se-nhor faz para o cargo de juiz. O senhor já tinha uma preferência? Por exemplo, o senhor olhava e falava: “Ah, se o Ministério Públi-co fosse aqui para BH, eu assumia, ou se fosse juiz aqui de BH...”.

[C V] — Assumiria.

50 História Oral dO supremO [volume 7]

[C P] — “[...] eu assumiria.” Tinha uma preferência, de uma coisa ou outra, uma escolha...?

[C V] — Juiz. Sempre juiz.

[C P] — Sempre juiz?

[C V] — Sempre juiz.

[C P] — Por conta do seu pai? Ou não?

[C V] — Ah, sim, muito por conta do exemplo do meu pai. O seu exemplo de juiz me fez juiz. O juiz, no tempo do meu pai, era como um sacerdote. É dizer, a magistratura era um sacerdócio. O juiz era um homem diferente na cidade, na comarca.

[C P] — Mesmo em cidades grandes? Eu entendo isso que o senhor fala nas cidades pequenas.

[C V] — Nas cidades pequenas, principalmente. Eu me lembro bem de meu pai nas cidades do interior de Minas. Quando ele foi promovido para Belo Horizonte, eu já era homem feito.

[C P] — Então é a memória infantil que...

[C V] — Infantil e juvenil. Nas minhas férias do colégio, pelas suas mãos protetoras eu frequentava os fóruns, assistia às audiências por ele presididas. O júri, ele me mandava sentar atrás de sua cadeira, comandando: “Senta aí atrás, porque você não pode ficar sentado na frente, é menor de idade, o que é uma tolice, porque aqui as coisas são sérias e aqui tem-se o que aprender.” Eu assistia aos debates entre o promotor e o advogado. Aquilo me encantava. Nós morávamos numa casa, uma casa modesta, na cidade de Lagoa Dourada. Na porta da nossa casa, no nível da rua - essas casas antigas do interior -, faziam filas de pessoas que iam se aconselhar com o juiz. Eu observava. A mulher chegava, em prantos: “Doutor juiz, meu marido ameaça me bater, tem uma mulher entrando na vida dele...” O velho Achilles mandava o oficial de justiça chamar o

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sujeito. O cara vinha, humildemente, e eu observava, de lon-ge. O juiz dava um “pito” no marido: “Se bater na sua mulher, você acaba na cadeia! Você tem que respeitar a sua mulher!” Daí a uma semana, a mulher voltava para agradecer, dizendo que estava tudo bem, tudo em paz. Aquilo me sensibilizava. “Quero ser juiz, também.” E meu pai não era um grande juris-ta; meu pai era um juiz...

[C P] — Da prática.

[C V] — [...] comum. Que, aliás, quarenta anos como juiz me fez descobrir que juiz não precisa ser...

[n J] — Jurista.

[C V] — Não precisa ser um notável no Direito. Aliás, o ministro Jobim costumava enfatizar a questão dos resultados de uma sentença, a relevância desses resultados. O juiz precisa pensar que a sua decisão deve ter um resultado, que ela tem consequ-ências. Realmente, meu pai, que foi um grande juiz, um juiz de verdade, foi o meu grande inspirador. Respondendo a sua pergunta, digo que, se fosse nomeado promotor em Belo Hori-zonte, aceitaria; juiz em Belo Horizonte, aceitaria também. O doutor Milton Campos, então ministro da Justiça, apresentou o meu nome e o meu currículo ao presidente Castelo Branco, indicando-me para o cargo de juiz federal titular, em Minas. Eu fora aprovado nos concursos de promotor, juiz seccional e juiz de Direito. Nomeado, em janeiro de 1967, depois de aprovado o meu nome pelo Senado Federal, aceitei o cargo.

[n J] — Mas tem que esclarecer que a Justiça Federal, quando foi criada, o primeiro grupo era nomeação; depois é que vieram os concursos.

A justiça federal e a vida docente

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[C P] — É isso mesmo. E o senhor faz parte... Porque a Justiça Fe-deral foi...

[C V] — Da primeira leva. As nomeações se faziam pelo pre-sidente da República depois de aprovados os nomes pelo Senado Federal.

[C P] — Porque ela foi extinta em 1937 e recriada em 1965. Então foi...

[C V] — Em 1965, com a Emenda Constitucional 16, foi recriada a Justiça Federal.

[C P] — Isso. Mas só vai ser instalada em 67. É isso mesmo.

[C V] — A Lei 5.010, de 1966, é a espinha dorsal da Justiça Fe-deral, que foi instalada em 1967. Como eu dizia, o doutor Mil-ton Campos, quando ministro da Justiça, levou o meu nome ao presidente Castelo Branco. O sistema de nomeação era igual ao dos tribunais superiores: o presidente indicava o nome ao Senado e o Senado aprovava ou não. Aprovado pelo Senado, o presidente nomeava.

[n J] — O Milton?

[C P] — Sim.

[n J] — Foi.

[C P] — Foi isso.

[C V] — Eu tinha, em 1965, 29 anos de idade. O doutor Milton não me contou isso. Foi contado pelo professor Orlando de Carva-lho, da UFMG, numa palestra aqui em Brasília. O presidente Castelo Branco olhou o meu currículo e disse: “O currículo é bom. Porém, ele é muito novo.”

[C P] — O senhor não conhecia o presidente Castelo Branco?

[C V] — Não, não conhecia pessoalmente o presidente Castelo. No meu currículo constava a data e o ano do meu nascimen-

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to. “Ele é muito novo, ministro”, disse o presidente. O doutor Milton, com a fleuma britânica que o caracterizava, respondeu ao presidente: “Esse defeito, presidente, o tempo corrige.” E o presidente Castelo Branco acolheu a ponderação. Eu fui indi-cado ao Senado e nomeado em janeiro de 1967. Não devo deixar de mencionar que o Comendador Arthur Viana, um homem de bem, amigo de meu pai e sogro do presidente Castelo, enviou a este carta recomendando o meu nome. Fui empossado no car-go em abril de 1967, começando a trabalhar, imediatamente, o juiz Sebastião Reis e eu, numa sala do Fórum Lafaiete, numa mesma mesa. Os demais juízes; Fernando Pinheiro, João Tole-do e Gilberto Lomônaco, liderados pelo Juiz Pereira de Paiva; cuidariam da instalação do foro.

[C P] — O senhor vai ser empossado pelo presidente da República?

[C V] — Não, a posse foi no antigo Tribunal Federal de Recursos, aqui em Brasília, em abril de 1967.

[C P] — E já era o presidente Costa e Silva. Já tinha mudado.

[C V] — Já era o Costa e Silva o presidente da República.

[C P] — E o presidente estava presente na cerimônia de posse?

[C V] — Não. Estavam presentes vários ministros de Estado. Lembro-me da presença, na solenidade, do então ministro Jarbas Passarinho. O presidente do TFR era o ministro Oscar Saraiva. Tenho uma fotografia da solenidade. Presente estava o ministro Jarbas Passarinho. Estiveram presentes, também, outros ministros de Estado. Acho que os demais ministros que estavam presentes, inclusive os do antigo TFR, já são faleci-dos. Isso ocorreu há 45 anos. Foi uma solenidade bonita, fes-tiva, no antigo Tribunal Federal de Recursos, cuja sede, na Es-planada dos Ministérios, não era ainda na praça dos tribunais superiores, hoje ocupada pelo TRF. Estava lá o ministro Jar-bas Passarinho, bem moço. Tomamos posse vários juízes. Não

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fui apenas eu o empossado. Tomamos posse do cargo um grupo de juízes federais, de Minas, de Brasília, do Rio e de São Paulo.

[C P] — Eu imaginei isso.

[C V] — Minas, Rio, São Paulo e Brasília. Depois, outros grupos de juízes foram empossados. Aceitei o cargo porque ficaria em Minas, em Belo Horizonte.

[C P] — Aceitou e vira juiz federal. E o que o senhor fazia como juiz federal?

[C V] — Essa foi uma fase muito importante na minha vida pro-fissional. Eu sempre abraço as coisas com muito entusiasmo. Abracei a magistratura com redobrado entusiasmo. Eu estava realizando a minha vocação. Foi a grande fase de minha vida profissional, porque foi o tempo da preparação. Eu já lecio-nava. A minha primeira universidade foi a UNA – o nome, na época, era Universidade de Negócios e Administração – e eu lecionava Direito Tributário e Ciência das Finanças. Hoje, a UNA é um grande centro universitário. Denomina-se Centro Universitário de Negócios e Administração. É bem conceitu-ada em Belo Horizonte, segue os passos da FGV, da Fundação Getulio Vargas, ensino com seriedade. Cheguei a ser, por elei-ção de meus pares, seu vice-diretor, no final dos anos sessen-ta, início dos anos setenta. Era e é uma boa escola. Em 1969, passei a lecionar na Universidade Católica, a PUC de Minas, a convite do seu diretor, o desembargador Hélio Costa, e por indicação do professor José Fernandes Filho, que depois foi nomeado desembargador pelo quinto constitucional. Em 1975, prestei concurso público para professor auxiliar de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da UFMG. Os profes-sores Orlando Carvalho e Raul Machado Horta integraram a banca examinadora. Pouco tempo depois, na PUC, em 1976, fui eleito pela Congregação da Faculdade e nomeação pelo reitor, diretor da Faculdade de Direito. Era um trabalho exaustivo,

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que compreendia, além dos trabalhos na diretoria, a prepara-ção de aulas e o trabalho na Vara, onde sempre mantive o ser-viço em dia.

[F F] — PUC de Minas?

[C V] — Sim, PUC de Minas, Universidade Católica de Minas Gerais. Fui diretor de sua Faculdade de Direito. Foi quando co-nheci o professor Joaquim Falcão, que era o diretor da Facul-dade de Direito da PUC do Rio. Não. Agora me lembro: conheci o Joaquim Falcão antes de ocupar o cargo de diretor. Explico: eu era professor na PUC de Minas e tive notícia de que a PUC do Rio de Janeiro punha em prática um currículo de discipli-nas ajustado à realidade da vida profissional, seja do advoga-do, seja do juiz. Propus, então, ao diretor da nossa faculdade, irmos à PUC do Rio verificar o que de positivo ocorria. O nosso diretor, o professor e desembargador Hélio Costa, que foi um dos grandes juízes de Minas, baixou uma portaria designando a mim e ao professor Aloísio Gonzaga para que, como repre-sentantes da faculdade, fôssemos à PUC do Rio estudar a ex-periência ali praticada. O diretor da PUC-Rio era o professor Joaquim Falcão. Tornamo-nos amigos. Passei praticamente três dias dentro da PUC-Rio, na Gávea. O professor Joaquim Falcão proporcionou-nos toda assistência. Tenho pelo Joa-quim Falcão grande estima e admiração. Tudo começou na-quela ocasião. Levei para Minas a experiência da PUC do Rio. Nessa época eu não era diretor. Quando assumi a diretoria, em 1976, iniciamos a implantação, com as necessárias adaptações, do currículo, tarefa que foi concluída pelo professor Affonso Henriques Prates Correia. Um grupo de professores prestou-me grande ajuda na época. Foi uma fase bonita essa da PUC de Minas. A minha mulher dizia que eu falando, dormindo, das coisas que fazíamos na faculdade, a acordava no meio da noite.

[C P] — Paralelamente a isso, há toda essa carreira de...

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[C V] — Magistratura.

[C P] — De magistratura. E quais eram as grandes questões da Justiça Federal nesse momento?

[C V] — Havia grandes questões, desapropriações imensas. Até uma delas fez história, com o doutor Raul Bernardo Nelson de Senna, que era o procurador-chefe da Rede Ferroviária Federal. O governo federal quis fazer um ramal ferroviário a partir da Serra do Rola Moça, em Belo Horizonte - serra que já foi cantada por poetas mineiros e paulistas -, até, se bem me lembro, Paraty, no Estado do Rio. A Rede, em nome da União, deveria desapropriar grandes faixas de terra e o advogado Raul Bernardo Nelson de Senna foi o homem que promoveu a desa-propriação, em nome da União e da Rede Ferroviária Federal. Ele é um notável executivo.

[n J] — Inclusive, o Raul é meu sogro.

[C V] — É sogro do Jobim. [risos]

[C P] — Pode falar. Ele não está presente.

[C V] — Nessa época o Raul Bernardo não era, ainda, sogro do ministro Jobim. [risos] Foi nos anos 1970, na primeira metade. Teve episódios divertidos. Certo é que tratava-se de uma gran-de desapropriação. O doutor Raul chegou para mim e disse: “Eu sei que na Vara não tem funcionários suficientes. Se o senhor estiver de acordo, ponho à sua disposição alguns funcionários. E eles entram aqui sabendo que o seu compromisso é com a Justiça, serão servidores da Justiça.” Só para acomodar os pro-cessos era difícil, já que eram quase cem volumes. E o Raul foi propondo acordos. Mediante o depósito da indenização prévia, eu deferia a imissão provisória de posse. O depósito era sempre razoável. O doutor Raul fazia questão de deixar claro que não fazia depósitos para dar prejuízo ao jurisdicionado. Desapro-priamos até uma igreja! [risos] Dom Serafim, o cardeal Dom

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Serafim, que era o arcebispo de Belo Horizonte, foi ele quem recebeu a indenização. Mas o Cardeal Dom Serafim, grande figura do clero, professor, estimadíssimo em Minas, atletica-no dos bons, solicitou que a expropriante deixasse de pé pelo menos parte de uma igreja, pelo menos um pedaço da igreja. E o Raul Bernardo, um homem compreensivo, chamou os enge-nheiros e mandou que resolvessem a pendenga.

[n J] — Foi do PSD. [risos]

[C V] — É. Foi do PSD. Chamou os engenheiros e conclamou: “Vamos deixar de pé pelo menos metade da igreja.” E metade da igreja ficou de pé. [risos] Dom Serafim recebeu a indeni-zação, o cheque correspondente, os repórteres fotografaram, entregue pelo doutor Raul Bernardo. Essa desapropriação foi das maiores no Estado. Houve também a desapropriação – aí já na fase de execução – de Três Marias e de Furnas. Na área pe-nal, tivemos também algumas ações de repercussão – porque ao juiz federal, naquela época, competia julgar ações penais, mandados de segurança e tudo o mais. Mandados de seguran-ça contra autoridades federais, que se arvoravam com grandes poderes, na época. Quero dizer o seguinte...

[C P] — Nesses casos, a questão era por corrupção?

[C V] — Também. De servidores públicos, por exemplo. Transfe-ridos, removidos, eles argumentavam que...

[C P] — Por conta da oposição ao regime?

[C V] — Que era perseguição. Eu deferi vários desses mandados de segurança. E quero informar que nunca sofri pressão dos militares. Todavia, achei, certa vez, que seria cassado.

[C P] — Quando?

[C V] — Foi nos anos 1970, relativamente aos estudantes apro-vados no vestibular e considerados excedentes do curso de

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medicina. Deferi o mandado de segurança e mandei matricular os estudantes excedentes. E diziam, quando o mandado de se-gurança era instruído, que o SNI estava vigilante e o juiz seria cassado se deferisse a segurança aos estudantes excedentes. Deferi e fiquei esperando o pior. Qual não foi a minha surpresa. Vai ao meu gabinete um advogado que prestava serviços jurídi-cos ao SNI e com quem eu me dava, aperta a minha mão e me dá os parabéns. “A Justiça resolveu o problema.” [risos] Eu falei: “Pois é. E espalharam que o juiz seria cassado.” Ocorreu, en-tretanto, o contrário. Para o governo foi conveniente, porque a Justiça resolveu o problema mandando matricular os estu-dantes. Havia um preconceito elitista: só podiam diplomar um número reduzido de médicos. Hoje, acho que a Universidade agia com acerto, o ensino era muito melhor do que hoje, mas era um país que...

[n J] — De carências.

[C V] — Que despontava, com carência de médicos. Esse foi um caso muito importante.

A ditadura militar

[C P] — O AI-5 impactou um pouco a sua atuação na Justiça Federal?

[C V] — Me entristeceu muito.

[C P] — Porque eu imagino que impactou.

[C V] — É.

[C P] — Como?

[C V] — Me entristeceu muito a sua edição. Fiquei muito triste. Procurei o doutor Milton Campos e conversamos a respeito. Foi proposta a cassação do doutor Milton.

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[C P] — Sim.

[C V] — Eu tenho isso escrito. Eu fui fazer uma visita a ele – me parece que foi em julho de 1969. O AI-5 é de...?

[C P] — É de dezembro de 68, de 13 de dezembro.

[C V] — Dezembro de 1968, exatamente. O doutor Milton era se-nador por Minas e estava adoentado; fui, em julho de 1969, fa-zer-lhe uma vista. Eu estava de férias – naquela época, eu tirava férias e ficava trabalhando, para pôr o serviço em dia – e fui fazer uma visita ao doutor Milton, numa tarde. Ele me recebeu na bi-blioteca. Ele fumava e eu também, mas ele não podia fumar, es-tava adoentado. Esclareço que deixei de fumar há mais de trinta anos. Ele perguntou se eu não tinha “um cigarrinho”. Ficamos fumando e contando coisas, eu ouvindo mais do que falando. Em casa, para não esquecer, escrevi tudo o que me foi contado. E me lembro de o senador Milton Campos ter mencionado que o Gaminha, ministro da Justiça, propôs a sua cassação.

[n J] — O Gama e Silva.

[C V] — É. “Imagina, o Gaminha propôs a minha cassação!” dis-se-me o dr. Milton.

[n J] — Terrível.

[C V] — Ao doutor Pedro Aleixo mandei uma carta, quando ele foi impedido de assumir a vice-presidência da República. Um colega falou-me: “Você vai mandar essa carta pelo correio?!” “Vou”, respondi. E mandei a carta. O Padre José Carlos Brandi Aleixo, seu filho, cientista político, que foi meu colega na UnB, deve ter essa carta nos seus arquivos.

[C P] — O que dizia na carta, em linhas gerais?

[C V] — Em linhas gerais, eu o cumprimentava e dizia que a sua vida fora uma vida de sacrifícios em prol da coisa pública e que o ocorrido constituía ato injusto e mais um sacrifício que ele,

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certamente, receberia como mais um serviço prestado à Pá-tria. A ideia foi essa. Deixei claro que não concordava com o ocorrido. Basicamente, não concordando de não terem permi-tido a sua posse. E mandei a carta pelo correio, de BH para Bra-sília, para o seu apartamento, aqui. A carta chegou, porque ele me fez um telegrama: “Com cordial visita, agradeço...” Aquele tipo antigo, “com cordial visita, agradeço a sua...”. Não foi bem uma carta que lhe mandei; num cartão, escrevi a mensagem ao professor Pedro Aleixo.

[C P] — O senhor teve alguma ligação com a Arena?

[C V] — Não. Eu já era juiz. Eu já estava na Justiça Federal.

[C P] — Aí, não, o senhor, realmente...

[C V] — Quando assumi o cargo de juiz, eu fui ao doutor Milton. Falei-lhe: “Doutor Milton, o senhor acha que essa participação que tive na política, na UDN, pode não ser boa para o exercício do cargo?” “Você não teve participação política; você teve ati-tudes cívicas” foi a sua resposta. [risos] Quanto à Arena e ao PMB, não. Já vivia completamente alheio à política partidá-ria. Na noite em que editado o AI-5, eu estava em casa e ouvi a notícia da edição do AI 5, pelo rádio, na Hora do Brasil. Aquilo me entristeceu profundamente. Porque tudo caminhava para a normalização. O doutor Pedro Aleixo, vice-presidente, es-tava redigindo um projeto de Constituição. Cheguei a trocar ideias com o professor, a respeito de questões constitucionais, no gabinete que ele mantinha na Câmara dos Deputados. Em dezembro de 1969, foi outorgada a Emenda no 1, que também me entristeceu. Eu já era professor de direito constitucional, na PUC. Felizmente, eu era professor de teoria geral, de direito constitucional geral, não precisava de...

[C P] — Não precisava tratar do assunto.

[C V] — Exatamente. Quando o aluno me perguntava a respeito

61Carlos Velloso

da natureza jurídica do AI-5, qual o seu peso, eu recomendava que perguntasse ao seu professor de direito constitucional po-sitivo. Porque eu não podia fazer proselitismo, mas não podia ser um embusteiro nem podia fazer comício em sala de aula contra a ordem vigente. Então, o tempo de militância política, o tempo do ardor pelas coisas da política era passado. Fui juiz em Belo Horizonte e também professor. Outra coisa: sempre achei que o magistério é útil à magistratura, ao Ministério Público, à advocacia, e esses ramos da profissão jurídica são, também, muito úteis ao magistério, ao professor. Explico. Isso é uma experiência que eu vivi. Eu fui professor e juiz por cer-ca de quarenta anos. Pois bem, por quê? É que o juiz constrói ilhas de conhecimento. O juiz – o mesmo pode ser dito rela-tivamente ao advogado – estuda o caso concreto. Hoje é uma coisa, amanhã é outra. Ele vai cuidando, então, de casos con-cretos, aplicando o direito àqueles fatos, formando ilhas de conhecimento, sem sistematização. Já o professor debruça-se sobre o direito puro. Ele não tem contato, comumente, com a realidade, que deve estar subjacente ao direito. Se ele não tiver um laboratório – vale dizer, se ele não for magistrado, não for promotor, não for advogado – estará diante do direito puro, e o direito puro não atende à finalidade do direito. Porque a fina-lidade do direito, em última análise, é facilitar o convívio so-cial, é propiciar o convívio social, e eu acrescento mais, é fazer felizes as pessoas. Sempre achei que a felicidade das pessoas deve ser meta do direito. O que, aliás, está na Declaração de Independência norte-americana, a busca da felicidade. Então, a magistratura é útil ao magistério e o magistério é útil à ma-gistratura. Juiz e professor se tornam ecléticos. O juiz tem um laboratório, ele não vai trabalhar com o direito puro. O direi-to é, sobretudo, experiência, sentenciou Holmes, e a lógica do direito é a lógica do razoável, ensinou Recaséns Siches. Mas o juiz, que não é professor, constrói ilhas de conhecimento, sem sistematização. Há sentenças e votos eruditos de juízes que

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não são professores, com citações de muitos autores, sem, en-tretanto, sistematização. Grandes juízes do Supremo Tribunal Federal eram, também, professores. Cito alguns, que já mor-reram: Aliomar Baleeiro, Victor Nunes Leal, Leitão de Abreu, Hahnemann Guimarães, Vilas Boas.

[C P] — O senhor sempre tem uma grande paixão pela profissão de professor, não é?

[C V] — Tenho. Acho o magistério muito importante. Levou-me a consultar e ler as grandes obras, ao estudo sério, sistemati-zado. Hoje, estou praticamente desvinculado do magistério, já que aposentado como professor da UnB, que me concedeu o título de professor emérito. O mesmo ocorreu com a PUC de Minas. Continuo dando palestras, é certo, em congressos e seminários. Na sexta-feira que vem, por exemplo, estarei em Florianópolis, a convite do desembargador Thompson Flores, diretor da Escola Judicial do TFR da 4ª. Região. Santa Catari-na está sob a jurisdição do TRF da 4ª. Região. Falarei sobre o princípio da igualdade, a igualdade como direito fundamental. Depois, no dia 4 ou 5, falarei em Londrina, num Congresso de Direito Constitucional, a convite do professor Zulmar Fachin. Essas palestras me obrigam a ler, a consultar boas obras, é di-zer, eu me reciclo, me atualizo, o que é bom.

nomeação como ministro do tribunal Federal de Recursos

[C P] — É sim. Agora, como isso ajuda a sua trajetória na Justiça Federal? Porque o senhor está na primeira instância, não é? E aí, em meados dos 70, o senhor vai ser promovido. Posso chamar assim? Não sei se é o termo correto.

[C V] — Eu era juiz federal em Minas, dava aulas, escrevia ar-tigos de doutrina, tinha sentenças publicadas, quando fui sur-

63Carlos Velloso

preendido, em 1972 ou 1973, com uma convocação do Tribunal Federal de Recursos para integrar a banca examinadora do pri-meiro concurso nacional de juiz federal. E, em março de 1977 fui chamado para servir, como ministro convocado, no antigo TFR (Tribunal Federal de Recursos). Eu era diretor da Facul-dade de Direito da PUC de Minas. Fiquei numa dúvida terrível, se devia aceitar ou não a convocação, porque exercia o cargo de diretor da Faculdade e o fazia com o maior entusiasmo. Fui ao reitor, Dom Serafim, que me nomeara, escolhendo o meu nome na lista tríplice formada pela Congregação da Faculdade. Dom Serafim, à época, ainda não recebera as honras da eminência cardinalícia. Expliquei a ele a situação. Dom Serafim foi positi-vo: “Sua carreira, na magistratura, está em primeiro lugar. Va-mos dar um jeito. Você vai para Brasília; escolha um professor de sua confiança para substitui-lo de segunda a quinta-feira; na sexta-feira, você vem e trabalha como diretor da faculdade no final de semana.” Escolhi, para substituir-me, o professor Af-fonso Henriques Prates Correia, professor da Casa, de Direito Tributário e procurador da República. Affonso Henriques de-pois foi promovido a subprocurador geral, tendo funcionado perante o Supremo Tribunal como vice-procurador geral da República. Um profissional excepcional – culto, correto, bom caráter – o professor Affonso Henriques Prates Correia. Ele ficou no meu lugar, aceitou essa incumbência. Trabalhava eu no TFR, e ia para Belo Horizonte às sextas feiras. O TFR, em 1977, foi ampliado. Foram formadas, então, no mês de junho, de 1977, listas tríplices para ministro efetivo. Eu entrei numa das listas. Há um episódio interessante em torno das listas. Não sei se eu estou falando muito a meu respeito e...

[C P] — Não. Porque a minha pergunta era: como é que foi a for-mação da lista?

[C V] — Ocorreu episódio interessante. Eu estava convocado no tribunal e o tribunal elaboraria as listas...

64 História Oral dO supremO [volume 7]

[C P] — No Brasil todo?

[C V] — No Brasil todo. O TFR tinha jurisdição nacional e faria as listas para nomeação de três ministros. Eram treze os mi-nistros. O tribunal elaboraria três listas tríplices para nome-ação de três novos ministros tirados da carreira. Três outros viriam do Ministério Público e da advocacia e não constariam de lista (foram nomeados, após aprovação de seus nomes pelo Senado, Torreão Braz, do Ministério Público Federal, Lauro Leitão e Washington Bolívar, advogados). Passaria a composi-ção para 19 ministros. Depois, em 1980, foi para 27. Eu traba-lhava, como ministro substituto, num gabinete no andar térreo do prédio. Os gabinetes dos ministros efetivos situavam-se no terceiro andar. No final da tarde, às 19 horas, costumava passar no meu gabinete o ministro Jarbas Nobre, tributarista, perso-nalidade forte, rica, da maior respeitabilidade. Um parêntese, Jarbas Nobre sabia, e muito, de direito tributário, fora delega-do do Tesouro Nacional, em São Paulo, era um liberal em ma-téria criminal, generoso na concessão de habeas corpus, mas, em compensação, era muito fazendário. [risos] Isso eu dizia a ele. Todo mundo sabia disso. Fecha o parêntese. O Jarbas, en-tão, no final da tarde do dia anterior à sessão em que o TFR for-maria as listas, passou no meu gabinete. Tomamos o cafezinho de praxe. No meio da conversa, ele tira do bolso alguns papéis e me diz: “Estão aqui as minhas listas, os nomes em que votarei.” Li a relação dos nomes. O meu nome estava lá. Lendo os nomes, disse-lhe: “Cadê o nome do Sebastião Reis?!” “Não, eu não vou votar nele”, respondeu-me o ministro Jarbas Nobre. “Mas você deve votar no Sebastião,” disse-lhe eu.

