7/22/2019 Aula 9 Denise Silvia Lara - Palmares e Cucaú
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Universidade Estadual de CampinasInstituto de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História
PALMARES & CUCAÚ
O APRENDIZADO DA DOMINAÇÃO
Silvia Hunold Lara
Tese apresentada para o concurso de Professor Titular Área de História do Brasil
Disciplina HH384 - História do Brasil I
Campinas, 2008
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II
Para meus primeiros leitores
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III
Agradecimentos
Como sempre, das maneiras as mais diversas, muita gente me ajudou a fazer a pesquisa e a escrever essa tese. A lista é longa e começa com Flávio dos Santos Gomesque, logo no início da pesquisa, em 2005, me cedeu todo o levantamento dadocumentação impressa sobre Palmares que havia realizado, doação generosa que veioacompanhada por várias dicas bibliográficas e sugestões. Ele inaugurou uma sérieenorme de contribuições que foram aparecendo, aqui e ali, muitas vezes de formasurpreendente. Agradeço muitíssimo a ele e a todos os que vieram em seguida: AdrianaRomeiro, Aldo Leoni, Bruno Feitler, Camila Loureiro Dias, Carlos Zeron, CatarinaMadeira Santos, Cristina Meneguello, Eneida Mercadante Sela, Érika Simone deAlmeida Carlos Dias, Gabriela Reis Sampaio, Hebe Mattos, Iara Lis Schiavinatto, JamesGreen, Jean-Frédéric Schaub, John Monteiro, Kittiya Lee, Mafalda Soares da Cunha,
Marcelo Mac Cord, Márcio Santos, Marcus Carvalho, Maria Fernanda Bicalho, MariaLêda Oliveira, Mariana Françozo, Mariza Carvalho Soares, Matthias Rohrig Assunção,Michael Hall, Pedro Meira Monteiro, Raphael Chambouleyron, Sean Purdy, SilvanaRubino, Stephan Palmié, Tiago C. P. dos Reis Miranda e Waldomiro Lourenço da SilvaJúnior. Mesmo que a tese tenha sido terminada, a pesquisa continua e o material que meforneceram será - prometo - melhor aproveitado.
Agradeço igualmente aos que me ouviram contar novidades, lamentar dificuldades e repetir histórias. Guardo com carinho e gratidão o simples sorriso de paciente compreensão, a lembrança simpática de mandar uma dica por e-mail ou adisponibilidade para escutar minhas idéias.
Obrigada também a Laura Peraza Mendes e Vinicius Todorov, bolsistas de Apoio
Técnico do CNPq (ela por dois anos e ele nos últimos meses), que acompanharam de perto a elaboração das tabelas, a garimpagem dos textos e as idas e vindas da pesquisa.Aos arquivistas e bibliotecários das diversas instituições em que trabalhei devo
agradecimentos especiais, pela paciência que tiveram para localizar livros, documentos einformações às vezes estranhas mas preciosas para a pesquisa. Dessa vez, também o quenão foi encontrado assumiu grande importância e a ajuda especial dos técnicos doArquivo Histórico Ultramarino, da Torre do Tombo, da Seção de Reservados daBiblioteca Nacional, em Lisboa, e da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, noRio de Janeiro foi ainda mais valiosa.
Essa pesquisa vem sendo financiada por uma Bolsa de Produtividade em Pesquisado CNPq e faz parte de um Projeto Temático da Fapesp. Contei ainda com o auxílio do
Faepex-Unicamp e da Capes para viagens para apresentar trabalhos e realizar consultasem certos acervos. Com uma bolsa da Rockefeller Foundation Resident Fellowships inthe Humanities Program at Northwestern University, pude permanecer cinco mesesnaquela universidade e usufruir da maravilhosa coleção "Africana" de sua biblioteca.Agradeço ao Jorge Coronado e aos colegas do Latin American and Caribean Studies da Northwestern University e do Center for International and Comparative Studies aacolhida e a oportunidade de discutir com eles os primeiros resultados de minhas pesquisas.
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IV
Meus colegas do Cecult, como sempre, merecem lugar especial: SidneyChalhoub, Maria Clementina Pereira Cunha, Robert W. Slenes, Fernando Teixeira daSilva, Jefferson Cano, Cláudio Batalha e Joseli Mendonça constituem um time de primeira, sempre atarefado e cheio de idéias, do qual tenho orgulho de fazer parte. Juntosfazemos projetos, seminários, conversamos, discutimos; é um privilégio poder contar
com vocês como interlocutores constantes e como parceiros de profissão. Obrigada por fazerem a vida universitária valer a pena! Todos nós devemos muito à valiosacolaboração de Flávia Peral, a quem agradeço mais uma vez. Eu não teria conseguidoescrever essa tese nos dois últimos meses se Sidney, Flávia e Fernando não tivessemdescascado os pepinos e segurado as pontas: essa vou ficar devendo para sempre!Agradeço também a meus alunos, que souberam esperar mais tempo do que o costume para que eu pudesse ler seus textos e conversar sobre suas pesquisas.
Meus familiares acompanharam de longe o trabalho, e minha mãe mostrou seuinteresse e apoio ao ler essas páginas conforme elas foram sendo escritas. Clementina meincentivou com ironia e bom-humor; Lucas e Isabel ajudaram a contar os dias quefaltavam. Sidney, apesar de todas as suas atribulações, achou tempo para assumir o posto
de revisor. Obrigada, obrigada, obrigada!Ler é atividade que implica atenção, abertura e partilha. Tenho tido a sorte de
encontrar amigos dispostos a ler, comentar e criticar o que escrevo. Agradeço o trabalhoque realizam, especialmente com relação aos textos que ainda estão "no forno",incompletos e necessitados de um olhar externo que aponte suas fragilidades e faltas. Aodedicar a tese a eles, tenho esperança de que o gesto leal e fraterno, que tanto me enchede alegria ... possa se repetir mais uma vez.
Muito obrigada!
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V
Índice
Introdução 1
Capítulo 1 - Ajustes 141. Lá e cá 142. A voz da experiência 333. Homens de palavra 474. Com fé, lei e rei 64
Capítulo 2 - Diálogos 831. A força de uma tradição 83
2. Pelas Américas 1003. Além da cultura 112
Capítulo 3 - Conjunções 1251. Os negros do Palmar 1262. Escravos para Pernambuco 1363. Guerras em Angola 1484. Sobas, vassalos e kijikos 162
Capítulo 4 - Alternativas 1791. A aldeia de Cucaú 179
2. Problemas 1953. Debates em Lisboa 2094. Guerra e paz 219
Palavras Finais 228
Anexos 237
Lista de abreviaturas utilizadas nas notas 246Fontes e Bibliografia 247
Mapas e TabelasMapa 1 - As fronteiras da escravização na África Central 145Mapa 2 - As principais rotas comerciais na África Central no século XVII 147Mapa 3 - A África Central Ocidental no século XVII 150Mapa 4 - Os mocambos de Palmares e Cucaú 192Tabela 1 - Estimativa do número de africanos desembarcados no Brasil 139Tabela 2 - Escravos desembarcados no Brasil 142
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1
INTRODUÇÃO
Quem for ao Arquivo da Universidade de Coimbra, encontrará ali um volumoso
códice, com uma bela capa de couro, que as letras douradas da lombada indicam conter
as "disposições dos governadores de Pernambuco" produzidas entre 1648 e 1696.1 Ele
faz parte da coleção intitulada Conde dos Arcos, adquirida pelo arquivo no início da
década de 1970. Dom Marcos de Noronha e Brito, sexto conde dos Arcos, quando
governou a capitania de Pernambuco entre 1746 e 1749, mandou copiar os papéis
existentes na secretaria de governo daquela capitania. O material deve ter ficado com a
família, sendo depois transferido para o arquivo.2 O volume contém cópia dos registros
das provisões, cartas, ordens e outros documentos enviados pelos governadores de
Pernambuco a diversas autoridades.3 São essas as tais "disposições", que estãoorganizadas por titular do governo, de Francisco Barreto a Caetano de Melo e Castro,
precedidas de um índice.
Um belo códice, sem dúvida. A letra do copista é clara e de fácil leitura, embora
haja páginas um pouco manchadas. O volume é raro, pois contém textos que se julgavam
perdidos, completando assim o material sobre o século XVII pernambucano guardado
pelo Arquivo Histórico Ultramarino e por outros arquivos portugueses. Se por meio
1 Disposições dos governadores de Pernambuco (1648-1696). AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31.2 Para uma avaliação de toda a coleção, ver o Guia do arquivo da Universidade. Boletim do Arquivo da
Universidade de Coimbra, vol. 1 (1973): 159. Ver também Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos
mazombos. Nobres contra mascates. Pernambuco, 1666-1715. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 14.
3 Para uma visão geral da atuação administrativa da secretaria da capitania de Pernambuco ver Josemar Henrique de Melo, A idéia de arquivo: a secretaria do governo da capitania de Pernambuco (1687-
1809). Doutorado, Porto, Universidade do Porto, 2006.
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2
desses últimos temos acesso à correspondência que seguiu para Lisboa ou que lá foi
produzida sobre Pernambuco, com os códices da coleção Conde dos Arcos podemos ler
as ordens expedidas "para dentro" da capitania ou as cartas e avisos enviados para o
governo do Estado do Brasil, sediado na Bahia. No verso da folha 334 daquele códice está a cópia de um "papel" enviado por
Aires de Souza de Castro a Gangazumba.4 Datado de 22 de junho de 1678, o documento
não parece destoar de todos os outros, mas certamente chama a atenção por seu
destinatário que, como se sabe, foi um dos líderes de Palmares.
O tal papel não é exatamente uma carta, nem uma provisão ou um aviso, pois não
segue as regras formais desses tipos documentais. Também não foi escrito para
simplesmente comunicar-se com alguém, determinar alguma providência ou chamar a
atenção sobre um procedimento administrativo. O texto foi redigido para avisar
Gangazumba que o governador Aires de Souza de Castro, em nome do príncipe de
Portugal, lhe remetia "o bem da liberdade e [o] perdão" por ter vivido "há tantos anos
fora da [sua] obediência". A concessão se justificava pelo fato de o governador e os
"filhos e família" do destinatário terem acertado que "todos os negros [dos] Palmares e os
mais potentados deles" viriam, em paz, se instalar na aldeia de Cucaú. É, assim, ao
mesmo tempo, um aviso das negociações realizadas e o documento que selava o
compromisso assumido pelas partes.Trata-se, sem dúvida, de um texto oficial do governo da capitania de
Pernambuco. Como tantos outros documentos registrados naquele códice, o governador
dirige-se a seu destinatário com deferência e emprega a fórmula usual nas comunicações
entre autoridades. O tom geral, contudo, não é nada ameno e as frases são um pouco
confusas para o leitor moderno. Apesar de louvar a "luz" que levou Gangazumba a enviar
seus filhos para se colocarem aos pés do governador, a pedir perdão por terem vivido
tantos anos em "desobediência", o primeiro gesto de Aires de Souza de Castro é ameaçar
o destinatário com uma guerra sem quartel se as promessas assinaladas no tal papel não
forem cumpridas no prazo estipulado. Para ele, não havia a "menor dúvida" sobre o que
4 Aqui e em toda a tese a grafia dos nomes próprios (de pessoas e lugares) foi atualizada. Na transcriçãodas fontes, a grafia das palavras também foi atualizada, assim como foram desdobradas as abreviaturas ea pontuação foi alterada o mínimo necessário, para facilitar a leitura.
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havia sido concedido: devolvia a mulher e os filhos de Gangazumba que haviam sido
presos; alforriava Amaro e João Mulato, assim como todos os nascidos nos Palmares; e
concedia o sítio de Cucaú para que todos pudessem ali fazer suas aldeias, plantar e ter os
mesmos lucros que os demais vassalos de Portugal. Em troca, Gangazumba devia secomprometer a viver em paz e obediência e a entregar todos os negros que haviam fugido
para Palmares. Para explicar as "conveniências e a firmeza de todo esse papel" o
governador remetia dois soldados honrados e experientes, que falavam a língua dos
Palmares, e terminava prometendo enviar padres para que pudessem aprender a doutrina
cristã, e a viver e morrer pela fé de Cristo.
Essa não é a única comunicação enviada por Aires de Souza de Castro a
Gangazumba: há ainda duas outras cartas, datadas de 24 de julho e 12 de novembro do
mesmo ano, que vão copiadas mais adiante naquele códice. E mais outra, de 12 de
novembro, para Gangazona, irmão de Gangazumba. Elas seguem as regras que
caracterizam textos desse tipo e mencionam a troca de cartas e presentes. Isso não
significa que em tão breve tempo laços de amizade, como entendemos hoje esse
sentimento, tenham se desenvolvido entre aqueles homens - mas sim que estamos diante
de textos que seguem os rituais da escrita administrativa e do diálogo entre autoridades
com crédito e poder equivalentes. É exatamente por serem documentos oficiais que
foram registrados pela secretaria de governo de Pernambuco e aparecem naquele códiceda coleção Conde dos Arcos.5
A leitura desses documentos suscita, de imediato, muitas perguntas. Como
explicar que um governador de uma das mais importantes capitanias do Estado do Brasil
no século XVII se corresponda com chefes de mocambos formados por escravos
fugidos? Em que condições aqueles textos foram escritos? O que significam as palavras e
expressões que empregam? Que novidades trazem sobre a história de Palmares e da
aldeia de Cucaú? Por que essa documentação permaneceu até hoje coberta pelo silêncio?
Algumas respostas podem parecer simples.
5 Os mais ávidos por novidades podem ir diretamente ao final da tese e ler a íntegra desses documentos nosanexos 1, 2, 3 e 4. Aviso logo que, além de matar a curiosidade, o gesto de pouco adiantará. Talvez sejamelhor ter um pouco mais de paciência e procurar saber por que aquele papel e essas cartas merecemtanto destaque.
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Esses documentos não foram incorporados na análise da história de Palmares
porque estão disponíveis há não muito tempo. De fato. Embora a coleção já esteja
acessível aos pesquisadores há três décadas, ainda são poucos os que têm utilizado esse
material.6
Há contudo uma cópia do tal papel que foi remetida a Portugal em junho de1678, junto com uma carta do governador de Pernambuco, escrita no dia 22 daquele mês.
Ficou guardada entre os papéis do Conselho Ultramarino, abrigados durante muito tempo
na Seção Ultramarina da Biblioteca Nacional de Portugal, e hoje está guardada em uma
das caixas dos documentos avulsos vindos de Pernambuco no Arquivo Histórico
Ultramarino.7 Esse conjunto documental, ao contrário do que se encontra em Coimbra, é
bastante conhecido e vem sendo consultado sistematicamente desde meados do século
XIX.
Depois da criação dos Institutos Históricos, os historiadores passaram a investir
na busca de fontes inéditas em arquivos brasileiros e portugueses, a fim de construir a
história nacional. Os primeiros documentos sobre Palmares foram publicados nas revistas
dos institutos históricos;8 em seguida, os mais importantes foram reproduzidos em
anexos de obras dedicadas a analisar a história do que passou a ser conhecido como o
maior quilombo da história do Brasil.9 Por duas vezes, em 1938 e 2004, foram editadas
coletâneas que reuniram centenas de outros textos coletados em diversos arquivos.10 Uma
6 Apesar de referenciada pelo "Guia do arquivo da Universidade" desde 1973, a coleção tem sidoconsultada apenas por alguns especialistas da história pernambucana. Eu a descobri por meio de EvaldoCabral de Mello, em A fronda dos mazombos. Ele mesmo indica que foi J. A. Gonsalves de Mello arevelar "a existência de tão importante coleção, que ele foi o primeiro a consultar, pouco depois da suaaquisição pela Universidade de Coimbra nos anos 70". E. C. Mello, A fronda dos mazombos, p. 14.
7 "Cópia do papel que levaram os negros dos Palmares". Doc. anexo à carta do governador Aires de Souzade Castro de 22 de junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116 (Todas as referências àdocumentação desse arquivo, tratada pelo Projeto Resgate seguem a nova notação instituída por ele).Pode-se ler a íntegra do texto no Anexo 5.
8 O primeiro documento sobre Palmares a ser publicado foi a "Relação das guerras feitas aos Palmares dePernambuco no tempo do governador dom Pedro de Almeida de 1675 a 1678 (M. S. offerecido pelo
Exm. Sr. Conselheiro Drummond)". RIHGB, 22 (1859): 303-329. Dentre as outras publicações, ver, por exemplo, João Francisco Dias Cabral, "Narração de alguns sucessos relativos à guerra dos Palmares de1668 a 1680", RIAGA, 7 (1875): 165-187; João Blaer, "Diário de viagem do Capitão João Blaer aosPalmares em 1645" [trad. de Alfredo de Carvalho]. RIAHGP , 10 n. 56 (1902): 87-96; Barão de Studart,"Dezenove Documentos sobre os Palmares pertencentes à Collecção Studart" RTIC , 20 n. 20 (1906):254-289.
9 É o caso de Edison Carneiro, O quilombo dos Palmares, 1630-1695. São Paulo, Brasiliense, 1947, pp.187-246.
10 Ernesto Ennes, As guerras nos Palmares: subsídios para a sua história. São Paulo, Cia. Ed. Nacional,1938. A publicação no Brasil foi precedida por uma edição mais simples, em Portugal: Ernesto Ennes,
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terceira compilação chegou a ser organizada, mas não foi publicada.11 Apesar dessas
iniciativas, o tal papel nunca foi incluído em qualquer dessas publicações. Nas obras que
tratam da história de Palmares, até hoje, este documento também não recebeu atenção
suficiente. Apenas Ivan Alves Filho, em 1988, citou algumas de suas frases, sem lhededicar mais que um parágrafo.12 Essa falta de interesse também pode ser rapidamente
explicada.
Desde o século XVIII, Palmares foi incorporado à história do Brasil - ou da
América portuguesa - como um episódio carregado de sentidos. Na História da América
Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pita, a destruição de Palmares aparece com um dos
feitos importantes do governo de Caetano de Melo e Castro, uma vitória gloriosa,
conseguida "com valor" e "com fortuna".13 O modo como esse autor descreveu os
mocambos e a ênfase dada à batalha final contra tão poderosos inimigos marcaram toda a
historiografia posterior, fornecendo-lhe uma chave interpretativa. A comparação com as
guerras servis na Roma antiga e a versão do suicídio heróico de Zumbi presentes em sua
obra ecoam em muitas outras posteriores, como em Loreto Couto, Southey, Handelmann
e Varnhagen.14
Ao longo do século XIX, os membros dos institutos históricos de Pernambuco e
Alagoas abordaram Palmares como um evento importante da história daquelas
Os Palmares: subsídio para a sua história. Lisboa, [Sociedade Nacional de Tipografia], 1937. DécioFreitas, República de Palmares. Pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII .Maceió, Edufal, 2004. Para uma avaliação das fontes mais usadas pelos estudiosos vide Gérard Police,Quilombos dos Palmares. Lectures sur un marronnage brésilien. Guyane, Ibis Rouge, 2003, pp. 33-36.
11 Ernesto Ennes, Os primeiros quilombos (subsídios para sua história). S.l.e., s.e., 1938. Obra inédita, pertencente à Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
12 Ivan Alves Filho, Memorial dos Palmares, Rio de Janeiro, Xenon, 1988, p. 91.13 Sebastião da Rocha Pita, História da América portuguesa [1730], São Paulo, EDUSP/Itatiaia, 1976, pp.
213-219. Rocha Pita chega a insinuar que o "fim tão útil como glorioso [que] teve a guerra (...) aosnegros dos Palmares" foi um dos elementos levados em conta para que o governador de Pernambucoobtivesse posteriormente o "superior lugar de vice-rei da Índia" (p. 219). A mesma referência é feita por
Domingos Loreto Couto, que deve ter Rocha Pito como fonte. Cf. "Desagravos do Brasil e glórias dePernambuco" [1757] ABN , 25 (1903): 194.
14 Vide, por exemplo, D. L. Couto, Glórias de Pernambuco e desagravos do Brasil , pp. 187-194; RobertSouthey, História do Brasil [1810-19] (trad.) 4ª. ed. São Paulo, Melhoramentos/MEC, 1977, vol. 1, pp.361-362 e vol. 3, pp. 19-23; Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil [1854] 7ª. ed. SãoPaulo, Melhoramentos, 1962, vol. 3, pp. 231, 258-259; Gottffried Heinritch Handelmann, História do
Brasil [1860] (trad.) 2ª. ed. São Paulo, Melhoramentos/MEC, 1978, pp. 308-310. Para um balanço domodo com que diversos autores oitocentistas abordaram a escravidão e os movimentos protagonizados
por negros ou escravos, incluindo o quilombo de Palmares, vide Clóvis Moura, As injustiças de Clio. O
negro na historiografia brasileira. Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1990, especialmente pp. 61-181.
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províncias, enaltecendo a atuação das tropas locais. Logo os paulistas contra-atacaram,
para valorizar o feito dos bandeirantes na destruição dos mocambos.15 Varnhagen, por
exemplo, privilegiou as realizações de Domingos Jorge Velho, enquanto o Instituto
Arqueológico e Geográfico Alagoano creditava a vitória a Bernardo Vieira de Melo,considerado um herói da história nordestina por sua atuação na chamada Guerra dos
Mascates.16 O debate se prolongou pelo século XX, especialmente com obra de Affonso
de Taunay, que fez pender a balança para os feitos dos paulistas. 17 Os mocambos podiam
ser vistos com certa simpatia, apesar de seus barbarismos, mas o sentido geral dessas
narrativas era enaltecer as personalidades locais que haviam eliminado um incômodo
obstáculo à obra da colonização, à ordem pública ou ainda ao desenvolvimento do país.
Havia, paralelamente, uma valorização de Palmares como símbolo da liberdade;
nesse caso, o destaque cabia à resistência dos mocambos e não a seus destruidores. A
literatura abolicionista, por exemplo, deu a Palmares e ao episódio do suicídio de Zumbi
"a importância de epopéia da liberdade, de sublimação de uma raça redimida no
sacrifício e na insubmissão", para usar a expressão de Pedro Calmon18. Joaquim Nabuco,
em manuscrito de 1870, apesar de considerar Palmares "uma das lendas pernambucanas",
"um fato isolado na nossa história", salientou o heroísmo da "única tentativa dos negros
entre nós para se emanciparem"19. Castro Alves, em agosto de 1870, escreveu um poema
15 Para uma análise pormenorizada da produção publicada pelos institutos históricos sobre Palmares, ver Andressa Mercês Barbosa dos Reis, Zumbi: historiografia e imagens, Mestrado, Franca, Unesp, 2004,
pp. 44-67 e 73-82.16 O debate entre Varnhagen e o Instituto de Alagoas, ao longo do século XIX, foi analisado por A. M. B.
Reis, Zumbi, pp. 48-50.17 Taunay considerava que a vitória bandeirante havia eliminado "o grande quisto de escravos rebeldes e
fugidos", o "baluarte da libertação de uma raça cuja sujeição decorria todo o sistema econômico do
Brasil". Ernesto Ennes, que o seguiu de perto, considerava a destruição dos mocambos uma "miniatura"do processo de ocupação metódica e colonização sistemática das vastas florestas e do extenso territórioempreendido pelos portugueses nas Américas. Affonso de Escragnole Taunay, História geral das
bandeiras paulistas. Tomo 7. São Paulo, Typ. Ideal - Heitor L. Canton, 1936, p.136. Ernesto Ennes, As guerras nos Palmares. Subsídios para sua história. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1938. Ver também, do mesmo autor, "The Palmares 'republic' of Pernambuco its final destruction, 1697". The
Americas, 5 n. 2 (1948): 200-216.18 Cf. Pedro Calmon, História do Brasil , São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1941, vol. 2, p. 412, nota 3.19 Joaquim Nabuco, A Escravidão, (ed. compilada do original manuscrito por José Antonio Gonçalves de
Mello), Recife, Fundação Joaquim Nabuco/Ed/ Massangana, 1988, pp. 106-109.
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apaixonado, saudando aquele "ninho d'águias atrevido" que, numa "região de valentes",
soltou "a flâmula agitada (...) nas ondas da escravidão"20.
Ao longo do século XX, Palmares foi predominantemente caracterizado como
uma das maiores "epopéias da raça negra", como a chamou Nina Rodrigues.21
Em grande parte, essa avaliação acompanhou o movimento mais amplo em prol do reconhecimento
das contribuições africanas e negras para a história do Brasil, que tendeu ora a enfatizar
as características africanas de Palmares, ora as lutas empreendidas pelo negro
brasileiro.22 Palmares foi então se tornando um evento de significado nacional,
associando-se a outros grande feitos da história pátria.
No final dos anos 20, Jayme de Altavilla considerava que Palmares, "uma
federação de estados livres dentro do Estado", havia sido "o primeiro grito de república
no Brasil (...) o vaticínio de 13 de maio de 1888 e de 15 de novembro de 1889". 23 No
primeiro congresso Afro-Brasileiro, reunido no Recife em 1934, Alfredo Brandão
proclamou que o quilombo era "o mais alto feito de heroísmo da raça africana (...) o
primeiro protesto do bárbaro sofredor (...) o primeiro grito de independência do Brasil",24
enquanto Mário Melo defendia ser preciso “relembrar a epopéia desses negros que
lutaram contra a escravidão durante mais de três quartos de séculos”.25
20 O poema "Saudação a Palmares" não chegou a ser publicado antes de sua morte, mas foi posteriormenteincluído na coletânea Os Escravos. Ver, a respeito, o interessante artigo de Dale T. Graden, "História emotivo em 'Saudação a Palmares' de Antônio Frederico de Castro Alves (1870)" Estudos Afro-Asiáticos,25 (1993): 189-205.
21 Nina Rodrigues, "As sublevações de negros no Brasil anteriores ao século XIX. Palmares" Os africanos
no Brasil. [1905]. 5ª ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1977, p. 71. A tradição de umaabordagem épica da história de Palmares torna-se evidente no título original escolhido por NinaRodrigues para o artigo, "A Tróia Negra", publicado no Diário da Bahia em 20, 22 e 23 de agosto de1905. O epíteto fora cunhado por Martins, [Joaquim Pedro de] Oliveira, O Brasil e as colónias
portuguesas. [1880] Lisboa, Guimarães & C. ª Editores, 1953, p. 64.22 Vide Arthur Ramos, A aculturação negra no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1942, pp.
137-140.23 Jayme de Altavilla [Amphilophio de Mello], "A Redempção dos Palmares" RIAGA, 11 (1926): 62-63.
Nesse artigo, Altavilla conclama a necessidade de retirar as pedras das ruínas da cerca palmarina quevisitou em 1921 para com elas fazer um monumento "em qualquer logradouro de nossa linda terra", emhomenagem à "epopéia rubra que remontou os séculos e ficará perpetuamente na história da formação doBrasil. (pp. 65-6)
24 Alfredo Brandão, "Os negros na história de Alagoas". Estudos Afro-Brasileiros. Trabalhos apresentados
ao 1 Congresso Afro-Brasileiro reunido no Recife em 1934, 1º vol. Rio de Janeiro, Ariel, 1935 (ed facsimile Recife, Fundaj/Ed. Massangana, 1988), p. 60.
25 Mario Mello, "A República dos Palmares". Estudos Afro-Brasileiros. Trabalhos apresentados ao 1
Congresso Afro-Brasileiro reunido no Recife em 1934, 1º vol. Rio de Janeiro, Ariel, 1935 (ed fac simileRecife, Fundaj/Ed. Massangana, 1988), p.185.
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Depois da publicação da obra de Edison Carneiro, em 1947, essa vertente se
tornou hegemônica. Palmares passou a ser, ao mesmo tempo, "um Estado negro à
semelhança dos muitos que existiram na África, no século XVII"26 e um exemplo da
"reação do homem negro contra a escravidão". Durante muito tempo, o texto de Carneiroconstituiu a principal referência para os que queriam conhecer a história de Palmares, no
Brasil e no exterior.27 Tanto para os que concordavam com suas posições, como até
mesmo para aqueles que se afastavam de suas escolhas políticas, como Mário Martins de
Freitas.28
A senda libertária e militante aberta por Carneiro foi fortalecida nos anos 50, mas
a ênfase nos aspectos culturais ou étnicos foi perdendo importância diante dos
significados políticos que a história palmarina adquiriu. Palmares se tornou um símbolo
da reação dos cativos à escravidão, destacado por sua resistência e pela tenacidade de
suas lideranças.29 Nos anos 60, com Luiz Luna e Alípio Goulart, Palmares continuou a
fazer parte do quadro maior das lutas contra a escravidão.30 Nos livros publicados por
esses dois últimos autores, a queima de documentos ordenada por Rui Barbosa foi usada
para atestar as dificuldades dos estudos sobre a escravidão negra, "um fenômeno social e
econômico dos mais relevantes da vida nacional".31 Assim, abordar essa história da
resistência negra, bem como glorificar seus heróis tornava-se um ato político, de
reconhecimento e solidariedade para aqueles que contribuíram "com trabalho, suor e
26 Edison Carneiro, O Quilombo dos Palmares [1947] 2ª ed. revista. São Paulo, Brasiliense, 1958. Asexpressões citadas encontram-se em um artigo posterior, "Singularidades dos quilombos", publicadooriginalmente em 1953 e reproduzido nessa edição, pp. 13-25.
27 Ver, por exemplo, Irene Diggs, "Zumbi and the Republic of Palmares". Phylon, 14, n. 1 (1953): 62-70. Oartigo é praticamente um resumo da obra de Carneiro, fato explicitamente reconhecido pela autora (p.64).
28 Mario Martins de Freitas, Reino Negro de Palmares [1954]. 2ª ed. Rio de Janeiro, Biblioteca doExército, 1988.
29 Exemplos dessa perspectiva são as obras de Clóvis Moura, "O quilombo dos Palmares" Rebeliões da
Senzala. Quilombos, insurreições, guerrilhas. [1959] 2ª ed. revista e ampliada Rio de Janeiro, Ed.Conquista, 1972, pp. 179-190; e Benjamin Péret, "Que foi o quilombo de Palmares?" [1956] in: O
quilombo dos Palmares, Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2002.30 Luiz Luna, "República dos Palmares" O negro na luta contra a escravidão. [1968] 2ª ed. revista Rio de
Janeiro, Catedral de Brasília/INL, 1976, pp. 217-238. José Alipio Goulart, Da fuga ao suicídio. Aspectos
da rebeldia do escravo no Brasil . Belo Horizonte, Conquista, 1972, pp. 223-228.31 L. Luna, "República dos Palmares", p. 21 e J. A. Goulart, Da fuga ao suicídio, p. 11.
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sangue para ajudar a formar um povo livre e uma nação respeitada como fatalmente terá
de ser o Brasil".32
A obra de Décio Freitas, publicada em 1973, revista e ampliada várias vezes até
sua quinta edição em 1985, é o ponto culminante dessa forma de abordar a história dePalmares.33 Seu livro se constrói como um esforço crítico destinado a reparar os erros do
"revisionismo histórico", que ignorou a resistência escrava, e a descrever o ímpeto de
uma luta que poderia servir de exemplo para militantes e revolucionários. Seguindo as
pegadas de Carneiro e Péret, Freitas alarga e aprofunda o caráter épico da história de
Palmares, entendido como "a manifestação mais eloqüente do discurso anti-escravista
dos negros brasileiros nos quase três séculos da escravidão".34 A obra de Ivan Alves
Filho dá continuidade a essa corrente: nela Palmares ("nossa primeira luta de classes")
aparece como "uma alternativa à sociedade oficial", uma primeira tentativa de romper
com a ordem colonial, por meio da qual os escravos conseguiram construir "um mundo
fraternal e livre", que marca o início da luta pela abolição.35
Durante o século XIX, acreditava-se que Zumbi era um título atribuído aos chefes
palmarinos e que o último deles, juntamente com outros guerreiros, havia se jogado em
um abismo, para evitar ser preso e reescravizado pelas forças lideradas por Bernardo
Vieira de Melo e Domingos Jorge Velho.36 No início do século XX, os estudiosos
documentaram sua morte em uma emboscada em 20 de novembro de 1695 e aos poucos,sua figura foi se tornando central na história de Palmares.37 Antes, como depois, pelo
gesto do suicídio heróico que recusa a escravidão ou pela resistência tenaz vencida só às
custas de uma traição, Zumbi se tornou o grande herói das lutas dos negros no Brasil.
Caracterizado quase sempre como um jovem "enérgico, resoluto, [e] obstinado",38 ele
32 L. Luna, "República dos Palmares", p. 31.33 Décio Freitas, Palmares. A guerra dos escravos. [1973]. 5ª ed. reescrita, revista e ampliada. Porto
Alegre, Mercado Aberto, 1984.34 D. Freitas, Palmares, p. 210.35 Ivan Alves Filho, Memorial dos Palmares, Rio de Janeiro, Xenon, 1988, pp. xii-xiii..36 Para um balanço da história da construção da figura histórica de Zumbi, ver A. M. B. Reis, Zumbi:
historiografia e imagens.37 O suicídio de Zumbi foi popularizado pela obra de Sebastião da Rocha Pita, que serviu de fonte para
diversas autores no século XIX e XX. Documentos publicados na Revista do Instituto Arqueológico eGeográfico Alagoano em 1904 e 1906 e a obra de Nina Rodrigues questionaram definitivamente essaversão. Vide, a respeito, A. M. B. Reis, Zumbi, especialmente capítulo 3.
38 E. Carneiro, O quilombo dos Palmares, p. 80.
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chegou a ser considerado o "Espártaco negro de Palmares",39 que se recusou a qualquer
acordo com as autoridades coloniais, optando por uma luta bem organizada e
incansável.40
Em 1978, a data de sua morte foi instituída como Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil. Desde então, o 20 de novembro foi se tornando uma data
simbolicamente oposta ao 13 de maio: a primeira representando a luta heróica contra a
escravidão e, por extensão, pela justiça econômica e social; a outra, a liberdade precária
concedida pelo governo imperial em 1888, que levou à marginalização e à falta de
direitos a maioria dos negros no Brasil. A cada 20 de novembro, muitas marchas e
discursos contra o racismo e as restrições à cidadania dos negros podem ser vistos e
ouvidos em quase todas as cidades do Brasil. Em 1996, completando um processo
iniciado no século XIX, Zumbi passou a ser oficialmente considerado um herói nacional
e não apenas uma referência para os militantes do movimento negro, já que uma lei
determinou que seu nome fosse "inscrito no Livro dos Heróis da Pátria que se encontra
no Panteão da Liberdade e da Democracia".41 Foi a biografia elaborada por Décio Freitas
que proporcionou a base historiográfica para essa determinação legal, que até faz menção
ao nome cristão de Zumbi, Francisco.42
Diante dele, Gangazumba tornou-se um contraponto, um líder que havia avaliado
mal o jogo de forças, sucumbira ao peso da derrota e perdera prestígio entre os seus.43 Desacreditado entre seus companheiros, acabou morto numa conspiração - e também
39 D. Freitas, Palmares, p. 116.40 A. M. B. Reis, Zumbi, passim. A biografia de Zumbi foi fixada a partir das pesquisas realizadas por
Décio Freitas e apresentadas na quinta edição revisada e ampliada de seu livro em 1984. D. Freitas, Palmares, pp.116-118. Vide também, do mesmo autor, Zumbi dos Palmares. Luanda, Ministério da
Cultura, 1995. Vide também Mary Karasch, "Zumbi of Palmares: Challenging the Portuguese colonialorder." in: Kenneth J. Andrien, (ed.), The human tradition in colonial Latin America, Human tradition
around the world . Wilmington: SR Books/Scholarly Resources, 2002, pp. 104-120.41 Cf. Coleção das Leis da República Federativa do Brasil , Brasília, Imprensa Nacional, 1996, v. 188, n.
11, nov. 1996, p. 5726. Acessível emhttp://www.camara.gov.br/internet/InfDoc/novoconteudo/legislacao/republica/Leis1996vCLXXXVIIIn11p714/parte-2.pdf
42 Foi Andressa Reis quem chamou a atenção para esse detalhe. A. M. B. Reis, Zumbi, p. 5.43 Gérard Police chega a afirmar que o tratado de 1678 teria sido o "pecado capital" de Gangazumba. G.
Police, Quilombos dos Palmares, p. 257.
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perdeu o lustro entre os historiadores e militantes do movimento negro no século XX.44
Na história de Palmares, consolidada como uma saga da liberdade, as negociações
havidas em 1678 tornaram-se um episódio de menor importância, mencionado de forma
breve pelos estudiosos do tema, apenas para marcar uma virada na história de Palmares:foi a partir de sua recusa em aceitar a paz acordada com as autoridades coloniais que
Zumbi teria se afirmado como o novo líder de Palmares, caracterizando-se como "o
combatente mais indômito da liberdade de sua gente".45 Neste contexto, as negociações
ocorridas em 1678 e o acordo de paz acabaram sendo apreendidos sob o signo da traição
e Cucaú pôde até mesmo ser caracterizado como o "anti-Palmares tão esperançosamente
fundado pelas autoridades coloniais".46
Como o leitor já deve ter desconfiado, esta tese caminha justamente em sentido
contrário, ao focalizar um episódio que até hoje permaneceu nas sombras, pouco
conhecido e quase impopular. Ao invés de respostas rápidas, as perguntas suscitadas por
aqueles documentos copiados no códice da coleção Conde dos Arcos demandam mais
vagar e reflexão para que se possa ensaiar alguma explicação. Não se trata,
simplesmente, de acrescentar novos dados e completar as lacunas de uma história já tão
cristalizada e que tem os olhos voltados mais para o presente do que para o próprio
passado. Muito menos pretendo entrar no debate sobre os méritos e deméritos dos heróis
que povoam a história de Palmares. Ao focalizar os termos acordados entre os filhos deGangazumba e as autoridades em Pernambuco em 1678 e como eles puderam ser
implementados, procuro o ponto de vista dos negros dos Palmares e das autoridades
coloniais e metropolitanas. Esse caminho implica uma leitura bastante particular das
fontes disponíveis e leva a considerar aspectos que normalmente não estão presentes na
história de Palmares.
Como veremos, a análise rapidamente se afasta da simples oposição entre
escravidão e liberdade ou entre composição com as forças coloniais e resistência heróica,
para mergulhar na cultura política da segunda metade do século XVII. Para isso, é
44 Poucos historiadores dedicaram maior atenção a Gangazumba, que chegou a ser o personagem principaldo romance de João Felício dos Santos, Ganga-Zumba. [1961]. São Paulo, Edições de Ouro, s.d. - e deum filme dirigido por Cacá Diegues em 1964, intitulado "Gangazumba".
45 D. Freitas, Palmares, p. 121.46 D. Freitas, Palmares, p. 128.
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preciso deixar de pensar apenas na história de Palmares para buscar os nexos que
ligavam a experiência de muitas pessoas diferentes do ponto de vista social, cultural e
político na África Central, no Brasil e em Portugal. Tal alargamento de questões só é
possível porque os eventos de 1678 constituem, aqui, o universo empírico de umainvestigação sobre as políticas de dominação adotadas pelos portugueses nas terras
ultramarinas e sobre o modo como os habitantes desses territórios ocupados reagiram a
elas, ajudando a constituir o que genericamente é chamado de processo da colonização. É
esse o caminho para poder compreender os termos utilizados naqueles documentos e as
ações dos homens que os produziram, do modo como eles foram escritos, e os
significados que tiveram para eles. Percorrê-lo significa não apenas considerar a
escravidão, mas as formas da escravização e, sobretudo, as relações que ambas
mantinham com a liberdade, na segunda metade do século XVII.
Certamente, ao consultar novos documentos, como os que estão registrados nos
códices da coleção Conde dos Arcos, é fácil encontrar novidades. Mais importante que
isso, no entanto, é o modo de ler as fontes. Nas últimas décadas, vários autores têm
ressaltado a necessidade de levar em conta o contexto institucional de produção de cada
peça documental, as intenções do autor, os termos empregados na descrição dos eventos
e na qualificação das pessoas, e as traduções lingüísticas e culturais operadas em cada
texto.47 Todo um campo novo de indagações tem se aberto com o aprofundamento daanálise dos recursos narrativos em ação nas fontes históricas: além dos procedimentos de
construção dos textos, tem se levado em conta também as condições da escritura, o
destino dessas peças textuais e o modo como foram lidas na época em que foram
produzidas.48 Não se trata de deslocar o objeto da investigação para adentrar nos terrenos
da história da leitura ou da bibliografia, mas a atenção a esses elementos permite
47 Dentre vários autores, destaco as contribuições diferenciadas de Robert Darnton e Roger Chartier. Vide, por exemplo, Robert Darnton, "Primeiros passos para uma história da leitura" O beijo de Lamourette. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, pp. 146-172; e Roger Chartier, "Textos, impressão, leituras" in:L. Hunt (ed). A Nova História Cultural . (trad.) São Paulo, Companhia das Letras, 1992, pp. 211-238.