[C P] — Quem votava?

[C V] — Os treze ministros.

[C P] — Os treze ministros escolhiam os outros quatro?

[C V] — É. Fariam as listas tríplices. Escolheriam, portanto,

65Carlos Velloso

nove nomes em três listas de três nomes.

[C P] — E aí enviavam ao presidente?

[C V] — Que seriam enviadas ao presidente da República. Os no-mes, escolhidos pelo presidente, vale dizer, três nomes tirados um de cada lista tríplice, deveriam passar pelo Senado. Mas eu dizia para o ministro Jarbas: “Você deve votar no Sebastião. Ele é um grande juiz, nosso amigo, seu amigo.” Jarbas ficou me olhando, pegou da caneta, riscou um nome, que eu não sei quem foi, e pôs o nome do Sebastião, dizendo: “Você não tem jeito! Ele vai disputar com você. Não ia votar no Sebastião, di-zia ele, por receio. É que dois mineiros em lista, acaba nomeado apenas um.” Não obstante, eu não queria que o Sebastião Reis, meu colega e amigo, ficasse de fora das listas. Abertas as urnas, no dia seguinte, Sebastião e eu tivemos, cada um, doze votos, número máximo de votos dos presentes. Empatamos. Sebas-tião, por ser mais idoso, foi para a cabeça da primeira lista trí-plice; eu para a cabeça da segunda lista tríplice. O primeiro lu-gar da terceira lista foi do Oto Rocha. As listas foram feitas em junho. Por volta de outubro ou novembro, houve uma tentativa de tirar o meu nome da lista, tentativa que veio do Executivo.

[C P] — O Executivo, a presidência da República?

[C V] — Sim, da presidência da República.

[C P] — Ou algum ministro?

[C V] — Mas não foi, parece-me, porque não gostavam de mim. Aconteceu o seguinte. Está na hora de contar toda a história.

[n J] — Mas quando estava no palácio, não é? Quando os nove no-mes já estavam dentro do palácio.

[C V] — Sim, os nove nomes, as três listas tríplices estavam no Palácio do Planalto.

[n J] — Desculpe. Ele tinha que escolher entre os nove.

66 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — Eram três listas tríplices, nove nomes, três em cada uma das listas. Aí ocorre um fato. O doutor Aureliano Chaves, go-vernador de Minas, apoiava – Aureliano era um homem forte junto ao Geisel – o Sebastião Reis e a mim.

[C P] — O senhor o conhecia?

[C V] — Conhecia. Aureliano era meu amigo. Ele foi da UDN.

[C P] — Sim.

[C V] — Mas acontece que o pai do governador, o professor Men-donça, foi a ele e disse: “O Velloso tem de idade o que o Sebas-tião tem de serviço. Você tem que se definir por um nome.” Diante do apelo do pai, ele se definiu pelo Sebastião.

[n J] — O Jarbas Nobre tinha razão.

[C V] — [risos] O Jarbas, exatamente. Ele anteviu isso.

[n J] — É claro.

[C V] — Mas vejam como são as coisas. Veja só, Jobim. [Volta o olhar para Nelson Jobim.] Quando abriram as urnas, eu tive doze votos, o Sebastião teve doze votos e o terceiro teve onze votos. Estava estabelecido, no regimento, que a primeira lista seria encabeçada, se houvesse empate, pelo mais idoso; o se-gundo lugar da primeira lista, pelo número de votos obtidos; e o terceiro lugar, também pelo número de votos. A primeira lista ficou assim: Sebastião Reis (cabeça), Evandro Gueiros e o terceiro nome não lembro. Na segunda lista, eu cabeça da lista, o baiano José Cândido em segundo e o terceiro não lembro. Na terceira lista, o Oto Rocha em primeiro, o Carlos Madeira em segundo e no terceiro lugar não lembro. Cabeças das listas: a primeira lista, Sebastião Reis; a segunda lista, eu próprio; e a terceira lista, o Oto Rocha. Entrou, como falamos, na primeira lista, com o Sebastião Reis, o Evandro Gueiros Leite, juiz fede-ral no Rio, juiz culto, professor de prestígio, com onze votos,

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amigo pessoal do presidente Geisel.

[n J] — Muito.

[C V] — O Geisel queria nomeá-lo, ele tinha todos os títulos. En-tão, quando o governador Aureliano Chaves telefonou para o presidente Geisel e disse que o apoio do governo de Minas seria para o Sebastião, o Geisel ficou em apuros: como indicá-lo, es-tando na lista do Gueiros? Foi convocado, então, pelo Armando Falcão, ministro da Justiça, o procurador geral da República, que era meu amigo, e que foi amigo, certamente, do ministro Jo-bim, o professor Henrique Fonseca de Araújo. Foi feito um ofí-cio ao presidente do TFR, o ministro Álvaro Peçanha Martins, assinado pelo Armando Falcão, ofício que foi levado ao velho Peçanha pelo procurador geral Henrique Fonseca. Nesse ofício foi dito, expressamente, o seguinte: em vez de nove nomes, em homenagem do Executivo ao TFR, mandasse o tribunal apenas cinco nomes. Cinco nomes, para as três listas, satisfaziam os re-quisitos. Formalmente, é forçoso reconhecer que satisfaziam.

[n J] — Eram listas separadas. Tu tinhas que escolher um na lis-ta, e os outros não podiam ser escolhidos mais.[...]

[C P] — Entendi.

[n J] — [...] Aí juntou todos os cinco e resolveu um problema político.

[C V] — O professor Henrique Fonseca levou o ofício ao TFR. Ele era meu amigo, eu gostava dele e reverencio a sua memória, porque era um homem bom, culto, honesto, digno.

[n J] — Direitista brutal.

[C V] — Um bom jurista.

[n J] — Direita.

[C V] — Direita, sim.

[n J] — Uh!

68 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — Ele era um homem do governo, e o governo queria alte-rar as listas. Queria tirar-me do páreo. Ele levou o ofício, e o Tribunal Federal de Recursos – eu presto homenagem àqueles treze ministros do TFR – se reuniu. O ministro Paulo Távora está aí, forte e saudável, e pode confirmar tudo o que está sendo narrado; o ministro Aldir Passarinho também. O ministro Pau-lo Távora ameaçou requerer aposentadoria, em protesto, se o tribunal aceitasse o que estava sendo proposto pelo Executivo. Os ministros perceberam a manobra do Executivo.

[C P] — E para diminuir o poder do tribunal, também, não é?

[C V] — O ministro Paulo Távora ameaçou aposentar-se; o mi-nistro Jarbas Nobre ficou enfurecido, também requereria a aposentadoria; e o tribunal, o Peçanha, o velho Peçanha que presidia a Corte, também ficou bravo. O tribunal rejeitou a proposta do Executivo e ao ministro Décio Miranda foi dada a incumbência de fazer um ofício, respeitosamente, porém com altivez, para dizer ao presidente da República, através do ministro Armando Falcão, que as listas não poderiam ser alte-radas, porque os integrantes daquelas listas já tinham direito subjetivo, ou pelo menos, expectativa de direito. Foi um ofício muito bem feito, diplomático, do ministro Décio Miranda, um bom mineiro, um grande juiz. E eu fui nomeado. Agora, vejam: se eu não tivesse pedido ao ministro Jarbas Nobre para votar no Sebastião Reis, este teria tido onze votos e eu doze votos. Eu teria ficado na cabeça da primeira lista, com o Gueiros.

[n J] — Quem é que estava na tua lista?

[C V] — Eu, o Américo Luz [...]

[n J] — Foi depois.

[C V] — [...] o José Cândido. Eu tenho certeza de que o José Cân-dido estava na minha lista. Eu tive a sorte, dizia o velho Peça-nha, também baiano: “Você teve a sorte de o vice-rei da Bahia

69Carlos Velloso

estar brigado com o Geisel.” Esse vice-rei era o Antônio Carlos Magalhães. Não fora isso, acrescentou, “Você não seria nome-ado, nomeado seria o baiano José Cândido, amigo do ACM.” Outro episódio: eu estava convocado no TFR, estava em lista, e participei de um julgamento. O ministro Paulo Távora pode confirmar o que vou dizer. O ministro Paulo Távora, nesse jul-gamento, proferiu voto contrário aos interesses do governo; o ministro Amarílio Benjamin divergiu, e sobrou para mim pro-ferir voto de desempate.

[C P] — Qual era a questão, o senhor lembra?

[C V] — Era uma questão que tirava a competência da Sunab para regular preços.

[C P] — É?

[C V] — Sim.

[C P] — Uau! No momento em que a economia popular era algo [...]

[C V] — Exatamente, num momento difícil para o governo.

[C P] — [...] que estava na Lei de Segurança Nacional. Vocês fo-ram abusados!

[C V] — Eu pedi vista dos autos, diante da divergência. Lembro-me de que levei os autos para Belo Horizonte, a fim de estudá--los. O julgamento tivera início na sessão de quarta-feira, e na sexta-feira viajei para BH. Estudei a matéria e cheguei à con-clusão de que o ministro Paulo Távora estava com a razão. Um dos ministros do TFR, diante da informação que lhe dei, que votaria com o Paulo Távora, esse ministro, que sempre foi um grande amigo, ficou preocupado e asseverou: “Como é que...?” Vou votar com o Paulo Távora, repeti. “Não faça isso, agora; dei-xe isso para depois!” “Não, eu vou votar. Se não o fizer, eu perco o respeito por mim.” O meu pai, o velho juiz, dizia isto: “Se você um dia violentar a sua consciência, você perde o respeito por

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você.” E outra coisa que meu pai dizia: “Se você achar que errou, proclame que errou. Deus lhe deu tempo para você reconhecer o erro.” O meu colega, grande amigo, queria a minha nomeação. Compreendi a sua preocupação, preocupação de amigo de fé. Todavia, na primeira sessão da Turma, votei. Foi aquele negó-cio, a imprensa noticiou. Pensei: não vou ser nomeado.

[C P] — Isso o senhor ainda estava como substituto?

[C V] — Sim, juiz federal convocado. Isso foi no mês de novem-bro de 1977, se não me engano. Já tinha passado o episódio da tentativa de alterar a lista. O ministro do Trabalho, ao qual a Sunab era subordinada, cujo Ministério tinha interesse na causa, foi, com o superintendente da Sunab, despachar com o presidente Geisel. Lá, tiveram um diálogo de que depois tomei conhecimento. É que alguns dias após o julgamento de que par-ticipei, o professor Geraldo Ataliba me procura, no tribunal. Ele viera a Brasília a serviço de sua advocacia. Ele me disse, “Tenho uma coisa para te contar, muito importante. Eu tenho um amigo no Gabinete Civil da presidência, um coronel que trabalha com o general Golbery; ele me revelou que o ministro do Trabalho foi despachar com o presidente Geisel, acompa-nhado do superintendente da Sunab; o presidente tomava no-tas no expediente que lhe levara o ministro; o ministro, então, disse: “Presidente, o homem que azarou o governo está em lista para ser nomeado ministro efetivo do TFR; o homem que aza-rou o governo está em lista para ser efetivado como ministro do TFR.”” Contou-me o Geraldo Ataliba que o coronel lhe re-velou que o presidente continuou escrevendo [com a mão di-reita simula escrever sobre o papel]. Estava anotando qualquer coisa. Quando o ministro repetiu o que dissera, o presidente Geisel tirou os óculos, olhou para o ministro e disse: “Você está dizendo que o juiz que azarou o governo está em lista”? “É sim, presidente, é sim!” O presidente Geisel exclamou: “Pois então ele é um juiz de verdade, e nós precisamos de juízes de verda-

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de.” Encerrou a conversa. E eu acabei sendo nomeado.

[C P] — O senhor acha que essa sua nomeação tem a ver com o momento de distensão que o Brasil começava a viver? Ou seja, o fato de que a “linha dura”, como se chama, ela estava começan-do já a perder poder e com isso era possível nomes que tinham uma atuação mais independente – não importa se concordas-sem ou não, mas que atuavam, como o senhor falou, de acordo com a sua consciência [...]

[C V] — Ah, sim, sem dúvida. [...]

[C P] — [...] pudessem estar nesses cargos?

[C V] — [...] E também a pessoa do Geisel. Eu acho que o Geisel era um homem virtuoso, um homem de bem, um servidor pú-blico autêntico, um militar cívico, um presidente da República virtuoso. Sabe que [...]

[C P] — O senhor não o conhecia?

[C V] — Pessoalmente, não. E fui nomeado. Tomei posse no dia 19 de dezembro de 1977. Naquela época existiam os cumprimen-tos, pelo Natal, ao presidente da República, ao Chefe de Estado.

[C P] — Sim.

[C V] — Uma liturgia que existia: havia o dia dos ministros dos tribunais superiores, o Supremo à frente. E eu fui, como juiz convocado, como ministro substituto do TFR. Quando chegou a minha vez de cumprimentá-lo, eu lhe falei: “Presidente, eu sou o juiz Carlos Mário Velloso, vou tomar posse...” “Eu sei”, ele sorriu, “eu sei.” Eu lhe disse: “Eu queria agradecer ao se-nhor e dizer que hei de honrar a toga que vou vestir”, ao que ele respondeu, sorrindo e com aquele jeitão germânico: “O senhor vai ser um grande ministro.” Me despedi, fui para o tribunal. A única vez que falei com o presidente Geisel foi essa. Antes, não falara. Sei que muita gente deu testemunho a meu respeito ao

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presidente Geisel. O ministro Aldir Passarinho, amigo pessoal do Geisel, foi um deles. Ele fez uma carta ao presidente a meu respeito. Passarinho, amigo também do Gueiros, fez questão de ressaltar, fazendo justiça ao Gueiros, na carta que enviou ao presidente, os méritos daquele colega. O senador Petrônio Portela, então presidente do Senado, me apoiava. Há um livro de memórias do Armando Falcão, em que ele escreveu que os ministros nomeados passaram por ele. No que toca a mim, não é verdade. Eu não fui a ele. Não o procurei. Tinha dele péssi-ma impressão. Ele não me convocou ao seu gabinete, conforme escreveu nas suas memórias. Mentira. Se me convocasse, eu perguntaria a ele, para quê? O que está posto no seu livrinho de memórias, pelo menos no que toca a mim, não é verdade. Eu nunca pus os pés no Ministério da Justiça, enquanto foi minis-tro o Armando Falcão. Mesmo porque ele não era um sujeito educado e eu achava que ele não era um bom caráter, dado que foi ingrato com o presidente Juscelino, de quem foi ministro. No sepultamento do presidente Juscelino, os jornais noticia-ram, ele foi de uma pusilanimidade sem par. Eu sempre tive péssima impressão dele.

[C P] — E há alguma causa importante que o senhor lembre quan-do esteve no tribunal, na segunda instância?

[C V] — No Tribunal Federal de Recursos?

[C P] — Isso.

[C V] — Eu tive algumas questões interessantes. Tive oportuni-dade de sustentar, vencido, por exemplo, a inconstitucionalida-de de emenda constitucional, o que, na época, foi considerado, por alguns, um absurdo. Na primeira instância, eu cheguei a sus-tentar também essa tese. E não existiam as chamadas cláusulas pétreas de forma expressa, na Constituição. Não existia. Mas, professor de Teoria Geral da Constituição, você tem uma série de indicativos de que certas matérias são fundamentais. Foi no

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caso do professor Pedro Aleixo. Porque o professor Pedro Alei-xo, após ter sido impedido de exercer a presidência da República, voltou para a cátedra, ele era professor catedrático da Faculdade de Direito da UFMG. Ele, a partir daí, parece, ficou desiludido e requereu a aposentadoria. E é aquela história: a um cão danado, todos a ele. Negaram-lhe um benefício, uma vantagem, a que ele fazia jus. Pedro Aleixo impetrou mandado de segurança, que me foi distribuído. Eu julguei o mandado de segurança. Sustentei que ele tinha direito adquirido contra a Emenda Constitucional nº 1, de 1969. A partir da sentença, escrevi um artigo, que foi pu-blicado na Revista de Direito Público, e que está no meu livro, Temas de Direito Público. Pedro Aleixo se tornara um inconve-niente para a Junta Militar que governava o país. A minha sen-tença foi confirmada pelo TFR e pelo Supremo Tribunal. O TFR desproveu a apelação e a remessa oficial, e o Supremo Tribunal não conheceu do recurso extraordinário.

[ i n] — Isso o senhor era juiz federal?

[C V] — Era juiz federal de primeiro grau.

o tribunal regional eleitoral

[i n] — Na sua passagem ainda como juiz de primeiro grau, o se-nhor esteve um tempo também no TRE que também foi muito [...]

[C V] — Estive.

[ i n] — [...] Como é que foi esse tempo em que o senhor...?

[C V] — Foi muito rico, muito interessante. Foi muito rico.

[ i n] — Foi um tempo que o senhor também trabalhou lá em Mi-nas, não é?

[C V] — Foi. Porque o juiz federal integra o TRE. Foi de 1969 a 1971 e de 1973 a 1975. Eu, em 1971, estava na direção do foro e estava instalando o Foro da Justiça Federal em Belo Hori-

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zonte, na rua dos Carijós. O presidente do TFR era o ministro Amarílio Benjamin, que me reconduziu, em 1971, na direção do foro, quer dizer, o Conselho da Justiça Federal, presidido pelo ministro Amarílio Benjamin, me reconduziu. E, reconduzido, não podia ficar no TRE. Deixei o TRE, voltando em 1973, de 1973 a 1975. A experiência, no TRE, foi muito rica. Em 1974, nas eleições parlamentares, eu era juiz do TRE e o presidente, desembargador Abreu e Silva. O desembargador Abreu e Silva, presidente, perguntou-me se eu aceitaria presidir a comissão apuradora das eleições. Muito entusiasmado, disse-lhe: “É claro que aceito.” [risos] Quanto mais trabalho, melhor. A Co-missão foi presidida por mim e era integrada pelos então juízes Ayrton Maia e Bernardo Figueira, pessoas excelentes, figuras ímpares de magistrados, homens de bem e do bem. Chamei os dois colegas para conversar e lhes disse: “Vamos fazer uma ex-periência?” “Qual é a experiência que você quer fazer? Não in-venta, não”, redarguiu o desembargador Ayrton Maia. Eu falei: “Vamos inventar. Vamos fazer a totalização pelo computador.” O que era o computador em 1974? Era um “trem”, uma máqui-na incomum, eletrônica, que poucos conheciam.

[C P] — Sim.

[C V] — Ninguém sabia o que era um computador.

[C P] — Ocupava uma sala.

[C V] — Muito maior do que isso. Da IBM. Alugamos da IBM o computador.

[C P] — É isso. Alugaram. Onde vocês conseguiram recursos?

[C V] — O tribunal tinha verba. Não era caro. E também a empre-sa estimulava. Porque essas empresas, claro, queriam divulgar o seu produto.

[n J] — Acho que ela estava tentando...

75Carlos Velloso

[C P] — Já.

[C V] — A empresa nos estimulou, é certo. Assentamos, “vamos fazer a totalização pelo computador”. Os dois colegas toparam. Na primeira oportunidade, levei a ideia ao tribunal, de forma não muito clara, sem esclarecer muito bem a matéria. Porque, se esclarecesse bem, o pessoal ia ficar preocupado, juiz é con-servador. [risos] “Ah, está ok, está muito bem.” Aprovaram: “Vamos fazer a totalização dos votos pelo computador.” E foi a primeira experiência no Brasil, experiência pioneira, da totali-zação dos votos pelo computador. Porque daqui a pouco, quan-do nós estivermos falando sobre o Supremo, eu vou falar sobre a urna eletrônica, que foi na minha presidência no TSE que ela foi implantada. 1974 serviu, pois, de base para a urna eletrô-nica, em 1995. Olha, Jobim, deu um trabalho imenso. Porque foi realizado sem que tivéssemos feito pelo menos um teste. E Minas Gerais é um país, e naquela época era um país sem muitas estradas asfaltadas, com estradas de terra, e a eleição foi no mês de chuva, em outubro ou novembro. A coisa foi difí-cil. Quem deu uma grande ajuda foi a PM, a Polícia Militar de Minas. Eu telefonava para o comandante: “As urnas estão em tal lugar. Não tem como chegar lá e nem como sair, no norte de Minas!” “O senhor pode ficar tranquilo, elas estarão no tribu-nal dentro de 24 horas”, respondia-me o coronel comandante.

[C P] — Ou seja, cada urna, em cada localidade, todas foram re-movidas para Belo Horizonte.

[C V] — Tinham que ser removidas para Belo Horizonte. No tri-bunal, no TRE, seria feita a totalização dos votos. Eram elei-ções parlamentares.

[C P] — Sim.

[C V] — Bom, aí a totalização começou a atrasar. Lembro que o pessoal dizia para mim: “Ô Carlos Mário, não é possível. É só apertar um botão e o computador dá o resultado.” Eu dizia:

76 História Oral dO supremO [volume 7]

“Não é bem assim. Eu também pensava que fosse.” E fui dan-do entrevistas, para pacificar o povo. Passava noites acordado com os técnicos da IBM. O Roberto Siqueira, servidor do TRE e eu. O Itamar Franco, candidato ao Senado, estava inquieto, uma pilha de nervos. O desembargador Ayrton Maia, natural de Juiz de Fora, seu amigo, o amansava. É que corria o boato de que o SNI estava monitorando e controlando a apuração. Cor-ria esse boato. Corria esse absurdo.

[C P] — E essa foi uma eleição importante [...]

[C V] — Importantíssima...

[C P] — [...] em que a oposição ganha, não é?

[C V] — Quando demos por finda a totalização dos votos, quando o tribunal proclamou os resultados, quando eu, presidente da comissão apuradora, proclamei, em sessão do tribunal, o resul-tado das eleições, a alegria foi geral.

[C P] — Proclamou depois dos outros estados, ministro?

[C V] — Não foi muito depois, não, mas [...]

[C P] — Foi um pouquinho?

[C V] — [...] É que Minas tinha uma tradição de fazer depressa, mais depressa. Quando proclamamos os resultados, o Itamar Franco teve vitória estrondosa. O Tancredo não quis ser can-didato ao Senado, com medo de perder. Coisas de Minas. O Itamar ganha e ganha a oposição. Foi uma vitória estrondosa da oposição. O Itamar ficou meu amigo, a partir daí dizia que me respeitava. O primeiro discurso dele, no Senado, está nos anais, elogiando a eleição mineira, a apuração pelo computa-dor. [risos] O presidente do TRE, desembargador Abreu e Sil-va, convocou-me: “Você que é o pai da criança, vai, agora, fazer o discurso na sessão solene de diplomação dos eleitos.” “Tudo bem, presidente”, respondi.

[n J] — E não tinha vistas na época, não é? Com isso, pulou por

77Carlos Velloso

cima das vistas, da contagem urna por urna, e trouxe tudo para dentro do tribunal.

[C V] — Ah, sim, tudo... Mas era...

[n J] — A malandragem estava nisso.

[C V] — E era eleição parlamentar; não era municipal.

[n J] — Então, trouxe tudo para lá [...]

[C V] — Tudo para lá.

[n J] — [...] Aí desaparece a tal de... a lista em que você jogava os votos para cima ou para baixo.

o tribunal Superior eleitoral

[C V] — Desaparece a possibilidade de fraude. Isso é que me ani-mou, em 1994, vinte anos depois, ou melhor, em 1995, na presi-dência do TSE, em informatizar o voto.

[n J] — Em 1995.

[C V] — Em 1995. A posse na presidência [no TSE] foi em 1994.

[n J] — Começou em 1995.

[C V] — Eu diplomei o presidente Fernando Henrique, em de-zembro de 1994. Em 1995, com o [Paulo César Bhering] Cama-rão, um excelente servidor público, técnico em informática, físico, com pós-graduação em informática, que eu trouxe do Serpro, com outros técnicos vindos do IME, do ITA, do Exér-cito e da Marinha, de alguns TREs, e também, claro, com es-pecialistas em direito eleitoral, fizemos o protótipo da urna eletrônica brasileira.

[n J] — Eu era ministro da Justiça.

[C V] — Você, Jobim, foi um parceiro de ideias. Essa expressão, parceiro de ideias, foi do Jobim. Impôs certas condições. Acei-

78 História Oral dO supremO [volume 7]

tei-as. E numa longa conversa, no meu gabinete, eu propus uma série de coisas, tomei o mingau pelas beiradas, e o minis-tro Jobim se entusiasmou: “Sou seu parceiro de ideias. Sou seu parceiro.” Lembra disso, Jobim?

[n J] — Foi em 1995.

[C V] — Em 1995. 1974 serviu de base. Eu dizia: fizemos isso em Belo Horizonte, em 1974, quando o computador era uma má-quina desconhecida, que ninguém sabia o que era, e deu cer-to. Vamos acabar com as fraudes, com o “mapismo”. Em 1994 houve uma grande fraude nas apurações, no Rio de Janeiro. Eu dizia: “Fraude no Rio, que é o tambor do Brasil, bateu lá, retum-ba em todo o país, o que estará acontecendo nos Estados mais distantes? O que está acontecendo por aí? Temos que tirar a mão humana da apuração dos votos.” Foi quando pensamos na urna eletrônica.

[C P] — De 1974 para cá, nas eleições mineiras, voltou a ser usada a apuração pelo computador?

[C V] — Voltou. Porque havia, em Minas, um servidor públi-co, do TRE, Roberto Siqueira, um servidor público exemplar, que teve participação intensa na apuração de 1974. O Roberto Siqueira morreu subitamente, recentemente. Ele era cunha-do do jornalista Villas-Bôas Corrêa, que ficou muito amargo no final da carreira. Porque você sabe o que aconteceu com o filho, o filho querido dele, que se acidentou? O Villas-Bôas Corrêa é filho do desembargador Merolino Corrêa. Merolino Corrêa foi presidente do TRE de Minas, um notável escritor, um grande magistrado. Ele era cearense, um cearense que virou mineiro. O desembargador Merolino Corrêa, pai do jornalista Villas-Bôas Corrêa, era sogro do Roberto Siqueira. O Roberto Siqueira era um entusiasta do computador. Ele foi incansável, em 1974. Ele não deixou a bola cair, a expressão era dele: “Doutor Carlos, não podemos deixar a bola cair.”

79Carlos Velloso

Grande Roberto Siqueira! Dele me lembro com saudade. Fo-ram muitas as madrugadas que passamos juntos na sede da IBM, em Belo Horizonte, discutindo com os analistas, com os programadores.

[C P] — O senhor vai ter outra atuação importante, desculpe in-terrompê-lo, quando vai chegar nos anos 1980, porque o senhor vai estar também na Justiça Eleitoral quando vêm as eleições de 1986 [...]

[C V] — É verdade.

[C P] — [...] as eleições constituintes.

[C V] — Eu estava no TFR. Integrei o TSE, na representação do TFR, de 1983 a 1985, como ministro substituto. De 1985 a 1987, como titular. Nessa condição, fui eleito corregedor geral da Justiça Eleitoral, no período, pois, de 1985-1987. O presidente do TSE era o ministro Néri da Silveira.

[F F] — Desculpe. Se vocês me permitem, a gente precisa fazer uma brevíssima pausa para eu e Nelson nos retirarmos, mas eu vou escolher justamente esse momento porque aí já volta ime-diatamente da pausa na atuação do senhor como corregedor ge-ral na Constituinte.

[C V] — Está bem.

[C P] — Está ótimo.

[F F] — Podemos fazer uma pequeníssima pausa?

[C V] — Vamos fazer uma pausa técnica.

[C P] — Sim, uma pausa técnica.

[F F] — Uma pausa técnica.