48 Para um balanço dos debates e principais temas abordados pela história da leitura, vide André Belo, História & Livro e Leitura. Belo Horizonte, Autêntica, 2002. Para a produção e a circulação dosmanuscritos nos séculos XVI e XVII, vide especialmente Fernando Bouza, Corre manuscrito. Una
historia cultural del Siglo de Oro. Madrid, Marcial Pons, 2001.
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aprimorar a leitura dos documentos que temos à nossa disposição, com resultados bem
interessantes.
Por tudo isso, essa tese pode ser tanto um exercício de análise daquelas quatro
disposições do governo de Pernambuco em 1678 quanto um estudo sobre os processos dadominação escravista no Brasil da segunda metade do século XVII. Ao pretender ser as
duas coisas ao mesmo tempo, é também uma oportunidade para discutir os
procedimentos da análise histórica. Para dar conta dessa tarefa, organizei o texto em
quatro capítulos, que seguem mais ou menos a cronologia dos acontecimentos.
O caminho não será longo, mas será trilhado com vagar, e levará a lugares
distantes, como Angola e o México, acompanhando o ir e vir da correspondência
administrativa que, aliás, constitui o principal conjunto documental para a história de
Palmares. O diálogo com a produção específica sobre Palmares, com a historiografia
sobre a experiência dos escravos nas Américas e sobre a história da África também estará
presente, conforme os assuntos que precisarem ser discutidos e analisados.
Mais que anunciar o percurso ou fazer promessas de uma viagem interessante,
porém, prefiro apenas convidar o leitor a, gentilmente, me seguir.
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Capítulo 1
AJUSTES
Há dois procedimentos básicos seguidos pelos historiadores para lidar com o
passado: procuramos saber o que já se produziu a respeito do tema escolhido e
consultamos o maior número de registros produzidos pelos envolvidos nos eventos
estudados. Cruzar as informações e cotejar os dados obtidos nesses dois tipos de textos é
a tarefa que vem a seguir, a partir da qual se pode ensaiar uma interpretação dos
acontecimentos e tentar desvendar os significados que tiveram para as pessoas que os
viveram.
Nem sempre, no entanto, o que se lê na bibliografia combina com o que se lê nadocumentação. Nesse caso, é preciso caminhar com cuidado, pois na maior parte das
vezes não há como chegar a um acordo ou fazer uma média. A solução para o impasse
requer o exame detalhado das fontes e do modo como elas foram usadas pelos diversos
autores. É esse o método adotado nesse primeiro capítulo, que começa pelo exame das
fontes.
1. Lá e cá
Filho de uma boa família, cavaleiro da Ordem de Cristo, com serviços militares
nas guerras de restauração e parentes que governaram praças importantes como o Rio de
Janeiro, Bahia e Angola, dom Pedro de Almeida já havia se candidatado a um posto de
governo no Ultramar várias vezes: em 1665, 1668 e 1672 pleiteara Angola, em 1669 e
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1672 o Rio de Janeiro e em 1670 Pernambuco.1 Finalmente, em julho de 1673, conseguiu
ser nomeado pelo príncipe regente para o governo de Pernambuco por um decreto régio -
procedimento que chegou a causar certo constrangimento no Conselho Ultramarino por
quebrar praxes ordinárias.2
Era um cargo de certo prestígio, pois o governador dePernambuco tinha sob sua jurisdição as capitanias anexas de Itamaracá, Alagoas, Paraíba,
Rio Grande do Norte e Ceará, administradas por capitães mores.
Como só tomou posse do governo em fevereiro de 1674, permaneceu vários
meses em Lisboa e deve ter acompanhado a discussão gerada pelo pedido feito pelo seu
antecessor em 19 de agosto de 1673. Sabendo estar no final de seu mandato, Fernão de
Souza Coutinho escrevera ao príncipe para contar os percalços havidos no combate com
os "negros levantados que assistem nos Palmares".3 Essa não era a primeira vez que
tratava do assunto.
Logo depois de tomar posse no governo da capitania, em 1671, Coutinho já havia
alertado que os fugitivos eram numerosos, estavam bem fortificados e tinham ferreiros
capazes de fazer armas, por isso ameaçavam e prejudicavam os moradores da capitania.
Nessa ocasião, o governador estava recrutando gente para atacar os Palmares, mas
precisava de uma autorização régia para usar recursos da Fazenda Real e também pedir
1 Agradeço a gentileza de Mafalda Soares da Cunha por disponibilizar as informações do banco de dadosdo projeto Optima Pars, do qual participa. Para mais informações vide Mafalda Soares da Cunha e NunoGonçalo Monteiro, "Governadores e capitães-mores do império atlântico português nos séculos XVII eXVIII" in: Nuno G. F. Monteiro, Pedro Cardim e Mafalda Soares da Cunha (orgs.), Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2005, pp. 191-252. Sobre ainsistência de dom Pedro para obter a nomeação, vide Ross Little Bardwell, The governors of Portugal'sSouth Atlantic empire in the seventeenth century: social background, qualifications, selection, and reward . Doutorado, Santa Barbara, University of California, 1974, p. 128.
2 Cf. Decreto de 23 de julho de 1673. ANTT, Manuscritos do Brasil, n. 33 (microf. 4114), fl. 23v. Cinco
dias depois o Conselho Ultramarino pronuncia-se alertando o príncipe regente que a nomeação não haviaseguido a tramitação regular. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 981. Talvez por isso, a carta patente sótenha sido expedida em 2 de setembro de 1673. ANTT - Registro Geral de Mercês, Chancelaria de D.Afonso VI, liv. 28, fl. 114v.
3 Carta de Fernando de Souza Coutinho de 19 de agosto de 1673. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 988.
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contribuições extras aos moradores.4 Sem resposta de Lisboa e da Bahia, o governador
adiou o envio da expedição que planejava fazer contra os Palmares.5
A demora não resultava do ritmo das comunicações. Na segunda metade do
século XVII, a distância entre o Recife e Lisboa podia ser mais ou menos curta,dependendo de vários fatores. Havia frotas anuais que ligavam as duas cidades, que
costumavam sair em abril de Lisboa e voltavam em geral nos meses de julho e agosto. A
viagem demorava em média 75 dias na ida e 60 na volta, conforme os ventos. Com o
tempo de estadia nos portos, entre a ida e a torna-viagem, poder-se-ia levar de sete a doze
meses para ir de Lisboa ao Recife e voltar a Lisboa.6 Os tempos são bem diferentes de
hoje, mas o regime de frotas, em vigor desde meados do XVII, permitia comunicações
bastante seguras e regulares entre as duas cidades.7
As notícias enviadas em junho de 1671 devem ter chegado a Lisboa em meados
de agosto ou setembro e foram bem discutidas no Conselho Ultramarino, que convocou
"pessoas práticas do Brasil" para avaliar a situação. Depois de muita discussão, decidiu-
se que a guerra contra os Palmares devia ser feita com tropas formadas pelos moradores
das vilas vizinhas e por tropas da infantaria paga, do terço dos índios do Camarão e dos
negros de Henrique Dias.8 Os prisioneiros deveriam ser repartidos conforme o regimento
4 Carta de Fernando de Souza Coutinho de 1º de junho de 1671. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 917.Alguns dias depois Coutinho escreveu também para o governador do Estado do Brasil, sobre o mesmoassunto. A resposta veio em 5 de setembro de 1671, reiterando a necessidade do recrutamento desoldados e comparando o perigo de Palmares aos Tapuias na Bahia. Carta de Afonso Furtado de Castrodo Rio Mendonça de 5 de setembro de 1671. DH , 9 (1929): 433-435
5 Carta de Fernando de Souza Coutinho de 1º de outubro de 1671. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 292, doc.135
6 A. J. R. Russell-Wood, Um mundo em movimento. Os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). (trad.) Lisboa, Difel, 1992, pp. 55-56.
7 Evidentemente, as comunicações entre a Coroa e o governo em Pernambuco não precisavam depender somente da ida e vinda das frotas. As cartas podiam aproveitar os vários navios que cruzavam oAtlântico passando por Recife em uma ou outra direção. As datas das cartas indicam que o sistema de
frota deve ter sido o meio mais usado, salvo em situações de emergência, como se verá em breve.8 Esses terços foram formados durante o período das lutas contra os holandeses, inicialmente comandados por Henrique Dias e pelo índio Potiguar Felipe Antonio Camarão. Este último faleceu em 1648 e foisucedido por dom Diogo Pinheiro Camarão e em seguida por dom Sebastião Pinheiro Camarão, quelutou contra os Palmares. Henrique Dias chegou a ser nomeado faleceu em 1662 e foi sucedido por Antônio Gonçalves Caldeira e, em 1682, por Jorge Luís Soares, os dois últimos nomeados mestres decampo da gente preta de Pernambuco. Cf. Juliana Lopes, "A visibilidade do primeiro Camarão no
processo de militarização indígena na capitania de Pernambuco no século XVII". Revista Ant hropológicas, 16 n. 2 (2005): 133-152; Kalina Vanderlei Silva, "Os Henriques nas Vilas Açucareirasdo Estado do Brasil: Tropas de Homens Negros em Pernambuco, séculos XVII e XVIII" Estudos de
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das fronteiras do Reino,9 e a Coroa deveria abrir mão do quinto para que fossem
repartidos entre os soldados, depois de descontado o custo das munições. De modo
algum, entretanto, os prisioneiros e os que se entregassem voluntariamente deveriam
permanecer no Estado do Brasil ou em qualquer outra conquista de Portugal. Os homensdeviam ser "marcados com um R no rosto, na parte que melhor parecer" de modo que,
achados em algum lugar, fossem logo confiscados e mortos.10 A medida era extrema e
destinava-se a impedir que os prisioneiros tornassem a fugir, engrossando novamente os
Palmares.11
As recomendações foram enviadas ao príncipe em 9 de outubro de 1671 mas, ao
que tudo indica, ele não tomou nenhuma decisão. Em Pernambuco, enquanto isso,
Coutinho enfrentava dificuldades para juntar gente, angariar mantimentos e obter
munições e acabou protelando a expedição por mais de um ano. Resolveu-se afinal
mandar o coronel Antonio Jácome Bezerra, no comando de soldados pagos e de
ordenanças, para seguirem por caminhos diferentes até os Palmares, ali se instalassem em
um arraial e combatessem os mocambos. As penas que determinou para os que
desertassem eram duras: três tratos de braço solto12 e degredo para o Ceará por dez
História, 9, n.2 (2002): 145-194. Ao longo da tese, uso genericamente os termos terços "dos Henriques"e "dos índios do Camarão" para designar genericamente essas tropas.
9 Os parágrafos 78 a 81 do Regimento das fronteiras determinam os procedimentos para repartição das prezas feitas entre os soldados, depois de descontado o quinto da Coroa. Vide Regimento das Fronteiras,29 de agosto de 1645. José Justino de Andrade e Silva, Collecção Chronologica da Legislação Portugueza Lisboa, Imprensa de J. J. A. Silva, 1854, pp. 288-289 (acessível em Ius Lusitaniae. Fonteshistóricas de Direito português. http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)
10 Estavam isentos dessa determinação as mulheres e as crianças com menos de sete anos. As discussões podem ser acompanhadas pelos anexos à carta de Fernão de Souza Coutinho de 1 de junho de 1671,mencionada acima. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 917. A consulta do Conselho Ultramarino de 9 de
outubro de 1671 traz as decisões finais do Conselho, mas não foi possível saber qual foi a decisão régia.AHU_ACL_CU_Consultas Mistas, Cod. 17.
11 Além das penas, o caráter extremo da medida inclui a permissão para remeter os escravos apreendidosem Palmares para Castela, aparentemente sem o pagamento de impostos.
12 Dar tratos de polé significa içar a pessoa pelos pulsos por meio de cordas e uma roldana fixada em umaarmação de madeira, como no caso da forca (a polé), com pesos amarrados nos pés, e depois deixá-lacair subitamente, de modo a destroncar os braços. Imagino que "três tratos de braço" seja suspender por três vezes alguém na polé. Cf. Raphael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino. Coimbra, Collegio dasArtes da Companhia de Jesus, 1712. (Ed. fac-simile, CD-Rom, Rio de Janeiro, UERJ, s.d.), verbete"polé".
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anos.13 Bezerra chegou a reunir 600 homens; todavia, mesmo com essas penas, houve
muitas deserções14 e as expedições não tiveram sucesso.
Cristóvão Lins, alcaide mor de Porto Calvo, que teve seus canaviais queimados
pelos negros fugidos, conseguiu juntar alguma gente para atacar os Palmares. Achou ummocambo com 700 casas, lutou contra eles e conseguiu entrar na povoação; teve porém
que voltar por falta de mantimentos. No final, apenas 60 prisioneiros foram entregues ao
Almoxarife da capitania. Os que haviam fugido de seus senhores foram devolvidos
mediante o pagamento de 12 mil reis, por "ser estilo antiqüíssimo nestas capitanias"; os
outros foram repartidos entre os soldados, depois de descontado o quinto da Coroa.
Segundo o governador, nenhum permaneceria em Pernambuco, pois até mesmo os
senhores haviam se comprometido a despachar os recapturados no primeiro navio.15
O tom geral da carta de 19 de agosto de 1673 era de desalento: o governo estava
terminando, as dificuldades eram muitas e Coutinho menciona não ter tido as repostas
necessárias a tempo. Dessa vez, o Conselho Ultramarino demorou um pouco mais para
analisar o assunto e, no final, acabou por reafirmar as recomendações feitas havia quase
três anos, em outubro de 1671. Não deixou de observar contudo que dom Pedro de
Almeida deveria levar as ordens necessárias para "dar [a esse negócio] a execução que
deve ser com a brevidade que ele pede, pois se acha tão retardado e ser tão preciso
acudir-se ao excesso que estes negros fazem naquelas capitanias".16 Vários historiadores insistem na preocupação existente em Lisboa com as guerras
contra os Palmares. Décio Freitas chega a dizer que elas haviam se tornado uma das
"mais importantes missões atribuídas pela Coroa aos governadores de Pernambuco".17 O
que a documentação revela, no entanto, é uma diversidade de atitudes em relação ao
assunto. Como se pode ver no caso da correspondência enviada por Fernão de Souza
13 Bando de Fernando de Souza Coutinho de 20 de outubro de 1672. "Segundo Livro de Vereações da
Câmara de Alagoas", RIAGA (1875):176-177.14 Há várias medidas contra os desertores em AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31. Ver, por exemplo, fl. 275, doc. 82.A ordem para que todos os pardos forros também fossem engajados está em AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31,fls. 275v - 278.
15 Carta de Fernando de Souza Coutinho de 19 de agosto de 1673. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 988.16 Consulta do Conselho Ultramarino de 18 de novembro de 1673. AHU_ACL_CU_Consultas de
Pernambuco, Cod. 265, fls. 2-2v.17 Décio Freitas, Palmares. A guerra dos escravos. [1973]. 5ª ed. reescrita, revista e ampliada. Porto
Alegre, Mercado Aberto, 1984, p. 97. Ver também Mario Martins de Freitas, Reino Negro de Palmares[1954]. 2ª ed. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1988, p. 222.
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19
Coutinho, ao mesmo tempo em que medidas graves eram aventadas pelos conselheiros
do Ultramarino, o príncipe não tomava nenhuma decisão efetiva. O tempo de mais um
governo havia se passado, sem que a questão tivesse sido resolvida. Lá em Lisboa e cá
em Pernambuco, os ritmos e as necessidades parecem ter sido bem diferentes. Não se conhece o teor das ordens dadas a Pedro de Almeida, mas este, logo que
chegou a Pernambuco, começou a dar providências para dar cabo da missão, relatando
seus problemas e sucessos iniciais em abril de 1674. Tratando de diversos assuntos,
aproveitou para dizer que, para ele, o melhor meio de acabar com os Palmares era
colocar os índios sob o governo de Camarão instalados à volta de Palmares, a fim de
impedir que eles descessem e fizessem assaltos e que novos fugitivos ali fossem se
refugiar.18 Trocou cartas com o governador do Estado do Brasil19 e armou tropas para
enviar aos Palmares - medidas que o Conselho não considerou suficientes, preferindo
recomendar ao príncipe que as instruções oferecidas em 9 de outubro de 1671 - aquelas
do início do governo de Souza Coutinho - fossem seguidas.20
Nesse meio tempo, enquanto em Lisboa nenhuma providência efetiva era tomada,
em Pernambuco o governador soltou um bando, em 19 de outubro de 1674, por meio do
qual finalmente anunciava uma expedição para acabar "com a insolência dos negros
levantados dos Palmares". Ela seria composta por "soldados pagos, brancos, índios,
homens pardos da ordenança e pretos do terço que foi de Henrique Dias". Para incentivar os moradores, prometia distribuir os prisioneiros entre os participantes, depois de
descontado o quinto, desde que fossem vendidos para fora da capitania, com exceção das
"crias" de dez anos.21 Ao que tudo indica, as recomendações do Conselho Ultramarino
seriam enfim aplicadas. Com certo desconto, já que o degredo era apenas para fora da
capitania.
Décio Freitas e Ivan Alves Filho mencionam, com base em referências constantes
em pedidos de mercê feitos por soldados, em datas posteriores, o envio de uma expedição
18 Carta de dom Pedro de Almeida de 30 de abril de 1674. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 1007.19 Carta de Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça de 18 de setembro de 1674.
AHU_ACL_CU_Consultas de Pernambuco, Cod. 265; e DH, 10 (1929):113-115.20 Consulta do Conselho Ultramarino de 26 de setembro de 1674. AHU_ACL_CU_Consultas de
Pernambuco, Cod. 265, fl. 3v.21 Bando de dom Pedro de Almeida de 19 de outubro de 1674. "Segundo Livro de Vereações da câmara da
vila de Alagoas, de 1666 a 1681". RIAGA, 7 (1875):178
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20
composta por índios e soldados pagos, incluindo o terço dos Henriques, que partiu em
dezembro de 1674, e outra, comandada pelo governador dos índios, Sebastião Pinheiro
Camarão, que partiu em agosto de 1675.22 Não encontrei documentos sobre elas nas
fontes administrativas da secretaria de governo de Pernambuco. Há registros, no entanto,de que o governador de Pernambuco chegou a solicitar o auxílio de alguns paulistas que
estavam na Bahia. Segundo o governador geral do Brasil, com quem dom Pedro tratou
do assunto, não valia a pena contar com isso, pois esses homens eram "gente
bastantemente voluntária" que havia demorado muito a fazer a guerra contra os índios na
Bahia. Além disso, achava difícil que eles colaborassem na guerra contra os Palmares,
pois julgavam mais fácil enfrentar os índios, com os quais estavam acostumados, do que
enfrentar os negros com os quais "nunca pelejaram" e que andam fortificados e "têm
resistido a tão grandes soldados".23
Em março de 1675, porém, algo dessas consultas deve ter dado resultado, pois o
sertanista Estevão Ribeiro Baião Parente, um português que havia se estabelecido em São
Paulo e pelejara contra os índios na Bahia, se ofereceu para ajudar a combater Palmares e
foi aceito pela câmara da vila de Alagoas.24 O episódio indica, portanto, que também cá
na colônia nem sempre os governos do Estado do Brasil e de Pernambuco concordavam
quanto aos procedimentos a serem adotados contra Palmares.
A correspondência administrativa trocada com a Corte e com o governo geral doEstado do Brasil revela que diferentes estratégias eram tentadas ao mesmo tempo: podia-
se usar as tropas formadas por índios e negros, que haviam se mostrado eficientes na
expulsão dos holandeses; as ordenanças, compostas pelos moradores, muitas vezes
relutantes em abandonar suas atividades; aquelas constituídas por soldados pagos, talvez
22 D. Freitas, Palmares, pp. 87-88. Ver também Ivan Alves Filho, Memorial dos Palmares, Rio de Janeiro,Xenon, 1988, pp. 63-66.