[ i n t e r r U P Ç Ão d e G r aVaÇ Ão]

[C P] — Vamos retomar. Então, estamos retornando da nossa pausa e, ministro, nós queríamos retomar na mesma questão

80 História Oral dO supremO [volume 7]

que estávamos antes, sobre a sua participação na Justiça Elei-toral. Nós temos aqui uma informação que, em 85, o senhor já como ministro efetivo do Tribunal Federal de Recursos, o se-nhor vai servir junto ao Tribunal Superior Eleitoral.

[C V] — É verdade.

[C P] — Queria saber como é essa sua ida para o Tribunal Supe-rior Eleitoral e o que o senhor acaba um pouco fazendo nesse momento em que o senhor está exercendo essa função.

[C V] — Bom, em 1985/1987, tivemos as eleições para a Assem-bleia Constituinte, em 1986 [...]

[C P] — Em novembro de 1986.

[C V] — [...] e também as eleições municipais, não?

[C P] — Em 1985.

[C V] — Junto com a eleição dos parlamentares, eu acho. Não?

[C P] — Pode ser.

[C V] — Acho que sim.

[C P] — Pode ser. Depois da Constituinte é que vai separar, não é?

[C V] — É, depois é que vai separar. Eu lembro que tivemos al-guns casos interessantes em alguns TREs. Eu era o corregedor geral da Justiça Eleitoral. Porque a Corregedoria era sempre de um ministro do TFR, como hoje a Corregedoria é de um mi-nistro do STJ e a presidência é do Supremo. Eu me lembro de um caso que foi muito interessante. Havia dois grupos que bri-gavam, no Amazonas: um, liderado pelo Arthur Virgílio; outro, pelo... Ele era governador do Estado... Possinho2, como é que é?

[C P] — Amazonino Mendes?

2 No momento da conferência de fidelidade a equipe imaginou tratar-se do governador Gilberto Mestrinho (1983-1987).

81Carlos Velloso

[C V] — Não, não. O Amazonino é discípulo dele, ao que me pa-rece. Ora! Conhecidíssimo, agora mesmo me lembrarei, são os brancos cerebrais. Havia uma disputa feroz em Manaus, entre o grupo do Arthur Virgílio e o grupo do governador. O grupo do governador era liderado pelo Bernardo Cabral, que, me parece, era candidato, também. O certo é que o TRE ficou em situação difícil, em face dos conflitos. O presidente do TSE, o ministro Néri da Silveira, numa sessão administrativa, entendeu que o caso exigiria a intervenção do corregedor da Justiça Eleitoral. O tribunal acolheu a proposta. Eu me lembro de ter dito: “Eu vou, sim, a Manaus, devo ir.” A briga ali era feroz. Disse, então, na sessão administrativa do tribunal: “Eu vou, mas preciso da companhia de um membro do Ministério Público Eleitoral, e eu gostaria que fosse o dr. Aristides Junqueira Alvarenga” que servia no TSE, também, nos impedimentos do procurador ge-ral, que era o Sepúlveda Pertence. É dizer, o procurador geral da República e procurador geral Eleitoral era o José Paulo Se-púlveda Pertence. O Pertence, presente na sessão, diante de minha sugestão de que eu gostaria de ser acompanhado por um representante do Ministério Público, e que o nome que sugeria era o do Aristides Junqueira Alvarenga, foi rápido: “Já está designado.” Viajamos para Manaus, lá chegamos de ma-drugada. Pela manhã, marcara uma reunião no TRE e nos reu-nimos, Aristides e eu, com os juízes. Tomamos conhecimento dos problemas... O presidente do TRE dizia: “Não tem jeito, a briga está brava, eles ultrapassam os cancelos do tribunal du-rante a sessão e enfrentam os juízes.” O presidente do TRE era um homem bom, humilde, me disse que fora pedreiro. Convo-quei, de imediato, reunião com os dois grupos. Falei: “Vamos fazer essa reunião no Tribunal do Júri, no fórum.” Reuni-me com eles e estabeleci: “Primeiro vou reunir-me com o grupo do Arthur Virgílio.” Fechei as portas, eu e o Aristides, o Aristides tomando notas, escrevendo. Pedi ao grupo do Arthur Virgílio: “Esclareçam o que está havendo, o que está acontecendo.” Um

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falava, outro falava, e o Aristides tomando nota de tudo. Quan-do chegou a minha vez, eu os conclamei, homens civilizados que eram, - o dr. Arthur Virgílio um diplomata de carreira, do Itamaraty, um homem culto -, deviam todos compreender que estávamos preparando as eleições para a Assembleia Consti-tuinte, um momento histórico, portanto. Que isso exigia que todos concorrêssemos para a realização de eleições limpas, legítimas. Notei que eles ficaram sensibilizados. “Agora, vou reunir-me com o outro grupo”, declarei. O segundo grupo, do governador Mestrinho, era liderado pelo dr. Bernardo Cabral. Na reunião, falaram muito, expuseram as suas questões, os seus problemas. Eu os conclamei, da mesma forma como pro-cedi com o primeiro grupo, que vivíamos um momento histó-rico, já que iríamos eleger os homens e mulheres que elabo-rariam uma Constituição para o Brasil. Vi que todos ficaram sensibilizados. Senti que teríamos a paz. Declarei, finalizando: “Agora vamos reunir os dois grupos numa reunião conjunta.” E houve a confraternização, confraternizamos todos e acabaram as brigas. Redigimos, o Aristides e eu, um termo de ajuste ou de acordo que todos assinaram, inclusive o Aristides e eu próprio. Assinamos um termo de acordo...

[C P] — De compromisso.

[C V] — De compromisso, uma carta de intenções, que foi redi-gida pelo Aristides Alvarenga, bravo representante do Minis-tério Público. [risos] Porque nós não queríamos a participação de pessoas estranhas. Pois bem. Pacificamos a política de Ma-naus e voltamos para Brasília. O tempo passou... Queria contar mais uma coisa. Quando fui indicado para o Supremo, o minis-tro da Justiça era o doutor Bernardo Cabral. Vejam só!

[C P] — Sim.

[C V] — E tínhamos nos tornado amigos, a partir do episódio de Manaus. Ele dizia: “Carlos Mário, se você não tivesse tido

83Carlos Velloso

aquele comportamento isento que teve, hoje eu não falaria bem de você com o presidente Collor.”

[C P] — O mundo dá voltas, não é?

[C V] — Eu sei que ele fez elogios ao meu nome ao presidente da República. E nos conhecemos na forma exposta. Ele chegou mesmo a dizer-me: “Se você não tivesse tido o comportamen-to isento que teve, naquela oportunidade, eu não iria falar bem de você.” O Arthur Virgílio é outro que ficou amigo meu. Quer dizer, ambos, Bernardo Cabral e Arthur Virgílio, ficaram meus amigos, são bons amigos.

[C P] — Além do Amazonas, aí como corregedor, nessa eleição de 1986, alguma outra...?

[C V] — Teve o Rio de Janeiro, também.

[C P] — O Rio já tinha, nessa eleição, os holofotes todos. Porque, em 1982, ocorrera uma eleição complicada, por conta da Proconsult.

[C V] — A Proconsult.

[C P] — Como é que foi? Isso chegou a...?

[C V] — Nessa época não tínhamos, ainda, computador; era aquela apuração dos votos em papel...

[C P] — Manual.

[C V] — Manual. Teve alguns problemas, fui lá, conversei com os juízes, estabelecemos diretrizes. O presidente do TRE era um conhecido desembargador, magistrado ilustre, respeitável. O corregedor regional eleitoral era o juiz Paulo Cesar Salomão, notável figura humana, promovido a desembargador, falecido há cerca de dois anos. Essas são algumas recordações... Mas foi tudo bem, tudo acabou bem. Antes da eleição, tivemos a enor-me tarefa do recadastramento eletrônico, que ficamos a dever à fibra do então presidente, ministro José Néri da Silveira. Ele foi um homem determinado: “Vamos recadastrar todos os

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eleitores brasileiros.” E eu dizia: “Mas, presidente José Néri, a eleição é no ano que vem, e já estamos no meio do ano.” Néri não deixava por menos: “Mas temos que fazer.” Pois fizemos. Por conta da Corregedoria ficou grave responsabilidade no recadastramento, porque todas as dúvidas a Corregedoria ti-nha que resolver. E recadastramos, em tempo recorde, todo o eleitorado brasileiro. É dizer, implantamos o cadastro eletrô-nico, o cadastro nacional dos eleitores brasileiros. Volto a afir-mar que isso ocorreu em razão da determinação e da fibra do presidente José Néri da Silveira. Não fora ele, não teríamos o cadastro eletrônico. Néri assumiu um grande risco, porque se o recadastramento não tivesse chegado ao final, naquele cur-to espaço de tempo, as eleições poderiam ficar prejudicadas. É que estávamos inutilizando o que existia e fazendo coisa nova. E se não terminasse o recadastramento até às eleições? Esse recadastramento teria que terminar antes das eleições. Viaja-mos muito por esse Brasil, sob a orientação e impulsionados pelo entusiasmo, pela determinação e pela fibra do ministro José Néri. Surgiam problemas, dúvidas, em um TRE, íamos lá para esclarecer, para resolver o problema. O certo é que o re-cadastramento foi feito, a tempo e modo. Conclusão: temos o maior cadastro do continente. E o cadastro nacional dos eleito-res é, realmente, muito importante. Veja: se um eleitor inscrito no Amazonas viajar para o Rio Grande do Sul e lá se inscrever, novamente, isso vai bater no computador central, TSE, e o elei-tor vai ser chamado a se explicar. É o que os técnicos chamam de “batimento”. O alistamento duplo vai bater no computador central do TSE. Em tese, o eleitor que se alista duas vezes co-mete crime. Foi muito bom o recadastramento, representou grande passo para evitar a fraude e, portanto, tornar mais lim-pas as eleições e mais legítima a representação, a democracia representativa que praticamos. Está aí o que me parece mais importante na minha passagem pelo TSE quando das eleições para a Assembleia Nacional Constituinte de 1986/1987.

85Carlos Velloso

[C P] — Foi em novembro de 86 o período da eleição, e a posse em fevereiro de 87 dos novos constituintes.

[C V] — É isso aí.

a criação do Superior tribunal de Justiça

[C P] — Eu queria entrar na Constituinte. Porque a Justiça Fede-ral vai fazer um lobby, no sentido positivo da palavra, de ser um grupo de pressão de interesse, durante a Assembleia Nacional Constituinte, principalmente pela criação do Superior Tribu-nal de Justiça, que acaba sendo criado. O senhor chegou a parti-cipar dessa organização da articulação?

[C V] — Cheguei a escrever, ainda como juiz federal em Minas, proposta de reforma, em que sugeria a criação de três tribu-nais superiores. Esse trabalho, de certa forma, serviu de base ao trabalho da Assembleia Nacional Constituinte. Isso me foi dito pelo Sepúlveda Pertence. Porque o Sarney designou uma comissão, chamada de notáveis, para a elaboração de projeto de constituição. Lembram?

[C P] — Sim. Presidida pelo senador Afonso Arinos.

[C V] — Presidida pelo Afonso Arinos. E o Pertence era um dos integrantes e ao Pertence coube integrar a subcomissão do Judiciário. Ele dizia, naquele jeito prático dele: “Carlos Mário...” Lá em Minas eu sou Carlos Mário, da mesma forma que ele é José Paulo. [risos] Aqui, eu virei Carlos Velloso, e aqui ele virou Sepúlveda Pertence. Mas então ele dizia: “Você propõe três tribunais superiores. Eu proponho um só, com os três dentro dele. Porque, dessa forma, o chefe da garagem será apenas um; ter-se-á apenas um assessor, não um punha-do de assessores.” “Você tem razão, Zé Paulo. É isso mesmo.” Todavia, o STJ que desejávamos, com os três tribunais den-tro do STJ, seria um pouco diferente. É que o STJ tem três

86 História Oral dO supremO [volume 7]

seções: Direito Público; Direito Privado; Direito Penal e Pre-videnciário. Acontece que só tem uma corte especial, só tem um órgão especial, quando cada seção devia ter autonomia, devia ser um verdadeiro tribunal. Cada seção decidiria a ma-téria constitucional, que tem que ser por maioria absoluta, por todos os membros do tribunal ou do órgão especial. En-tão, a seção de Direito Público deveria ter autonomia; a seção de Direito Privado, também; a seção de Direito Penal e Pre-videnciário teria, da mesma forma, autonomia. As matérias atinentes a cada seção nela findariam. Seriam, as três seções, muito mais ágeis.

[C P] — Sim. Entendi.

[C V] — A ideia original era de um tribunal superior composto de três tribunais. Três tribunais superiores dentro de um só tri-bunal. Porém, ao STJ que temos, não foram conferidas às se-ções a autonomia necessária para tornar mais ágil o tribunal. Ele foi imaginado, o STJ, participei também dessa imaginação, dessa criação, em termos de ideia, pensando na Corte de Cas-sação italiana e na Corte de Cassação francesa. Porque a Corte de Cassação italiana tem cerca de trezentos conselheiros [...]

[C P] — Uau!

[C V] — [...] a Cassação italiana tem um grande número de ju-ízes. A Cassação francesa tem cento e tantos juízes, cento e tantos conselheiros.

[C P] — Nossa!

[C V] — Mas os conselheiros estão divididos em salas, cada uma das salas com autonomia. Eles só se encontram [...]

[C P] — Eventualmente.

[C V] — [...] eventualmente e no Dia da Independência, para can-tar o hino nacional. E era assim que nós pensávamos que devia

87Carlos Velloso

ser o STJ. Que deve ser o STJ.

[C P] — Isso era um consenso, dentro do Tribunal Federal de Recursos?

[C V] — Sim, entre aqueles que estudavam a questão. Agora, uma coisa interessante: mais no final, o Tribunal Federal de Recur-sos começou a reagir... Porque ele seria extinto.

[C P] — Sim.

[C V] — Então, alguns ministros ficaram com receio: “Mas extinção?!” Eu lembro que o Sarney, presidente da Repú-blica, quando era votada a Constituição, compareceu a uma sessão solene do TFR. No discurso do ministro designado para saudá-lo, protestou ele contra a extinção do TFR. Eu lembro que o Sarney, no seu discurso, esclareceu: “Não há razão para preocupação, o TFR vai se tornar um tribunal maior, mais importante.” Tinha alguns ministros do TFR que ficaram contra. Não entendiam ou tinham receio do que poderia ocorrer.

[C P] — Que a percepção não era que seria um tribunal maior...

[C V] — É. Não imaginavam que seria um tribunal maior, mais importante.

[C P] — Mas que “seria o fim” do tribunal?

[C V] — Seria o fim, pensavam, talvez, alguns. Não percebiam a grandeza da reforma. Esclareça-se: isso ocorria com um peque-no número de colegas. Inclusive... Não! [Levanta a mão direita com a palma aberta.] Convém não mencionar nomes. [risos]

[C P] — Mas é possível contar sem mencionar o nome?

[C V] — É possível. Protestaram junto ao então presidente Sar-ney. E o presidente Sarney teve esta expressão: “Não, o tribu-nal vai se tornar um tribunal maior, de maior expressão.” E se transformou mesmo. Mas o que penso que deve ocorrer no

88 História Oral dO supremO [volume 7]

STJ? É preciso conferir autonomia funcional às suas seções. O tribunal deveria ter um único presidente, o presidente do STJ. Deveria compor-se de três salas ou seções autônomas, cada uma delas com três ou quatro turmas. Autônomas por quê? Para decidir, em definitivo, as questões próprias da seção. Au-tonomia funcional, portanto, sem deixar de ser o STJ [faz cír-culo com a mão direita em frente ao corpo]. Dentro do STJ, as seções, hoje, são três. Falta conferir, portanto, a essas seções, na minha opinião, plena autonomia funcional, para encerrar em definitivo as questões ali, sem necessidade da Corte Espe-cial. O Plenário se reuniria, então, para cantar o hino nacional nas grandes solenidades. Essa expressão, aliás, era do ministro Décio Miranda, notável juiz, notável homem público.

[C P] — Essa... Minha ignorância por não fazer parte do campo do direito. Então, uma cientista política falando. Não há um risco, nessa sua ideia, de que não se encerre nas câmaras e isso venha para o órgão especial? Ou seja, que, na verdade, se crie...?

[C V] — [...] Não, cada uma das seções seria o órgão especial, jul-gando com caráter definitivo.

[C P] — Sim. Então, não teria nunca um encontro de todos?

[C V] — Não, em termos de trabalho. A reunião de todos ocorre-ria nas grandes solenidades do tribunal.

[C P] — Nunca? Entendo. Agora eu entendi.

[C V] — Todos se encontrariam para cantar o hino nacional, nos dias de festa, como ocorre na Cassação italiana e como ocorre na Cassação francesa.

[C P] — Tá! Entendi agora.

[C V] — Quer dizer, ganhar-se-ia tempo. É uma forma de afas-tar a lentidão processual. E essas seções podiam se expandir. Amanhã, chega-se à conclusão de que a matéria tributária e

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previdenciária já tem um número de recursos que justificaria a criação de uma quarta sala, ou seção. Cria-se a quarta sala, ou a quarta seção. As salas poderiam ir sendo criadas de confor-midade com as necessidades, com os estudos científicos que fossem feitos, com base nas estatísticas. Eu penso que isso po-deria ocorrer no STJ. E a Constituição deixou isso em aberto. É fazer, portanto.

[C P] — É?

[C V] — Deixou. É que a Constituição, no artigo 104, fala num mínimo de 33 ministros. O STJ compõe-se de, no mínimo, 33 ministros. Quer dizer, a lei pode alterar para mais o número de ministros do STJ.

[C P] — E ampliar.

[C V] — Sim, como vimos de ver. O STJ pode ser ampliado. Escla-reço que não sou favorável à ampliação sem que sejam precedi-dos de estudos técnicos, científicos, com a colaboração do CNJ.

[C P] — Sim.

[C V] — Eu penso que o mais importante é racionalizar. Sempre sustentamos a tese de que o Supremo tribunal deveria ter com-petência – o que a Suprema Corte norte-americana tem – para escolher, em razão do interesse nacional, a matéria a ser julga-da. É que o Supremo Tribunal não deve julgar questões miúdas. Não é compatível com a Suprema Corte julgar questões que interessam à meia dúzia de pessoas, apenas; a Corte Suprema deve julgar questões que interessam a milhões de pessoas. É assim na Suprema Corte norte-americana desde os anos trin-ta, quando o Congresso estabeleceu essa possibilidade, ou esse pressuposto do recurso à Suprema Corte. O Supremo ganhou, com a Emenda Constitucional 45, a repercussão geral, que é mais ou menos o que existe na Suprema Corte norte-america-na. Com a exigência da repercussão geral da questão constitu-

90 História Oral dO supremO [volume 7]

cional discutida, como pressuposto do recurso extraordinário, a Corte teve uma redução de cerca de 70% do número de recur-sos extraordinários, ao que li.

[C P] — A criação do Superior Tribunal de Justiça, também, não foi uma tentativa de que isso acontecesse, que [...]?

[C V] — Foi também.

[C P] — Que o infraconstitucional ficasse com [...]?

[C V] — Mas ao Superior não foi conferida, ainda, a possibilidade de conhecer apenas questões cuja “matéria”, discutida no caso concreto, tenha repercussão geral, seja no campo jurídico, no campo social, no campo econômico, no campo político. Numa palavra, questões que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. Teria repercussão geral, também, recurso que impug-nar decisão contrária à súmula ou a jurisprudência firme do tribunal. Uma matéria, por exemplo, que diga respeito a juros fixados pelo Banco Central tem, inegavelmente, repercussão geral, porque interessa a milhões de brasileiros.

[C P] — Sim.

[C V] — A Suprema Corte americana decidiu questão interes-sante. Veja como é importante a possibilidade de a Corte es-colher a matéria pela relevância, pela repercussão geral. O aborto, a Suprema Corte americana admitiu a sua possibilida-de nos três primeiros meses da gravidez. Essa questão surgiu num caso concreto.

[C P] — Sim.

[C V] — No Texas, uma jovem engravidou e queria fazer o abor-to. A lei texana não permitia. Ela foi à Justiça do Texas, susten-tando o direito ao seu corpo, com base no direito à privacidade. A ação foi julgada improcedente nas cortes estaduais. Ela re-correu à Suprema Corte americana. Quando esta foi examinar

91Carlos Velloso

o recurso, a criança já tinha nascido. A Suprema Corte o que fez? Normalmente, decidiria no sentido de que o recurso esta-ria prejudicado.

[C P] — Sim.

[C V] — Processualmente falando, o recurso estaria prejudica-do. Mas a Suprema Corte admitiu o recurso, porque a ação não interessava apenas à autora mas a milhões de mulheres norte--americanas. Ela, na verdade, constituía uma class action, uma ação coletiva. E conheceu do recurso e decidiu pela inconsti-tucionalidade da lei do Texas que proibia o aborto. Decidiu a Suprema Corte no sentido de que o aborto poderia ser realiza-do, já que a mulher é dona do seu corpo. O aborto, então, po-deria ser realizado, porém, até certo período da gestação. Essa decisão teve repercussão imensa no mundo. O nosso Supremo Tribunal, agora, de certa forma se inspirou nessa decisão ao decidir pelo aborto do feto anencéfalo. Resumindo: a Suprema Corte americana decidiu na forma exposta, porque tem ela a faculdade de escolher as questões a serem julgadas.

[C P] — Agora, tem uma questão filosófica aí, porque o que define o que é coletivo? Ou seja, a Suprema Corte americana, ali, ela tam-bém poderia ter tomado a decisão de que isso era uma questão que só dizia respeito àquela mulher. O senhor concorda comigo?

[C V] — Sim.

[C P] — E que naquele... Eu concordo com o senhor, nesse momen-to, quando toma a decisão de que é coletivo... A pergunta é: o que é que faz um grupo de indivíduos, os juízes, num determinado momento, optarem: “isto é coletivo” e “não, isto não é coletivo”?

[C V] — É que a Corte Suprema é muito atenta ao que a socieda-de americana está pensando, às suas tendências, às realidades da nação. Na Suprema Corte as grandes questões são muito pensadas. Eles têm tempo para isso. Não julgam miudezas.

92 História Oral dO supremO [volume 7]

[C P] — Se a gente trouxer para o Brasil, também é a mesma coisa?

[C V] — Pode ser.

[C P] — Ou seja, quais são os temas de repercussão geral que a gente...?

[C V] — Pode ser. Agora, veja: nós, latinos, somos metafísicos, a expressão já a ouvi, com ela concordo. Gostamos de fazer leis, gostamos de fazer emendas constitucionais. Isso é da natureza dos latinos; não é só do brasileiro. Já os anglo-saxões, os ingle-ses, os americanos, principalmente, pensam diferente. Vamos esclarecer: os anglo-americanos, os anglo-saxões, menos os alemães, que são romanísticos. O sistema alemão é romanísti-co-germânico. Eles têm muito do romano, os alemães. A Cons-tituição norte-americana, com mais de duzentos anos, ela é de 1787, tem apenas 27 emendas. Muito bem. Mas será que ela tem apenas 27 emendas? Será que aquela Constituição, fei-ta no tempo das diligências, que rege uma administração que manda o homem à Lua e uma nave ao planeta Marte, só tem 27 emendas? Não. É que as alterações constitucionais, as “muta-ções constitucionais”, são feitas pela Suprema Corte mediante construções jurisprudenciais. Uma vez eu estive na Suprema Corte norte-americana e me mostraram, na biblioteca, uma es-tante com livros parecidos com aqueles ali, na minha estante, com capas pretas e títulos dourados. Uma estante imensa, onde estão acórdãos da Suprema Corte que decidiram questões constitucionais, questões que dizem respeito à Constituição norte-americana. São autênticas emendas constitucionais. A Suprema Corte norte-americana, durante algum tempo, deci-diu, por exemplo, que o imposto de renda seria inconstitucio-nal. Tempos depois, decidiu pela constitucionalidade. Mudou o texto? Não. Mudaram as circunstâncias. Mudou a Consti-tuição real, a constituição substancial. O que é a Constituição real? É a Constituição que se assenta nas realidades histórica,

93Carlos Velloso

social, sociológica, econômica, religiosa. É dizer, nas realidades da nação, da vida de um povo. No momento em que a Constitui-ção jurídica se desassocia dessa Constituição real, substancial, material, ela vira o que Ferdinand Lassalle chamou de mera folha de papel. A Suprema Corte americana tem feito o ajuste, com perfeição, da constituição formal à constituição substan-cial. Já cometeu erros, é certo, já cometeu erros, porque é cons-tituída de homens, e o homem não é infalível.

[C P] — Sim, é claro.

[C V] — Ela, por exemplo, deu causa à Guerra da Secessão, quan-do decidiu, no governo de Lincoln, em desfavor do escravo Dred Scott, no famoso caso Dred Scott versus Sandford, relata-do pelo “chief justice” Roger Taney. Mas os americanos sem-pre souberam pagar o preço.

[C P] — Essa questão foi debatida na Assembleia Nacional Cons-tituinte, com referência ao papel, por exemplo, do Supremo Tri-bunal Federal e do STJ, ou seja, na tentativa de criar o Superior, de transformar...

[C V] — Foi...

[C P] — [...] de dar uma nova feição?

[C V] — Foi sim. E a Constituinte teve a sorte de ter ali depu-tados e senadores constituintes de saber jurídico. E até mui-tos que não eram advogados, que não eram juristas, debatiam com propriedade. Por exemplo, Mário Covas, que depois foi governador de São Paulo e teve um papel muito importante na Constituinte...

[C P] — Mário Covas.

[C V] — Mário Covas. Ele tinha assessores do melhor nível, como o professor José Afonso da Silva.

[C P] — Sim.

94 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — Que foi assessor da Constituinte, quer dizer, levado por ele, Mário Covas, para assessorá-lo. O Siqueira Castro, notável advogado, na época subprocurador geral da República, consti-tucionalista, mestre por Yale ou Harvard. Foi ele – alguns che-garam a dizer que teria sido eu – que fez incorporar à Consti-tuição de 1988 uma conquista notável, o devido processo legal substantivo. Isso tem consequências: por exemplo, a lei tem que estar conforme ao princípio da razoabilidade e ao princí-pio da proporcionalidade, sob pena de ser ela inconstitucional. E se a lei é escancaradamente injusta, ela é inconstitucional. O devido processo legal, em caráter substantivo, resultou de ju-risprudência da Suprema Corte americana, construção juris-prudencial realizada no século XX.

[ i n] — Desculpe interrompê-lo, mas o senhor participava desses debates? Como é que o senhor...?

[C V] — Tentando participar, de alguma forma, junto a constituin-tes que eu conhecia. Por exemplo, o Bernardo Cabral, que era o relator geral, eu estive com ele várias vezes; também com o de-putado Pimenta da Veiga; com o professor José Afonso e outros.

[C P] — E o senhor levava demandas da Justiça Federal?

[C V] — A ideia do Superior Tribunal de Justiça veio da “comis-são de notáveis”. Tinha o dedo do Sepúlveda Pertence, que in-tegrara aquela comissão, como já foi narrado, e era, por ocasião da Constituinte, o procurador geral da República. Os consti-tuintes receberam, praticamente, o prato pronto. O projeto foi bem trabalhado na Constituinte, muitas emendas foram apre-sentadas. Tive então participação na Constituinte através de constituintes de minha relação de amizade e de muitos outros.

[C P] — O Bernardo...

[C V] — Sim, Bernardo Cabral; Pimenta da Veiga; o Mário Co-vas, através do professor José Afonso da Silva. Porque eu não tinha amizade com o Mário Covas, senão admiração, sempre o

95Carlos Velloso

admirei. O José Afonso o assessorava, na Constituinte. O Si-queira Castro se comunicava com o José Afonso, também. En-tão foi uma boa luta. Aliás, eu costumo dizer que a Constituição de 1988 é a mais democrática das Constituições que tivemos. Você chegava um dia na Constituinte, estavam índios ali, dan-çando, apresentando as suas propostas; no outro dia, eram os sindicalistas, os sindicatos fazendo barulho no Congresso, com as suas reivindicações; noutro dia, eram os servidores públicos, os juízes, os advogados, a OAB, os membros do Mi-nistério Público, os ruralistas, os sem-terra e sem teto. Houve, realmente, na Constituinte, um grande debate. Os setores da sociedade, praticamente todos, se manifestaram. Em termos de interesse público e corporativos.

[ i n] — Os juízes federais, inclusive, têm um livro que conta um pouco da manifestação dos juízes federais em prol da criação do STJ. Como é que foi isso? O senhor se lembra desse dia?

[C V] — Bom, então eu retorno a esse meu trabalho original. Eu era juiz federal, em Minas, quando propusemos a criação dos tribunais que seriam sucessores do antigo TFR, ou seja, o STJ. Só que falávamos em mais de um tribunal. E o Pertence propôs juntá-los em um só tribunal, porque seria mais prático e ficaria mais barato. De fato. O Pertence tinha razão. Mas se esquece-ram de dar autonomia às salas, às seções, como falamos lá atrás.

[ i n] — E durante a Constituinte, o senhor se recorda de alguma movimentação em prol desse projeto? Ou foi mesmo mais essa construção intelectual?

[C V] — A Constituinte já tinha, quanto a isso, na verdade, o prato feito.

[ i n] — Claro.

[C V] — O Supremo da época ficou contra.

[ i n] — [Ficou contra] a criação do STJ?

[C V] — Sim. Vocês vão ouvir alguns ministros.

96 História Oral dO supremO [volume 7]

[ i n] — Quais eram os argumentos, ministro?

[C V] — Eles achavam que iria esvaziar o Supremo Tribunal. O ministro Néri estava no Supremo nessa época; o Moreira Alves, o Rafael Mayer, o Djacy Falcão, o Oscar Corrêa. Mais quem? O Paulo Brossard veio depois.

[C P] — Mas perderam a queda de braço, não é?

[C V] — Perderam a queda de braço.

[C P] — Nesse sentido, os juízes federais conseguiram articular de maneira mais eficiente do que o Supremo.

[C V] — Mas não foram somente os juízes federais.

[C P] — Não? Havia outros...?

[C V] — Também e, sobretudo, os advogados. O professor José Afonso da Silva, o professor Miguel Reale, dentre muitos outros.

[C P] — Outros ramos do campo jurídico também...

[C V] — Ah, sim.

[ i n] — A favor do STJ.

[C V] — A OAB, na época. Foi muito forte o seu apoio.

[C P] — Com o Márcio. A OAB, com o Márcio.

[C V] — Quem era o presidente? Não lembro.

[C P] — Era o Márcio.

[C V] — Sim, era o Márcio Thomaz Bastos.

[C P] — Era o Márcio Thomaz Bastos o presidente do Conselho Federal [da OAB].

[C V] — Sim era ele, Márcio Thomaz Bastos. A Ordem foi favorá-vel. Também as associações de advogados. Por quê? Porque o Supremo, com onze ministros, decidindo questões infracons-titucionais e constitucionais, isto é, fazendo o trabalho que faz

97Carlos Velloso

hoje STJ e mais o dele, Supremo, imaginem se isso seria pos-sível, hoje. A Constituinte criou, acertadamente, o STJ, mas se esqueceu de dotá-lo de mecanismos capazes de agilizar o julgamento dos recursos de sua competência. E mais, o STJ não aprecia matéria constitucional. Eu acho um erro. Como constituem erros certas competências do Supremo Tribunal Federal, que não deviam ser suas.

[C P] — Tipo...

[C V] — De direito comum. Olha, isso que o Supremo está fazen-do agora, isso é arrasador. Está ótimo o comportamento do Su-premo, sem dúvida, nesse julgamento.

[C P] — O senhor está falando do julgamento do chamado Mensalão?

[C V] — Isso, do mensalão. O julgamento está indo bem, mas o Supremo está parado, praticamente, quanto às questões que são suas, é dizer, as questões constitucionais. Agosto, setembro e vai para outubro e vai para o próximo ano. Quantas questões importantes, ações diretas de inconstitucionalidade, arguições de descumprimento de preceito fundamental, recursos extra-ordinários, aguardam julgamento. Na minha opinião, ao Supe-rior Tribunal de Justiça deveria ser cometido o contencioso constitucional, como ocorre com o TST, com o TSE e com o STM. E o recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Fe-deral, das decisões dos tribunais superiores, seria cabível em duas hipóteses, apenas: no caso de ser declarada, pelo tribunal superior, a inconstitucionalidade de uma lei ou de um tratado, ou no caso de o tribunal superior decidir contrariamente a uma tese constitucional já estabelecida pelo Supremo, seja no con-trole difuso, seja no controle concentrado. Essas competên-cias de direito penal, hoje conferidas ao Supremo, não deviam existir. O foro privilegiado só deveria existir para o presidente da República, para o presidente da Câmara, para o presidente do Senado, para o presidente do Supremo. E os demais? Para

98 História Oral dO supremO [volume 7]

os demais, o juiz natural é o juiz de primeiro grau, como é nos Estados Unidos. Por que nós temos, no Brasil, esse foro privile-giado? Porque fomos império, e a característica da monarquia são as honrarias, são os privilégios. A República tem como ca-racterística a simplicidade, a igualdade. Por que o parlamentar precisa ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal? Nunca foi assim na história republicana brasileira. Sabe quando se esta-beleceu esse foro privilegiado para os parlamentares?

[C P] — Não.

[C V] — Com a Emenda Constitucional no 1, de 1969, outorgada pela Junta Militar.

[C P] — Eu imaginei.

[C V] — É.

[C P] — Porque precisava proteger aqueles que apoiavam o regime.

[C V] — Sabe por quê? É que a Junta, ou melhor, quem elaborou a Emenda no 1, entendeu que o deputado não deveria ter imuni-dade parlamentar quando cometesse, por palavras e votos, os crimes de difamação, calúnia e injúria. Não teriam imunidade parlamentar, porém seriam julgados pelo Supremo Tribunal Federal, a Suprema Corte do país.

[C P] — Não era porque, nesse momento, havia a tese, em parcelas do governo, de que o Supremo era favorável ao regime?

[C V] — Realmente, havia quem pensasse assim.

[C P] — Porque a primeira instância, em muitos momentos, ela... Principalmente, mas não só. A Lei de Segurança Nacional não fala só sobre perseguição; fala sobre economia popular... Tem outras questões que são importantes: corrupção... Não é só a questão da oposição ao regime. Mas, muitas vezes, a primeira instância, ela decidiu contra. O senhor mesmo contou aí um caso que o senhor também teve, contra. De repente, é mais fácil

99Carlos Velloso

controlar doze ou treze...

[C V] — Os juízes eram mais garantidos, no meu tempo, eu acho.

[C P] — Sim. O senhor acha?

[C V] — Acho.

[C P] — Como assim? Explique-se.

[C V] — Mesmo no regime militar.

[C P] — É? Explique-se.

[C V] — Os juízes não estão sendo tratados com o devido respei-to. Muitos os culpam pela lentidão processual. Ganham mui-to e trabalham pouco, lê-se nos jornais, que estampam que há venda de sentenças. Os juízes viraram a “bola da vez”. Hoje, o que é lamentável, mas está ocorrendo, os juízes, não todos, é claro, mas uma boa parcela deles está intimidada.

[C P] — Mas por quem?

[C V] — Pela mídia, por autoridades policiais e até por membros do M.P. Porque podem ser acusados, os juízes, de estarem agin-do em conluio ou por simpatia com a parte. Por exemplo, muita vez o juiz deve mandar levantar importâncias depositadas, em juízo. Muitos juízes evitam fazer isso.

[C P] — Por quê?

[C V] — Porque podem ser tidos, pelos maledicentes, em conluio com a parte. A mídia costuma levantar suspeita.

[C P] — Entendo.

[C V] — Houve, também, como que a banalização da função ju-risdicional. Eu estou dizendo isso porque eu tenho conversado com advogados a respeito. Hoje, eu converso mais livremente. Porque hoje, aposentado, estou advogando. Os advogados me falam, claramente. Também alguns juízes, com quem tenho conversado, se dizem de certa forma perseguidos, estão ame-

100 História Oral dO supremO [volume 7]

drontados. Vou fazer uma palestra na próxima sexta-feira, em Florianópolis, para juízes federais, advogados e membros do Ministério Público, principalmente para os juízes federais, porque é um curso promovido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Vou ter oportunidade de conversar com os juízes. Alguns, certamente, vão queixar-se. Alguns me dizem: “Como eu devo proceder? Amanhã, a imprensa pode insinuar que es-taria eu decidindo em conluio com a parte.” Então, é mais fá-cil decidir em favor da Fazenda Pública. A divulgação intensa, como tem ocorrido, das decisões judiciais, tem, sem dúvida, seu lado positivo, mas tem também seu lado negativo, porque ela tira a aura de respeitabilidade da Justiça. Eu nunca vi isso, ad-vogados, membros do Ministério Público, discutindo, na mídia, os votos dos ministros. Havia, no meu tempo, respeito muito maior. A imprensa e a comunidade jurídica tinham, como di-visa, que decisão judicial não se discute, cumpre-se, após es-gotados os recursos. O que não impedia e nem impede, claro, a crítica jurídica, científica. A crítica científica é importante. Eu, quando juiz de 1º grau, a pedido, por exemplo, de revistas jurídi-cas, mandava sentenças minhas para publicação, na esperança de receber críticas dos juristas. Isso sempre existiu, as revis-tas mantinham seção de comentários, comentários técnicos, a acórdãos e sentenças. Algumas ainda mantêm esse costume.

[C P] — Mas revistas também do campo jurídico, não é?

[C V] — Revistas jurídicas. Agora, pasmem, há até manifestos de intelectuais contra o que o Supremo está decidindo no jul-gamento da ação do mensalão. Ora, o Supremo está decidindo corretamente. Há votos vencidos, que comprovam os debates que têm ocorrido. Realmente, num determinado momento, o Supremo exigiu o ato de ofício para comprovação do crime de corrupção. Eu nunca achei que deveria ser exigido. O servidor público recebe uma propina para realizar um determinado ato. No momento que ele recebeu a propina, ele se corrompeu. Se

101Carlos Velloso

ele não praticar o ato, ele deixou de ser corrupto? É claro que não. Se o servidor praticar o ato, terá agravada a pena. É o que está, ao que penso, na lei penal. E é assim que o Supremo está decidindo. E vem esse manifesto dizendo que o julgamento está contra o devido processo legal. Quer dizer, isso, no meu tempo, era discutido nos autos e em termos.

[ i n] — No seu tempo no STF?

[C V] — Também no STF.

[ i n] — No STF.

[C V] — No meu tempo, não tinha televisão aberta transmitindo sessões do Supremo.

[ i n] — Não tinha, quando o senhor estava lá.

[C V] — Na minha presidência, eu mandei colocar os julgamen-tos na internet. O sujeito podia...

[ i n] — Dentro da sessão?

[C V] — É. No computador, se o sujeito se situasse no site do Su-premo poderia visualizar julgamentos. Mas não eram as ses-sões plenárias todas. Eram temas que eram focalizados.

[ i n] — As sessões temáticas, na sua presidência, é que foram transmitidas pela internet?

[C V] — Também. E vieram as exposições pela televisão e os debates judiciários que, na minha opinião, banalizam os julga-mentos.

a nomeação como ministro do Supremo tribunal Federal

[C P] — Antes de o senhor continuar com o assunto, eu queria voltar à sua chegada ao Supremo. Acho que aí a gente consegue entrar um pouco na questão da TV Justiça, das mudanças que vão acontecer ao longo do tempo no Supremo. O senhor entra no

102 História Oral dO supremO [volume 7]

Supremo... vai ser indicado em 89, não é isso? Ou é depois?

[C V] — Em 1990, março ou abril de 1990.

[C P] — É em 1990?

[C V] — Em 1990.

[C P] — Como foi que o senhor...?

[C V] — Bom, então, instala-se, em 1989 o STJ.

[C P] — Conta um pouco a sua escolha, a sua indicação.

[C V] — Ah, sim, pois não. Primeiro, é extinto o TFR, e somos, com a instalação do STJ, neste investidos em abril de 1989. Não sei se valeria a pena contar um episódio, ainda no TFR, com relação ao Supremo.

[ i n] — Claro!

[C P] — Sim, claro!

[C V] — Porque eu falei assim, “o Tancredo”, lembram?

[C P] — Ah! É verdade.

[ i n] — É verdade, o episódio do Tancredo. Está aqui.

[C V] — O episódio ocorreu em 1985. Eu me dava com o dr. Tan-credo, e me dava com vários mineiros ligados a ele, alguns ti-nham sido da UDN. O certo é que o dr. Tancredo, quando eleito governador de Minas, eu lhe prestei pequena ajuda na consti-tuição do seu secretariado. É que ele queria nomear secretário de Segurança Pública um jurista, um ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal. Esse cargo era provido, de regra, por um oficial superior do Exército.

[C P] — Quem?

[C V] — O ministro Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto.

[C P] — Ah, é?

103Carlos Velloso

[C V] — Ele disse para mim o seguinte: “Um homem com as ca-racterísticas dele, ministro do Supremo Tribunal Federal, aposentado, os militares aceitariam, de bom grado.” O dr. Tan-credo era um político habilidoso.

[C P] — Muito.

[C V] — Ele me disse: “Velloso, você já pensou, eu eleito gover-nador de Minas e ter uma recusa? Você podia conversar com ele?” Claro, sou seu amigo, falarei com ele. Fiquei animado, sa-tisfeito, com a escolha. Era meu amigo, o Cunha Peixoto – em Minas era Carlos Fulgêncio; em Brasília, Cunha Peixoto. Fui a Belo Horizonte, a sua residência e disse ao ministro: “Estou aqui, como mineiro, numa missão, para o bem de Minas. Se o senhor aceitar, eu vou comunicar ao dr. Tancredo e ele vai con-vidá-lo.” O ministro Cunha Peixoto, um grande mineiro, foi ca-tegórico: “Aceito sim! Eu sou um homem de aceitar desafios!” Cunha Peixoto já estava com mais de 70 anos. “Eu aceito o de-safio, sim!” Fui ao telefone, eufórico, e, não tendo conseguido, naquele momento, falar com o dr. Tancredo, falei com o doutor Renato Azeredo, pai do hoje deputado Eduardo Azeredo. Ele transmitiu ao doutor Tancredo a minha mensagem e o doutor Tancredo fez o convite oficial ao ministro Cunha Peixoto. Na imprensa, repercutiu muito bem o convite. Essa foi a minha ajuda ao governador Tancredo Neves. Vamos em frente. Quan-do ele já eleito presidente da República. Não. Quando tudo in-dicava que ele seria eleito...

[C P] — Em 85?

[C V] — Foi em 1985.

[C P] — Em 1985 foi o Colégio Eleitoral.

[C V] — Ou foi em 1984, final de 1984?

[C P] — Em 84, campanhas da Direta. E a Direta vai ser derrotada.

104 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — O Renato Azeredo e o Genival Tourinho, ambos depu-tados federais, conviviam com o doutor Tancredo, eram ínti-mos do dr. Tancredo. E me diziam: “Você vai ser ministro do Supremo. Vai ser o primeiro ato do Tancredo. Eu não dizia, bom mineiro, nem sim nem não. Achava ótimo, claro. Fui para as férias, em janeiro de 1985. Tancredo é eleito presidente, em janeiro de 1985. E não toma posse; em março, foi operado no dia anterior à posse. Estive lá no hospital de base na noite em que ele foi operado, mas não entrei no centro cirúrgico, é bom assinalar. E assumiu o Sarney, em 1985.

[C P] — O Sarney?

[C V] — É, o Sarney foi em 1985, março de 1985.

[C P] — E a eleição é em 1989.

[C V] — Exatamente. A eleição do presidente Collor foi em 1989. Em 1988, Sarney presidente, fui participar, como conferencista, de um seminário jurídico em Angra dos Reis, promovido, pa-rece-me, pela Associação dos Magistrados, ou pela Ordem dos Advogados. O apoio logístico sempre vinha de alguma entidade comercial ou empresarial. É que as entidades de representação, AMB, OAB, Ajufe, Anamatra, Institutos de Advogados, não têm dinheiro suficiente para bancar passagens e hotel. Fui partici-par, repito, de seminário jurídico em Angra dos Reis. E lembro, no Rio, aonde chegamos à noite, minha mulher e eu ficamos hospedados no Copacabana Palace. No outro dia, pela manhã, pegamos uma van e fomos para Angra. No último banco estava sentado o ministro Carlos Madeira, do Supremo. Ele tinha fica-do viúvo, estava solitário, triste. Falei à minha mulher: “Vamos sentar lá atrás com o Madeira. Vamos bater um papo com ele.” Ele fora meu colega no TFR e fora juiz federal, meu colega como juiz federal. E foi o primeiro ministro nomeado, para o Supremo, pelo presidente Sarney. Um dos primeiros atos do presidente Sarney foi nomear o Carlos Madeira. Eram compadres e amigos.

105Carlos Velloso

Ele chamava o presidente Sarney, carinhosamente, de “Zé Sar-ney”. Bom, então, em 1988, eu me assento ao lado do Madeira, no veículo que nos transportava para Angra dos Reis. Conversa vai, conversa vem, ele me fala: “Velloso, quem devia ter sido nome-ado para o Supremo é você; não eu.” Eu respondi: “Por que você está dizendo isso, Madeira?” “Porque se o Tancredo não tivesse morrido, eu sei que seria você. O Tancredo morreu e eu é que fui nomeado. Então, eu quero que você me suceda. Você me sucede-rá no Supremo, completarei 70 anos em março de 1990, quando o Zé Sarney terá saído da presidência. Vou entregar-lhe o cargo, aposentando-me, em dezembro de 1989.” Estávamos no final do ano de 1988. Acrescentou: “Vamos ter os cumprimentos ao pre-sidente da República, ao chefe de Estado, no próximo mês, e eu quero que você vá, porque eu quero apresentá-lo ao Zé Sarney.” Eu não conhecia, pessoalmente, o presidente Sarney.

[C P] — Ele ainda não tinha sido empossado, então. Tinha sido indicado...

[C V] — Não. Isso foi em 1988. Ele era o presidente da República.

[C P] — Ah! Ele tinha... Desde...

[C V] — E ele vinha, desde março de 1985, como presidente da República.

[C P] — Sim. Desculpe. É verdade.

[C V] — O Carlos Madeira foi nomeado para o Supremo em 1985.

[C P] — Ia ter alguma solenidade no Supremo e ele lhe convidou. Foi isso?

[C V] — Não. Ia ter cumprimentos ao presidente no Palácio do Planalto. Fazia parte da liturgia, naquela época, cumprimentos ao chefe de Estado, pelo Natal.

[C P] — Entendi.

[C V] — E a nossa conversa foi em novembro, final de novem-

106 História Oral dO supremO [volume 7]

bro de 1988. É dizer, o encontro meu, na viagem para Angra dos Reis, com o Carlos Madeira, foi em novembro ou princípio de dezembro de 1988. O Carlos Madeira ia participar, também, em Angra dos Reis, do Seminário, como conferencista. “Você não deixe de ir aos cumprimentos”, reiterou o Madeira, que acrescentou: “No dia tal vai ser do Judiciário. Não deixe de ir.” No dia aprazado, eu fui ao Palácio do Planalto para os cumpri-mentos. O Carlos Madeira era muito informal. Eu lembro, eu era ainda do TFR. Os ministros do Supremo cumprimentaram o presidente, em primeiro lugar; em seguida, os ministros do TFR e do TSE, estes oriundos da classe dos advogados. No mo-mento em que eu cumprimentei o Sarney – eu não o conhecia – o Carlos Madeira ficou assim, [levantou o indicador em direção à câmera] apontando para mim, falando para o presidente: “Zé Sarney, é esse.” Iniciado o recesso, viajei para Belo Horizonte, com a minha família e, em seguida, após o Natal, que passamos com os nossos pais, para as férias de janeiro, na praia de Cara-pebus, ao norte de Vitória, no Espírito Santo. E acontece que é nomeado, nesse janeiro de 1989, para o cargo de ministro da Justiça, o ministro Oscar Corrêa. Convidado pelo presidente Sarney, Oscar se aposentara no STF a fim de assumir o cargo.

[C P] — Mineiro.

[C V] — Mineiro e meu amigo fraternal. Um grande amigo. Ali-ás, no livro de memórias do Saulo Ramos, o Código da Vida, ele conta o episódio da nomeação do ministro Celso de Mello. O ministro Oscar Corrêa me indicando e o Saulo indicando o Cel-so. Esse episódio está contado no livro de memórias do Saulo Ramos. Mas isso ocorreu depois do caso que estou contando. Nomeado o Oscar para o Ministério da Justiça, em janeiro de 1989, eu disse à Maria Ângela, minha mulher: “Estou nomea-do.” O Carlos Madeira dissera-me, expressamente: “Eu vou entregar o meu cargo para o Zé Sarney. Eu me aposento, em dezembro de 1989, para o Zé Sarney nomear você. Mas só se

107Carlos Velloso

for você.” E eu acabei não sendo nomeado como queria o Ma-deira. Mas o Madeira também não se aposentou, em dezembro de 1989. A sua aposentadoria ocorreu em março de 1990, já no governo Collor. Eu não cheguei a indagar do Madeira o porquê de o presidente Sarney não ter acolhido o meu nome. Nada per-guntei ao meu amigo Carlos Madeira. Seria deselegante fazê--lo. E ele nunca me falou a respeito.

[C P] — O senhor nunca ficou sabendo por quê.

[C V] — O certo é que o Carlos Madeira não se aposentou em de-zembro de 1989. Ele só veio a se aposentar em março de 1990, na compulsória, já no governo Collor. Veja como é esse mundo. E eu já tinha desistido do Supremo. “Não saiu desta vez, com o Oscar Corrêa ministro da Justiça e com o que propôs o Madei-ra”, disse eu à minha mulher, “e não vai sair nunca mais.”

[C P] — Porque o senhor achou que era imediato, não é?

[C V] — Achei. Porque o ministro da Justiça era meu amigo e me dizia, “Olha, você tem que ir para o Supremo.” Falava-me dessa forma.

[C P] — Abriu vaga? Não. Não abriu vaga porque a vaga que seria aberta, a do Madeira, não ocorreu.

[C V] — O ministro Carlos Madeira falou-me, expressamente: “Vou entregar o cargo ao Zé Sarney para ele te nomear. Vou aposentar-me antes da hora, três meses antes da compulsória, em dezembro de 1989.” Nada disso, entretanto, ocorreu.

[C P] — E o senhor nunca voltou a conversar com o Madeira sobre isso?

[C V] — Nunca. Achei que não devia. Nunca conversei com o Madeira a respeito disso. Ele continuou falando comigo, conti-nuou meu amigo, mas também nunca tocou no assunto. O que eu acho, não tenho certeza, simplesmente penso que pode ter

108 História Oral dO supremO [volume 7]

acontecido, foi o seguinte: o Madeira falou com o presidente Sarney e o presidente devia ter já um nome da preferência dele, o que é natural, e então teria dito ao Madeira que não topava a proposta e o Carlos Madeira não se aposentou, não entregou o cargo ao presidente Sarney. Eu acho que foi isso o que aconte-ceu. Mas nós nunca conversamos a esse respeito. Nunca toquei nesse assunto com o meu amigo Carlos Madeira. Bom, então...

[C P] — O tempo passa...

[C V] — Desisti. Deixei claro para a minha família: “Agora, após presidir o STJ, me aposentarei e vou advogar, preciso fazer um pequeno patrimônio para as minhas filhas.”

[C P] — Me conta um pouco... Presidir o STJ... é por antiguidade?

[C V] — Sim, por antiguidade, como no Supremo.

[C P] — Também é por antiguidade.

[C V] — E estava chegando a minha hora de presidir aquela Casa.

[C P] — Sim.

[C V] — Estava chegando a minha vez de presidir o STJ. Presidir o STJ passou a ser o meu projeto de vida. Presidir o STJ e apo-sentar-me e abraçar a advocacia. Vou ver se faço um pequeno patrimônio para as minhas filhas, dizia.

[C P] — Mas o senhor tinha o sonho de chegar ao Supremo. O Su-premo era um ideal?

[C V] — Era. Era sim, sem dúvida.

[C P] — Desde quando? Quando virou um ideal?

[C V] — Desde quando eu fui nomeado para o TFR, algum tempo depois dessa nomeação.

[C P] — É?

[C V] — É. Eu tinha verdadeira fascinação pelo Supremo. Por-

109Carlos Velloso

que eu sempre gostei de estudar as decisões da Suprema Corte norte-americana. Eu sempre estimei e admirei o Supremo Tri-bunal, desde muito jovem, pelo que ouvia do meu pai a respeito do Supremo. Era um sonho. Era um sonho, um ideal. Mas, em 1989, não tendo ocorrido o que planejara o Madeira, e o que me dizia o ministro Oscar Corrêa, meu amigo fraternal, eu desisti do sonho.

[C P] — Entendo.

[C V] — Ocorreu uma vaga, em 1989, e o Saulo Ramos indicou o Celso de Mello e o Oscar batalhou pelo meu nome. Está no livro o Código da Vida, do Saulo Ramos. Quer dizer, o Oscar foi fiel ao desejo de me fazer ministro do Supremo. Não deu. O Celso foi uma bela escolha.

[C P] — E ele sabia desse seu sonho, já que vocês eram amigos.

[C V] — Sabia.

[C P] — Claro!

[C V] — Ah! sabia, sabia sim. Então, nada tendo ocorrido, falei à minha família: “Presidirei o STJ e vou, em seguida, aposen-tar-me e advogar.” Todo mundo ficou satisfeito: minha mulher ficou contente; meus filhos também. Eu dizia às minhas filhas, eram então três, Rita de Cássia, Rosinha e Ana Flávia: “Eu vou dar um apartamento para cada uma de vocês, quando começar a advogar, vocês vão ver!” Sempre abracei com entusiasmo as coisas a fazer. Aí, elege-se o Collor, em quem eu não votara e que não conhecia, pessoalmente, mas que eu o admirava. Eu votei no Mário Covas. Estou abrindo o coração. Votei no Má-rio Covas e, no segundo turno, não votei. Pensei comigo: “Vo-tar no Lula? Jamais.” Eu não ia votar no Collor, porque não o conhecia. Eu sou eleitor em Minas. Eu estava no táxi, indo para o aeroporto, a fim de viajar para Belo Horizonte, onde tenho domicílio eleitoral.

110 História Oral dO supremO [volume 7]

[C P] — “Vou justificar.”

[C V] — Paramos no aeroporto, mandei o táxi esperar-me. Tinha lá um posto de atendimento do TRE. Ao invés de embarcar, fui ao posto do TRE. Naquele tempo, a passagem continuava valendo, sem quaisquer exigências por parte das companhias aéreas. Hoje, você tem que pagar multa e outras coisas mais se não viajar, perderam o respeito pelo consumidor. Um retroces-so imenso. Fui ao posto eleitoral e justifiquei a minha ausência no segundo turno. Peguei o táxi e voltei para casa. Minha mu-lher, que vota aqui, ficou surpresa: “Você não foi votar?!” “Não. Para quê?” Não conhecia o Collor e não votaria no Lula. Aí as-sume, como vice-presidente, o Itamar Franco. Olha as coisas como são!