23 Carta de Afonso Furtado de Castro do Rio Mendonça de 25 de fevereiro de 1675. DH , 10 (1929):134-137.
24 Termo de vereação da Câmara da Vila de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul de 11 de março de1675. "Segundo Livro de Vereações da câmara da vila de Alagoas, de 1666 a 1681". RIAGA, 7(1875):178-179. Como se pode verificar o termo "paulista" não significa neste contexto que se trate de
pessoas nascidas em São Paulo, mas de sertanistas que integravam expedições como as que partiam deSão Paulo, para prear índios ou caçar escravos amocambados.
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21
mais profissionais; ou ainda recorrer aos experientes sertanistas de São Paulo.25 Cada
uma tinha vantagens e desvantagens, envolvendo questões políticas e financeiras
diversas, além de escolhas militares.
O novo governador parece ter se esforçado, todavia as medidas demoravam a ser implementadas ou não eram exitosas. A documentação é bastante escassa para o governo
de dom Pedro de Almeida. O livro que registra as ordens e determinações remetidas para
as autoridades da capitania anota apenas dois documentos de seu governo.26 As cartas
enviadas para Lisboa, guardadas no Arquivo Histórico Ultramarino, também não são
muitas em comparação com o volume da correspondência de outros governadores do
mesmo período. Sobre Palmares, há pouca coisa.
Na falta de fontes administrativas, a bibliografia tem utilizado de forma exaustiva
uma crônica escrita em 1678, depois que dom Pedro de Almeida deixou o governo, que
enaltece seus feitos.27 O procedimento é problemático, pois se trata de uma versão dos
fatos em que propositalmente o governador é a figura central, como se verá com detalhes
em breve. A bibliografia, entretanto, não tem levado isso em conta, tomando o que vai ali
escrito como se fosse uma descrição fiel dos fatos. Diversos autores mencionam, por
exemplo, que entre novembro de 1675 e julho de 1676 realizou-se uma expedição
comandada por Manuel Lopes, que conseguiu atacar um dos mocambos, matar vários
quilombolas e aprisionar setenta deles, enquanto cerca de cem outros voltavam para seussenhores.28 É essa fonte que permite que vários autores afirmem que, por conta das
25 Para uma análise da organização militar no século XVII, vide Pedro Puntoni, "A Arte da Guerra noBrasil: tecnologia e estratégia militares na expansão da fronteira da América portuguesa (1550-1700)" in:Celso Castro, Vitor Izecksohn, Hendrik Kraay (eds.), Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro,Editora FGV, 2004, pp.43-66; e também Stuart B Schwartz, "Uma nota acerca da organização militar
portuguesa e brasileira" in: Stuart. B. Schwartz e Alcir Pécora (orgs.), As excelências do governador. SãoPaulo, Companhia das Letras, 2002, pp. 317-320. Uma visão mais geral do tema pode ser encontrada em
Antonio Manuel Hespanha (org.), Nova História Militar de Portugal . Lisboa, Círculo dos Leitores, 2004,2 vols.
26 Cf. Disposições dos governadores de Pernambuco (1648-1696). AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, índice e fl.328.
27 Vide "Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador dom Pedro deAlmeida de 1675 a 1678 (M. S. offerecido pelo Exm. Sr. Conselheiro Drummond)". RIHGB, 22 (1859):303-329. Utilizo, provisoriamente, essa versão da crônica escrita em 1678, que é a adotada pela
bibliografia.28 Cf. Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil. [1905]. 5ª ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1977, p. 81.
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22
ações de Manuel Lopes, "os negros tiveram 800 baixas, mais ou menos" e, num dos
ataques, Zumbi teria sido ferido na perna.29
Alguns vão mais longe. Segundo Décio Freitas, por exemplo, logo houve forte
retaliação por parte dos palmarinos:"Em toda parte - Porto Calvo, Alagoas, Ipojuca, São Miguel e Serinhaém- as pequenas guarnições se mostravam impotentes para conter asformações palmarinas. Os índios fugiam aterrorizados. Senhores deengenho faziam à noite atalaia em suas casas. Engenhos e canaviais eramdevorados pelas chamas. Não havia como impedir os ataques palmarinos.(...) em todo o resto de 1676, os antigos escravos de certo modo foramamos no sul de Pernambuco."30
Não encontrei documentos que permitam chegar a essa conclusão. Como já
observei acima, a correspondência entre o governo de Pernambuco e Lisboa e as
determinações do governador para as câmaras e outras autoridades da capitania nesse
período é bastante silenciosa quanto a Palmares. O silêncio, nesse caso, não significa
desleixo, mas dificuldade. A leitura da documentação administrativa desse período revela
que a maior parte das decisões é precedida de conselhos - era assim com o soberano, que
recebia pareceres dos conselheiros do Ultramarino e dos outros ministros e secretários de
Estado; era assim com o governador da capitania, que dependia das outras autoridades
locais - o provedor da Fazenda, o ouvidor e os membros das câmaras. 31 As cartas
trocadas entre as autoridades registram o diálogo entre as instâncias de governo etambém a necessidade de um consenso para que as ordens fossem implementadas. Os
textos, nesse caso, constituem um passo na implementação das decisões. Ausência ou
pequena quantidade de textos - sem contar os perdidos por ação do tempo ou por incúria
arquivística - significa dificuldade de obter uma decisão e de registrá-la por escrito para
que fosse colocada em prática.
As fontes existentes nos arquivos referentes ao governo de dom Pedro de
Almeida permitem saber que nem tudo andava bem na capitania. O governador
enfrentava oposições internas e havia se indisposto com gente importante. Desde que
29 Edison Carneiro, O quilombo dos Palmares [1947] 2ª ed. revista. São Paulo, Brasiliense, 1958, p. 106;M. M. Freitas, Reino negro de Palmares, p. 223; D. Freitas, Palmares, p. 89.
30 D. Freitas, Palmares, p. 90.31 Para um panorama sobre o tema, vejam-se os diversos artigos do volume IV, O antigo regime (1620-
1807), coordenado por A. M. Hespanha in: J. Mattoso (dir), História de Portugal. Lisboa, Estampa,1993.
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tomara posse do cargo, entrara em choque com João Fernandes Vieira quanto à jurisdição
sobre as fortificações de Pernambuco.32 As dissensões deviam ser grandes, pois em junho
e julho de 1675 as câmaras de Pernambuco, Paraíba e Itamaracá haviam pedido que João
Fernandes Vieira fosse nomeado governador da Capitania de Pernambuco, "por ser pessoa de muitos cabedais e experimentado nas tiranias que os negros levantados dos
Palmares obram para as poder facilmente extinguir".33 Como bem mostrou Evaldo
Cabral de Mello, toda a segunda metade do século XVII foi atravessada por tensões e
conflitos de jurisdição entre as câmaras, os governadores e a Coroa portuguesa.34 Dom
Pedro de Almeida não escapou a essa regra, ainda que tenha sido figura de menor
projeção.
As providências tomadas pelo governo de Pernambuco contra Palmares
participavam desse jogo entre os poderes na capitania e dele dependiam para alcançar
algum resultado. Talvez a idéia de recorrer a tropas que não dependessem tanto das
câmaras ou dos moradores tenha florescido nesse contexto. A consulta sobre usar os
paulistas que fez ao governo geral do Estado do Brasil, mencionada acima, indica que a
possibilidade era discutida em Pernambuco. A tentativa deu algum resultado, embora o
sertanista não tenha vindo de São Paulo e nem tenha sido o governador a tomar a
iniciativa - ao contrário do que registra a historiografia (talvez por ter se apoiado
demasiadamente na crônica de 1678).As tensões entre o governo e as câmaras talvez expliquem o fato de que Fernão
Carrilho tenha sido primeiro contratado pelas autoridades de Alagoas e só depois
nomeado por dom Pedro de Almeida. Os dados biográficos de Fernão Carrilho nem
sempre são convergentes, a bibliografia porém indica ter ele se destacado por bater em
32 Em 1677, o governador chegou a deixar de cumprir uma provisão régia que atribuía a Vieira aarrecadação e despesa das verbas para as obras nas fortalezas, sendo por duas vezes advertido pelo
príncipe regente. Para uma avaliação da contenda entre o governador e João Fernandes Vieira, vide JoséAntonio Gonçalves de Mello, João Fernandes Vieira, mestre-de-campo do Terço de Infantaria de Pernambuco. Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,2000, pp. 424-427.
33 Cf. Consulta do Conselho Ultramarino de 22 de dezembro de 1675 e de 20 de outubro de 1675.AHU_ACL_CU_Consultas de Pernambuco, Cod. 265 e BNRJ-Ms, Cod. II, 33, 4, 32.
34 Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos mazombos. Nobres contra mascates. Pernambuco, 1666-1715.São Paulo, Companhia das Letras, 1995, especialmente capítulos 1 e 2. O tema é desenvolvido também
por Vera Lúcia Costa Acioli, Jurisdição e conflitos. Aspectos da administração colonial. Recife,EDUFPE/EDUFAL, 1997.
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mocambos na Bahia e em Sergipe, e também pelo auxílio prestado a incursões em busca
de minas de prata em Itabaiana.35 Era, portanto, um sertanista experiente, mas não um
"paulista", como havia aventado o governador.
Os livros que registram as atas da câmara de Alagoas e de Porto Calvo indicamque a contratação de Carrilho foi realizada em fevereiro de 1676. Na sessão, que parece
ter sido solene, estavam presentes juízes, vereadores e capitães mores das Alagoas - sem
que tenha sido feita qualquer referência a dom Pedro de Almeida.36 Foram eles que se
comprometeram a pagar 700 mil réis para custear a expedição a ser comandada por
Carrilho, enquanto este se obrigava a marchar contra os Palmares em agosto de 1676
com uma tropa de "200 arcos e 100 armas de fogo". Os prisioneiros seriam entregues
mediante o pagamento de 12 mil réis por cada escravo apreendido nessas capitanias,
valor a ser pago também por aqueles que "viessem buscar abaixo seus senhores";
somente as "crias" de menos de 3 anos ficavam livres de qualquer pagamento. Como se
vê, o acerto previa medidas bem diferentes das recomendadas pelo Conselho
Ultramarino, sem qualquer cláusula mencionando a obrigação de mandar os prisioneiros
para fora da capitania.
A nomeação de Carrilho só foi feita alguns meses depois, por meio de carta
patente. Nela, o governador dom Pedro de Almeida lhe conferia poderes para dispor o
que lhe parecesse mais conveniente fazer na guerra contra os Palmares, com alçadasuperior aos capitães das ordenanças e demais soldados e oficiais que o acompanhassem.
A guerra passava, assim, a ter um capitão-mor para governá-la, com experiência na
destruição de "negros levantados" na Bahia e em Sergipe.37 A solução encontrada foi,
portanto, bem distante da aventada pelo Conselho Ultramarino em 1671 e também não
35 Fabiano Vilaça dos Santos, "Feitos de Armas e Efeitos de Recompensa: perfil do sertanista FernãoCarrilho". Klepsidra, Revista Virtual de História, 19 (2004),
http://www.klepsidra.net/klepsidra19/fernaocarrilho.htm.36 Termo de aceitação de condições de 3 e 12 de fevereiro de 1676. "Segundo Livro de Vereações dacâmara da vila de Alagoas, de 1666 a 1681". RIAGA, 7 (1875):179-180. O documento foi publicadonovamente por E. Carneiro, O quilombo dos Palmares, pp. 236-238 (na 1ª. ed., pp. 218-221). Mesmoassim, o próprio E. Carneiro (p. 107), M. M. Freitas, O reino negro de Palmares, pp. 229, e D. Freitas, Palmares, p. 98, entre outros, mencionam o convite do governador. Fazem-no, provavelmente por contada "Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador dom Pedro deAlmeida de 1675 a 1678".
37 Carta patente de Fernão Carrilho de 1 de julho de 1676. "Segundo Livro de Vereações da câmara da vilade Alagoas, de 1666 a 1681". RIAGA, 7 (1875):181-182.
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estava perto das alternativas de aproveitamento das tropas locais. É difícil saber o motivo
que levou as câmaras a contratarem alguém de fora da capitania, conferindo-lhe poderes
talvez maiores do que os comandantes locais. Talvez tenha sido a esperança de maior
eficiência, mas as cláusulas acertadas entre Carrilho e as câmaras indicam que essa poderia ser uma forma de escapar das determinações vindas de Lisboa e de Olinda.
Carrilho tinha uma boa oportunidade de enriquecer e ganhar prestígio político e os
moradores delegavam os custos a ele, limitando suas contribuições ao ajustado
previamente. O governador deve ter se rendido às circunstâncias.
Talvez por seguir de perto a crônica de 1678, os autores sejam unânimes em
ressaltar as qualidades do novo comandante. "Com o aparecimento de Fernão Carrilho,
toda a cena se modifica", chegou a afirmar Edison Carneiro.38 Não foi bem assim.
Carrilho assumiu seu posto e passou a cuidar dos preparativos para a expedição.
As câmaras de Porto Calvo, Alagoas e Rio de São Francisco, porém, não conseguiram
honrar o compromisso e se desentenderam. Alagoas acabou assumindo parte do
suprimento da tropa e seu armamento; todavia fez primeiro com que Carrilho se
comprometesse a usar em primeiro lugar seus próprios homens, recorrendo aos
moradores só em caso de não poder compor a tropa.39 Depois conseguiu que Carrilho
pagasse pelos negros cedidos para levar mantimentos, se fossem mortos durante a luta.40
Em dezembro, pediu que o próprio Carrilho contribuísse para os custos da expedição.41 As guerras contra Palmares envolviam vários problemas: além do custo dos
mantimentos, era preciso arranjar escravos para transportá-los e, acima de tudo, os
moradores tentavam escapar do recrutamento. Como se vê, não eram apenas os assaltos
promovidos pelos negros dos Palmares que preocupavam os moradores das vilas da
região.
Enquanto a expedição demorava a sair, outras pessoas em Lisboa tomavam a
iniciativa de propor estratégias para a guerra contra os Palmares. Em junho de 1677, o
38 E. Carneiro, O quilombo dos Palmares, p. 100.39 Acórdão de 3 de agosto de 1676. "Segundo Livro de Vereações da câmara da vila de Alagoas, de 1666 a
1681". RIAGA, 7 (1875): 181.40 Acórdão de 21 de agosto de 1676. "Segundo Livro de Vereações da câmara da vila de Alagoas, de 1666
a 1681". RIAGA, 7 (1875): 181.41 Acórdão de 8 de dezembro de 1676. "Segundo Livro de Vereações da câmara da vila de Alagoas, de
1666 a 1681". RIAGA, 7 (1875): 182.
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Conselho Ultramarino discutiu as sugestões enviadas por Manuel Inojosa.42 Esse
português era homem experimentado no combate aos índios na Bahia e resolveu
recomendar o uso de índios daquela capitania, por serem melhores carregadores do que
os de Pernambuco. Propunha que a entrada contra os Palmares fosse feita "pela parte dosertão donde eles senão temem nem vigiam", pois os negros estariam acostumados a ser
atacados a partir do litoral. Além disso, nessa região havia índios inimigos dos negros
dos Palmares, que por certo prestariam valioso auxílio. A tropa seria formada por "200
homens brancos armados e 400 índios mansos" fornecidos pelo governo geral do Brasil,
auxiliados por 100 homens do Camarão e outros 100 do terço que foi de Henrique Dias,
que a eles deveriam se juntar depois que o arraial nos Palmares estivesse instalado.
Aparentemente, era bom conhecedor da situação, pois não apenas mencionava ser
preciso evitar que os habitantes de Palmares fossem avisados das expedições como
propunha medidas severas contra as deserções: o "cabo maior", isto é, o comandante
geral dessas tropas, poderia ter o poder de "estropiar e enforcar todo o soldado ou índio
que da dita conquista fugir ou cometer caso por onde não mereça ser perdoado".43
Inojosa sugeria ainda que os prisioneiros não deviam ser devolvidos a seus
senhores, mas ficar com os "conquistadores", descontando-se apenas o quinto da Coroa,
que devia chegar a cinco ou seis mil cruzados, considerando-se haver "onze ou doze mil
almas" no Palmares. Era dinheiro mais que suficiente para pagar os custos da operação.Os maiores de doze anos deviam ser mandados para o Reino, para serem vendidos,
"porque ficando na terra se tornarão a ir para os seus Palmares e levarão outros consigo".
É interessante observar que Inojosa fala explicitamente na "conquista e
povoação" dos Palmares e ele se candidatava, é claro, a realizar a obra e poder se intitular
"conquistador". Seu plano incluía estabelecer no lugar uma povoação, para servir de base
para as operações, onde se instalariam os índios do Camarão e os negros de Henrique
Dias e, depois, os degredados da Bahia e de Pernambuco, e que seria apoiada com "todo
o favor", gente, munições e ferramentas fornecidas pelas vilas da região. Assim,
"conquistar" os Palmares significava não apenas uma vitória militar mas apaziguar a
42 Consulta do Conselho Ultramarino de 28 de junho de 1677. AHU_ACL_CU_Consultas de Pernambuco,Cod. 265, fls. 14v-15.
43 Carta de Manoel de Inojosa, sem data (anterior a maio de 1677). BA, Cod. 50-v-37, fls. 230-231.
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região, colonizando-a: para domar a rebeldia dos negros era necessário primeiro vencê-
los pela guerra e depois instalar na região uma povoação - ou seja, colocar em seu lugar
gente que reconhecesse a jurisdição do príncipe português e obedecesse suas leis.
Como se pode observar, atacar os Palmares podia ser também uma oportunidade para ganhar títulos, terras e escravos. Para homens experimentados no sertão,
acostumados a bater nos mocambos, que podiam confiar em seus talentos militares, essa
podia ser uma forma de chegar a uma posição superior nas hierarquias civis e políticas da
colônia. Para que a estratégia pudesse ser colocada em prática, entretanto, era preciso
contar com a devida chancela das autoridades - que podiam garantir os títulos e conceder
as terras. A vitória sobre Palmares, nesse caso, seria apenas uma etapa dessa campanha.
Diante da proposta, os conselheiros, mais uma vez, consultaram "várias pessoas
particulares assim da Bahia como de Pernambuco" que estavam na Corte. Aceitaram, em
termos gerais, as sugestões de Inojosa, mas concordaram que era preciso atacar os
Palmares pela Bahia e por Pernambuco, e julgavam melhor encarregar João Fernandes
Vieira da execução dos planos, "dando-se [a] estes negros uma guerra viva sem se
levantar mão dela, até se extinguirem ou [se] reduzirem". Vieira seria nomeado
governador daquela guerra e deveria ter auxílio do novo governador de Pernambuco, e do
governo geral do Brasil, contribuindo os moradores de Pernambuco com o quinto do
valor das benfeitorias feitas pelos holandeses nas casas em que viviam.44 A estratégia de Inojosa não deu certo para ele, mas beneficiou tanto o Conselho,
quanto Fernandes Vieira. Ao enviar sua decisão ao príncipe, os conselheiros reiteraram
as sugestões feitas em 1671 e 1673 e, no mesmo dia, tomaram providências mais
específicas sobre o uso do quinto do valor das benfeitorias.45 Como haviam preterido
Inojosa, não mencionaram a "conquista", nem a instalação de uma povoação. Pelo jeito,
o assunto voltou a ser meramente militar - e João Fernandes Vieira lhes parecia ser,
talvez por isso, a pessoa indicada para tomar as providências necessárias - e se havia
achado uma solução para custear o empreendimento.46
44 Consulta do Conselho Ultramarino de 28 de junho de 1677. AHU_ACL_CU_Consultas de Pernambuco,
Cod. 265, fls. 14v-15.45 Consulta do Conselho Ultramarino de 28 de junho de 1677. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1073.46 D. Freitas, Palmares, pp. 101-104, menciona uma segunda proposta, que atribui a João Fernandes Vieira
e teria sido discutida nessa ocasião. Ernesto Ennes, entretanto, data a proposta de 1686, o que é mais
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Tudo indica que, mais uma vez, os planos feitos em Lisboa não chegaram a ser
postos em prática, já que não há qualquer registro de uma determinação enviada nesse
sentido para Pernambuco.47 Se as notícias da discussão chegaram de algum modo a
Pernambuco, é bem provável que tenham desagradado o governador pois, como vimos,ele vinha tendo vários desentendimentos com João Fernandes Vieira.48
Enquanto isso, nas Alagoas, Carrilho já fora nomeado e continuava a enfrentar
problemas para armar a expedição contra os Palmares. A tensão devia ser grande, pois a
câmara local recusou-se a obedecer a uma ordem de dom Pedro de Almeida, afirmando
que seus moradores não iriam contribuir com os escravos para o comboio dos
mantimentos e que, se fossem obrigados a isso, "desprezariam a terra e iriam [para] fora"
dela.49 Em janeiro, concordaram por fim em enviar os escravos, desde que ressarcidos
pelos que fossem mortos e reembolsados pelas munições que fornecessem.50
A bibliografia, com base na crônica escrita em 1678, detalha a expedição de
Fernão Carrilho datando-a de setembro de 1677. Ele teria saído de Porto Calvo com um
efetivo bem menor do que o prometido pelo governador, depois de cerimônias que
incluíram missa cantada e discursos de exaltação à vitória. Andou 13 dias pelos matos,
até atacar Aqualtune, onde vivia a mãe de Gangazumba.51 A maior parte dos habitantes
do mocambo conseguiu fugir; mas os prisioneiros informaram que Gangazumba e seu
irmão Gangazona estavam em Sucupira. Após alguns dias de descanso, a tropa seguiu para esse mocambo, que foi encontrado sem ninguém, arrasado e queimado, pois os
provável, pois ela menciona as expedições mandadas fazer no tempo dos governadores dom Pedro deAlmeida e Aires de Souza de Castro, cujo tempo em Pernambuco terminou em 1682. Cf. Ernesto Ennes, As Guerras nos Palmares: subsídios para a sua história. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1938, doc. 36 (ooriginal está em BA, Cod. 50-v-37, fls. 260-262v).
47 Décio Freitas publica uma consulta do Conselho Ultramarino datada de 8 de novembro de 1677recomendando que a proposta de Manoel Inojosa fosse remetida a dom Pedro de Almeida para que eleinformasse sobre usa utilidade. A data é estranha, pois a proposta de Inojosa foi avaliada no Conselho em
28 de junho desse ano. Infelizmente, não consegui encontrar o original desse documento. Cf. D. Freitas, República de Palmares. Pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII . Maceió,Edufal, 2004, pp. 141-142.
48 J. A. G. Mello, João Fernandes Vieira, pp. 424-427.49 Termo de Vereação da câmara de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul de 7 de dezembro de 1677.
"Segundo Livro de Vereações da câmara da vila de Alagoas, de 1666 a 1681". RIAGA, 7 (1875): 182-183.
50 Termo de vereação de 16 de janeiro de 1678. "Segundo Livro de Vereações da câmara da vila deAlagoas, de 1666 a 1681". RIAGA, 7 (1875):183
51 D. Freitas diz que o ataque foi feito contra Acotirene. Palmares, p. 115.
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negros haviam fugido para os matos. Carrilho assentou um arraial nesse local, dando-lhe
o nome de "Bom Jesus e a Cruz", e despachou um mensageiro para dar as novas ao
governador e pedir reforços. Manuel Lopes foi o encarregado de arregimentar homens e
mantimentos e, em seguida, de subir em direção aos Palmares.Enquanto isso, as tropas perseguiam os fugitivos e, em um dos combates, não só
foram mortos chefes palmarinos importantes, como um deles, chamado Gangamuissa,
fora feito prisioneiro.52 Três semanas depois, uma coluna atacou a cerca de Amaro, onde
estava Gangazumba. Toculo, outro filho de Gangazumba, foi morto, e ele próprio
escapou com dificuldade, ferido na perna e abandonando suas armas pelo caminho. Na
ocasião foram presos dois de seus filhos e vários sobrinhos e netos, além do chefe
Acaiuba. As matas em torno da cerca de Amaro foram vasculhadas; houve novos
combates, mais prisioneiros e mais mortos. Ivan Alves Filho informa ainda que num dos
combates a rainha dos Palmares teria sido também aprisionada.53
Acreditando ter debilitado de todo o inimigo, Carrilho enviou dois prisioneiros,
Matias Dambi e Madalena Angola, sogros de Gangazumba, com uma proposta para que
depusessem as armas em troca do fim das hostilidades.54 É possível que os dois
prisioneiros tenham sido acompanhados por soldados, pois anos depois, ao candidatar-se
a um cargo militar, Antonio Pinto Ribeiro contou ter participado da "redução dos negros
dos Palmares, obrigando com suas razões ao seu principal chamado Gangazumba (queencontrou no sertão) a mandar três filhos e dois genros a pedir pazes ao governador Aires
de Sousa de Castro".55
No final de janeiro de 1678, Carrilho retornou a Porto Calvo, deixando nos
Palmares as tropas de Manuel Lopes. Entrou em Porto Calvo com cerca de 200
prisioneiros, acreditando ter destruído Palmares. Foi recebido com festas e houve
52 I. Alves Filho dá Gangamuissa como morto nesse ataque. Memorial dos Palmares, p. 85.53 I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, p. 85.54 É difícil saber quando foram enviados os dois prisioneiros. Carneiro dá a entender que foi antes de
Carrilho voltar a Porto Calvo. E. Carneiro, O quilombo dos Palmares, pp. 114-115. Na narrativa de D.Freitas e na de I. Alves Filho, o episódio está situado depois da volta a Porto Calvo. Cf. D. Freitas, Palmares p. 117; e I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, p. 88.
55 Nomeação de pessoas para o posto de sargento-mor da ordenança da praça de Pernambuco, em 28 de janeiro 1684. AHU_ACL_CU_Consultas Mistas, Cod. 17, fl. 399 v
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distribuição dos prisioneiros entre os soldados, depois de separado o quinto da Coroa. 56
Enquanto isso, os destacamentos sob comando de Manuel Lopes continuavam a fustigar
os quilombolas, fazendo mais prisioneiros e enfrentando problemas com o abastecimento
de víveres e com a falta de apoio de alguns senhores de engenho.57
Décio Freitas registraque antes do regresso de Carrilho duas outras expedições haviam seguido para Palmares,
e continuaram por lá guerreando ainda por mais três meses.58
Talvez tenha sido a falta de mantimentos que precipitara o retorno de Carrilho a
Porto Calvo, ou a possibilidade de uma via alternativa para terminar com a guerra.
Todavia, sempre era bom prevenir e, em fevereiro, o governador isentou os voluntários
que entrassem nos matos para acabar com os remanescentes nos mocambos de pagar o
quinto pelas presas que fizessem. 59 Ao mesmo tempo, enviou um alferes para Palmares,
a fim de reiterar a proposta feita por Carrilho.60 Ainda que pelo menos duas outras
colunas continuassem lutando, com vitórias significativas até meados de março, claro
estava que a continuidade da guerra teria que enfrentar, mais uma vez, a carência de
recursos.61
Apoiada na crônica de 1678, a bibliografia tende a marcar o triunfo conseguido
pelas tropas de Fernão Carrilho e Manoel Lopes, associando-o diretamente ao início de
negociações com Gangazumba, o líder palmarino derrotado. O que o governador dom
Pedro de Almeida contou a Lisboa em fevereiro de 1677 foi, no entanto, um poucodiferente. Devia estar contente com a vitória, mas não disse palavra sobre qualquer
negociação. Ao contrário.
As notícias que enviou a Lisboa não eram detalhadas. Ele aproveitou uma
"embarcação [que ia] de passagem", para informar com rapidez o príncipe que havia tido
dificuldades em fazer com que as câmaras entrassem em acordo e ajudassem com víveres
e soldados numa expedição contra Palmares. Havia conseguido persuadi-las, obtendo o
56 Uma descrição detalhada dessas expedições pode ser encontrada em I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, pp. 78-86.
57 E. Carneiro, O quilombo dos Palmares, p.116; I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, pp. 86-87.58 D. Freitas, Palmares, pp. 117-118.59 Bando do governador dom Pedro de Almeida de 14 de fevereiro de 1678. "Segundo Livro de Vereações
da Câmara de Alagoas", RIAGA (1875): 183-184.60 Apenas D. Freitas indica ser o alferes do terço dos Henriques. Palmares, p. 118.61 O contexto é analisado por I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, pp. 82-88.
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"geral beneplácito de todos" e nomeado Fernão Carrilho para ser o capitão-mor daquela
conquista. Ele permaneceu cinco meses nos matos e voltara vitorioso, tendo "feito geral
destruição naqueles bárbaros": matara muita gente "dos de guerra", inclusive
Gangazumba e dois de seus filhos e prendera outros tantos, incluindo três mulheres do reie dez de seus netos. Segundo o governador, "aqueles dilatados Palmares [estavam]
desertos dessa canalha".62 A carta o coloca como o grande coordenador da campanha, por
ter obtido o acordo de todos. Esse era um modo de evidenciar sua atuação como bom
governante, qualidade reforçada pela vitória obtida.
Dom Pedro de Almeida pretendia levar os prisioneiros para o Reino, como
"mostras (...) desta vitória", e dar pessoalmente informações mais detalhadas ao príncipe.
Decerto seria uma entrada em grande estilo na Corte. Pelo jeito, imaginava poder voltar
em breve a Lisboa, já que seu sucessor já havia sido nomeado.63 Sua carta foi lida pelo
Conselho Ultramarino no final de abril de 1678, que remeteu as novas ao príncipe,
lembrando-o que havia consultas sobre o mesmo assunto que ainda aguardavam seu
parecer.64 A secretaria do Conselho, porém, registrou a carta do governador como dando
"conta da vitória que alcançaram os moradores daquela capitania dos negros dos
Palmares". Pelo jeito, em Lisboa, as notícias parecem ter sido entendidas de forma bem
diferente do que supunha o governador em Pernambuco.65
A bibliografia, entretanto, analisa esses eventos apenas a partir da ótica doanônimo cronista de 1678. Mesmo que a fonte seja a mesma, as informações e as
interpretações são divergentes em relação aos eventos que se seguem ao retorno de
Fernão Carrilho a Porto Calvo.
Nina Rodrigues diz que o alferes enviado por dom Pedro de Almeida levou uma
"intimação ao rei": as tropas de Carrilho se preparavam para voltar e acabar com o
quilombo mas, se eles quisessem "viver em paz com a colônia", o governador designaria
62 Carta de dom Pedro de Almeida de 4 de fevereiro de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1103.63 Aires de Souza de Castro foi nomeado em agosto de 1677. Informação constante no banco de dados
informações do banco de dados do projeto Optima Pars (ver nota 1).64 Consulta do Conselho Ultramarino de 28 de abril de 1678. BNRJ-Ms, Cod. II - 33,4,32. Ver também
anotações à margem da carta de dom Pedro de Almeida de 4 de fevereiro de 1678. AHU_ACL_CU_015,Cx. 11, D. 1103.
65 Às vezes, geravam até informações distorcidas, como no caso de um parecer do Conselho Ultramarinoque chegou a afirmar que a proposta havia sido enviada aos negros dos Palmares por Aires de Souza deCastro. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116.
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terras para viverem e restituiria as mulheres e filhos que estavam em seu poder.66 Edison
Carneiro refere-se ao "recado" enviado por Carrilho ao rei dos Palmares prometendo
cessar os ataques se eles depusessem as armas, "promessas" reiteradas mais tarde pelo
governador, sem dar maiores detalhes.67
Para Clóvis Moura, os dois prisioneiros foramenviados a Palmares com "ordens de rendição" e, diante da continuidade das
escaramuças nas matas, dom Pedro de Almeida "mudou de tática", industriando o alferes
para dizer aos sobreviventes que seriam exterminados se não fizessem a paz.68
A declaração de Carrilho sobre a completa destruição dos Palmares é relativizada
por Décio Freitas que a explica pelo intuito de obter recompensas e mercês por parte do
capitão. Dom Pedro de Almeida, sem se deixar iludir pela vanglória de Carrilho, também
teria tido motivo semelhante para "entabular negociações com vistas a uma solução
política do caso palmarino". Ele também estava sequioso por celebrar suas façanhas, e
contava com o trunfo de ter entre os prisioneiros os filhos e parentes de Gangazumba, o
que compensava os "medíocres resultados militares da campanha".69
A guerra contra Palmares colocava em jogo interesses bem diversos, pois
envolvia avaliações políticas, financeiras e militares por parte das autoridades locais, dos
moradores, dos sertanistas, do governo da capitania, do Estado do Brasil, dos
conselheiros do Ultramarino e do próprio príncipe. As opiniões variavam conforme os
grupos e muitas vezes não eram convergentes. Do mesmo modo, a convivência com osmocambos ou as negociações com eles não podem ser analisadas levando em conta
apenas a oposição entre o governo (ou os senhores) e os fugitivos. Por isso, para seguir
adiante, é necessário saber mais sobre essas pessoas, seus interesses e experiências. O
caminho permitirá que possamos compreender as condições em que se deram as
negociações e os termos que foram ajustados em 1678.
66 N. Rodrigues, Os africanos no Brasil , p. 83.67 E. Carneiro, O quilombo dos Palmares, p. 115.68 Clóvis Moura, "O quilombo dos Palmares" Rebeliões da Senzala. Quilombos, insurreições, guerrilhas.
[1959] 2ª ed. revista e ampliada Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1972, p. 187.69 D. Freitas, Palmares, pp. 118 e 121, respectivamente. I. Alves Filho faz as mesmas ponderações,
Memorial dos Palmares, p. 88.
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2. A voz da experiência
O que teria levado Fernão Carrilho, dom Pedro de Almeida e Gangazumba a
negociar um acordo?
Várias passagens da crônica escrita em 1678 indicam que a oferta de paz pode ser entendida como uma tática do governador para solidificar a derrota infligida aos
habitantes dos Palmares, aproveitando que os principais mocambos estavam destruídos e
muitos de seus guerreiros mortos.70 Poderia ter sido também um meio de protelar o
provável recomeço dos enfrentamentos, que tantos ônus e dissensões traziam para os
moradores das vilas da região. Ou ainda uma manobra para quebrar a unidade dos
rebeldes e assegurar o término da guerra.71
Décio Freitas comenta que, depois da campanha de Manuel Lopes "e da onda deterrorismo negro que se lhe seguiu", o dilema entre continuar a guerra e tentar a
alternativa da negociação estava presente nos dois lados da contenda. Os comerciantes e
as "categorias populares", que arcavam com o custo das expedições e estavam
amedrontados com os ataques palmarinos, tinham posições "pacifistas", enquanto a
"classe dirigente" defendia uma política de enfrentamento. Nos Palmares, as opiniões
dividiam-se também entre os partidários das negociações e os que achavam que a
sobrevivência de Palmares só seria assegurada com "a guerra e a luta pela libertação da
massa escrava do litoral". Segundo esse autor, tais divisões permaneceram durante todo o
período subseqüente.72
Outros autores também mencionam posições diversas entre as autoridades
coloniais e os moradores pernambucanos sobre continuar a guerra ou fazer a paz. Flavio
Gomes coloca a questão num contexto mais amplo, ao sugerir que, além da guerra, as
autoridades coloniais já haviam tentado outras estratégias para enfrentar Palmares, como
ocupar as fronteiras econômicas com fortins e aldeamentos indígenas. O acordo seria um
70 "Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco", pp. 320-325.71 Vide Benjamin Péret, "Que foi o quilombo de Palmares?" [1956] in: O quilombo dos Palmares, Porto
Alegre, Editora da UFRGS, 2002, p. 98; D. Freitas, Palmares, pp. 121-123; I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, p. 93.
72 D. Freitas, Palmares, pp.105-106. A mesma análise está presente em I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, pp.80-81.
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modo de obter que os quilombolas, como em outras partes das Américas, "paralisassem
[os] ataques e se mantivessem vivendo em seu mocambos no alto das serras".73
Há poucos comentários sobre as motivações do lado palmarino.
Algumas fontes indicam que a iniciativa pode ter partido dos habitantes dePalmares, atemorizados com as mortes e a destruição causada pelas tropas coloniais,
assim como pelo fato de terem sido aprisionados "mulheres e filhos dos principais".74
Documentos posteriores mencionam que era "estilo" dos negros aproveitarem o momento
de substituição do governador da capitania para oferecer acordos de paz, demorando nas
negociações, como forma de protelar novas investidas contra os mocambos.75 Outras
fontes sugerem que o medo de novas investidas, diante dos estragos feitos pelas tropas de
Fernão Carrilho, tenha sido o principal motivo para o armistício.76 Como vimos, as
expedições dos anos 1677 e 1678 haviam provocado pesadas baixas e muitos haviam
sido capturados, incluindo vários membros das famílias dos chefes dos mocambos. Como
vimos, Gangazumba chegou até mesmo a ser dado por morto, assim como dois de seus
filhos.77
Mário M. Freitas considera o acordo "um dos mais inteligentes golpes políticos"
de Gangazumba, que conseguiu assim reaver sua família e a de seus cabos de guerra.
Para esse autor, após a paz ser assentada, "o sossego voltou ao seio da família negra e o
rei Zambi, o supremo chefe daqueles reis menores, foi render graças a Deus no temploque mandara erigir na cerca real do Macaco, quando as mulheres e filhos de seus
73 Flávio dos Santos Gomes, Palmares. Escravidão e liberdade no Atlântico Sul . São Paulo, Contexto,2005, pp. 117-125. As observações de F. Gomes estão apoiadas na análise de Richard Price sobre osSaramakas do Suriname, que examinaremos mais adiante. Cf. R. Price, First-time. The historical visionof an Afro-American people. Baltimore, John's Hopkins University Press, 1983; e Alabi's world. Baltimore, John's Hopkins University Press, 1990.
74 A própria "Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco", p. 328 menciona a " petição do reidos Palmares, em que pedia paz, liberdade, sítio e entrega das mulheres" (grifos meu). Vide também
Carta do provedor da Fazenda Real da capitania de Pernambuco ao príncipe regente de 22 de junho de1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1118.
75 É o que informa Aires de Souza de Castro em 14 de novembro de 1685 ao Conselho Ultramarino.AHU_ACL_CU_015, Cx. 13, D. 1329
76 Carta do provedor da Fazenda Real da capitania de Pernambuco ao príncipe regente de 22 de junho de1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116. Um parecer do Conselho Ultramarino de 25 de junho de1687 chegou a mencionar que Carrilho tinha fama de feiticeiro, por ter feito tantos prisioneiros "queexcede as forças humanas". Ernesto Ennes, As guerras nos Palmares, doc. 12.
77 Carta de dom Pedro de Almeida ao príncipe regente de 4 de fevereiro de 1678. AHU_ACL_CU_015,Cx. 11, D. 1103.
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vassalos regressavam salvos aos seus refúgios de liberdade e de amor!"78 Ele é, aliás, o
único a não mencionar qualquer conflito de opiniões entre Gangazumba e Zumbi.
Clóvis Moura tem uma visão oposta. Ele entende que Gangazumba, diante da
morte dos principais guerreiros, da prisão de tantos, inclusive de membros de sua famíliae da destruição dos mocambos, "não agüentou, com o ânimo que as circunstâncias
exigiam, os golpes e as derrotas" e achou ser "vantajoso" entender-se com os
portugueses.79 Ele, como outros autores, não dedica muita atenção aos termos do acordo
ou aos interesses nele envolvidos. A maior parte focaliza a seqüência dos
acontecimentos. Com exceção de Mário M. Freitas, as interpretações organizam-se de
modo a construir uma explicação lógica para a resistência liderada por Zumbi e dar-lhe
destaque - ainda que os detalhes nem sempre sejam oferecidos igualmente pelos autores.
Como se vê, a bibliografia circunscreve a análise ao episódio das negociações
ocorridas em 1678. Apenas Flávio Gomes abre o campo de visão, mencionando a
hipótese de conexões atlânticas e exemplos anteriores e posteriores a Palmares. A
possibilidade é sugestiva e merece ser examinada. Por enquanto, ficaremos no âmbito
dos exemplos na área de colonização portuguesa. Focalizo algumas experiências
anteriores pois, afinal, eram as que podiam servir de referência para aquelas pessoas.