[C P] — Nem o fato de estar o Itamar como vice não...?

[C V] — Não.

[C P] — Não balançou?

[C V] — Não. Porque o meu relacionamento com ele era distan-te, formal. Mas, em Minas, falaram no meu nome com ele, e ele topou, com a ressalva – se o advogado Célio Silva não for can-didato. Também por isso, o grande articulador de minha candi-datura não foi ele, Itamar.

[C P] — Quem foi?

[C V] — Foi o Rezek, o Francisco Rezek.

[C P] — O Rezek? O senhor conhecia o Rezek?

[C V] — Desde Minas, o nosso Estado natal, desde o tempo de faculdade.

[C P] — Ah! Vocês são contemporâneos de faculdade?

[C V] — Ele é mais novo que eu, mas fomos contemporâneos na faculdade.

111Carlos Velloso

[C P] — Sim. O senhor já saindo e ele entrando. É algo assim?

[C V] — Sim. Exatamente.

[C P] — Ah! Está certo...

[C V] — Eu já era juiz, quando ele se formou. Ele se formou em 1967 ou 1968, eu em 1963. Ele foi, aliás, o orador da turma.

[C P] — É, o senhor devia estar se formando e ele devia estar entrando.

[C V] — Sempre fomos amigos. Depois trabalhamos juntos, no TFR: ele subprocurador geral da República; eu, ministro do TFR, na 4ª. turma. Tem até um episódio interessante. Eu lar-guei de fumar em agosto de 1981. Ele deixara o fumo um ano antes de mim e me ajudava na empreitada de deixar de fumar.

[C P] — Em que ano foi?

[C V] — Ele largou em 1980 e eu larguei em agosto de 1981. Ele me aconselhava a deixar de fumar.

[C P] — É, tem tempo.

[C V] — Ficava marcando em cima. Nós sempre amigos. E ele acabou, tempos depois, renunciando ao cargo de ministro do Supremo para ser ministro das Relações Exteriores.

[C P] — Foi isso mesmo.

[C V] — Ele foi um maluco ao renunciar. Disse isso a ele.

[C P] — Ele foi a sua vaga?

[C V] — Eu fui o sucessor do Rezek no Supremo. Ocupei a sua vaga. Veja só como são as coisas! Eu sei que ele me ajudou. Foi o próprio presidente Collor quem me contou, ao fazer-me o convite. Naquele tempo, o ministro do Supremo era convidado pelo presidente da República com pompa e circunstância.

[C P] — Pelo presidente.

[C V] — Pelo presidente da República.

112 História Oral dO supremO [volume 7]

[ i n] — Para a indicação de nomes para...

[C V] — Outro que certamente colaborou foi o doutor Bernardo Cabral, que era ministro da Justiça do Collor. Ele fora presi-dente do Conselho Federal da OAB. A OAB de Minas, presidida pelo professor Jair Leonardo Lopes, advogado e professor de alta respeitabilidade, apoiou, para valer, o meu nome.

[C P] — Sim, que era ministro da Justiça.

[C V] — Sim, o Bernardo Cabral era ministro da Justiça. Ocor-rera o episódio em Manaus, lembram? Ele ficara meu amigo. Bom, mas antes...

[C P] — Então foram eles... O senhor vai ser apresentado ao Collor por conta da indicação para o Supremo?

[C V] — Eu só fui apresentado ao presidente Collor no dia em que ele me convidou para ocupar o cargo, é dizer, no dia em que fui convidado pelo presidente a ir ao seu gabinete. Nesse dia, em que fui convidado ao palácio, é que o presidente convidou-me para o cargo de ministro do Supremo. Foi nesse dia, que eu conheci, pessoalmente, o presidente Collor.

[C P] — E aí o que ele fala para o senhor?

[C V] — A informação que eu tinha, que me foi transmitida pelo doutor Bernardo Cabral, é que o presidente Collor queria ho-menagear dois tribunais superiores, o TST e o STJ. É que havia duas vagas: aposentara-se o Rezek. Não, o Rezek pedira exone-ração do cargo. E aposentara-se o Carlos Madeira. O presiden-te Collor, então, resolveu homenagear dois tribunais superio-res: o TST e o STJ. Agora, por favor, vamos desligar?

[ i n t e r r U P Ç Ão d e G r aVaÇ Ão]

[C V] — Então, o presidente quis homenagear os dois tribunais, o TST e o STJ, que indicariam os nomes. O TST indicou o minis-tro Marco Aurélio, e o STJ indicou o meu nome. Anos depois,

113Carlos Velloso

disseram-me que o presidente do STJ, o ministro Washington Bolívar, teria informado que todos os ministros do STJ tinham condições de ser indicados pelo tribunal. Quanto a isso, não havia dúvida, claro. Não tenho certeza se isso realmente ocor-reu. Nunca procurei saber.

[ i n] — O senhor, na época, ministro, era o mais antigo do STJ? Como é que era...? A formação do STJ naquela época, era o se-nhor o mais antigo?

[C V] — Eu talvez fosse o mais antigo na linha presidencial. Não era o mais antigo funcionalmente, porque tínhamos lá o minis-tro Rollemberg, que era o decano. Tinha o ministro Evandro Gueiros, que fora presidente. Tínhamos lá ministros mais an-tigos, funcionalmente, que já tinham sido presidentes da Casa.

[C P] — Então, a sua escolha não... a sua indicação não...?

[C V] — Foi do STJ.

[C P] — Foi do STJ? Mas passa pelos seus colegas no STJ?

[C V] — Sim, passou pelos meus colegas, que, certamente, foram consultados.

[C P] — Ou vem...? Eles só... Vamos ver se eu me faço clara. Os seus colegas do STJ confirmam uma indicação externa ou eles tam-bém...? O seu nome sai junto de seus colegas?

[C V] — Formalmente, em termos formais, teria havido a indicação. Havia outros colegas que desejavam ser indicados, ao que penso.

[C P] — É isso.

[C V] — Pode inclusive gravar, não tem problema. Em termos reais...

[C P] — Não, se o senhor achar que é delicado, não gravamos. Só para entender.

[C V] — Não. Pode gravar. Aí valeu, de certa forma, a minha ami-zade com o doutor Bernardo Cabral e o meu currículo na ma-

114 História Oral dO supremO [volume 7]

gistratura e no magistério. Porque o dr. Bernardo Cabral foi ao STJ levar o pedido do presidente Collor e teria declarado que o presidente se inclinava para o meu nome. E por que o presiden-te se inclinava para o meu nome? Porque o Rezek tinha falado a meu respeito com o presidente. O Rezek tinha uma grande influência, naquele momento, junto ao presidente, porque ele, Rezek, renunciara ao cargo de ministro do STF para ajudar o presidente Collor no Ministério das Relações Exteriores. En-tão, associam-se, de certa forma, o Itamar Franco, que não foi o principal, mas...

[C P] — Sim. Mas o senhor o conhecia.

[C V] — ... que eu conhecia desde às eleições, em Minas, de 1974 – lembram? – com quem mantinha relações formais, distantes, é certo, mas que talvez tenha colaborado, apesar de o seu can-didato ser o advogado Célio Silva. Aliás, lembre, um notável ad-vogado; o doutor Bernardo Cabral, ministro da Justiça – tam-bém com muita força, no início de governo. E foi ele, Bernardo Cabral, quem, pessoalmente, foi ao STJ levar o ofício do presi-dente da República, ofício no qual estava dito que o presidente queria homenagear o STJ, nomeando, para o Supremo, um dos seus ministros. Aí é que eu acho, porque eu nunca conversei com ele a esse respeito, que ele deve ter feito sentir que...

[C P] — A sua preferência.

[C V] — É, a preferência ou a inclinação do presidente da Repú-blica. Depois, ele brincou comigo: “É, se você não tivesse tido aquela atuação isenta lá em Manaus, hein?” Vou usar uma pa-lavra meio grotesca. Ele disse assim: “Se você tivesse feito uma sacanagem conosco naquela época, hein?” Essa palavra talvez deva ser cortada, não? [risos] Ele falou isso comigo, com aquele jeito brincalhão que lhe é peculiar. O Bernardo Cabral é, sobre-tudo, um homem bom e cordial, um amigo sincero.

[C P] — Uma pergunta, de certa forma, delicada. O senhor fique

115Carlos Velloso

à vontade para não responder. Houve algum mal-estar entre os seus colegas no Superior Tribunal de Justiça, com essa indica-ção de preferência?

[C V] — Não, não houve, porque eram todos meus amigos. É in-teressante. Eu influía inclusive na feitura de listas. Eram meus amigos, bons amigos. Muitos estavam lá com o meu esforço, porque eu lutara por incluí-los em lista: o Sálvio de Figueiredo Teixeira; o Cernicchiaro e outros. Aqueles ministros que en-traram para o STJ, em 1989, foram escolhidos pelo TFR, que os incluíra nas listas. Então, alguns estavam lá com a minha ajuda, com o meu esforço, para entrarem nas listas. E, graças a Deus, eu não tinha um só desafeto naquela Casa. Os minis-tros mais influentes, como o ministro Armando Rollemberg, uma grande figura de juiz, era um grande amigo meu, pai do hoje senador Rodrigo Rollemberg, em quem toda a minha fa-mília vota, menos eu, que sou eleitor em Belo Horizonte. Era um grande amigo o ministro Armando Rollemberg. Muitos fi-caram contentes. Os mais antigos, de grande expressão, quase todos já tinham mais de 65 anos e não podiam ser indicados.

[C P] — Muitas variáveis...

[C V] — É. Então...

[C P] — ...ajudaram a realizar o seu sonho.

[C V] — Então, foi assim que eu fui indicado para o Supremo, que eu fui nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal.

[ i n] — Nós fizemos uma pesquisa, também, para ver nosso levan-tamento, e a gente viu que os seus colegas dessa época, do STJ, eram também... alguns até eram mais antigos que o senhor, mi-nistro, mas teriam menos tempo no exercício da magistratura. O senhor acha que influiu? O fato de que o senhor ainda teria de-zesseis anos dentro do STF, como foi o tempo que o senhor ficou, o senhor acha que isso pesou também?

116 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — Quer dizer, quase todos que tinham mais tempo do que eu, no STJ já passavam dos 65 anos de idade. E os mais novos não iriam disputar, mesmo porque estavam realizados no STJ, aonde acabavam de chegar. Os mais antigos do que eu, repito, já não podiam ser indicados, porque contavam com mais de 65 anos de idade. É que a Constituição de 1988 impôs o limite de 65 anos de idade. Acrescente-se que eu não tinha nenhum de-safeto no STJ. Os ministros eram todos meus amigos. E o pre-sidente, como foi dito, se inclinava para o meu nome.

[C P] — É, isso é indicação de preferência. Não preciso falar que eu quero este, não é verdade? É só falar: “Este não é o melhor mo-mento para você.”

[C V] — Mas quero declarar que sou muito grato aos meus anti-gos colegas do STJ. Eles poderiam, se não gostassem de mim, se eu fosse um juiz que não gozasse do seu respeito, eles pode-riam não aprovar a minha indicação.

[C P] — Evidentemente.

[C V] — Porque isso foi submetido a eles. Era presidente o mi-nistro Washington Bolívar de Brito, meu amigo. O ministro Washington Bolívar era o presidente. Está aí na sua relação?

[ i n] — Está aqui.

[C V] — Você tem a relação dos que, na época, estavam no STJ?

[ i n] — Nós temos: Armando Leite Rollemberg...

[C V] — Era o decano.

[ i n] — ... José Fernandes Dantas...

[C V] — Também lá estava; outra grande figura de juiz e de ser humano, era meu amigo fraternal.

[ i n] — ... Evandro Gueiros Leite...

[C V] — Sim, o Evandro, que fora juiz federal, meu colega, meu

117Carlos Velloso

amigo fraternal, ontem e hoje.

[ i n] — ...Washington Bolívar de Brito...

[C V] — O Washington podia, ainda, ser indicado, porque não che-gara aos 65 anos de idade, ao que penso. Era e é um bom amigo.

[ i n] — ... Antônio Torreão Braz; e o senhor. E depois, os outros eram menos antigos que o senhor, os que não estão aqui na nossa lista.

[C V] — O Torreão Braz, outro amigo, grande colega, grande alma. Tornou-se, tempos depois, companheiro de sofrimen-to, quando perdeu um filho. Eu perdera uma filha. Voltando ao tema, eu pensava que deveria presidir o STJ, porque, por exemplo, o Dantas já tinha sido presidente; o Rollemberg já ti-nha sido presidente, o Evandro Gueiros idem. E mais quem aí?

[ i n] — Rollemberg; Dantas, José Fernandes Dantas; Evandro Gueiros Leite...

[C V] — Tinham presidido a Casa.

[ i n] — ...Washington Bolívar; Torreão; e o senhor.

[C V] — Exatamente. O Washington Bolívar foi o presidente que sucedeu, parece-me, ao Gueiros. Quando eu fui nomeado para o Supremo, o ministro Washington Bolívar era o presidente do STJ. Eu o sucederia na presidência. Não, eu iria suceder ao ministro Torreão Braz, que viria em seguida ao ministro Wa-shington Bolívar. Então, nomeado para o Supremo, cedi a vez, na ordem de antiguidade, para o Patterson, o ministro William Patterson, que presidiu a Casa. Eu planejara, conforme foi dito, presidir o STJ e aposentar-me. Já tinha 35 anos de serviço. Bastavam 30 anos.

[C P] — E aí o seu sonho se realiza.

[C V] — Aí o meu sonho se realiza.

a posse como ministro do Supremo tribunal Federal

118 História Oral dO supremO [volume 7]

[C P] — Aí o senhor vai ser empossado quando?

[C V] — No dia 13 de junho de 1990. 13 é o meu número da sorte.

[C P] — Como foi o seu primeiro dia entrando no prédio do Supre-mo como ministro do Supremo?

[C V] — Vou mais adiante. Quando assumi a presidência do STF, em 1999, contei uma historinha: como eu conheci o Supremo. Eu tinha meus 19 anos, talvez, e nem era estudante de direi-to, mas tinha grande admiração pelo Supremo. Vou ao Rio de Janeiro, com alguns colegas, e o negócio era ficar o dia inteiro na praia e à noite a diversão era outra. Não se chamava balada, mas era parecido.

[C P] — Em Copacabana.

[C V] — Em Copacabana. Eu lembro, eram 13 horas, mais ou menos, eu disse aos colegas, um deles o saudoso João Orlando Sá e Benevides, já falecido: “Vou despedir-me de vocês.” Está-vamos na praia. Acrescentei: “Vou tomar um banho, trocar de roupa e vou visitar o Supremo Tribunal.” Eles ficaram boquia-bertos. Rapazes de pouco mais de 18 anos de idade. Quase me deram uma vaia. Peguei o ônibus e fui para o Supremo. Mas fui de camisa esporte. Na porta do Supremo, o guarda da Polícia Especial foi claro: “Não pode entrar! Tem que ser de paletó e gravata!” Aí eu disse a ele: “Ô, seu guarda, eu vim de Minas Ge-rais...” Naquele tempo, Minas Gerais ficava distante do Rio, ia-se ao Rio de trem, num trem de luxo chamado Vera Cruz, ou de ônibus. Avião era um negócio inatingível, muito caro para um estudante, um estudante escrevente. “Eu vim de lá para conhe-cer o Supremo Tribunal e o senhor não me deixa entrar, um es-crevente juramentado da Justiça?!” Passei o bico nele. [risos]

[ i n] — E ele deixou?

[C P] — Ele te deixou entrar?

119Carlos Velloso

[C V] — Ele disse assim: “Eu vou deixar você ver a sessão. Suba a escada, no topo da escada, sem entrar na sala, você olha o Su-premo em sessão. Agora, se alguém descobrir, eu ponho você para fora, dizendo que você me passou pra trás. Combinado?”

[C P] — “Entrou sem que eu tivesse visto.”

[C V] — É. Uma coisa assim. Eu me lembro daquela escadaria, que ainda está lá, e ele falou: “Sobe a escada. À direita, no topo da escada, você pode ver o Supremo reunido.” Subi a escada, o coração [mãos fazendo movimento pendular frontal dian-te do lado esquerdo do peito] pulsando velozmente. Fiquei olhando. A sessão era presidida pelo ministro Orozimbo No-nato, que fora desembargador em Minas e promotor em minha terra natal, Entre Rios de Minas. Fiquei olhando, embasbaca-do, entusiasmado. “Isso aí é o Supremo Tribunal do meu país! Meu Deus do céu!” O guarda me chamou: “Cai fora! Cai fora! Já olhou muito. Anda, antes que eles me chamem a atenção, antes que eu seja punido.” Desci, conversei um pouco com o guar-da, que ficara satisfeito em me ter feito aquele favor, começou até a me dar uma aula de Supremo, que agradeci. Voltei para Copacabana, feliz. Quando assumi a presidência do Supremo, contei essa historinha, relacionando-a com o caso revelado por Recaséns Siches. A lógica do direito é a lógica do razoável, era a tese do Recaséns Siches. Ele conta então a história do guar-da do estádio. Na porta do estádio havia uma placa: “Proibida a entrada de cães.” Aí chegou um sujeito com um urso e o guar-da lhe falou: “Não pode entrar.” “Mas como assim?! Proíbe-se a entrada de cães. O meu é urso, não é um cão. Nullum crimen nulla poena sine lege. O senhor está praticando ato arbitrário.” O guarda redarguiu: “Não. O senhor tem que indagar a razão ou o porquê da proibição da entrada de cães. É que eles podem morder as pessoas. O urso pode matar pessoas. Não pode o urso, portanto, entrar no estádio.” O sujeito se retira, contra-riado. Daí a pouco chega um cego com o seu cão-guia, quer en-trar no estádio; e o mesmo porteiro deixa o cego entrar com o

120 História Oral dO supremO [volume 7]

seu cão guia. Aplicou o sábio porteiro a lógica do razoável. Até hoje, quando menciono os dois casos, fico emocionado. É que relacionei o caso do guarda do Supremo com o caso do porteiro do estádio, o exemplo mencionado por Recaséns Siches para, exemplificando, explicar o que seria, no direito, a lógica do ra-zoável. A lógica do direito é a lógica do razoável, sem dúvida. O direito não é lógica pura, ensinava o juiz Holmes. Quis muito descobrir o paradeiro do guarda do Supremo. Na solenidade de minha posse, eu o queria assentado nas primeiras cadeiras do Plenário. Ninguém, entretanto, o encontrou, no Rio de Janeiro.

[C P] — Mas isso o senhor estava na presidência.

[C V] — Foi quando eu assumi a presidência. Agora, quando eu entrei a primeira vez...

[C P] — Quando o senhor entrou...

[ i n] — No primeiro dia...

[C P] — No primeiro dia...

[ i n] — Qual a sensação?

[C V] — Foi realmente um grande momento para mim.

[ i n] — O que o senhor fez? Como é que o senhor chegou?

[C P] — Como é que era o seu gabinete? O senhor tinha assesso-res? Como é que foi?

[C V] — A sensação maior, a grande sensação, foi quando a mi-nha nomeação se concretizou.

[C P] — Ah, sim.

[C V] — A minha filha caçula, Ana Flávia, a Flavinha, é muito pers-picaz. Depois, ela foi morar em Paris, é fluente em inglês, francês, espanhol, fez doutorado na Sorbonne. Depois eu vou contar uma historinha relacionada com ela. A Flavinha, conversávamos, e ela me disse: “Papai, você já pensou, você chegou lá, você realizou

121Carlos Velloso

o seu grande sonho. Tem mais alguma coisa a realizar?”

[C P] — O seu sonho.

[C V] — “É, minha filha, é verdade.” Foi aí que caí na realidade, ou que a ficha caiu.

[ i n] — No dia da sua nomeação?

[C V] — É, no dia em que a nomeação se consumou, após a apro-vação do meu nome pelo Senado. O dia da posse foi muito im-portante. Entramos no Plenário, conduzidos pelo ministro de-cano e pelo ministro mais moderno, o Moreira Alves e o Celso de Mello. O presidente da República presente. Presta-se, sole-nemente, o compromisso de bem cumprir a Constituição e as leis do país, assina-se o termo de posse. Os ministros do Supre-mo, o presidente da República, o procurador geral, os minis-tros de Estado, as autoridades, os familiares e amigos, os servi-dores da Casa aplaudem e o seu coração bate forte de emoção.

[C P] — A sua família toda assistindo...

[C V] — Sim. Acrescente-se que o ministro Marco Aurélio e eu fomos empossados no mesmo dia, na mesma sessão solene. O presidente Collor pedira que fossem no mesmo dia as duas pos-ses. O presidente Collor esteve presente. Quando me condu-zem para a minha cadeira, eu, ao lado do Sepúlveda Pertence, ele falou-me: “Tinha que ser, tinha que ocorrer isso, tínhamos que estar lado a lado!” Fomos colegas de ginásio no Colégio Es-tadual, em Belo Horizonte, fazendo política estudantil; depois, contemporâneos na faculdade, sempre amigos; e fui assentar-me ao seu lado, no Supremo, o que ocorreu até eu deixar o Su-premo. E eu brincava com ele, porque ele era meio esparrama-do, “Calma, você acaba derrubando o meu copo d’água!” Bons tempos. [risos]

[C P] — Que emocionante!

[ i n] — Até a gente se emociona.

122 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — Mas foi realmente emocionante. Quer dizer, a vida vai nos reservando coisas. E vocês sabem que tempos depois o Re-zek casou-se com a minha filha Ana Flávia, a Flavinha?

[C P] — Sim, sei.

[C V] — E depois se separaram, se divorciaram, depois que viveram na França. Ela viveu na França cerca de oito anos com ele; me de-ram uma netinha maravilhosa, a Ana Clara, a Clarinha, a cara do pai. E acabaram divorciando-se, ambos já se casaram, novamen-te, e continua tudo bem, continuamos bons amigos. É a vida.

[C P] — É da vida. É isso mesmo.

[C V] — Aqui entre nós, quando ela me comunicou que estava apaixonada pelo Rezek, eu fiquei preocupado.

[C P] — Eu imagino! [risos]

[C V] — Eu tentei...

[C P] — Demovê-la?

[C V] — É isso. Disse a ela: “Por que, minha filha? Ele tem muito mais idade do que você, pode não dar certo, vocês não serem felizes.” Ela redarguiu-me: “Não, papai, estou apaixonada, se você não me der o seu apoio, eu saio de casa”. Ela já estava for-mada em Direito, era assessora do ministro Cernicchiaro, no STJ, que fora seu professor na UnB. A Flavinha é muito deter-minada, sabe o que quer. “Puxa vida, filhinha, sair de casa?!”

[C P] — Foram felizes no tempo em que foram.

[C V] — E o Rezek foi de um comportamento exemplar: visitou-me, em seguida, no meu gabinete, no Supremo, me comunicou o namoro e deixou claro que desejava casar-se com a Flavinha. Esclareceu: “Eu não estou querendo, simplesmente, um progra-ma.” E eles se casaram, no Consulado do Brasil, em Paris, em 1998, o Rezek já estava na Corte de Haia. O Jobim esteve presen-te com a Adriene. Outros amigos também estiveram presentes.

123Carlos Velloso

[ i n] — Que bonito!

[C V] — E a vida seguiu.

[C P] — E a vida seguiu. Mas é impressionante, porque essa é uma relação que o senhor nunca imaginou que fosse ter com o Rezek, não é?

[C V] — Exato. Nunca.

[C P] — É isso mesmo, a vida dá suas voltas.

[ i n] — E tendo entrado na vaga dele. É muito interessante.

[C V] — Exato. Eu o sucedi, tendo ele influenciado na minha no-meação, conforme já revelado.

[C P] — É realmente muito interessante.

[ i n] — É muito interessante.

a rotina no Supremo tribunal Federal

[C P] — E aí como é que era a rotina no Supremo? Muito diferente da rotina do STJ?

[C V] — Não, não.

[C P] — Não?

[C V] — A rotina era parecida com a do STJ.

[C P] — É? Como é que era o seu gabinete?

[ i n] — O seu dia a dia?

[C P] — Quantos assessores o senhor tinha?

[C V] — Quando eu entrei, havia, apenas, um assessor, o Alceu Andrade Rocha, meu assessor desde os tempos do TFR.

[C P] — Um? Somente?

[C V] — Somente um.

124 História Oral dO supremO [volume 7]

[C P] — Oh, Deus!

[ i n] — Quando o senhor entrou, o senhor assumiu o gabinete do ministro Rezek todo? Ou não?

[C V] — Assumi.

[C P] — Inclusive, esse assessor já estava lá?

[C V] — Não.

[C P] — Não. O senhor que o convidou.

[C V] — Enganei-me. Eram dois assessores, quando entrei para o Supremo. Eu levei o assessor que vinha comigo desde o TFR, o Alceu Andrade Rocha, cidadão de conduta pública e privada irrepreensíveis, muito competente, espírito e comportamento de magistrado. Para a segunda vaga de assessor, convidei – ela tinha sido minha aluna na UnB – a bacharela Cláudia Chagas, que hoje é subprocuradora geral do Ministério Público do D.F. Eu sempre a estimulava a fazer o concurso. Era muito estu-diosa, muito inteligente. Ela prestou concurso público para promotor de justiça do D.F. e foi muito bem aprovada. Hoje, ela integra o Conselho Nacional do Ministério Público. É filha do jornalista Carlos Chagas, irmã da jornalista Helena Chagas, pessoas de bem e do bem.

[ i n] — A ministra Cármen Lúcia também foi sua aluna.

[C V] — Foi minha aluna na PUC de Minas.

[ i n] — O senhor tem grandes alunas e alunos na sua...

[C V] — A Cármen Lúcia foi minha aluna, sucedendo-me na cá-tedra de Direito Constitucional da PUC de Minas. Ela é muito estudiosa. Tenho ex-alunos na advocacia, no Ministério Públi-co, na magistratura e num mundo de funções públicas.

[C P] — Aí outra, o senhor gosta dessas histórias. [risos]

[C V] — A Cármen Lúcia me sucedeu na PUC, na cadeira de Di-

125Carlos Velloso

reito Constitucional. Ela é professora titular. Ela me sucedeu na cadeira de Direito Constitucional na PUC de Minas.

[C P] — Nesse período, o Supremo já funcionava de terça a quin-ta? Ou eram todos os dias? Como era o funcionamento?

[C V] — O sistema sempre foi este: terça, turmas; quarta e quinta, plenário.

[C P] — Sempre foi este.

[C V] — Terça-feira, turma; quarta e quinta, plenário. E fazía-mos sessões extraordinárias das turmas, ou na segunda ou na sexta. Quando eu entrei, em 1990, só tinha uma sala para a tur-ma. Penso que uma se reunia na terça, e a outra, na segunda ou na sexta-feira.

[C P] — Fazia uma alternância.

[C V] — Depois o Supremo foi ampliado com a construção do segundo anexo. O que era necessário. Na primeira vez que eu participaria da sessão da segunda turma, ocorreu o seguinte: eu fora, dois dias antes, a Belo Horizonte, a fim de participar de uma homenagem que a OAB, presidida pelo professor Jair Le-onardo Lopes, iria prestar-me, o que ocorreu. A OAB de Minas, eu já revelei, deu um grande apoio ao meu nome. O professor Jair Leonardo Lopes, presidente da OAB de Minas, na época, foi de grande importância na indicação do meu nome.

A mudança para Brasília

[C P] — Já que o senhor falou dessa ida, vou interrompê-lo para uma questão que surgiu agora, mas que é voltando... Quando é que o senhor começa a morar em Brasília?