Em 1597, ao avaliar a situação do Estado do Brasil, o provincial da Companhia
de Jesus, Pedro Rodrigues, mencionou que, além dos aimorés e dos franceses, os portugueses enfrentavam "os negros de Guiné alevantados que estão em algumas serras,
donde vêm a fazer assaltos e dar algum trabalho", alertando que "pode vir tempo em que
se atrevam a cometer e destruir as fazendas, como fazem seus parentes na ilha de São
Tomé".80 Referia-se, com grande probabilidade, ao levante liderado por Amador que
tomou conta da ilha em 1595. Este é um bom começo para um passeio pelas experiências
de negociação com os escravos no ultramar português.
Desde o início da ocupação colonial, São Tomé fora palco de revoltas,
levantamentos e "alvoroços", que envolveram os moradores e seus escravos ou escravos
78 M. M. Freitas, Reino negros de Palmares, p. 252.79 C. Moura, "O quilombo dos Palmares", p. 187.80 Carta do Padre Pedro Rodrigues, provincial da Companhia de Jesus, de 1º de maio de 1597. ABN , 20
(1898): 255.
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fugidos que se agrupavam em mocambos, nos matos da ilha.81 Nem todos esses
"levantamentos" foram protagonizados por escravos, mas desde que a ilha iniciara a
produção de açúcar, as fugas eram constantes. Em 1595, porém, foi diferente.
Aproveitando-se da reunião dominical dos moradores na igreja no início de julho,Amador liderou muitos "homens da sua cor", queimaram a cidade de São Tomé e
destruíram vários engenhos. Libertou também muitos escravos e foi ganhando adeptos
(além do auxílio de fugitivos que estavam nos matos, comandados por um negro
chamado Cristóvão). As fontes indicam que Amador chegou a liderar quase 4 mil
escravos, que o proclamaram rei. Houve algumas batalhas entre os levantados e tropas do
governo e, em meio aos enfrentamentos, o governador da ilha lançou um bando
prometendo que em quinze dias perdoaria todos os rebeldes que retornassem para seus
donos.82 O prazo chegou a ser prorrogado por mais três dias, e dizem os relatos que a
promessa convenceu a quase todos. O rei Amador resistiu até 14 de agosto, quando foi
enfim levado preso por cinco líderes que o acompanhavam. Amador foi puxado por
cavalos, teve as mãos decepadas, foi esquartejado e partes de seu corpo expostas nos
lugares públicos da vila. Dos outros cinco, dois foram perdoados, dois ficaram presos e
um foi esquartejado por ter morto um padre durante a revolta. Diz um dos relatos que a
ilha tornou a ficar "quieta e segura", voltando a produzir açúcar com os 25 engenhos que
restaram de pé.83
Dessa vez, em São Tomé, não se tratava de gente que vivia pelos matos e de
quando em vez atacava viajantes e fazendas, mas de uma revolta. Rápida e de grandes
81 Cf. Isabel Figueiredo de Barros e Maria Arlete Cruz, "Revoltas de escravos em São Tomé no séculoXVI". Leba, 7 (1992): 373-388; Catarina Madeira Santos, "A formação das estruturas fundiárias e aterritorialização das tensões sociais: São Tomé, primeira metade do século XVI" Stvdia, 54/55 (1996):51-91; "Rebelião e sociedade colonial: 'alvoroços' e 'levantamentos' em São Tomé (1545-1555)". Revista Internacional de Estudos Africanos, 4/5 (1986): 17-74;
82 "Relatione venuta dall'Isola di S. Tomé", MMA, III, doc. 151, p. 523.83 "Relatione venuta dall'Isola di S. Tomé", MMA, III, pp. 521-523. Sobre esses eventos ver também
Manuel do Rosário Pinto, "Relação do descubrimento da ilha de Sam Thomé, serie dos serenissimo reysde Portugal, desde o tempo que a dita ilha foy descuberta the o prezente, catalogo dos bispos, egovernadores, cazos e suscessos que nella tem hauido, com as noticias que pode descobrir Manoel doRozario Pinto natural da mesma ilha", publicado por António Ambrósio, «Manuel do Rosário Pinto (asua vida)" in Stvdia, 30/31 (1970): 244-247. Manuel do Rosário não menciona a proposta de perdão,indicando apenas que, depois de uma batalha em que morreram mais de 200 revoltosos, muitos vieram se"apadrinhar", ficando o Amador "sem poder". Para um balanço breve dessa revolta, ver Isabel CastroHenriques. São Tomé e Príncipe. A invenção de uma sociedade. Lisboa, Vega Editora, 2000, pp.110-120.
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proporções, ela foi sufocada pelas armas. Mesmo assim, houve uma proposta de perdão.
Pode ter sido usada como subterfúgio para minar as forças dos revoltosos, mas tudo
indica que foi aceita por grande parte dos insurgentes. Embora explicitada com clareza
no relato seiscentista que serve de base para os estudiosos que trataram dessa revolta, elanão chegou a ser discutida pela bibliografia que, quando muito, tratou da traição
cometida pelos comandantes que entregaram Amador às autoridades da ilha. O fato de ter
sido desconsiderada pela bibliografia não significa, entretanto, que idéias desse tipo não
tenham circulado no universo dos administradores coloniais.
O dilema entre guerrear ou negociar foi discutido em muitas ocasiões e as
alternativas avaliadas de forma e com intenções bem diferentes. Pode ter surgido em
ocasiões de revoltas abertas, como no caso de São Tomé, mas também como recurso no
enfrentamento dos mocambos. Um bom exemplo desses casos, que mais interessam aqui,
foi o que aconteceu na Bahia no final do ano de 1640, em que a câmara de Salvador e o
vice-rei do Brasil, marquês de Montalvão se enfrentaram, diante de propostas
diametralmente opostas para acabar com os mocambos que haviam se formado na região
do rio São Francisco.
Segundo o que vai registrado na ata da câmara de Salvador, o marquês vice-rei
havia convocado a Junta de governo para decidir o que fazer com aqueles "negros
levantados".84 O marquês pretendia enviar o terço de Henrique Dias, bem como um padre jesuíta "que sabe a língua dos negros", para que "tratassem com eles de os reduzir", em
troca da liberdade e do alistamento no terço dos libertos. Alistados e livres, poderiam
permanecer no mocambo, desde que "não admitissem mais negros fugidos". Os
vereadores consideraram que "por nenhum modo convinha tratar de concertos nem dar
lugar aos escravos a que conciliassem sobre este negócio e o que convinha somente era
extingui-los e conquistá-los para os que estavam domésticos não fossem para eles e os
levantados não aspirassem [fazer] maiores danos" contra os moradores. Na ocasião, a
84 Termo da câmara de Salvador de 25 de novembro de 1640. (Arquivo Municipal de Salvador, Livro deatas do senado da câmara de Salvador, livro 3, armário 62) in: Luiz Viana Filho, O negro na Bahia. 2ªed. São Paulo, Martins/ INL, 1976, pp.139-140. Todas as citações desse parágrafo e do próximo foramretiradas desse documento. Agradeço a Flávio dos Santos Gomes a lembrança desta referência, que aliásfoi mencionada por ele em A Hidra e os pântanos. Mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX), São Paulo, Ed. Unesp/Ed. Polis, 2005, p. 402
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maior parte das opiniões foi favorável à guerra e a idéia do marquês vice-rei foi
descartada.
No final de outubro, solicitou à câmara que mais uma vez se pronunciasse sobre o
assunto. A câmara continuou contrária a "pôr-se em concerto com esses negros",repetindo que o melhor era conquistá-los. Contudo, não se devia fazer como das outras
vezes, pois os que eram aprisionados depois de algum tempo voltavam a fugir, levando
companheiros. Por isso, melhor seria que os prisioneiros fossem empregados nas galés da
capitania, pagando-se por cada um deles 12 mil réis "para prêmio de quem lá fosse
buscar estes negros", e que as mulheres fossem mandadas para fora da capitania.
Preocupados que a medida gerasse abusos, explicavam que a condenação às galés
aplicava-se "somente aos [negros] dos mocambos, conhecidos por estes" e não aos que
para lá tinham ido à força ou enganados. As "crias que se achassem nascidas e criadas
nos mocambos" ficariam para o governador, como antes se havia praticado.
A proposta do marquês parecia envolver mais que um subterfúgio para extinguir
os mocambos. Ao associar o alistamento no terço dos Henriques com a permanência nos
mocambos, envolvia um modo de incorporar os negros levantados à ordem colonial. A
câmara, ao contrário, considerava serem eles escravos fugitivos, com os quais não havia
possibilidade de qualquer negociação. Ainda que o debate tenha sido filtrado pela
formalidade da ata e pela pena de quem a escreveu, a diferença na nomenclatura revelaavaliações políticas bastante diferenciadas - levando a propostas antagônicas.
Pouco tempo depois, o marquês de Montalvão enviou a Lisboa um memorial
sobre o assunto.85 Não chegou a mencionar sua proposta, apenas a decisão da câmara,
com algumas modificações: os homens apanhados vivos seriam enviados para as galés;
as mulheres seriam restituídas para seus donos mediante o pagamento de 12 mil réis, que
seriam depois distribuídos entre os soldados, e as "crias" ficariam com o marquês, depois
de descontado o quinto da Coroa. Contou ainda que, em seguida às deliberações, enviara
contra os mocambos "umas tropas de índios e outras de negros", que fizeram 46
prisioneiros, depois enviados para as galés. Contudo, como entre eles havia "um que os
85 Ainda não consegui localizar o original da carta enviada a Lisboa. Seu conteúdo é deduzido do resumoque dela fez o Conselho Ultramarino em consulta de 28 de maio de 1642. AHU_ACL_CU_ConsultasServiço Real, Cod. 30, fls. 191 e segs. Verificar também, sobre esse assunto, o parecer do Conselho daFazenda de mesma data. AHU_ACL_CU_005, Cx. 1, D. 39.
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governava", o marquês "o persuadiu a que lhe fossem entregar a gente que ficava nos
mocambos e, prometendo-lho, o fez capitão de Henrique Dias governador dos negros, e
os mandou fazer outra entrada".
Ou seja, o partido da guerra contra os mocambos havia prevalecido; mesmoassim, era possível algum tipo de negociação, ainda que apenas com um indivíduo. Nesse
caso, uma das lideranças presas foi nomeada capitão do terço de Henriques Dias e, como
tal, participou de outra expedição que atacou um mocambo junto ao rio São Francisco,
voltando já depois de vencido o tempo do governo do marquês, com muitos prisioneiros.
Essa volta foi atribulada e muitos dos presos acabaram desencaminhados e vendidos
pelos caminhos.
O episódio gerou uma enorme discussão em Lisboa, com consulta ao Juiz da
Índia e Mina, a outros governadores do Brasil. O centro do debate era a legitimidade das
medidas tomadas com relação aos prisioneiros - se podiam ser redistribuídos, vendidos,
se deviam ser devolvidos a seus antigos donos e como se devia proceder nesse caso - não
havendo qualquer questionamento em relação à alforria concedida ao chefe aprisionado e
sua nomeação como oficial do terço dos Henriques.86
Talvez a proximidade da guerra contra os holandeses e a concessão de alforria
para o recrutamento de escravos para a luta, que esteve na origem do terço de Henrique
Dias,87 tenha servido de inspiração para a atitude de Montalvão. Talvez tenha até mesmose lembrado do que havia ocorrido em São Tomé, em 1595. Difícil saber. De qualquer
modo, se a via da negociação coletiva por meio de um padre não fora aceita, a proposta
feita ao chefe aprisionado não parece ter oferecido dúvidas, já que não há registro de
qualquer discussão sobre ela nos dois lados do Atlântico.
Este não foi um episódio isolado. Também em relação aos negros dos Palmares
houve negociações anteriores a 1678, especialmente na época do governo de Francisco
86 Consulta do Conselho Ultramarino de 28 de maio de 1642. AHU_ACL_CU_Consultas Serviço Real,Cod. 30, fls. 191 e segs.
87 Ver, a esse respeito, José Antônio Gonsalves de Mello, Henrique Dias: Governador dos crioulos, negrose mulatos do Brasil . Recife, Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana/CNPq, 1988; e HebeMattos, "Henrique Dias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português" in: RonaldoVainfas; Georgina Silva dos Santos; Guilherme Pereira das Neves (orgs.), Retratos do Império.Trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX . Niterói, EDUFF, 2007, pp. 29-46.
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de Brito Freire. Também aqui elas aparecem em meio a várias alternativas para lidar com
os negros levantados nos mocambos.
No início de seu governo, em 1661, tomando conhecimento dos assaltos feitos em
casas e fazendas nas Alagoas pelos "negros do mato", Brito Freire resolveu enviar novaexpedição contra os Palmares. Planejou enviar seis tropas de 150 a 200 homens cada
uma, por caminhos diferentes, para atacar os mocambos, com ordens para destruir todas
as roças que lá encontrassem e "arcabuziar (...) como rebeldes e levantados" os que
resistissem.88 Esperava assim acabar com a insolência dos negros dos Palmares, que
haviam conseguido vencer expedições anteriores e se faziam cada vez mais ousados.
Ao que tudo indica, ele não estava para brincadeiras e tomava medidas severas
contra Palmares e outros negros que incomodavam os moradores. No caso, por exemplo,
de uma "tropa de trinta negros e alguns mulatos [que] andavam salteando nas estradas,
tomando as escravas dos moradores" da região de Santo Antonio, ele enviou soldados
com ordens para prender os assaltantes, autorizando-os a matar os que resistissem, e
colocar suas cabeças e quartos pelas estradas, isentando os soldados de qualquer
punição.89
Para o ataque contra Palmares, tomou várias providências, expedindo ordens para
aprovisionar as tropas, arranjar a munição necessária e traçar estratégias durante todo o
ano de 1661. Mesmo assim, em um dos muitos regimentos que expediu aos comandantesdas tropas que pretendia enviar contra os Palmares, deu instruções precisas para que,
assim que tivessem feito alguns prisioneiros, fossem escolhidos "dois dos mais antigos e
capazes" para que levassem um papel que havia entregue ao capitão da expedição, pelo
qual fazia ofertas aos negros, "em nome de El-rei nosso senhor". O conteúdo do tal papel
deveria ser lido e explicado aos dois prisioneiros, para que eles pudessem depois explicá-
lo ao chefe dos mocambos. Os que quisessem vir "com o dito papel tratar alguma coisa"
com o governo poderiam "vir livremente sem lhe fazer mal nenhum, antes lhe darão
88 Vide, entre outros, o Regimento de 24 de dezembro de 1661. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 62v-63, doc.54.
89 Ordem de Francisco de Brito Freire de 1º de fevereiro de 1661. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 68-68v,doc. 64.
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alguns soldados para virem em sua guarda".90 Não se pode saber o que dizia o tal papel,
mas documentos posteriores revelam ter sido "editais (...) em que [se] lhes assegurava
para sempre liberdade, assim aos pais como às crias de toda a sua descendência, e sítio
donde eles nomeassem para fazerem plantas e aldeias".91
Francisco de Brito Freire ia bem além da proposta do marquês de Montalvão.
Não pensava em alistar ninguém no terço dos Henriques, mas previa a concessão de terra
e liberdade para os nascidos nos mocambos. A proposta era feita em meio aos combates,
utilizando prisioneiros como intermediários. Não constituía uma alternativa à guerra, pois
a preparação do tal papel precedia o envio das tropas; fora levado na bagagem do capitão
junto com suas armas.
O expediente foi tentado de novo no ano seguinte, precedido dessa vez de
consultas aos moradores. Em dezembro de 1662, diante do fato de que as expedições e
promessas enviadas não haviam surtido efeito, o governador consultou pessoas
experientes e se resolveu a liberar quem quisesse atacar os Palmares, concedendo-lhes
ficar com os prisioneiros que fizessem, desde que tivessem fugido havia mais de um ano;
sobre esses prisioneiros não haveria qualquer taxa. Além disso, ele abriria mão das crias,
que de costume ficavam com os governadores, para que fossem distribuídas entre os
voluntários. Para que tudo pudesse ser executado sem contestações posteriores, Brito
Freire ordenou que os vigários consultassem os moradores de suas freguesias.92 Tudo indica que a providência teve sucesso, pois em abril de 1663 Brito Freire
enviou uma carta ao governador do Estado do Brasil contando boas novidades. Explicava
ter feito muitas diligências contra os negros dos Palmares "que tanto inquietavam estes
moradores", sem ter conseguido vencê-los; por isso havia resolvido "mandar-lhe uns
cartazes em que lhe[s] prometia terra para suas lavouras e deixá-los viver livremente
contanto que não admitissem mais escravos dos moradores, antes se obrigariam a
entregar os que para lá fugirem."93 Como fora avisado de que no Rio de São Francisco "o
90 Regimento de Francisco de Brito Freire 29 de dezembro de 1661. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 66-66v,doc. 60. Cf, também Regimento de Francisco de Brito Freire 4 de janeiro de 166[2]. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 66v-67v, doc. 61.
91 Edital de 6 de dezembro de 1662. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 86v-87, doc. 123.92 Edital de 6 de dezembro de 1662. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 86v-87, doc. 123.93 Carta de 17 de abril de 1663. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 91, doc. 137.
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cabo de um mocambo vinha a tratar deste ajustamento", enviava para lá o padre João
Duarte Sacramento para cuidar do assunto.94
As negociações não foram bem sucedidas. Em carta dirigida ao governador do
Estado do Brasil, quatro meses depois, informa as providências tomadas e a propostafeita por intermédio do padre Sacramento e conta que "os negros, faltos do conhecimento
da razão, não a souberam avaliar porque não só o despediram com desprezo e palavras
escandalosas [como] mais ainda obstinadamente mandou o seu maior, que governa a
todos, degolar o cabo de um mocambo e a outro seu companheiro por quererem aceitar o
ajustamento". Diante disso, considerava que os negros eram "indignos de nenhuma
piedade [sic] e merecedores de um cruel castigo", e resolvia que o melhor era mesmo não
dar "quartel a nenhum dos ditos negros de 15 anos para cima e que quando se
aprisionassem alguns fossem enforcados nessa praça". Pedia que o governador geral
confirmasse a resolução, pois a medida não constava das leis civis e militares.95
A matéria era urgente e a resposta veio logo em 9 de setembro, apoiando as
resoluções tomadas por Brito Freire. O governador geral considerava apenas não ser
justo degolar todos os prisioneiros, mas somente os que fossem reconhecidos como
cabeças dos mocambos. Por isso, mandava combater e prender todos os que não
quisessem se sujeitar:
"enquanto durar o conflito não dê quartel a quem se defender, e aprisionetodos os que se lhe sujeitarem; pois deste modo só se não falta à piedadecatólica, mas nem à obrigação militar; pois na clemência se facilita orendimento; e se se virem que de nenhum modo não têm quartel, poderáneles obrar a desesperação, o que muitas vezes não consegue o valor. E[a] entrada que for, a povoação se abrasará e consumirá tudo, de maneiraque não fique mais que as memórias de sua destruição, para últimodesengano dos negros dessa Capitania, e desta, donde também se padecem bastantes perdas dos que fogem para os mocambos. Que aindaque é tão grande o número dos daquele, como me dizem, [que] poderãosó ficar no Brasil os que tiverem idade que [os] segure o temor de se
94 Carta de 17 de abril de 1663. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 91, doc. 137. Cf. também carta de 18 de abrilde 1663, AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 74, doc. 85.
95 Carta de 23 de agosto de 1663. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 93v-94v, doc. 144. O episódio érapidamente comentado por J. Antônio Gonsalves de Mello, "Brito Freyre, a sua história e Pernambuco"in: Francisco de Brito Freire, Nova Lusitânia. História da guerra brasílica. 2ª ed. Recife, Secretaria deEducação e Cultura, 1977, apêndice; e M. C. Medeiros, Igreja e dominação no Brasil escravista. O casodos oratorianos de Pernambuco, 1659-1830. João Pessoa, Idéia, 1993, p. 110.