[C V] — Em 1978.

[C P] — Como é que foi? Foi muito complicado deixar Belo Hori-

126 História Oral dO supremO [volume 7]

zonte e vir para Brasília?

[C V] — Foi, foi complicado.

[C P] — É? Porque o senhor tinha resistido bravamente a ficar em Brasília. Os filhos cresceram, é isso?

[C V] — É.

[C P] — Aí viabilizou.

[C V] — Bom, eu sempre achava, quando aqui cheguei, que esta-va em Brasília por uma temporada.

[ i n] — Aqui?

[C P] — Aqui em Brasília?

[C V] — É, em Brasília. Mas o tempo foi passando, as coisas fo-ram se acomodando. Por exemplo, as minhas filhas – menos a caçula, que era bem nova –, elas resistiam muito. Uma, a Rita de Cássia, já tinha namorado em BH o Cláudio Rocha, enge-nheiro, com quem se casou. Eles vivem em BH. A minha filha Rosinha, que acabou falecendo, tempos depois, resistia muito.

[C P] — Ela gostava de BH.

[C V] — Sim. Eu lembro, ela dizia, aos prantos: “Papai, volta para Belo Horizonte.” Eu respondia: “Fazer o quê lá, minha filha?” “Ser juiz federal.” Eu lhe disse: “Eu já perdi esse cargo.” E ela, decepcionada: “Ah! Não é possível!” [risos] Aí ela caiu na rea-lidade. Mas depois passaram a gostar de Brasília. Porque Bra-sília tem isso. Ela traz, no início, uma sensação de não gostar.

[C P] — No primeiro momento, não é?

[C V] — Sim. Mas depois vai-se criando amor. Eu não sei se eu conseguiria viver em outra cidade, permanentemente, que não fosse Brasília. Nem no Rio, nem em Belo Horizonte, Belo Hori-zonte, minha terra, de que gosto muito. São Paulo, de jeito ne-nhum. Porque Brasília ainda tem muito boa qualidade de vida.

127Carlos Velloso

[C P] — Desculpe, mas foi só porque eu fiquei curiosa, como tinha sido. Mas voltando, o senhor estava contando que foi receber uma homenagem da OAB em Minas, da seção mineira.

[C V] — E ia voltar...

Primeira sessão como ministro do StF

[i n] — Era a sua primeira sessão?

[C V] — A primeira sessão da turma, no Supremo, numa terça-feira, presidida pelo ministro Aldir Passarinho. O avião atra-sou e eu cheguei correndo à sessão, direto do aeroporto – eram três horas da tarde – e o Passarinho, na forma da liturgia, fez a saudação a mim e eu respondi, num pequeno discurso, de im-proviso, me justificando, dando os motivos por que me atrasa-ra para a sessão. O professor Jair Leonardo Lopes, eu lhe sou muito grato, ele levou a OAB de Minas a abraçar a minha can-didatura ao Supremo. Fui o candidato da OAB de meu Estado natal. Foi importante.

[C P] — Foi importante?

[C V] — O professor Jair Leonardo vocês conhecem. O advoga-do Marcelo Leonardo, seu filho, notável criminalista, defende o Marcos Valério na ação do mensalão. Pai e filho são grandes ad-vogados. O professor Jair Leonardo já passou dos 80 anos de ida-de. E continua advogando, ensinando. Ele não para, o que é bom.

[C P] — Que bom!

[ i n] — Mas aí, ministro, como é que era o seu dia a dia como mi-nistro? O senhor chegava e aí tinha muitos processos? Como é que era o seu trabalho como ministro do STF, que o senhor tanto quis, que tanto o senhor...?

[C V] — Eu tinha uma rotina.

128 História Oral dO supremO [volume 7]

[ i n] — Qual era a sua rotina?

[C V] — Eu tinha uma rotina: eu trabalhava em casa, pela ma-nhã, redigindo, estudando. Os autos eram encaminhados para a minha residência numa mala. Quando deixei o Supremo, de-zesseis anos depois de ali ter entrado, eu quis devolver a velha mala dos processos e os servidores do Supremo me disseram: “Não. Essa mala é uma lembrança dos tempos do Supremo.” Não é emocionante? A velha mala está bem guardada.

[C P] — Ah, é?

[C V] — Aquilo só serve para carregar processos. Ela não tem fechadura. É uma mala rústica, quadrada. No final das tardes, os processos eram levados para a minha casa. Lá é que eu tra-balhava, realmente, pela manhã, estudando, redigindo. Após o almoço, eu ia para o gabinete. No dia em que não havia sessão, trabalhava no gabinete, à tarde. Mas no gabinete você tem pou-ca possibilidade de se concentrar, porque tem sempre alguém querendo falar com você, e eu sempre fiz questão de atender os advogados. Eu sempre compreendi que o advogado tem suas aflições. Porque o cliente acicata o advogado, causando-lhe aflições. E, infelizmente, nós temos a lentidão processual. En-tão, eu fazia questão de ouvir os advogados. O advogado vinha do Rio, de São Paulo e ia direto ao meu gabinete. A secretária vinha me falar: “Ministro, está aí um advogado, o doutor fula-no, veio de fora.” “Manda entrar, eu dizia.” Eu o recebia em pé: “Doutor, o que foi?” Ele começava a expor o seu caso. Quando eu via que se tratava de assunto que ia demorar, mandava que ele se assentasse, a fim de expor o caso. No gabinete, tinha-se pouca oportunidade de se concentrar, estudar os processos, formular uma decisão pensada, refletida, o que eu fazia pelas manhãs no meu escritório residencial. Uma vez uma advo-gada do Rio quis ver-me, em minha casa, numa manhã, a fim de entregar-me um memorial. A portaria do prédio falou-me, pelo interfone, que ela queria subir ao meu apartamento. Seria

129Carlos Velloso

possível? Fui curto e grosso, em minha residência, pela manhã, não. Vou recebê-la, à tarde, no meu gabinete.

[ i n] — Na sua casa?

[C V] — É. Eu falei: “Lá no tribunal, sim.” Aí, à tarde, eu a recebi. Ela se explicava: “É que eu teria que regressar ao Rio, o meu avião sairia agora à tarde.” Eu lhe disse: “Se eu atender na mi-nha casa, eu estou perdido. Eu não vou ao gabinete, pela manhã, porque no gabinete eu não consigo concentrar-me, não consi-go redigir, escrever os meus votos. Veja, você está concentra-do, meditando, entra a secretária e informa que um advogado deseja falar-lhe. Aí, eu parava de meditar e de escrever e tinha que começar, depois, tudo de novo.” Eu usava o gabinete nos dias de sessão. Nas sextas-feiras, de regra, eu ficava em casa, trabalhando. Era o dia inteiro trabalhando. Por volta das 19h, eu ia para o Clube Naval jogar tênis, tomar uma sauna, depois.

[ i n] — Relaxar, exercitar, para poder...

[C V] — E sábado e domingo, também, no tênis.

no StF: o Caso Collor

[C P] — Nesse período que o senhor esteve no Supremo, que ques-tões o senhor considera as grandes questões que o senhor tratou nesse momento? Ou seja, aqueles que foram os casos, os votos, que o senhor construiu que são os mais importantes na sua opinião?

[C V] — Eu tive muitas questões constitucionais interessantes, relevantes, questões tributárias importantes. Mas o que, real-mente, mais me sensibilizou foram os mandados de segurança do presidente Collor, quando do impeachment, e a ação penal do presidente Collor. Essas questões foram realmente doloro-sas para mim.

[C P] — Por que dolorosas?

130 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — Porque a convicção jurídica a que cheguei foi contrária à sua pretensão. Eu tinha que votar de acordo com a minha ciência e a minha consciência. Eu não podia deixar de fazer isso. O que foi doloroso. Porque, no fundo, você tem uma gratidão que nunca se apaga. Foram questões realmente importantes, marcantes.

[ i n] — O senhor foi relator da...?

[C V] — Da ação penal? Não.

[ i n] — E dos mandados de segurança?

[C V] — Ah, sim. Porque, no primeiro mandado de segurança, o relator era o ministro Gallotti...

[C P] — Era sorteio?

[C V] — É sorteio.

[C P] — Foi sorteado e caiu para o senhor.

[C V] — Não, para o Gallotti. O primeiro mandado de segurança caiu para o ministro Octávio Gallotti. Todavia, no julgamento, prevaleceu o meu voto, que deferia o mandado de segurança em extensão diferente da extensão posta no voto do ministro Gallotti. Eu deferi o mandado de segurança para que fossem observadas umas tantas sessões para a defesa do presidente. O ministro Gallotti aumentava o número dessas sessões. O tribu-nal me acompanhou e eu fiquei, então, relator para o acórdão e me tornei prevento para os casos que se seguiram, menos para a ação penal, ainda inexistente.

[C P] — Sim. Ministro, a gente precisa interromper para trocar ali a fita. É só um minutinho e já voltamos.

[C V] — Está bem.

[ i n t e r r U P Ç Ão d e G r aVaÇ Ão]

[C P] — Então, retomando, ministro, o senhor estava contando dos seus votos com relação aos processos que chegaram ao Su-

131Carlos Velloso

premo, do então presidente Fernando Collor, que estava em pro-cesso de impeachment. E o senhor estava ali no impeachment. O senhor considera esse um momento marcante da sua passagem. Ao mesmo tempo, provavelmente, um outro momento marcante está acontecendo, porque, por conta desse acontecimento polí-tico, um nome que, de certa forma, o senhor conheceu, está che-gando à presidência da República, que é o Itamar Franco, que era o vice do Collor.

[C V] — Ah, sim.

[C P] — Como é que foi...? Vocês se aproximaram, nesse momento, o senhor, ministro do Supremo, e ele, chegando à presidência, e o senhor fazendo um voto como o que fez em relação ao Collor? Eu sei que foi um tempo depois, mas o presidente Itamar já estava a pleno... seu governo, a pleno vapor.

[C V] — Não, eu não tive nenhum contato com o Itamar, quando ele estava na presidência da República.

[C P] — Não?

[C V] — Porque o Itamar Franco tem uma coisa que temos que mencionar, em seu prol: é que ele era um homem muito ho-nesto, asperamente honesto. Eu senti que deveria me afastar do presidente Itamar, porque eu participara dos mandados de segurança que, na verdade, arbitraram o processo de impeach-ment. Porque o impeachment só seguiu corretamente, com a observância, inclusive, do devido processo legislativo, porque o Supremo o arbitrou. Começou com aquela questão da defesa: tantas sessões deviam ser observadas. Isso tudo foi arbitrado pelo Supremo, passo a passo. Foi muito marcante, para mim, professor de Direito Constitucional. De repente, me vejo no centro da questão, quer dizer, integrando o tribunal que esta-va no centro da questão, arbitrando a questão constitucional, cuidando para que as coisas andassem corretas, para que fosse assegurado o direito de defesa, enfim, para que não se praticas-

132 História Oral dO supremO [volume 7]

se nenhuma arbitrariedade. Era o primeiro processo de impea-chment de um presidente da República no mundo. No planeta, foi o primeiro. E com sucesso. Pode-se não concordar com o impeachment. Porém, não há o que falar da tramitação do pro-cesso, porque essa tramitação foi regular, foi correta, porque foi arbitrada pelo Supremo Tribunal Federal. Quando o Itamar se empossou, eu não fui à sua posse. Eu sentia que eu não devia, em nenhum momento, me aproximar da presidência da Repú-blica. Porque Itamar era um homem asperamente honesto. Eu achava que ele não gostaria de qualquer aproximação. Como também tenho os meus escrúpulos, entendia que cada um de-veria ficar no seu canto. Quando ele deixou a presidência, vol-tamos a nos encontrar. No ano anterior em que ele morreu, nós fomos agraciados, em Belo Horizonte, com uma comenda, uma medalha da Amagis (Associação dos Magistrados Mineiros). Eu, indicado pelos agraciados, fiz o discurso de agradecimen-to. Todo ano, no mês de setembro, há o agraciamento. Foi no ano anterior à sua morte que fomos agraciados. Ele falou-me, na oportunidade: “Você me abandonou! Nunca me visitou em Juiz de Fora!” “Porque você nunca me convidou”, respondi. Acrescentei: “Você é procurado pelos políticos. Quem não é político, só vai procurá-lo a seu convite; você tem que nos convidar, presidente Itamar.” “Então você vai jantar lá comi-go, vou marcar a data”, ele acrescentou. E no ano seguinte ele morreu. Ele estava bem de saúde em setembro. Ele morreu em 2011, não foi?

[C P] — Isso.

[C V] — Foi em setembro de 2010 o nosso encontro. Eu recebi o convite da Amagis para o agraciamento ocorrido nesse ano. Eles realizam, no mês de setembro, o agraciamento.

[C P] — Essa homenagem.

[C V] — Essa homenagem: condecoram quatro ou cinco pessoas,

133Carlos Velloso

todo ano. Fazem uma festa bonita os magistrados mineiros.

no StF: a relação com o executivo

[C P] — Agora, nesse período que o Itamar está à frente da presi-dência da República, você vai ter um acontecimento que é muito importante, que é o Plano Real. Eu entrevistei o então presidente Fernando Henrique Cardoso, um pouco contando a trajetória dele como ministro da Fazenda, e ele estava falando que uma das preocupações da feitura do Plano Real foi exatamente fazer um plano juridicamente correto, porque os planos anteriores tinham ocasionado uma enxurrada de demanda à Justiça. Isso procede?

[C V] — Sim, procede. Aliás, eu disse isso ao presidente Fernan-do Henrique. O Supremo está às voltas, até hoje, com esque-letos de planos, o plano Bresser, o plano Cruzado, o plano Ve-rão, o plano isso e aquilo. Eu disse isso ao presidente Fernando Henrique. Ele estava para sair: “Não tem, presidente, uma ação sequer contra o Plano Real, uma ação sequer. É que o seu go-verno cuidou de ter, junto dos economistas, juristas de porte, que fizeram cumprida a Constituição.”

[C P] — Nenhum do Supremo, nesse momento, foi consultado so-bre isso? O senhor sabe?

[C V] — Não. Eu penso que não. Porque o Supremo sempre se colocou numa posição distante, para evitar, justamente, qual-quer envolvimento. Eu lembro, eu era presidente do Supremo e o presidente Fernando Henrique me integrou numa delega-ção que iria à Holanda, a fim de participar de evento relevante. Antes de aceitar o convite, reuni, informalmente, o tribunal, e dei conhecimento à Casa, é dizer, comuniquei que o ato do presidente da República, que consubstanciava o convite, esta-va publicado no Diário Oficial: eu, a convite da presidência da República, integrando a delegação, o presidente do Supremo

134 História Oral dO supremO [volume 7]

colocado, aliás, em primeiro lugar. Consultei a Casa, se deveria aceitar o convite, para mim e para o Supremo honroso, escla-recendo, entretanto, que achava que a aceitação não seria ade-quada, porque um membro de um poder não pode aceitar indi-cação de outro poder, principalmente em se tratando do chefe do poder, no caso, o chefe do Poder Judiciário. E o Supremo me deu razão: entenderam os colegas que eu não deveria integrar a delegação designada pelo chefe do poder executivo.

[C P] — Aceitar.

[C V] — Eu fiz, então, um ofício ao presidente da República, um ofício educado, respeitoso, protocolar, como não poderia dei-xar de ser, esclarecendo que não poderia atender ao convite, dado que sessões do tribunal, que se realizariam no período, exigiam a minha presença. O Supremo, portanto, sempre se pôs numa posição equidistante dos demais poderes.

[C P] — Sim, entendi.

[C V] — Essa sempre foi a posição do Supremo. E era, também, a posição do antigo TFR, que, por exemplo, recusou alterar, como já mencionado, a lista elaborada, em 1977, para nomea-ção de membro do tribunal, alteração que fora proposta pelo presidente Geisel, um presidente fortíssimo, que ocupava uma presidência muito forte. Não era como hoje, em que temos a prática de uma democracia plena. Em razão daquela equidis-tância que era mantida, o tribunal decidia com a maior inde-pendência. Então, quando vejo, hoje, juiz se misturando com políticos, eu me entristeço. Não é que deva o juiz cortar rela-ções de amizade com políticos ou membros de outros poderes, mas que essas relações sejam discretas, graves, é necessário.

[C P] — Institucionais.

no StF: a tJ Justiça

135Carlos Velloso

[C V] — Institucionais. O Supremo sempre foi muito cioso disso. Sempre foi muito cioso, por exemplo, em não prestar homena-gens, a não ser as homenagens regimentais estabelecidas pelo plenário. Você não tem notícia de que o Supremo homenageou fulano ou beltrano, a não ser que prestou homenagens ofi-ciais, regimentais. Enfim, são posições que eu acho adequadas e necessárias para a Corte. Por exemplo, continuo mantendo opinião contrária à televisão aberta nas sessões. A exposição direta, intensa, banaliza a função jurisdicional. Indago: para que existe uma televisão no Supremo Tribunal Federal? Para promover os seus ministros? É claro que não. Existe para pres-tar serviço à população, aos operadores do direito, à sociedade. Como esse serviço seria prestado? Na divulgação de julgamen-tos e de pronunciamentos jurídicos importantes, relevantes. Agora, ficar lendo votos intermináveis, cansativos, que, não existisse a transmissão direta, seriam menores, mais densos de ideias e com menos frases de efeito, não tem sentido, ao que penso. Os julgamentos e pronunciamentos poderiam ser edi-tados. Bastaria que fossem contratados jornalistas eficientes para realizar a edição, bons jornalistas que, aliás, já existem na TV Justiça. Isso seria censura? Que piada. Isso seria uma boa forma de divulgar o que o Supremo produz, em termos jurídi-cos, de bom, de útil para os homens do direito e, principalmen-te, para os jurisdicionados, para a sociedade. O mais é, simples-mente, “democratismo”.

[C P] — O senhor acha que mudou o comportamento dos minis-tros no plenário, com a TV Justiça?

[C V] — Sim, de certa forma, sim. Os votos passaram a ser mais extensos. Eu lembro que era comum, quando você concordava com o relator, aduzir duas ou três palavras e declarar a sua con-cordância. O revisor, em ação penal, quando tinha voto coinci-dente com o relator, simplesmente isso declarava. Ganhava-se tempo. No antigo Tribunal Federal de Recursos, que foi um no-

136 História Oral dO supremO [volume 7]

tável tribunal, isso era a regra. Quando eu cheguei lá, eram 13 os ministros; depois, fomos para 19; finalmente, 27 ministros. Sem-pre que um tribunal cresce, aumenta o número de seus juízes, cai, de certa forma, a qualidade. Mas o que eu falava mesmo?

[C P] — Da TV Justiça, se muda a forma de agir.

[C V] — Ah, sim. Por exemplo, o revisor, se ele estava de acordo com o relator, quantas vezes fiz isso, no antigo TFR, simplesmen-te declarava: meu voto coincide com o voto do senhor ministro relator. Tenho voto escrito que juntarei aos autos. Ou: concordo com o relator, dou provimento. Farei juntar voto escrito. Veja o tempo que se ganha. Olha o tempo que se ganharia. Quando ocorria, no tribunal, por exemplo, uma divergência, o divergente simplesmente acrescentava: no ponto tal, divirjo, e acrescentava as razões de seu convencimento. Vez ou outra, diante da diver-gência, o relator rediscutia o ponto controvertido e, vez ou outra, aderia à divergência. Hoje, com a TV, não se faz isso.

no StF: as decisões

[i n] — Aproveitando essa questão que o senhor está falando, ministro, como é que funcionava, quando o senhor estava atu-ando, essa questão da busca de um consenso ou de uma decisão conjunta dos ministros? Vocês discutiam? Havia uma possibi-lidade de discussão dos votos, de conversa, de troca de ideias, de teorias jurídicas? Ou não?

[C V] — Nesses casos que eram casos realmente complicados...

[C P] — Dê alguns exemplos do que o senhor considera casos com-plicados, quando o senhor esteve no Supremo.

[C V] — De um caso específico, não lembro no momento. Quando a questão, por exemplo, era de alta relevância, nós nos reunía-mos em Conselho. Em dia anterior ao julgamento, o ministro pedia a formação do Conselho. Lembremos um caso: quando o

137Carlos Velloso

Supremo decidiu a respeito da constitucionalidade do CNJ, reu-nimo-nos em Conselho e a questão foi exaustivamente debatida.

[ i n] — [Sessão] administrativa, fechada.

[C V] — Sim, em sessão administrativa, fechada, sessão do Con-selho, que era e é regimental. Brincávamos: “Peço conselho. Quero pedir conselho.” Se você tinha uma dúvida atroz, pedia o conselho, expunha a sua dúvida. Ali, em conselho, debatia-se, abertamente, a questão controvertida. E chegava-se a um consenso. Isso era útil, bom! Assim se procede na Suprema Corte norte-americana, assim se procede nas grandes cortes do mundo. Uma vez um ministro da Suprema Corte america-na, diante da informação que lhe dei de que a questão era dis-cutida em sessão pública, sem apreciação preliminar, brincou comigo: “Ah, quer dizer que decidem de ouvido?” [risos]

[C P] — A gente poderia afirmar então que os casos relevantes são os casos em que, de certa forma, se pede conselho? E não pedir conselho significa uma divergência, necessária entre...

[C V] — Por exemplo, você não sabia como era o ponto de vista do colega. Pedia-se o Conselho quando a questão era relevante, de alta relevância, mas, sobretudo, quando havia dúvida quan-to a um ponto controvertido.

[ i n] — Para conversar e chegar a uma...

[C V] — Para se chegar a um consenso, em caso de dúvida. Muita vez o juiz tem dúvida, dúvida objetiva, não subjetiva. Debater a dúvida objetiva, abertamente, no Conselho, é bom para a justiça.

[C P] — Claro!

[ i n] — Claro!

[C P] — É evidente.

O Conselho Nacional de Justiça

138 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — Você está numa zona cinzenta. Então, é bom o debate. Você confia no colega, todos têm alto saber jurídico. O Conse-lho é, portanto, salutar. Eu acho que hoje não estão ocorrendo sessões de Conselho. Um ou outro colega não gosta do Conse-lho. No caso do CNJ, toda a questão foi debatida no Conselho, todos os itens da matéria foram discutidos, intensamente dis-cutidos, porque havia uma arguição de inconstitucionalida-de do CNJ, com argumentos sérios. Então, seria útil discutir, abertamente, a matéria. Eu vou até adiantar como é que eu vo-tei na sessão administrativa e como votei na sessão pública. Eu sempre fui adepto do Conselho Nacional de Justiça. Aliás, em Porto Alegre, em 1986, em plena Constituinte, eu fui lá fazer uma palestra, em um congresso sobre justamente a formação do Judiciário na Constituinte – estavam lá, participando, o professor Adilson Abreu Dallari e vários outros juristas e ju-ízes, o ministro Moreira Alves, o Pertence, então procurador geral da República. Propus então a criação de um Conselho. É importante o Conselho. Mas eu achava que o Conselho não devia ter pessoas estranhas ao Judiciário. Eu receava a politi-zação do Judiciário. Ora, representante do Congresso, repre-sentante da Câmara e representante do Senado são pessoas li-gadas a políticos, a partidos políticos. Eu não me iludo quando afirmam que a Câmara dos Deputados vai escolher um jurista. Vai escolher, sim, aquele que é próximo dos políticos, ou que tem participação partidária. Daí por que eu receava a politi-zação da justiça em razão da participação, no CNJ, de pessoas próximas da política e estranhas ao Judiciário. Eu temo a poli-tização do Judiciário. É de François Guizot a sentença: “Quan-do a política penetra no recinto dos tribunais, a justiça se retira por alguma porta.”

[C P] — O Supremo, no momento que teve a tramitação da refor-ma do Judiciário, desde 1992, quando o jurista Hélio Bicudo apresentou a primeira emenda, não propôs o Conselho da Justi-

139Carlos Velloso

ça. Em 1995, o então deputado José Genoino coloca um conselho externo, aí começa o debate de um conselho interno ou externo, o Supremo chegou a atuar na Câmara e no Senado?

[C V] — Não. Institucionalmente, não. Agora...

[C P] — Não? O senhor chegou a atuar?

[C V] — Cheguei.

[C P] — Na Câmara também?

[C V] — Dei depoimento na Câmara, à Comissão de Constituição e Justiça. O meu depoimento está lá, nos seus anais. Falei so-bre todos os temas com os parlamentares, numa sessão públi-ca. Mas, institucionalmente, o Supremo sempre se colocou em posição equidistante. Sempre. Não sei se foi ou se seria bom, nesse caso. Acho, todavia, que sempre é bom ficar o tribunal equidistante, institucionalmente, dos órgãos políticos.

[C P] — No Senado, o senhor também chegou a ir, durante a tramitação?

[C V] — Cheguei, sim. Sempre a convite, principalmente na Co-missão de Constituição e Justiça da Câmara. Debati, lembro, com o deputado Genoino. Aliás, a ideia de participação do juiz de primeira instância no Conselho Nacional de Justiça foi do deputado Genoino, que eu abracei. Quando eu falava a respei-to, excluindo os estranhos à Justiça, dizendo que eu temia a politização, o deputado Genoino pediu um aparte. Eu incluía, no CNJ, ministro do Supremo, ministros dos tribunais supe-riores, desembargadores. E o deputado Genoino aparteou: “E o juiz de primeira instância? O senhor não admite o juiz de primeira instância?” Ouvi o deputado, meditei por instantes e respondi: Por que não? Vamos incluir o juiz de primeira ins-tância. Se bem que é de certa forma inconveniente.

[C P] — Por quê?

140 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — Porque sempre pode ser indicado alguém que não é o melhor juiz; que pode ser o que se aproxima mais. Na magistra-tura tem disso, também. Tem o juiz que é, realmente, grande juiz, trabalhador, serviço em dia, o que constitui a maioria. Mas há, também, o carreirista, que se se sente melhor como asses-sor, que não gosta de estudar os processos, que quer viver na capital. Eu acho que juiz assessor é uma excrescência. Aliás, eu já falei isso, publicamente, em entrevista que dei. Esse negócio de juiz estar assessorando ministro ou desembargador não me parece correto. Juiz tem que trabalhar como juiz, na sua vara, despachando, proferindo sentenças, garantindo direitos.

no StF: os assessores

[C P] — E quem iria assessorar os ministros do Supremo?

[C V] — Bacharéis competentes, jovens bacharéis estudiosos. O assessor não pode fazer o serviço que é próprio do ministro. A jurisdição é indelegável. O assessor é para fazer, sobretudo, pes-quisas – assim procediam os meus assessores –, fazer pesquisas, fazer o relatório do recurso. Fazer o relatório é um trabalho téc-nico, relevante. Os assessores faziam o relatório pormenorizado do recurso. Em seguida, o assessor colocava nos autos cópia das pesquisas de jurisprudência e de doutrina. Eu me reunia com os assessores, acrescentava, invariavelmente, que havia um ou mais de um trabalho de doutrina do jurista tal, que precisava ser consultado, que precisaria ser acrescentado. Retornava os autos para o assessor, para que ele novamente pesquisasse. Esse é o trabalho do assessor, trabalho inteligente, técnico.

[C P] — O senhor pegava esse material todo, aí o senhor construía...

[C V] — Aí ia fazer o voto.

[C P] — ... o seu voto.

[C V] — Sempre foi assim. Agora, alguém estar lá trabalhando para

141Carlos Velloso

o ministro, fazendo os seus votos, terceirizando a jurisdição?!

[C P] — Então, há ministros, ou houve, que os assessores construí-am o voto? Mais do que fazer a pesquisa, também redigiam?

[C V] — Ah, tem! Isso está ocorrendo, de modo geral. Há minis-tros, entretanto, que não admitem.

[C P] — É?

[C V] — Há colegas que não concordam com isso. O ministro Cel-so de Mello, por exemplo, é um deles; o ministro Marco Auré-lio é outro. Eles não têm juízes assessores. E há, no Supremo, é forçoso reconhecer, bons juízes de 1º grau servindo como assessores. Arranjaram-lhes, até, um nome pomposo: juízes instrutores. Alguns deles da minha estima pessoal, e que estão contentes, porque gostam dessa atividade. Eu tenho dito a um ou outro: “Isso não é atividade sua. Você deveria estar profe-rindo despachos e sentenças.” O que o assessor deve fazer? O tipo de trabalho que mencionei. Mais: o Supremo tinha uma repetição muito grande de recursos.

[ i n] — Eu ia perguntar para o senhor quando começa aquela es-tratégia de unir os processos semelhantes.

[C V] — Isto. Eu fazia o voto padrão, me reunia com os assessores e esclarecia a tese de direito em discussão, a questão em julga-mento. E discutia com os assessores como deveriam ser feitas as adaptações. Não é só copiar. Porque cada caso é um caso. Por exemplo, no mandado de segurança não há honorários ad-vocatícios, e quando se trata de ação ordinária há condenação em honorários. Eu tive assessores perfeitos: o Alceu Andrade Rocha, o Francisco de Assis Praxedes, a Cláudia Chagas, a Ma-tilde do Egito Coelho, o Salomão Barbosa, a Neide Bizinoti, o Fabrício Sarmanho, a Neiva Ludwig, o Fábio Conforto, o Wal-ter Schroder, a Luciana Rocha Farah, a Amanda Flávio, que eu trouxe de Belo Horizonte, professora da Faculdade de Di-

142 História Oral dO supremO [volume 7]

reito da UFMG, hoje é a diretora da Faculdade. São pessoas da maior confiança, da maior retidão, profissionais competentes. Prestavam inestimáveis serviços.

no StF: casos importantes

[i n] — E quais eram os processos que, em geral, o senhor... O se-nhor se lembra de algum caso em que se deteve por mais tem-po, que foi mais desafiador para o senhor, que foi um processo, em que o senhor ficou muito tempo? Porque o senhor já falou da questão do Collor, que foi um processo difícil, mas houve algum outro em que, tecnicamente, o senhor ficou muito tempo traba-lhando e pensando, que o senhor se recorda de que foi importan-te para o senhor?

[C V] — Uma ação penal que me tomou muito tempo foi uma ação penal originária, que tinha como réu um jovem cidadão que hoje ocupa alto cargo eletivo. Deu-me grande trabalho essa ação. Porque eu sempre achei que a denúncia, quando recebida pelo Judiciário, pesa muito contra a reputação da pessoa. Em certos casos, representa condenação. Eu me lem-bro de um réu, numa ação penal, que foi absolvido, ao final, por unanimidade. Era um problema relacionado com mercado de capital, ligado ao BNH. Ele era deputado federal e foi envolvi-do na ação penal. O recebimento da denúncia deu-se, aperta-damente – eu não estava lá, na ocasião –, por seis votos a cin-co. E no julgamento final ele foi absolvido, por unanimidade. Então, as pessoas se acercavam dele e diziam: “É, fulano, você foi absolvido.” E ele respondia: “Ao contrário. Eu fui condena-do.” “Como assim? O Supremo o absolveu, por unanimidade.” “É, mas durante cinco anos, que durou a tramitação da ação, eu não saía de casa, envergonhado. E as pessoas, pessoas co-nhecidas, indagavam: “Você está sendo processado, criminal-mente? Esse tipo de indagação me martirizava”, dizia ele. O

143Carlos Velloso

juiz, portanto, tem que tomar cautela. Se a acusação não tem base em provas sérias, ou se não existe provas convincentes, porque indícios apenas não bastam, a denúncia não deve ser admitida. Uma denúncia recebida contra uma pessoa hones-ta, envolvida, o diabo sabe a razão, numa investigação penal, representa condenação, causa danos. Daí porque eu me preo-cupava com essas questões, ao apreciar uma denúncia na fase de seu recebimento. E esse caso.

[ i n] — Esse caso...

[C V] — Tratava-se, o caso mencionado, de um jovem político, político sério, de futuro, o que, aliás, se confirmou. Nunca con-versara com ele, mas, estudando o processo, verifiquei isso. A ação deu trabalho, o acusado foi superiormente defendido pelo advogado René Ariel Dotti. Fez-se justiça.

[ i n] — Por isso, por essa questão das provas?

[C V] — Sim, por falta de provas.

[ i n] — Como era uma ação penal...

[C V] — E proferi o meu voto, longo voto, não recebendo a de-núncia, no que fui acompanhado pelo revisor. Por unanimida-de, a denúncia não foi aceita. Mas o que mais? Tivemos ações tributárias importantes, questões constitucionais que nos fa-ziam meditar e refletir.

[C P] — Alguma relativa às privatizações?

[C V] — Também. Lembrou bem. Porque o Supremo arbitrou muitas dessas ações relativas às privatizações.

[ i n] — Privatizações.

[C P] — O senhor chegou a relatar alguma?

[C V] — Cheguei. Cheguei sim.

[ i n] — Teve um mandado de segurança da Vale.

144 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — Também, não é?

[ i n] — É. Teve um caso do senhor.

[C V] — Qual é o tema? Lembra? Se você disser o tema, eu lembrarei.

[ i n] — Em uma das privatizações, de um mandado de segurança contra a privatização da Vale, ajuizada por dois advogados mi-neiros. O senhor acolheu o pedido do governo, porque entendeu que os advogados não detinham legitimidade de propor o man-dado de segurança.

[C V] — Ah, sim! Tratava-se de uma piada esse mandado de se-gurança que me foi distribuído. Eu estava na presidência?

[C P] — Isso.

[C V] — Ah! Foi uma guerra! Eu fui relator, também, de ações sérias.

[ i n] — Em 1997, o senhor era vice-presidente, ainda.

[C V] — É. Depois, em 1999...

[ i n] — Aí, depois, em 1999, tem várias questões, na sua presidência.

[C V] — Houve inúmeras. O Banespa, por exemplo, eu lembro bem. Era uma guerrilha: suspendia-se uma liminar, outro juiz concedia a mesma liminar noutra ação.

[C P] — Houve alguma estratégia entre vocês para lidar? Porque realmente foi isso, foi uma sucessão de liminares.

[C V] — Nesses casos, não se teve nem tempo de pedir o Con-selho, porque as coisas vinham num turbilhão. Eu me lembro dos casos do Banespa. O Banespa não seria privatizado se não houvesse uma atitude firme por parte da presidência do Su-premo. O pedido de suspensão demandava uma tramitação mais demorada. Passei, então, a conhecer, dos pedidos feitos pelo Banco Central ou pela União, como reclamação. Porque eu achava realmente que, a partir de certo momento, ocorria verdadeira afronta à decisão do Supremo Tribunal. Suspen-

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dia-se a liminar, outro juiz concedia liminar idêntica. Aquilo representava um desrespeito, uma afronta à autoridade da de-cisão proferida pelo Supremo. Então, eu conhecia dos pedidos como reclamação e cassava a liminar. Vez ou outra, diretores do Banco Central de então me dizem: “Não teria havido a pri-vatização do Banespa não fosse a sua atuação firme.” Real-mente, foi uma verdadeira guerrilha. A tese que sustentavam parecia boa, mesmo porque eram associações de funcionários ou sindicatos que propunham as ações contra as privatizações. Eles se sentiam ameaçados com a privatização. Temiam per-der os seus empregos, ou perder vantagens salariais. E houve coisas do arco da velha praticadas por governos estaduais que levaram bancos estatais praticamente à falência. A União in-tervinha, saneava os bancos, a fim de privatizá-los. As ações eram propostas por sindicatos e associações, acolitadas, al-gumas delas, pelo Ministério Público, ações que costumavam ser despachadas por juízes reconhecidamente honestos, mas marcadas ideologicamente.

[C P] — Isso reforçou o entendimento da necessidade da súmula vinculante, entre vocês?

[C V] — Ah, sim, sem dúvida. Sempre fui favorável à súmula vin-culante, escrevi a respeito. E, fora da presidência, fui relator, por exemplo, de uma ou mais de uma das ações relativas às te-les. Eram ações grandes. Acredito até que, pelo menos em uma delas outro ministro acabou relator, para o acórdão. Porque eram vários temas e, em um ou outro tema, eu fiquei vencido e perdi a relatoria para o acórdão. Mas tivemos, sim, grandes ações, que deram enorme trabalho. Porque eram questões e te-mas novos. Era um Brasil novo que surgia, um novo Brasil que se ajustava aos novos tempos, tempos que se seguiram à queda do muro de Berlim.

[C P] — Que estava sendo gestado. É isso mesmo. E que o Supremo

146 História Oral dO supremO [volume 7]

teve um papel, nesse momento, muito importante, que é isso mesmo.

[C V] — Teve, teve sim. O Supremo teve papel relevante. Viveu o Supremo as suas novas circunstâncias. O homem é ele e suas circunstâncias.

[C P] — Nesse momento, o senhor acha que, por exemplo, trazer a questão das teles, relatar o voto ou votar ali, tinha essa noção do que era relevante? Vocês conseguiam perceber a importância daquele momento?

[C V] — Conseguia. Conseguia sim.

[C P] — Como?

[C V] — Ficava uma indagação, que você teria que responder para você mesmo: esta é a melhor decisão política para o Brasil, para a Nação? Na verdade, eu sempre achei que o Estado é pés-simo administrador. Por exemplo, os bancos estaduais, qua-se todos quebraram. Por quê? Porque serviam para cobrir os déficits do Estado. Serviam para realizar o que o governador, ou o novo governador, ou o governador de plantão desejava fa-zer para agradar A ou B, ou a população de certa região ou de chefes políticos que lhe traziam votos. Os bancos estatais, em quase todos, numa agência que precisava de quatro servidores, havia quinze, vinte funcionários. Era fácil perceber, então, que o banco estava mal administrado, que mais servia aos políticos de plantão, que indicavam dezenas de servidores. A consequ-ência foi que praticamente faliram quase todos.

[C P] — Uma questão da dinâmica: como foram muitas limina-res, também era sorteio?

[C V] — Não. Porque quem suspende as liminares, pela lei, é o presidente do Supremo, ou o presidente do STJ, ou o presiden-te do TRF ou do TJ. É o presidente do tribunal. Dependendo da matéria discutida. Se a competência é do Tribunal de Justiça, é o presidente do Tribunal de Justiça. E a decisão não se dá com

147Carlos Velloso

base em fundamentos jurídicos, mas com base em fundamen-tos políticos. Quando eu falo fundamentos políticos, quero di-zer político no sentido grego da palavra.

[C P] — Entendi.

[C V] — Para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. O que isso significa? Tem-se um conceito indeterminado, que cumpre ao juiz estabelecer, determinar, mediante raciocínio político e não jurídico. Político, evidente-mente, não custa repetir, no sentido próprio da palavra.

[C P] — Sim.

[C V] — Evitar lesão à economia pública. O raciocínio, a fim de determinar o seu sentido, é político, fazendo-se, inclusive, construção jurisprudencial, dando-se maior extensão à ordem pública. A ordem pública compreenderia, por exemplo, a or-dem administrativa. A liminar embaraça, paralisa uma obra pública, com grave prejuízo para os cofres públicos. O poder público, então, pede ao presidente do tribunal a suspensão da medida liminar. A Usina de Belo Monte, que está sendo cons-truída e cuja construção tem sido paralisada por liminares, é um exemplo. As liminares concedidas, que implicam parali-sação da obra, têm sido suspensas por presidentes do tribunal competente na matéria.

no StF: a presidência do Supremo

[i n] — E como é que o senhor fazia quando era presidente? Qual era a sua postura com relação...? Como é que o senhor fazia para definir a ordem pública, num caso desses?

[C V] — Tinha que meditar. Tinha que ter momentos de reflexão, de estudo. E esses momentos de reflexão, você só poderia ter no seu escritório privado, em sua residência, onde você não recebe as partes, não recebe advogados para despachar memoriais.

148 História Oral dO supremO [volume 7]

[ i n t e r r U P Ç Ão n a G r aVaÇ Ão]

[i n] — A gente estava perguntando, então, ministro, sobre as questões... como é que o senhor fazia então, quando o senhor era presidente do STF, para tomar decisões, nesses casos de limina-res. Aí ia para casa... O senhor se lembra de algum caso que foi difícil de decidir?

[C V] — O caso que mais me deu trabalho, ao que me lembro, foi o da privatização do Banespa. Porque ocorria, como já revelei, verdadeira guerrilha de liminares, muitas delas deferidas em decisões ideológicas. As primeiras eu encarava com seriedade. Depois que constatava que estava diante de uma guerrilha de liminares, que repetiam os mesmos fundamentos já examina-dos, aí eu via aquilo com antipatia. Como é que um juiz pode se prestar a isso, indagava de mim para mim. Todavia, de modo geral, os juízes não agiam de má-fé. Muitos entendiam que estavam garantindo direitos. Lembro-me de que uma notável juíza concedera uma liminar que foi por mim suspensa. A im-prensa passou a noticiar de forma a constrangê-la. E ela era e é uma notável juíza. Eu concedi, então, entrevista à imprensa es-clarecendo que ela era uma grande juíza. No caso do Cacciola, houve uma liminar concedida por um colega e que foi revogada por mim, então na presidência do Supremo, a requerimento do Ministério Público. Diante da exploração da mídia, constran-gendo o colega, também concedi entrevista à imprensa escla-recendo que a divergência entre juízes é comum e é salutar. A exploração por parte da mídia, tendo por objeto a decisão do colega, um colega eminente, ocorreu porque, concedida a limi-nar, o paciente fugiu para o exterior. Trata-se de caso conheci-do. O juiz entendeu que devia conceder a liminar e o seu enten-dimento devia ser respeitado.

[C P] — Pela minha cabeça?

[C V] — Por corporativismo, não deveria ocorrer divergência

149Carlos Velloso

entre colegas, ou para ficar do lado do colega por corporativis-mo? Não. Isso não pode ocorrer, não pode existir. O juiz tem que decidir sempre de acordo com a sua consciência e com a sua ciência, isto é, de acordo com o que apreendeu mediante o exame dos fatos e da questão jurídica.

[C P] — E o conflito entre poderes? O senhor estava na presidên-cia do Supremo quando teve início a CPI do Judiciário.

[C V] — Aí foi uma briga de bom tamanho.

[C P] — E aí como é que foi? Foi um momento de muito atrito en-tre o Legislativo, na figura do Antônio Carlos Magalhães, do en-tão senador Antônio Carlos Magalhães, e o Supremo?

[C V] — Foi.

[C P] — Como é que foi esse momento? E o senhor?

[C V] — Mas antes eu queria lembrar um conflito ocorrido na presidência Fernando Henrique com o Estado do Rio Grande do Sul, quando governador o Olívio...

[ i n] — Olívio Dutra.

[C V] — Olívio Dutra, que requereu ao Supremo uma liminar, num caso que dizia respeito à dívida do Estado do Rio Grande do Sul com a União. Examinei detidamente a questão e concluí que deveria deferir a medida pleiteada. Era, realmente, uma questão importante. Não sei se vocês chegaram...

[ i n] — Chegamos. O caso do Olívio Dutra. Estou procurando. Mas eu lembro que está aqui.

[C V] — Pelo telefone, dei conhecimento ao presidente Fernan-do Henrique da decisão que acabara de proferir. O presidente ficou desolado, chegou mesmo a falar em deixar o cargo.

[C P] — Sério?!

[C V] — É! “Eu acho que eu não tenho mais condições de ficar”,

150 História Oral dO supremO [volume 7]

disse-me o presidente. Eu senti que ele estava tenso, contra-riado. Eu lhe disse, então: “Presidente, o senhor é um homem preparadíssimo, o senhor é um estadista.”

[ i n] — Ah! Desculpe, ministro. É uma movida pelo PDT e PT con-tra a privatização da telefonia móvel celular chamada banda B. Foi esse o caso. Mas aí o senhor estava numa ligação com o pre-sidente Fernando Henrique.

[C V] — Não, não foi esse caso. Foi outro. Era uma questão que di-zia respeito ao equacionamento da dívida do Estado com a União.

[C P] — Da dívida dos estados.

[C V] — Sim, da dívida dos Estados-membros com a União.

[C P] — No momento de renegociação das dívidas dos estados.

[C V] — Esse caso que foi mencionado, da telefonia móvel, ocor-reu também, mas não teve grande repercussão. Dizia eu que o presidente Fernando Henrique estava realmente muito empe-nhado em dar solução à enorme dívida dos Estados com a União.

[C P] — Porque alguns estados estavam em gravíssima situa-ção financeira.

[C V] — E também a economia brasileira passava por turbulên-cia, com os juros lá em cima.

[C P] — E crises internacionais acontecendo.

[C V] — Sim, com crises internacionais acontecendo na econo-mia. Eu compreendia as preocupações do presidente Fernando Henrique, torcia para que as medidas adotadas pela sua equipe econômica dessem certo. De certa forma, o presidente revela esse episódio no seu livro de memórias. Não, todavia, com os detalhes aqui revelados, claro, nem precisava fazê-lo.

[C P] — Entendi.

[C V] — Ele conta, inclusive, que respeitava a minha decisão. Cer-

151Carlos Velloso

to é que ele ficou desolado. Eu disse a ele, mais: “O senhor vai superar tudo isso. O senhor é um homem preparado, é um esta-dista.” Eu admirava e admiro o presidente Fernando Henrique, por quem tinha e tenho estima. Eu acentuei para ele: “Isso vai passar, presidente. Nós estamos em um Estado de Direito, para o qual o senhor lutou e temos que pagar o preço por tê-lo.”

[C P] — O senhor, nesse momento, era vice-presidente do Supre-mo?

[C V] — Não, era o presidente.

[C P] — Já era presidente. Então já foi pós 1999, não é?

[C V] — É. Isso deve ter sido no ano 2000 ou 2001.

[C P] — É, acho que é isso mesmo. É por conta dessa negociação que viria a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, ou a negociação se fez em razão dessa lei, a Lei Complementar 101, de 04.05.2000.

[C V] — Exatamente. É outro tema que deve ser mencionado. A Lei de Responsabilidade Fiscal foi atacada no Supremo Tribunal.

[C P] — Foi.

[C V] — Pelo PT. Principalmente pelo PT.

[C P] — E pelos governadores.

[C V] — Pelos governadores e até por associação de magistrados.

[C P] — Ah, é?

[C V] — Sim, porque, certamente, sentiram que perderiam ver-bas orçamentárias. Então, as associações ficaram agitadas. Foram momentos de turbulência, no país. O presidente Fer-nando Henrique foi de uma firmeza extraordinária. E ele che-gou a ficar realmente abalado diante das ações contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas tudo acabou bem. E tudo vai bem quando termina bem. Foi uma época de turbulência na

152 História Oral dO supremO [volume 7]

economia, na política. Bom, aí chego ao episódio do Antônio Carlos Magalhães. Tivemos discussões ásperas, pelos jornais, pela mídia.

[C P] — Pessoalmente, vocês se conheciam?

[C V] — Não tínhamos amizade próxima. Nosso conhecimento, formal, vinha desde o antigo TFR. Ele comparecia às solenida-des, no tribunal. Ele era prefeito de Salvador ou governador da Bahia. Tivemos, quando estava eu na presidência do Supremo, um encontro, na casa do Jobim. O Jobim ofereceu um jantar, a que comparecemos. Na ocasião, fiz um apelo ao ACM, que presi-dia o Senado e o Congresso Nacional. Disse a ele que o Judiciário precisa de credibilidade e que a sua honorabilidade era fator de sua legitimidade. Temos que afastar os juízes que não honram a toga, mas sem estrépito, acrescentei. Ademais, eu temia ocorrer o que acabou ocorrendo, de certa forma, hoje: juízes intimida-dos, constrangidos. Eu cheguei a dizer ao presidente Antônio Carlos Magalhães: o dia em que o juiz tiver medo, o cidadão cor-re perigo. Fiz sentir que não concordava com a instauração de CPI para investigar o Judiciário. Não havia motivo para isso.

[C P] — Esse jantar já foi por conta da CPI do Judiciário?

[C V] — Não, não.

[C P] — Não. Foi muito antes?

[C V] — Foi antes. Foi antes. O Jobim e a Adriene, sua mulher, ofereciam, comumente, jantar para os amigos. E como é ele originário da classe política, ele tinha e tem amigos nessa área, na área política.

[C P] — Claro.

[C V] — Conheci, aliás, alguns políticos naqueles encontros. Continuo: o senador Antônio Carlos Magalhães era um sujeito destemido e de arroubos. Eu lembro, estava num encontro de

153Carlos Velloso

juízes em Belo Horizonte, mais precisamente de presidentes de Tribunais de Justiça, e o ACM deu uma entrevista brava, falando de “juízes corruptos”, generalizando a questão, como se a corrupção no Judiciário fosse a regra. Aquilo me revoltou. Qualquer coisa que se falasse do Judiciário eu respondia. Hoje, tem coisas não muito bentas que acontecem e ninguém fala nada, ninguém responde, ficam os juízes sem defesa. Eu acho isso um erro. Quem cala, consente. Lembro-me de que escrevi uma nota para a imprensa. Fui para a máquina, fiz uma nota, assinei e entreguei à imprensa. No outro dia, os jornais e a TV noticiaram, ele replicou e eu respondi de novo, energicamente. E foi uma briga boa. Teve um momento em que ele se excedeu no ataque e respondi, pela imprensa, dizendo que me interes-sava o julgamento dos homens de bem. Ele ficou bravo, a briga foi crescendo, a CPI foi instalada. E o que foi apurado. Que um juiz do Amazonas cometera malfeitos. Que o juiz Nicolau, do TRT de São Paulo, cometera irregularidades e se apropriara de dinheiro público na construção do prédio do TRT, o que já estava sendo investigado, inclusive pelo Ministério Público Federal, convindo esclarecer que o juiz Nicolau já não era da magistratura ativa, estava aposentado e exercia função admi-nistrativa, designado para comandar a construção do prédio. Quer dizer, não se tratava de malfeito na atividade judicial. Pelo exposto, não seria necessária uma CPI para apurar o que já estava sendo apurado. É o que eu afirmava.

[C P] — E a relação entre as duas instituições, os dois poderes, como ficou?

[C V] — Nessa época, com o presidente do Senado, a coisa ficou brava.

[C P] — Não houve nenhum canal de... ou canais de...

[C V] — Ah! O presidente Fernando Henrique entrou para conciliar.

[C P] — ...de tentar amenizar a situação?

154 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — O presidente Fernando Henrique tentou conciliar, agin-do como Chefe de Estado. Tivemos um encontro no Palácio Alvorada. O presidente Fernando Henrique, o vice-presidente Marco Maciel, de quem sou amigo, o presidente da Câmara, o deputado Michel Temer, que estava também em choque com o ACM e eu. Quase que a coisa pega fogo lá.

[C P] — Por quê?

[C V] — Porque ele, dirigindo-se a mim, disse: “O senhor foi po-lítico?” Eu respondi: “Não, não fui político.” Aí o doutor Mar-co Maciel entrou em cena. Porque ele ia dizer qualquer coisa desairosa, certamente, e ia ter resposta ali, na bucha, claro. O doutor Marco Maciel entrou na conversa e disse: “Políticos! Minas! Minas! Todo mineiro gosta realmente de discutir po-lítica.” Desconversou assim. É um homem inteligente e conci-liador o doutor Marco Maciel. Aí entrou na conversa o presi-dente Fernando Henrique e a paz foi restaurada.

[C P] — Mas sem a presença do Antônio Carlos?

[C V] — Não, ele presente.

[C P] — Ele ali.

[C V] — Foi ele quem fez a provocação, perguntou se eu tinha sido político.

[C P] — Era uma tentativa de vocês conversarem, puxada pelo Executivo?

[C V] — Exatamente. A conversa continuou, amena. Depois, a briga foi esquecida e, com o tempo, eu ainda na presidência do Supremo, o senador Antônio Carlos Magalhães tornou-se um bom amigo. Veja como são as coisas. Ele foi ao Supremo Tri-bunal Federal falar comigo e dizer que ia outorgar-me a grande Comenda do Congresso, em conjunto com o deputado Michel Temer, então presidente da Câmara. Ele se encarregou de re-

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alizar, no Supremo, a cerimônia para a entrega da comenda. O cerimonial do Senado foi ao Supremo e preparou a solenidade. E ambos, o senador Antônio Carlos e o deputado Michel Te-mer, condecoram-me com a medalha do Congresso Nacional, que muito me honrou. Ele, então, declarou-me: “O senhor es-tava defendendo as prerrogativas do Judiciário, e eu, as prer-rogativas do Congresso Nacional. Eu compreendi.” E publi-camente declarou, mais, no seu discurso: “O ministro Velloso honrou todas as togas que vestiu.” E se tornou meu amigo, fica-mos amigos, para valer, até a sua morte.

A CPI do Judiciário

[C P] — A CPI do Judiciário, como é que ela foi recebida no Supre-mo, entre os seus pares?

[C V] — Os meus colegas achavam que não era caso de uma CPI do Judiciário. Porque o senador Antônio Carlos dizia que havia juízes corruptos, mas não indicava o ato ou atos de corrupção. Havia o caso do juiz Nicolau, do TRT de São Paulo, que já esta-va sendo investigado inclusive pelo Ministério Público Fede-ral. Certo é que não havia indicação do ato ou atos de corrup-ção. Realmente, o juiz Nicolau, aposentado, causou grande mal ao Judiciário. Ele estava sendo investigado e a mídia noticiava. O senador ACM foi a São Paulo, foi fotografado ao lado do pré-dio, declarando: “aqui, a corrupção do Judiciário”. O ato do juiz Nicolau foi, na verdade, altamente prejudicial ao Poder Judi-ciário brasileiro. A CPI, afinal, apontou realmente a corrupção na construção do prédio do TRT. O juiz Nicolau, entretanto, já estava sendo processado, criminalmente. Ele foi condenado pela Justiça, sem nenhuma interferência da CPI. Ele acabou condenado. A CPI indicou, como foi dito, um juiz do Amazo-nas que teria cometido malfeitos, ali. Ora, realmente não era preciso uma CPI a fim de fazer escândalo. Começou com essa

156 História Oral dO supremO [volume 7]

CPI o Judiciário a perder, de certa forma, credibilidade. Você abre o jornal e lê cartas de leitores a proclamar: “Juiz ganha muito e não faz nada, vendem sentenças.” Isso afronta, intimi-da os juízes. O que eu dizia, o dia em que o juiz tiver medo, o cidadão corre perigo, reflete uma realidade. Vocês se lembram das prisões que ocorriam, de advogados, de administradores e até de juízes, de cidadãos pacatos sendo algemados, a imprensa previamente convocada para noticiar as prisões. E com a cola-boração de juízes, que decretavam as prisões. Isso, de certa for-ma, acabou. Quanto tempo vai levar para o Judiciário alcançar a credibilidade que tinha? O Supremo agora está prestando um grande serviço nesse julgamento que está ocorrendo, do de-nominado mensalão. Está prestando, o Supremo, repito, bom serviço para a restauração da credibilidade do Judiciário. Por-que a sociedade brasileira tem fome de honestidade, de ética. Quando eu entrei para a magistratura, eu já dizia isto. Quando alguém nos pede para indicar um advogado, e quando nós o fa-zemos, o sujeito indaga: “É homem honesto, não é?” O sujeito quer saber se o advogado é honesto. Você indica um médico e o sujeito, primeiro que tudo, indaga se se trata de homem sério. É que a sociedade tem fome, tem sede de honestidade, de ética. E passou-se a imagem de que no Judiciário há muitos juízes corruptos, o que não é verdade. Há, sim, alguns juízes que não honram a toga. Os juízes não são anjos, são homens. Eu dizia, quando na presidência do Supremo: os juízes não são anjos; os juízes são homens. Você tem, sim, um ou outro juiz desonesto, como você tem um ou outro médico desonesto, comerciante desonesto, advogado desonesto, militar desonesto, padre ou pastor desonesto, jornalista desonesto. Mas isso não constitui a regra, constitui exceção, felizmente.