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tornarem a ir aninhar naquela parte; e os mais se podem exterminar comoordenarei, depois de virem prisioneiros".96
O português é arrevesado, mas a mensagem é clara: luta sem quartel, arrasando os
mocambos e deixando no Brasil apenas as crianças, para exemplo de todos os escravos
em Pernambuco e na Bahia. A experiência deve ter marcado Brito Freire, pois incluiu, no
relatório final de seu governo, a "entrada geral" que mandou fazer com "onze tropas
juntas" e que permaneceu no sertão por cinco meses. Ali se pode ler que, estando "os
negros medrosos e quebrantados" pelas mortes causadas, pela sede e fome advinda da
destruição de suas plantações, ele havia procurado "reduzi-los com indústria e suavidade
para arrancar as raízes dos males que se padecem há tantos anos". Para isso, mandara
"lançar nos seus mocambos alguns línguas para os persuadir a que
baixassem e se reduzissem (como já se havia reduzido a nação dosTapuias) a viver junto a nós, em sítios assinalados; e quando se nãoaproveitassem desta benevolência lhes repetiria novos e maiores apertos,com que ultimamente mandaram alguns negros falar com os filhos [sic]do sargento mor Antonio Vieira, para que eu os certificasse da verdade, pois pela [sic] não saberem haviam degolado dois, cuidando que eramespias nossas, com que se voltaram aos seus e me tornaram avisar [que]estavam juntando todos para descerem os principais a ter comigo e aceitar o que lhes oferecia."97
Nesse texto, Brito Freire comenta não ter tido notícia do sucesso ou não da
empreitada por se "acabar o tempo da [sua] assistência naquele governo". Como se vê, a
versão é ligeiramente diversa da que se pode obter pela documentação administrativa.
Alguns anos mais tarde, incluiu os "negros dos Palmares" entre "as coisas mais notáveis"
da história brasílica que escreveu sobre as guerras contra os holandeses. Seu livro foi
escrito entre 1669 e 1675, quando esteve preso, depois de retornar a Portugal e negar-se a
conduzir o rei deposto ao exílio nos Açores.98 Mais uma vez, suas observações sobre os
acontecimentos nessa região misturam características do testemunho, da memória e da
história e merecem ser tratadas aqui.
96 Carta do conde de Óbidos para Francisco de Brito Freire de 9 de setembro de 1663. DH, 9 (1929): 127-129.
97 Francisco de Brito Freire, [Relatório dos serviços prestados em Pernambuco], s.d. BNL-Res, Cx. 236 n.51.
98 Francisco de Brito Freire, Nova Lusitania, historia da guerra brasilica, a purissima alma e savdosamemoria do serenissimo principe dom Theodosio, principe de Portvgal . Lisboa, Officina de João Galrão,1675. Ed atual. e rev. São Paulo, Beca, 2001.
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Ao tratar das calamidades que afligiam os moradores da capitania no início dos
anos 30 do século XVII, ele menciona os holandeses, os Tapuias e os negros dos
Palmares. Depois de uma breve descrição do modo como viviam os habitantes dos
mocambos e dos danos que faziam às "fazendas, casas e lavradores", discorre sobrealguns meios para reduzi-los. Suas considerações partem do fato de que, "apesar das
diligências (...) antes aqueles negros se aumentam que diminuem". Sugere a distribuição
dos prisioneiros entre os soldados, a fim de que as campanhas fossem feitas sem dar
descanso aos fugitivos, bem como recomenda que suas lavouras sejam destruídas, o que
lhe parecia ser melhor do que persegui-los pelos campos. Uma vez que fossem
desalojados, dever-se-ia instalar na região duas povoações para que servissem de base
para as operações. Considerava ainda a possibilidade de
"reduzi-los com indústria, dando favor e liberdade a alguns dos quetrazemos para persuadirem os mais que venham lograr seguramente, paraas almas e para as vidas, na escola da nossa doutrina e no amparo danossa assistência, o fruto da sua quietação. E sem nenhum receio detornarem a ser cativos, viverem livres na forma de todos os outros negrosseus parentes alistados no terço de Henrique Dias, que el-rei mandoulivrar: e assim lhes constaria, aos olhos dos mesmos senhores, andaremlivres".99
A passagem é duplamente interessante. Em primeiro lugar, ela revela o trabalho
da memória. Brito Freire situa o drama vivido pelos moradores com os Palmares junto a
acontecimentos ocorridos em 1634. Como seu livro trata das lutas contra os holandeses
na Bahia e em Pernambuco, não poderia incluir acontecimentos de seu governo. Não
deixa de ser interessante, contudo, que faça a inclusão dos Palmares em sua história e
mencione seu próprio nome na passagem, ao referir-se ao procedimento que adotou com
os Tapuias. Deve-se notar, também, que a lembrança soma a continuidade da guerra à
oferta da liberdade em troca do alistamento no terço dos Henriques, sem qualquer
referência à concessão de terras ou à liberdade para os nascidos nos mocambos.
Em segundo lugar, o interesse no trecho decorre das análises que suscitou na
historiografia. As sugestões de Brito Freire são mencionadas por vários autores, em geral
para marcar a existência dos Palmares desde as décadas iniciais do século XVII ou para
mostrar que as formas alternativas à guerra estavam destinadas ao fracasso. Ronaldo
99 F. B. Freire, Nova Lusitania, pp.280-282 (na ed. 1675) ou pp. 178 (ed. 2001).
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Vainfas, por exemplo, ao comentar essa proposta de Brito Freire, observa que "havia
algo de estratégico nesse aparente recuo senhorial em face da rebeldia negra organizada",
pois a concessão da alforria podia significar a suspensão dos ataques, e a devolução dos
fugitivos quebrava o nexo entre os mocambos e os escravos das fazendas e engenhos.Assim, esse era um recurso que enfraquecia os quilombos e facilitava a repressão,
enquanto se obtinha uma trégua. Para os quilombolas, os tratados seriam "um meio de
obter a alforria para os amotinados e garantir, ao menos pro tempore, a autonomia das
povoações negras".100 De todo o modo, para esse autor, tais propostas constituíam um
"paradoxo incrível (...) a revelar a hesitação e medos dos agentes do colonialismo
lusitano".101
Talvez se possa avaliar a questão com maior nuance ao ponderar seus aspectos
políticos. Como se pode verificar nos episódios descritos acima, havia muitos interesses
em jogo. A avaliação das medidas a serem adotadas contra os mocambos passava, em
primeiro lugar, por uma forma diferenciada de qualificá-los (se escravos fugitivos ou
negros levantados). Em seguida, dependia dos custos financeiros e políticos implicados
nas alternativas - que não necessariamente eram excludentes. Em terceiro lugar, envolvia
um debate sobre o destino dos prisioneiros feitos na guerra ou dos negros com os quais
se fizesse alguma negociação.
É evidente que o embuste era possível e que a promessa de liberdade ou doalistamento militar podia ser apenas um subterfúgio. A possibilidade de qualquer ajuste -
individual ou coletivo - implicava o reconhecimento do outro como um oponente
político: capaz de ponderar propostas, decidir segundo sua própria avaliação e manter o
acordado. O terço dos Henriques constituía um exemplo bem sucedido de colaboração, e
parecia implicar custos menores - pelo menos enquanto o novo soldado cumprisse as
novas funções. A guerra, como vimos, era uma empresa custosa que sobrecarregava os
moradores.
A experiência vinha mostrando que, apesar de diversos, os planos e as estratégias
quase sempre redundavam em fracasso. Mesmo quando as autoridades e senhores de
100 Ronaldo Vainfas, "Deus contra Palmares. Representações senhoriais e idéias jesuíticas" in: João JoséReis e Flávio dos Santos Gomes (org.), Liberdade por um Fio. S. Paulo, Companhia das Letras, 1996, p.65.
101 Ronaldo Vainfas, "Deus contra Palmares", pp. 62-65.
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engenho conseguiam destruir um mocambo ou prender alguns ou muitos fugitivos, a
resistência dos negros dos Palmares parecia ser invencível. Além de contarem com
aliados, que os avisavam das expedições, a região onde estavam instalados era inóspita,
as dificuldades em recrutar soldados enormes e os custos das expedições imensos. Tudoindica que não havia concordância entre os moradores das vilas vizinhas e as autoridades
coloniais quanto a medidas importantes. Quem deveria arcar com as despesas das
incursões repressivas? Quais as melhores estratégias? Para compor a tropa se devia
recorrer aos índios, ao terço dos Henriques ou aos paulistas e a outros sertanistas
experientes? As divergências entre os governadores, as câmaras e os senhores de
engenho atrasavam as expedições e ajudavam a boicotar os resultados esperados.
O que fazer com os prisioneiros? Deviam ser vendidos para fora da capitania ou
dados como prêmio aos que lutassem contra os mocambos? Podiam ser usados para
pagar parte dos custos das operações militares ou sua tomadia devia ser paga pelos
senhores? Parte do dilema residia na necessidade de ponderar o interesse dos senhores
dos fugitivos e o da segurança geral da capitania. Outra parte estava no reconhecimento
de diferenças entre as mulheres e os homens, os que fugiam por vontade própria e os que
eram obrigados a ir para os mocambos, e entre os que haviam sido escravos e os nascidos
fora do domínio senhorial. O costume de dar as "crias" para os governadores significa a
quebra do princípio escravista de que os filhos seguiam a condição da mãe - já que,nascidos de escravas, libertas ou livres, acabavam por ganhar um (novo) senhor.
Finalmente, é preciso levar em conta a grande diferença entre conceder a alforria
a um indivíduo, em troca de colaboração, e oferecê-la de modo coletivo, mesmo que não
para todos os levantados, por meio de um acordo de paz. No caso das propostas feitas
pelo marquês de Montalvão e por Brito Freire, a liberdade vinha ainda acompanhada pela
concessão de terras. Se aceitas e implementadas, elas significariam a continuidade dos
mocambos, como havia explicitado Montalvão. Tratava-se de reduzir negros levantados à
obediência - talvez não àquela de seus senhores, mas a das autoridades coloniais.
Como se vê, a equação é bastante complexa. Até agora temos analisado sobretudo
o lado dos que lutavam contra os mocambos. Pelo visto, as reações podiam ser as mais
diversas - da aceitação parcial, da dissimulação ou da recusa completa, com a degola
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exemplar dos que tivessem começado a negociar. Antes de seguir essa trilha, no entanto,
é importante saber mais sobre os termos ajustados em 1678.
3. Homens de palavra
Todos os autores que tratam com um pouco mais de detalhe das negociações
utilizam-se da crônica de 1678 para narrar a entrada no Recife, em meados de junho, de
uma embaixada palmarina. Como dom Pedro já havia sido substituído por Aires de
Souza de Castro, ela foi enviada ao novo governador. Depois das cerimônias de recepção
e das homenagens, o conselho da capitania foi reunido, para discutir a resposta que os
quilombolas traziam de Palmares. Estavam presentes dom Pedro de Almeida, Aires de
Souza de Castro, o ouvidor geral, o provedor da Fazenda e os oficiais militares que
haviam liderado as expedições, além dos membros da comitiva vinda de Palmares.102
Mais uma vez, embora a fonte seja a mesma, o modo de expor e interpretar os
acontecimentos varia entre os autores. Em Nina Rodrigues, a descrição da embaixada
ganha destaque, pois não apenas era mostra evidente da "influência africana e da
independência e constituição bárbara ou selvagem em que vivia Palmares" como também
da "real importância do Estado negro com o qual a colônia tratava agora como de nação a
nação celebrando tratados de paz". Depois de observar o "curioso contraste" entre esses
acontecimentos e o esforço para afirmar a destruição de Palmares, Nina Rodrigues
conclui: "não se comportaria assim um governo forte com agrupamentos fortuitos de
negros fugidos que se devem reduzir à obediência". Assim, na narrativa construída por
esse autor, o episódio serve para reafirmar o poderio dos mocambos instalados na Serra
da Barriga e mostrar o quanto eram "ilusórias as esperanças do governador" de que
estavam enfim destruídos. 103
Edison Carneiro detalha um pouco mais as negociações em torno dos termos da paz, realizadas em reunião do Conselho da capitania, convocada especialmente para
cuidar do assunto. Aqui, porém, é o "pedido" de Gangazumba por "liberdade, paz,
entrega das mulheres e local" que é discutido e aceito pelo Conselho, que terminou por
102 "Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco", p. 328.103 N. Rodrigues, Os africanos no Brasil , p. 84
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apoiar a proposta do governador de dar aos palmarinos as terras que escolhessem para
habitar e plantar, de libertar os nascidos em Palmares e lhes facultar comércio e trato com
os moradores. Para esse autor, as negociações não eliminam atitudes conflitantes, como
prometer a paz e ao mesmo tempo incentivar voluntários a atacar o quilombo com a promessa de isenção do pagamento do quinto. O ponto que mais chama sua atenção,
contudo, são as dúvidas, nos "círculos oficiais", sobre "o sossego a tanto custo
conseguido", um receio, segundo ele, confirmado pelos termos benevolentes acertados
com os negros, que "mais parecem ditados pelos palmarinos".104
Mário Martins Freitas segue na mesma direção, mas estabelece uma diferença
entre dom Pedro de Almeida e Aires de Souza de Castro. O primeiro, confiante na
destruição dos Palmares e sedento de glória, havia proposto a paz como um dos atos
finais de seu governo, assim como permitira a isenção do quinto para os voluntários que
capturassem os negros que continuavam espalhados pelos matos. Castro, por sua vez,
"ignorando a situação política e a organização do reino negro dos Palmares", fiou-se nas
informações do capitão Carrilho e acabou sendo "complacente com a embaixada de
Gangazumba e prometeu fazer a paz nas bases pedidas". Mesmo assim, a solenidade da
reunião do conselho e da recepção à embaixada pareciam-lhe ser "um concerto de
potência a potência".105
Ao invés de aprofundar o debate nos termos em que está colocado, prefiro buscar a via alternativa da leitura das fontes disponíveis. Nesse caso, o "papel" que resultou da
reunião entre os enviados de Palmares e as autoridades da capitania de Pernambuco é o
principal documento. Tendo em vista a importância desse documento, sua análise será
feita com vagar e paciência na interpretação de detalhes.
Como já observei, a bibliografia pouco se demorou sobre os termos ajustados na
ocasião. Apenas alguns dos autores lhe deram mais atenção: Mário Martins Freitas,
Décio Freitas, Ivan Alves Filho e Flávio Gomes.106 Como M. M. Freitas e Décio Freitas
citam um pequeno trecho entre aspas, é possível verificar que a fonte utilizada por eles
foi a crônica publicada pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em
104 E. Carneiro, O quilombo dos Palmares, p. 118.105 M. M. Freitas, Reino negro de Palmares, pp. 249-251.106 M. M. Freitas, Reino negro de Palmares, pp. 251-252; D. Freitas, Palmares, pp. 109-110; I. Alves
Filho, Memorial dos Palmares, pp. 90-91; e F. S. Gomes, Palmares, p. 131.
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1859.107 Ivan Alves Filho, que indica ter consultado a cópia existente no Arquivo
Histórico Ultramarino,108 também se apóia na publicação de 1859 ao resumir as
determinações do acordo. Como não há qualquer anotação ou citação nessa passagem do
livro de Flávio Gomes, é difícil saber a fonte utilizada por ele.Apesar da convergência de fontes, o modo como cada um desses autores se refere
às condições da paz ajustada entre os embaixadores de Palmares e o conselho reunido em
22 de junho de 1678 é bem diferente. Para Mário M. Freitas, o conselho discutiu "a paz
pedida" por Gangazumba e aceitou a proposta do governador, resumida assim:
"1) que se lhes desse o sítio que eles designassem ou escolhessem parasuas habitações e plantas;
2) que a esse sítio se recolhessem no prazo de três meses;
3) que seriam livres os negros nascidos nos Palmares, conforme propunhaGangazumba;
4) que fossem restituídos pelo rei todos os escravos fugidos das fazendase engenhos;
5) que teriam comércio e trato com os brancos;
6) que lograriam os foros de vassalos de el-rei e que ficariam obedientesàs ordens do governador da capitania;
7) que o rei negro seria nomeado mestre-de-campo de toda a sua gente eresponsável pela ordem entre os negros;
8) que seriam restituídas as mulheres do rei e dos demais potentados, seuscabos maiores".109
Décio Freitas registra que dom Pedro de Almeida defendeu "a conveniência das
pazes com os palmarinos" e propôs um acordo "nas seguintes bases: 1) liberdade para os
nascidos nos Palmares; 2) concessão de terras para viverem e cultivarem; 3) garantia de
comércio e relações com os moradores circunvizinhos; 4) gozo do foro de vassalos da
107 M. M. Freitas, Reino negro de Palmares, p. 252. O trecho citado ("quando algum por rebelde
repugnasse a sua e nossa obediência ele o conquistaria, e daria guias para as nossas armas odesbaratarem") está em "Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco", p. 328; D. Freitas, Palmares, p. 110. Os dois trechos citados por esse autor ("conduzir alguns contrários, que viviamdistantes das suas cidades" e "conduziria a todos ao nosso domínio, e quando algum por rebelderepugnasse a sua e nossa obediência ele o conquistaria, e daria guias para as nossas armas odesbaratarem"), também estão na "Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco", p. 328, coma ressalva que ali se lê "corsários" e não "contrários".
108 I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, p. 91. Estranhamente, porém, ao resumir as cláusulas doacordo, ele referencia, na nota 57 (p.116) da "Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco".
109 M. M. de Freitas, Reino negro de Palmares, pp. 251-252.
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Coroa", ficando "implícito que os negros nascidos fora de Palmares seriam reduzidos ao
cativeiro". 110 Mais uma vez, Ivan Alves Filho segue de perto a análise de Décio Freitas e
resume as cláusulas do seguinte modo: "concessão de terras aos palmarinos em local em
que pudessem viver e plantar; liberdade para todas as pessoas nascidas em palmares;liberdade de comércio entre os palmarino e os moradores das vilas e vilarejos coloniais;
os palmarinos seriam considerados doravante vassalos do rei de Portugal. O acordo
deixava implícito que os palmarinos nascidos fora de Palmares seriam novamente
escravizados."111
Para Flávio Gomes, as condições e termos são um pouco diferentes:
"os palmaristas concordaram com um tratado de paz, considerando que aautonomia de Palmares fosse respeitada. O referido governador aceitou
inicialmente, colocando as seguintes condições: a liberdade dos negrosnascidos em Palmares seria respeitada; os palmaristas poderiam continuar mantendo trocas mercantis com taberneiros, comerciantes e vendeiros daregião; as terras nas quais os palmaristas iriam viver seriam agorademarcadas pela Coroa; novos cativos que fugissem para Palmaresdeveriam ser imediatamente devolvidos para as autoridades coloniais eseus respectivos proprietários; a partir da assinatura daquele tratado, palmaristas passariam à condição de vassalos do rei."112
É notável a diferença entre os autores. Divergem quanto a quem propõe ou aceita
as condições e quanto ao que ficou acertado nas negociações. O resumo oferecido por M.
M. Freitas é sem dúvida mais completo do que o apresentado pelos outros três, queguardam maior proximidade entre si. Mesmo que fiquemos com as cinco cláusulas que
todos enfatizam, a variação é grande.
A restituição dos fugitivos, que aparece como uma cláusula implícita em Décio
Freitas e Ivan Alves Filho, torna-se uma determinação a ser imediatamente cumprida em
Flávio Gomes. Também não há consenso sobre o teor dessa cláusula: são "os escravos
fugidos das fazendas e engenhos", os "nascidos fora de Palmares" ou "os novos cativos
que fugissem para os Palmares" que devem ser "restituídos", "reduzidos ao cativeiro",
110 D.Freitas, Palmares, p.121. I. Alves Filho, p. 90.111 I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, p. 90. Estranhamente, na página seguinte, depois de indicar o
arquivo que guarda o original, cita alguns de seus trechos, incluindo o compromisso de Gangazumba de"entregar todos os escravos que destas capitanias haviam fugido para esses Palmares". É de se perguntar se entregar os fugitivos poderia significar outra coisa diferente do que serem eles "novamenteescravizados"...
112 F. S. Gomes, Palmares, p. 131.
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"novamente escravizados" ou "devolvidos para as autoridades coloniais e seus
respectivos proprietários"? A escolha do lugar onde os habitantes de Palmares iriam se
estabelecer também varia, sendo feita ora pelo pessoal de Gangazumba, ora sendo
"demarcada" pela Coroa. O comércio - "com os brancos" para um autor, com os"moradores das vilas e vilarejos coloniais" para outro, ou apenas com "taverneiros,
comerciantes e vendeiros da região" - pode ser uma prática que passará a existir, ganhar a
condição de livre, ou simplesmente continuar .