[C P] — Além dessa sua luta política importante em defesa do Ju-diciário, que outras medidas o senhor destacaria, desse período que o senhor foi presidente do Supremo?

157Carlos Velloso

[C V] — Eu tinha tido a experiência da urna eletrônica no TSE, que deu certo. Então, imaginei informatizar toda a Justiça brasileira.

[C P] — Sério?

[C V] — E até consegui verba para isso. Não para toda a Justiça, mas para pouco menos de dois terços do programa. Mas não tive tempo.

[C P] — E ninguém...? Essa ideia não vingou?

[C V] — Não. Não vingou, em termos globais. Tem vingado, sim, em setores do Judiciário, cada órgão fazendo por sua conta e risco o processo eletrônico. Eu queria fazer um sistema único, com programas comuns. O processo, por exemplo, começaria no primeiro grau da justiça comum e das justiças especializa-das e iria até os tribunais superiores com um só programa, um só número identificador. A questão demandaria, é certo, apro-fundados estudos. Você tem, hoje, por exemplo, no Tribunal de São Paulo programa diferente do Tribunal do Rio, de Minas ou do Rio Grande. Cada um se esforça para informatizar, à sua maneira, o que tem gerado queixas dos advogados.

[C P] — É incompatível. É diferente.

[C V] — O CNJ tem tentado elaborar e implantar programas ra-cionais, a fim de que os programas dos diversos tribunais pos-sam se entender, em benefício do jurisdicionado. Pelo projeto que tentei implantar e não tive tempo, o processo teria um sof-tware comum, um número só. Ele nasceria com um número e continuaria com ele, acrescentando-se os dígitos identificado-res dos órgãos judiciários seguintes.

[ i n] — Toda a Justiça?

[C V] — Toda a Justiça. Subindo o processo, em razão de recur-sos, ia-se apenas acrescentando dígitos, fazendo-se a identifi-cação do processo no segundo grau e nos tribunais superiores.

158 História Oral dO supremO [volume 7]

Em linhas gerais, esse seria o meu plano. Era um plano difícil, sem dúvida, de ser concretizado, em prazo curto, em menos de dois anos. Primeiro, imagina-se o que fazer, técnicos debru-çam-se sobre o tema e com isso vai-se praticamente um ano. Depois, para efetivar o que foi pensado e trabalhado, vai-se mais de ano. E foi o que aconteceu. Mas eu tinha esse plano de informatizar todo o Judiciário. É que a urna eletrônica, do TSE, dera certo; tinha dado certo o cadastro eleitoral eletrônico, que foi feito na presidência do ministro Néri da Silveira, quando eu era o corregedor geral da Justiça Eleitoral. Quer dizer, valeria a pena tentar. As pessoas eram, de modo geral, pessimistas. O novo é sempre recebido com desconfiança. E mais: quando assumi a presidência do Supremo, havia juizados, havia cartó-rios, que nem tinham máquina de escrever. E eu sempre dizia: computador não é máquina de escrever de luxo; o computador tem muitos recursos, recursos que precisam ser explorados. Lembrava-me do que me dizia o Paulo Camarão de que tudo é possível fazer com o computador, desde que trabalhado com cientificidade. Compreendia, então, que não bastaria mandar o computador, mas que teríamos que montar escolas de infor-mática, com técnicos, nos tribunais, para atender principal-mente o primeiro grau e os advogados. Eu dizia para o Paulo Camarão que ele iria organizar essas escolas de informática. O Paulo Camarão foi o técnico que coordenou, sob o ponto de vista técnico, a criação da urna eletrônica na Justiça Eleitoral. Então, eu sempre dizia: “Você vai cuidar disso no Brasil.” Ele se entusiasmava. Você monta, nos tribunais, a escola, dirigida por um técnico. E o tribunal convoca juízes, advogados, por in-termédio da OAB, escrivães, funcionários, para aprender a tra-balhar com o computador. Há muito que aprender e fazer com os computadores. Pensava, com a participação do Paulo Cama-rão, interligar as comarcas entre elas e o Tribunal de Justiça, com os tribunais superiores e com o Supremo. Enfim, fazer um sistema único. Não tive tempo para realizar esse propósito.

159Carlos Velloso

[C P] — É?

[C V] — Sim. Devo dizer, aliás, que o presidente Fernando Hen-rique foi um grande incentivador de medidas modernizado-ras nos tribunais, ele e o Jobim, quando ministro da Justiça. Jobim foi nosso parceiro de ideias, no TSE. À urna eletrônica ele deu apoio. Ele acreditou, quando poucos acreditavam. Ou-tro que acreditou foi o então ministro José Serra, do Planeja-mento. Eu sempre proclamo isso, deixando claro que não me esqueço da ajuda que deram e que resultou em benefício da de-mocracia brasileira. Fui para Washington, com o apoio do pre-sidente Fernando Henrique e do ministro José Serra, a fim de submeter o projeto ao BID e obter financiamento para as urnas eletrônicas. Vocês têm isso anotado?

[ i n] — Temos, sim.

[C V] — O presidente Fernando Henrique dizia: “Vá ao BIRD, ao BID. Leve o projeto das urnas eletrônicas ao BIRD e ao BID. O aval de um desses bancos é muito importante para a credibili-dade da ideia, do plano.”

[C P] — O senhor tinha encontros regulares com o presidente Fer-nando Henrique?

[C V] — Mais por telefone. Eu dizia: “O senhor tem muito servi-ço, eu tenho também, vamos resolver os problemas pelo telefo-ne”. E de vez em quando almoçávamos.

[C P] — Ele convidava?

[C V] — Ele convidava. O Palácio Alvorada tinha, aliás, uma no-tável chef de cuisine.

[C P] — É verdade?

[C V] — Eram umas comidas simples, mas muito saborosas. Va-lia a pena. [risos]

160 História Oral dO supremO [volume 7]

O convite para o Ministério da Justiça

[C P] — O senhor sai da presidência e continua no Supremo ain-da durante alguns anos, e pega um momento de uma mudança muito grande no Supremo, ali em 2003, quando você tem vários ministros que se aposentam e novos ministros que ingressam no tribunal. Como foi a recepção aos novos?

[C V] — Mas há um fato interessante, antes: é que o presidente me convidou para ocupar o cargo de ministro da Justiça.

[C P] — Ah! A gente tem isso daqui. É verdade.

[ i n] — Em 2002, a Folha publicou...

[C P] — A Folha noticiou que o senhor chegou...

[ i n] — ... em 2 de abril.

[C P] — Mas aí fala como um suposto convite.

[C V] — Teve sim o convite, que muito me honrou. Eu estava passando um feriadão na praia, no Espírito Santo, quando re-cebi, no meu celular, um telefonema do João Pimenta da Veiga, que era o ministro das comunicações, com quem eu me dava, meu amigo.

[C P] — Das comunicações, isso aí.

[C V] — Ele precisava falar comigo. Telefonou-me. Eu estava, com a minha mulher, Maria Ângela, na praia de Guarapari, e ele estava na Aldeia da Praia, também em Guarapari. Eu tinha deixado a presidência. Eu disse, então, ao Pimenta que iria para a Praia da Costa, no meu automóvel, e que passaria na sua casa, na Aldeia, que ficava no caminho. Ele precisava falar co-migo com urgência. Eu fiquei matutando. Seria algum proble-ma no Supremo. Preciso ver do que se trata. Encontramo-nos, na Aldeia, e ele me disse que falava em nome do presidente, que o presidente desejava convidar-me para o cargo de ministro da

161Carlos Velloso

Justiça. Eu disse: “Olha, Pimenta, eu não sei se posso aceitar. Eu vou pensar. Eu acho que não poderei aceitar porque eu te-nho, ainda, compromisso com o TSE. Eu estou entrando nova-mente para o TSE e vou presidir novamente aquela Casa, então eu preciso pensar. Marcamos novo encontro, na segunda-feira seguinte, em Brasília. Era um sábado. Na manhã de segunda-feira, nos encontramos, fomos ao palácio e o presidente me fez o convite. Eu disse ao presidente que o convite muito me honrava. Iria constar do meu currículo. Mas, acrescentei, que eu tinha, ainda, um compromisso com a magistratura, com a Justiça Eleitoral. E ele dizia para mim: “Sei que o senhor tem planos que podem ser úteis no Ministério da Justiça.” Tinha e tenho planos de ação, por exemplo, no campo da segurança pú-blica, do que o presidente sabia, porque eu trocara ideias com ele a respeito.

[C P] — É, o Ministério da Justiça do Fernando Henrique foi bas-tante complicado, porque foi uma mudança ministerial atrás da outra.

[C V] — Foi.

[C P] — Muitos ministros durante pouco tempo. A descontinui-dade administrativa foi bastante intensa.

[C V] — Exatamente. E eu disse a ele: “Presidente, se fosse o pri-meiro ano do seu mandato, eu aceitaria.”

[C P] — É, já estava nos estertores do governo.

[C V] — Eu tinha e tenho planos de ação principalmente no que toca à segurança pública. Acho que a questão da segurança pública é muito importante. Começaria, por exemplo, por re-alizar, em Brasília, em Belo Horizonte, em São Paulo, no Rio e em outras capitais, simpósios e seminários com os melhores especialistas nessa matéria e na área. É dizer, debateríamos o que precisaria ser feito, neste país, para propiciar segurança ao

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cidadão. A insegurança é enorme. No Rio de Janeiro, em São Paulo, nas grandes cidades – agora até nas pequenas – as pes-soas são assaltadas nas ruas, em restaurantes, nas portas de suas casas, algumas são mortas por bandidos.

[C P] — E esse momento é um momento de muita insegurança, de um sentimento muito forte de insegurança.

[C V] — Naquele tempo os sequestros se sucediam. Eu tinha conversado com o presidente, algumas vezes, a esse respei-to, sobre o que eu pensava que devia ser feito. Ele me dizia, ao fazer-me o convite: “O senhor vai realizar os seus planos. Dá tempo.” Eu dizia: “Não dá, presidente. Somos amigos, vamos continuar amigos, eu não teria tempo suficiente para realizar o que penso e eu tenho, ainda, um compromisso com o Judiciá-rio.” Eu tenho certeza de que o presidente Fernando Henrique, pela sua formação, compreendeu os meus motivos.

[C P] — Sim.

[C V] — O convite muito me honrou. Mas eu não teria tempo para realizar o que entendia que devia ser feito e, ademais, tinha compromisso, ainda, com o Judiciário, com a Justiça Eleitoral, compromisso que cumpri. Presidi, pela segunda vez, o TSE, em 2005, até aposentar-me, compulsoriamente, em 2006.

[C P] — E presidiu também o referendo das armas...

[C V] — Também, em 2005.

[C P] — ... que é uma questão importante.

[C V] — Muito importante. Em cerca de meia hora tivemos o re-sultado do referendo, no país inteiro.

[C P] — E que não foi... Apesar de os dois lados estarem bastante con-flitados, a favor e contra, não chegou a ter nenhum grande problema.

[C V] — Nenhum problema, nenhum recurso. A urna eletrônica é realmente fantástica. Ela afasta a mão humana da apuração.

163Carlos Velloso

Não há fraude, não há impugnação, não há recurso. E tudo feito com rapidez.

[C P] — E as mudanças no Supremo, com a entrada dos novos?

[C V] — Foram muito bem recebidos, como não poderia deixar de ser.

[C P] — Sim, claro.

[C V] — Eu já conhecia e tinha amizade com o Cezar Peluso, de-sembargador em São Paulo e que foi um dos primeiros a ser nomeado. Eu o conheci desembargador, em São Paulo, e o ad-mirava como magistrado e jurista. Nomeação acertadíssima. O Carlos Ayres já era, também, um bom amigo, que me foi apre-sentado pelo professor Geraldo Ataliba, quando o Carlos Ayres fazia o doutorado na PUC de São Paulo. Ele era amigo do Geral-do Ataliba. O doutorado do Ayres foi feito na época que o Atali-ba era o reitor da PUC. Tenho pelo Carlos Ayres, que o Ataliba chamava, carinhosamente, de Carlinhos, e que dizia tratar-se de pessoa boa, generosa e de caráter, grande estima e admiração. O Joaquim Barbosa também já era meu amigo, de quem fui exami-nador no concurso para procurador da República. Tive o prazer de conhecer – eu lecionava na UnB, na época – o seu projeto de doutorado, na Sorbonne, projeto que foi aprovado pelo CNPq.

[C P] — Mas, assim, em termos de continuidade administrati-va. Porque aí eles ainda não sabem como funciona o tribunal. E nesse sentido da dinâmica dos julgamentos, do aprendizado que eles tiveram que passar...

[C V] — Foi rápido, muito rápido.

[C P] — Foi rápido? E nenhuma grande...?

[C V] — Não, não.

[C P] — [Nenhuma] maior questão?

[C V] — O novato, quando chega ao Supremo, fica, de certa

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forma, meio inibido. O José Guilherme Villela, que eu cha-mava de príncipe dos advogados que militavam no Supre-mo, brincava que o novato era como o galo novo numa rinha, que é bicado pelos mais velhos. O advogado José Guilherme Villela, grande advogado, foi ministro do TSE, classe dos ad-vogados, acabou covardemente assassinado. Grande perda para o Direito. [O José Guilherme] Na minha opinião, foi o maior advogado especialista em Supremo Tribunal, ele e o José Paulo Pertence. Eles vieram muito cedo para Brasília, no início de Brasília, e tinham fascinação pelo Supremo: assistiam a todas às sessões, de tudo participavam. Ambos foram secretários jurídicos – nome que se dava ao assessor – de ministros do Supremo. E o José Guilherme dizia, brin-cando, como já mencionei: “Aqui, o novato entra e é como entrar numa rinha de galos; ele é bicado por todos.” [risos] Eu acho até que o José Guilherme exagerava. Isso não ocor-ria assim. Ele dizia que o ministro mais antigo começa a provocar, para ver como é que o novato reage, se ele conhece mesmo o tema, se estudou bem o processo: “Por favor, Vos-sa Excelência poderia prestar-me um esclarecimento?” Se o ministro não estiver muito seguro...

[C P] — E isso acontece mesmo nas sessões?

[C V] — Acontece. E como acontece. Se ele não estiver, como se diz, em Minas, seguro nos arreios, cai do cavalo. [risos] Então, os primeiros meses do ministro novato são de muita tensão, eu passei por isso. Principalmente se ele não foi juiz. Não é o caso, por exemplo, do Peluso, que era desembargador. Ou do Eros Grau, jurista e professor renomado e acostumado ao debate, do Carlos Ayres, que era advogado, procurador e professor, e do Joaquim, que tinha tido participação intensa no Ministério Público Federal e também lecionava, no Rio.

[C P] — O debate acontece, então.

165Carlos Velloso

[C V] — Acontece.

[C P] — Ou seja, essa ideia de que... eu tenho a minha convicção e, na verdade, pouco importa o que o par me fala...

[C V] — Não, isso não existe.

[C P] — Não existe?

[C V] — Exatamente, não existe isso.

[C P] — Eu preciso te ouvir para formar a minha convicção. É isso?

[C V] — Não, não. O ministro, principalmente quando é relator, chega à sessão de julgamento com a convicção formada. Em Conselho, sim, pode haver pedido para esclarecimento de dú-vida, o que não ocorre em todos os casos. No Supremo, minis-tro não ensina nada a ministro. O que não impede, entretan-to, de ficar o ministro atento aos argumentos do colega, para acompanhar o seu voto ou para divergir.

[C P] — O que um ministro do Supremo... Como é que ele consegue definir o que é relevante?

[C V] — Ah! Você vê logo se a questão é relevante ou não.

[C P] — Mas, assim, explica... Eu sou completamente leiga. Expli-ca um pouco.

[C V] — Por exemplo, as privatizações. A privatização das teleco-municações, a privatização da Usiminas, a privatização da Vale são questões de relevância. Porque você questiona, inclusive, a decisão política que foi adotada pelo governo: essa foi a melhor decisão para a Nação, para o Brasil? Nesse sentido, o Supremo é um tribunal político, que não pode, por exemplo, homologar algo que seria flagrantemente contrário ao interesse nacional, ao in-teresse coletivo. O Supremo percebe isso. O ministro chega ao Supremo com larga vivência com o Direito, com as questões polí-ticas. Ele não nasceu ontem, ele teve longa carreira como juiz, ou foi advogado militante, ele é um jurista, alguns foram, além de ju-

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ristas, parlamentares, ministros de Estado. É claro que homens com esse currículo não ficam adstritos apenas aos códigos. O Su-premo é, também, tribunal político, político, vale repetir e acen-tuar, no sentido próprio da palavra, no sentido grego do termo.

[C P] — Mas a relevância, então, é uma sensibilidade? Seria isso?

[C V] — Ah, sim.

[C P] — Uma sensibilidade para sentir, inclusive, o que pensa a sociedade?

[C V] — O ministro acompanha, por exemplo, pela mídia, a tra-mitação do projeto, as discussões, os protestos ou os aplausos de setores da sociedade. Enfim, ele deve conhecer a Constitui-ção viva, a Constituição real. Daí a importância do ato de es-colha do ministro do Supremo Tribunal Federal. Ele há de ser um homem de ideias progressistas, porém, que saiba conciliar o novo com o tradicional, um homem de visão.

a sabatina para o StF

[i n] — Aproveitando isso que o senhor está falando, ministro, da escolha do... Como é que foi a sua experiência de sabatina? Por-que tem a sabatina.

[C V] — Foi boa.

[ i n] — Como é que foi a sua? Porque o senhor falou essa questão do conhecimento do jurídico e do político. Como foi a sua experi-ência de sabatina e essa questão da avaliação, da escolha?

[C V] — A minha sabatina foi das primeiras depois da Consti-tuição de 1988. Foi a Constituição de 1988 que estabeleceu a sabatina. Eu achei que ela foi útil. Os senadores quiseram sa-ber, por exemplo, a respeito de posições minhas com relação ao Judiciário. Eu as expus, amplamente. O Geraldo Ataliba, re-publicano de escol, entendia que as sabatinas eram relevantes

167Carlos Velloso

e que deviam ser publicadas, o que passou a ocorrer na Revista de Direito Público, da qual ele era diretor. O Geraldo Ataliba era um eminente jurista, um republicano de fé.

[ i n] — As notas taquigráficas na íntegra?

[C V] — Sim, na íntegra. A Revista obtinha as notas taquigráficas na secretaria do Senado. As sabatinas do Pertence e do Celso foram as primeiras, penso eu, a serem publicadas. Achei, repi-to, que foi muito bom e agradável ser sabatinado pelo Senado. Os senadores são pessoas educadas. Eu lembro que o então se-nador Maurício Corrêa, que era um velho amigo desde os tem-pos de faculdade, em Belo Horizonte, estava presente e me in-dagou a respeito da advocacia, dos advogados, da atividade dos advogados. Ele era advogado militante. Ele teve uma expressão que achei interessante, a do advogado pasteiro. O que é o ad-vogado pasteiro? É aquele advogado que está, no dia a dia, na trincheira, na linha de frente, que vai, todos os dias, profissio-nalmente, ao fórum, aos cartórios, aos gabinetes dos juízes. É o advogado que sobrevive, que ganha o seu sustento e de sua fa-mília com muita luta e que é, no fundo, o verdadeiro advogado. De repente, ele é chamado a comparecer à delegacia de polícia, porque o cidadão foi preso e precisa de sua ajuda profissional. E ele vai lá, pasta na mão, e costuma sofrer constrangimentos, desrespeito por parte do delegado ou dos policiais. E ele não desiste na defesa. Eu disse, então, respondendo ao Maurício, que conhecia e respeitava o advogado pasteiro. Eu não sei se fui advogado pasteiro, mas eu fui, como estudante, ainda antes de ingressar na Faculdade, escrevente de cartório, e conheci todo tipo de advogado, do advogado famoso ao advogado que trabalhava duramente para sobreviver, para ganhar o sustento de sua família. Na minha sabatina tive oportunidade de discor-rer, também, sobre isso.

[ i n] — Teve esse tipo de pergunta.

168 História Oral dO supremO [volume 7]

[C V] — Teve sim, foi uma sabatina muito agradável.

[ i n] — Foi agradável; não foi...

[C V] — Eu discorri a respeito do Poder Judiciário e, de forma ampla, sobre a Constituição, que fora promulgada menos de dois anos antes. E deixei expresso, invocando o Pertence, que não há Constituição outra que tenha conferido ao Poder Ju-diciário tamanho valor, que tenha confiado tanto nos juízes quanto a Constituição democrática de 1988.

aposentadoria como ministro do StF

[C P] — Para finalizar, ministro, em 2006, o senhor se aposenta como ministro do Supremo, e aí o que o senhor tem feito, após a aposentadoria?

[C V] — Eu me aposentei no dia 19 de janeiro de 2006, data em que completei 70 anos de idade. No dia seguinte, eu estava sen-tado ali, na cabeceira desta mesa, começando a trabalhar como advogado. Escrevi artigo, que foi publicado na Folha de São Paulo, do dia 19 ou 20 de janeiro de 2006, intitulado “Adeus, Jamais”, adeus à Justiça jamais. Iria exercer a advocacia, a ad-vocacia como missão, na feliz invocação do advogado e profes-sor René Ariel Dotti.

[C P] — E o senhor está feliz como advogado?

[C V] — Quando se aproximava a data de minha saída, eu achava que seria degolado. Achei que ia ter...

[C P] — É muito...

[C V] — Ficava desolado. Porque foram quarenta anos na ma-gistratura, desde o primeiro grau. Todavia, com menos de seis meses de exercício na advocacia, estava contente e feliz. E a ad-vocacia, como dizia o ministro Eduardo Ribeiro, já aposentado e advogando, tem um belo efeito colateral, que são os honorários.

169Carlos Velloso

[C P] — Sente-se um vazio?

[C V] — Eu tive, o que foi fundamental, o apoio do meu filho, o Car-los Mário Filho. No dia 20 de janeiro de 2006, eu recebi, nesta sala, advogados que desejavam o meu trabalho como parecerista.

[C P] — Seu filho também é advogado?

[C V] — É advogado, advogado de sucesso. Ele me ensina a advogar.

[C P] — Seus filhos todos fizeram direito?

[C V] — Todos.

[C P] — E sua esposa?

[C V] — Também.

[C P] — Também?

[C V] — Minha mulher, Maria Ângela, mineira como eu, é pro-fessora de História.

[C P] — Ah!

[C V] — Foi para área do Direito, mas nunca deixou de ser histo-riadora, sua verdadeira vocação. Ela dizia que ia fazer o curso de Direito e que prestaria, em seguida, concurso público e, ven-cido o tempo de serviço necessário, teria uma aposentadoria razoável. Ela dizia que professor ganha muito pouco, o que é verdade. Então, depois dos filhos criados, ela fez o curso de Di-reito, prestou concurso público, foi aprovada, assumiu o cargo, trabalhou um bom tempo e se aposentou. Mulher de fibra.

[C P] — Nós ainda temos um minutinho. O senhor quer deixar al-guma mensagem?

[C V] — Quero, sim. Quero deixar uma mensagem de fé no Poder Judiciário brasileiro, nos juízes brasileiros. Nós temos cerca de quinze mil juízes de primeira instância. Assim era no meu tempo; hoje, esse número já deve ser maior. Não tenha dúvi-da: a imensa maioria, praticamente a totalidade, é composta

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de gente honesta, correta, que entrou para a magistratura me-diante concurso público, concurso de provas e de títulos, con-cursos rigorosos. Eu sei desse rigor, porque eu próprio prestei dois concursos para juiz, além do de promotor. E participei de várias bancas examinadoras. É gente que está por esse Brasil afora trabalhando com correção, com denodo. Quero manifes-tar, portanto, fé nos juízes brasileiros, no Poder Judiciário do Brasil, que tem por base gente da melhor qualidade. Há, é cer-to, os que não prestam, que não honram a toga, como, de res-to, há, em qualquer profissão. Felizmente, essa erva daninha constitui minoria que, quando descoberta, é posta na rua. Essa minoria não pode deslustrar o trabalho exercido pela grande maioria, no primeiro grau, nos tribunais de segundo grau e nos tribunais superiores. Quando eu falo em grande maioria, eu es-tou pensando em mais de quinze mil juízes de primeiro grau e cerca de dois mil de segundo grau e dos tribunais superiores. E você conta, praticamente, nos dedos das mãos, aqueles que não honram a toga. Eu penso, portanto, que o Poder Judiciá-rio merece ser acreditado pela sociedade brasileira. E temos que apoiar essa imensa maioria de juízes dignos, para que eles continuem sendo juízes na real expressão do termo e que, ape-sar dos percalços, dos sacrifícios e das incompreensões, não esmoreçam e não tenham receio de enfrentar os poderosos, seja do poder político, seja do poder econômico, e de cumprir a missão que lhes é conferida pela Constituição e pela lei, de garantidores das garantias constitucionais e dos direitos. O dia em que o juiz tiver medo, o cidadão correrá perigo. Eu acredito na magistratura brasileira.

[C P] — Muito obrigada.

[C V] — Eu tenho fé na Justiça brasileira. Muito obrigado.

[ i n] — Muito obrigada!

[C P] — Muito obrigada!

171Carlos Velloso

[F i n a L d o d e P o i M e n to]

Equipe do Projeto

5

173Carlos Velloso

CoordenaÇÃoNelson JobimFernando Fontainha

ConSeLho ConSULtiVoNelson JobimFernando FontainhaJoaquim FalcãoOscar Vilhena VieiraCelso CastroMário Brockmann MachadoJosé Reinaldo de Lima LopesDiego Werneck ArguelhesPedro AbramovayDaniel Vargas

eqUiPe FGV direito rio

PeSqUiSadorFernando Fontainha

aSSiStenteS de PeSqUiSaCarlos Victor SantosFábio AlmeidaIzabel NuñezLeonardo Sato

BoLSiStaSAlexandre Neves Jr.Amanda MartinsGabriela MacielJúlia FrançaLuciana FrattiniMárcia GoldmanThiago FilippoVerônica Otero

eqUiPe FGV direito SP

PeSqUiSadorRafael Mafei

aSSiStente de PeSqUiSaThiago Acca

BoLSiStaSBárbara GamaJullian MeloThiago Megale

eqUiPe CPdoC

PeSqUiSadoreSAngela MoreiraChristiane JallesMarco Vannucchi

aSSiStente de PeSqUiSaFabrícia Guimarães

BoLSiStaSHugo AnciãesIvan AlbuquerquePedro SalibaYasmin Curzi

Este livro foi produzido pela FGV DIREITO RIO, composto com as famílias tipográficas Corbel e Sentinel, e impresso em papel pólen bold pela gráfica J. Sholna em 2015.

ASSISTA AQUI AO VÍDEO DA ENTREVISTA!

O ministro Carlos Velloso foi entrevistado pelos pesquisadores Fernando Fontainha, Christiane Jalles de Paula e Izabel Nuñez, no dia 25 de setembro de 2012, em seu escritório, em Brasília.

9 788563 265548 >

ISBN 978-85-63265-54-8