As diferenças apontadas aqui não são de pequena monta: dizem respeito a
compreensões díspares sobre os sujeitos responsáveis pelas ações a serem executadas,
sobre a amplitude das decisões tomadas e sobre quem ou o quê elas incidem. As
divergências não parecem estar baseadas em informações retiradas de fontes diversas,
mas na interpretação elaborada pelos autores. É surpreendente, também, que nenhum
deles tenha ido além do resumo, para explicar o significado de certos termos como, por
exemplo, ter foro ou ser vassalo da Coroa ou do rei (que, a bem dizer, a essa altura era
príncipe regente).
Para dar conta de dirimir dúvidas e questões, a consulta às fontes é um bom
procedimento. Nesse caso, porém, temos dois originais: a cópia que foi anexada à carta
enviada por Aires de Souza de Castro ao príncipe em 22 de junho de 1678, que se
encontra no Arquivo Histórico Ultramarino, e aquela que foi registrada nos livros dasecretaria do governo de Pernambuco e copiada no códice guardado no Arquivo da
Universidade de Coimbra.113 Qual delas escolher?
O texto varia pouco nas duas cópias, como se pode ver pela tabela comparativa
que compõe o anexo 6. A maior parte das diferenças pode com facilidade ser tributada à
atenção dos copistas, menos em dois casos: a menção ao batismo dos filhos de
Gangazumba que compunham a embaixada e o prazo de trinta dias para a resposta -
ambas presentes apenas no manuscrito do Arquivo Histórico Ultramarino. Além disso,
esse documento foi assinado pelo governador. Era prática comum nas secretarias desse
período produzir uma ou mais cópias dos documentos, que eram assinadas pelas
autoridades simultaneamente, para depois serem remetidas a seus destinos. Isso acontecia
113 Os documentos vão reproduzidos na íntegra nos anexos 5 e 1, respectivamente.
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com certa freqüência nas comunicações entre os governantes coloniais e a metrópole,
como se pode verificar na documentação guardada no Arquivo Histórico Ultramarino.
Assim, o manuscrito que está em Lisboa deve ter sido produzido ao mesmo tempo que
aquele enviado a Palmares.O registro da correspondência enviada e recebida era feito em livros específicos,
em geral diferentes, que permaneciam nos arquivos das secretarias. Não são assinados -
quando muito, mencionam a assinatura, indicando o nome de quem assina, ou a
existência de rubricas. É o caso do manuscrito que pertence à coleção Conde dos Arcos,
que não menciona qualquer assinatura - lembrando ainda que, nesse caso, estamos diante
de uma cópia da cópia registrada no livro da secretaria de governo da capitania. Esse fato
talvez explique a ausência da menção ao prazo para a decisão de Gangazumba e a
implementação do acordo: acrescentada posteriormente, ao final do texto, depois da
fórmula tradicional de despedida e datação, a cláusula não consta do registro. Pode
também indicar que o próprio registro foi feito ao mesmo tempo em que o acordo foi
redigido: o escrivão produziu as cópias, registrou-as antes das assinaturas e a cláusula
extra foi acrescentada em seguida, ficando fora do livro da secretaria.
De qualquer modo, por ser um manuscrito avulso, assinado, e por conta das
observações feitas acima, o documento que tomarei aqui como base para a análise é o
que se encontra guardado em Lisboa. Vejamos o que ele diz.Em primeiro lugar, trata-se de um "papel" - não de um acordo, tratado ou outra
coisa. Aires de Souza de Castro menciona em sua carta ter feito uma "proposta" que foi
levada pelos "negros".114 Por meio do “papel”, em nome do príncipe regente, o
governador remete a Gangazumba "o bem da liberdade e perdão" por viver ele "há tantos
anos fora da [sua] obediência". O texto é claro: é a falta de obediência ao príncipe que é
perdoada e o envio dos "filhos e família" é considerado sinal de submissão suficiente
para criar condições para que o governador pudesse fazer concessões e promessas.
Todavia, ao invés de discriminar quais seriam elas, o texto continua testando o
compromisso assumido entre as partes. O trecho é interessante sobretudo pelas palavras
empregadas, que contrapõem a dúvida à firmeza e segurança, assim como interesses e
114 Carta de Aires de Souza de Castro de 22 de junho 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116.
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utilidades à luz divina e à salvação. E termina com uma ameaça: se no "tempo
assinalado" o que foi oferecido não for cumprido, haverá guerra: as tropas já estão juntas
e tinham poder suficiente para derrotá-los "de todo".
Só depois desse intróito, é que os pontos prometidos são enunciados:1) todos os "negros" dos Palmares e seus "potentados" estão incluídos na paz ajustada;
2) os que não quiserem seguir a paz acordada serão "obrigados" a isso;
3) todos os "negros" das capitanias que haviam fugido para Palmaresserão "entregues",
4) o "sítio [ou "paragem"] a que chamam Cucaú" será concedida por mercê, para que possam morar e fazer "suas aldeias",
5) os moradores de Cucaú poderão plantar seus frutos e ter "os mesmos
lucros que têm os mais vassalos" do príncipe português sem seremobrigados "por força a nenhum trabalho particular salvo se for para oserviço do dito senhor";
6) é concedida "alforria" para os que forem "nascidos" nos Palmares,
7) os "filhos e mulheres que (...) estavam cativos" e iam ser despachados para o Reino serão restituídos,
8) é dada alforria ao negro Amaro ("cativo") e a João Mulato,
9) o governador será avisado se houver quem não queira se submeter à"obediência", para que se mande fazer a guerra contra eles.
A continuação segue o espírito das frases iniciais, com a afirmação de que oenvio dos dois soldados é testemunho da "estimação" feita à "gente preta que obra
debaixo da obediência" do governo, e da promessa de honras iguais às feitas aos filhos,
que foram batizados. O ritmo é quebrado com a menção ao envio de padres para o ensino
da doutrina cristã e há um acréscimo final que estipula um prazo de trinta dias para a
decisão e outros trinta para a execução do que foi acertado.115 Bem contadas e
discriminadas, temos aí doze condições claramente enunciadas.
Não vou insistir na diferença entre o que se lê no "papel" e nos livros dos autores
citados acima. Remeto o leitor para o anexo 7, onde se encontra também o que vai dito
na crônica publicada pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em
115 Cópia do papel que levaram os negros dos Palmares. Doc. anexo à carta de Aires de Souza de Castro de22 de junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116. Ver anexo 5.
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1859, para quem quiser empreender uma comparação mais detalhada entre os vários
textos.
É mais interessante investigar o próprio texto, suas palavras e determinações.
Mário M. Freitas observou que a reunião de negociação mais parecia "um concerto de potência a potência".116 O modo como aquele papel foi escrito me leva a concordar com
a hipótese. As cláusulas reconhecem a existência de hierarquias nos lados em
negociação: em Palmares há Gangazumba e sua família, os potentados, os nascidos em
Palmares e os negros da capitania que haviam fugido - além de alguns indivíduos
específicos; em Pernambuco há o governador, que age em nome do príncipe de Portugal.
As promessas do lado dos palmarinos dizem respeito a fazer a paz e a obedecer ao
governador de Pernambuco, e por meio dele ao príncipe. O príncipe de Portugal passa
assim a ser o senhor de todos ("meu e vosso senhor") - mas isso não elimina a hierarquia
palmarina, já que Gangazumba, por meio dos filhos embaixadores, assume o
compromisso em nome de todos os que estão sob seu poder. Este, aliás, não é
questionado nem limitado por qualquer palavra no documento. O governador negocia em
nome do príncipe, assim como os filhos de Gangazumba falam em seu nome.
A obediência, essa "virtude que inclina a executar os mandados do superior e
sujeita a vontade de um homem à de outro",117 cria nesse caso uma cadeia hierárquica
que liga Gangazumba ao governador e este ao príncipe - o único a não ser obediente aninguém; salvo a Deus. Esse ordenamento, que pressupõe uma solidariedade que
caminha verticalmente em direção ao soberano, faz parte da concepção de vassalagem,
tal como entendida nesse período,118 embora algumas vezes "vassalo" possa ser
entendido mais como um título honorífico, aplicado apenas aos fidalgos de linhagem,
como indica o Vocabulário de Bluteau.119
116 M. M. Freitas, Memorial dos Palmares, p. 251.117 Raphael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino. Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesus,1712. (Ed. fac-simile, CD-Rom, Rio de Janeiro, UERJ, s.d.), verbete "obediência".
118 Tal pressuposto envolvia, necessariamente, princípios laicos e religiosos, associando as noções defidelidade e vassalagem, como bem observou Pedro Cardim, "Religião e ordem social. Em torno dosfundamentos católicos do sistema político do antigo regime". Revista de História das Idéias, 22 (2001):133-174.
119 Segundo o Vocabulário de Bluteau, na época de dom Pedro era apenas um "título, e tão honorífico (...)que (... se não costumava ser vassalo senão filho ou neto ou bisneto de fidalgo de linhagem". R. Bluteau,Vocabulário, verbete "vassalo".
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Ao remeter a Gangazumba o "bem da liberdade e perdão" de sua desobediência,
Aires de Souza de Castro pode ter empregado a palavra liberdade, aqui, em sentido mais
amplo, como o "estado natural no qual tem o homem todos os movimentos da sua
vontade independentes e livres" - primeira definição do termo no Vocabulário deBluteau. Ela está diretamente associada ao perdão - o que pode significar que, apesar de
ter saído do domínio do príncipe português, não será julgado ou obrigado a alguma pena
pela desobediência cometida. Por isso, a liberdade não é devolvida, nem concedida, mas
remetida.120 Ou seja: a obediência ao príncipe português é acompanhada pelo
reconhecimento da liberdade de Gangazumba, pelo perdão - e lhe confere um lugar numa
hierarquia de poderes.
Obediência e perdão eram elementos fundamentais da concepção monárquica
durante a segunda metade do século XVII, no período conhecido como da Restauração.
Dentre os principais atributos do soberano estavam a justiça, a capacidade de garantir
fortuna e segurança aos súditos, e o respeito aos usos e costumes, ao direito natural e às
regras tradicionais. Para ser obedecido por seus vassalos, o rei ou seus delegados tinham
que governar com justiça e respeitar os usos e costumes locais. Ao perdoar Gangazumba,
o príncipe reafirmava suas qualidades como bom governante, em condições de exigir
obediência a seu novo "vassalo".121
Essa concepção está subjacente ao texto ajustado no Recife, mas é explicitada nacarta enviada por Aires de Souza de Castro ao príncipe português em junho de 1678, que
120 Remeter é "mandar uma coisa de um lugar para outro", segundo Bluteau. Remete-se, assim "um papel,uma carta ou outra, com sobrescrito, a alguém". O verbo escolhido pode ser mais uma indicação demundos separados: o papel segue de Pernambuco para Palmares - duas jurisdições separadas. R. Bluteau,Vocabulário, verbetes "remeter"e "remessa".
121 No período da Restauração ocorreram diversos motins de soldados, conjuras de fidalgos, rebeliões anti-fiscais e anti-jesuíticas na Índia, Ásia e América. Esses "levantamentos", na maior parte das vezes,terminaram com a deposição das autoridades locais - do governador, vice-rei ou capitão general. Faz
parte desse contexto a deposição do governador de Pernambuco, Jerônimo de Mendonça Furtado, "oXumbergas", em 1666. Como bem observou Luciano Figueiredo, esses levantamentos não visavamcolocar em cheque o poder do soberano, mas operavam nos termos da concepção monárquicarestauradora, questionando as autoridades locais. Por isso, na maior parte dos casos, o soberano
português evitou a repressão violenta para negociar com seus súditos, buscando restabelecer o equilíbrio perdido. Ver, a respeito, Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, "O império em apuros. Notas para oestudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII eXVIII" in: Júnia Ferreira Furtado (org.), Diálogos oceânicos. Minas Gerais e as novas abordagens parauma história do império ultramarino português. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2001, pp. 197-254. Oepisódio do Xumbergas é longamente analisado por E. C. Mello, A fronda dos mazombos, cap. 1.
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acompanhou o "papel" que está sendo analisado. Nela o governador se refere aos filhos
do "levantado a que chamam rei desses Palmares" que queriam ser seus "obedientes
vassalos". O mesmo termo aparece na carta enviada pelo provedor da Fazenda de
Pernambuco ao príncipe, escrita na mesma data, que registra que os negros "disseram queo seu rei e eles se queriam avassalar e viver debaixo da proteção" do monarca
português.122
Há, assim, entre as cartas que seguem para Portugal e o papel que segue para
Palmares, uma pequena nuance: enquanto nas primeiras se afirma uma submissão que
coloca Palmares em pé de igualdade com outros súditos da monarquia portuguesa, no
último se trata de elidir a palavra, preferindo-se salientar a obediência - e com isso,
indiretamente, reconhecer o respeito à autoridade de Gangazumba sobre os palmarinos.
O tratamento na segunda pessoa do plural, bem como o reconhecimento da autoridade
delegada de seus filhos corroboram essa diferença, que aparece bastante atenuada nas
cartas das autoridades pernambucanas.
O texto que selou o ajuste foi escrito como um documento que emana do governo
de Pernambuco: começa com a fórmula tradicional da identificação da autoridade
delegada a Aires de Souza de Castro, como se fosse continuar a expor suas
determinações. Não explicita reuniões ou decisões conjuntas, mas promessas e
concessões, oferecimentos e pedidos. É um papel escrito para ser explicado por intermediários qualificados - o sargento-mor e o capitão de infantaria, "soldados mui
honrados e mui antigos". A separação entre o escrito e o verbal é marcada e acentuada
também pela diferença da língua falada pelos negociadores - mais um dado a corroborar
a hipótese do reconhecimento de um acerto entre autoridades com requisitos e
características equivalentes.
De modo diverso da tentativa havida durante o governo de Brito Freire, em 1761,
não eram padres a servir de embaixadores, mas soldados. Nesse caso, honra, idade e
experiência os distinguem, fornecendo os atributos para que pudessem servir como
embaixadores entre as duas partes que negociam. São eles que levam o texto e a
capacidade de explicá-lo, já que podem praticar as duas línguas. Tanto a crônica de 1678
122 Carta de Aires de Souza de Castro de 22 de junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116; eCarta de João do Rego Barros de 22 de junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1118.
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quanto outras fontes indicam com nitidez terem sido oficiais do terço dos Henriques, um
capitão e o sargento-mor. O capitão deve ter sido Estevão Gonçalves, que foi pago por
ter ajudado a trazer os "onze negros dos Palmares que vieram a tratar do ajuste da
paz".123
Outro documento indica que pode ter havido também a participação de
companhia paga, pois anos depois se registra que:
"Andou o capitão Antonio Pinto Ribeiro descobrindo umas terras por cima dos Palmares onde estão os negros levantados assistindo e deu o ditocapitão com um caminho que foi seguindo debaixo de todo risco de sua pessoa por ir só sem mais companhia e deu com os ditos negroslevantados propondo-lhes suas razões bastantes para que fizesse quietaçãoe não molestassem os brancos e fizessem pazes. E os ditos negros olevaram onde estava o principal que os governa por nome Gangazumba,
transmitindo-lhe as suas razões. Convenceu-o que queria fazer paz comos brancos, para o que mandou três filhos seus e dois genros e outros maisem companhia do dito capitão a efetuar essa paz com o governador".124
Como se trata de um depoimento posterior, cuja finalidade era atestar serviços
prestados, o capitão pode muito bem ter puxado para si todo o mérito das tratativas - ou
ainda pode ter sido escrito em outra situação. De todo modo, o que importa observar é
que o papel registra a palavra de duas autoridades, que usaram mediadores abalizados
para transmiti-las tanto por escrito como verbalmente. Como já observei, o texto
constitui um passo das negociações, não sua forma final. Estabelece obrigações mútuas,entre autoridades que se reconhecem com competências equivalentes e capazes de honrar
os compromissos assumidos, por eles e seus embaixadores, apalavrados e por escrito.
As cláusulas negociadas distribuem-se desigualmente entre ações sob
responsabilidade do governo de Pernambuco e de Palmares. Se a embaixada composta
por seus filhos foi enviada por Gangazumba para pedir a paz ou aceitar a oferta feita
pelos enviados do governador é difícil saber. Vindos em paz e escoltados por soldados,
os embaixadores assumiram poucos mas importantes compromissos: fazer com que todos
os habitantes dos Palmares seguissem os termos acordados e entregar os fugitivos que
123 Ordens de Aires de Souza de Castro de 20 e 21 de junho de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 344,doc. 37 e fl. 344, doc. 38.
124 Não consegui encontrar ainda o original desse documento, datado de 9 de fevereiro de 1682. Ivan AlvesFilho, Memorial dos Palmares, p. 116, nota 60 o referencia como estando no AHU, Pernambuco, caixa8, fl.2.
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tinham ido para Palmares. No primeiro caso, a obediência geral dependia da autoridade
de Gangazumba sobre seus potentados - e ele poderia contar com o auxílio externo
militar para que fossem obrigados a se submeter. A entrega dos fugitivos legitimava a
autoridade dos senhores de escravos de Pernambuco e das capitanias anexas; por outrolado, resguardava a de Gangazumba sobre os nascidos em Palmares. Mais uma vez, o
reconhecimento da autoridade de Gangazumba estava limitada pela existência de outros
poderes. O perigo do aniquilamento - a ameaça de uma guerra capaz de derrotá-lo "de
todo" - seria o elemento capaz de levá-lo, segundo Aires de Souza de Castro, a cumprir a
paz ajustada.
Do lado do governo de Pernambuco, estão a concessão das terras em Cucaú, o
reconhecimento de que seus moradores terão liberdade para plantar e ter os mesmos
lucros que os demais vassalos de Portugal, a alforria para os nascidos em Palmares e para
Amaro e João (o que sugere não serem eles ali nascidos), a restituição dos filhos e
mulheres que haviam sido cativados, bem como a promessa de honrarias a Gangazumba
e o envio de padres para que pudessem ingressar no mundo cristão e nele permanecer. O
texto indica que as terras de Cucaú foram cedidas a pedido dos palmarinos. As outras
determinações, porém, parecem ter brotado da autoridade do governador. Quando
olhadas em conjunto, é fácil perceber as ambigüidades que contêm.
A concessão de terras é prática comum no relacionamento entre governantes esubalternos, como recompensa por serviços prestados.125 Não se trata evidentemente do
caso, aqui. A concessão de terras já havia aparecido em ocasiões semelhantes, como na
proposta aventada pelo marquês de Montalvão diante dos mocambos na Bahia, em 1640,
e nas tentativas de Francisco de Brito Freire de negociar com os potentados dos
Palmares, em 1661. Como já havia observado, essa possibilidade aparece desde que os
habitantes dos mocambos sejam considerados "negros levantados" e não simples
"escravos fugidos".
No contexto do papel que examinamos aqui, as terras foram concedidas a
Gangazumba para atender a um seu pedido, como uma deferência especial. A ela
125 Para uma análise desses procedimentos, embora para período posterior, ver Laura de Mello e Souza,"Violência e práticas culturais no cotidiano de uma expedição contra quilombolas. Minas Gerais, 1769"in: J. J. Reis e F. S. Gomes (org.), Liberdade por um Fio, pp. 193-212.
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estavam relacionados outros aspectos, como a possibilidade de estabelecer ali suas
"aldeias", serem considerados delas "moradores" e poderem cultivá-las. Os termos não
são destituídos de significados políticos. Em Cucaú, como "moradores", os palmarinos
deixavam de ser "levantados" que habitavam em mocambos. Ali não seriam obrigados anenhum "trabalho particular", o que significa que não teriam que prestar serviços para
ninguém - a não ser os devidos ao soberano. Não morariam em vilas, porém, nem teriam
jurisdição própria, pois viveriam em "aldeias".
Mais uma vez vamos recorrer à carta que encaminhou o papel a Lisboa, em junho
de 1678, para esclarecer os significados desse termo. Nela, Aires de Souza de Castro
afirma que a conquista daqueles negros fora feita sem grandes despesas da Fazenda Real
e que haviam sido a morte e a destruição de tanta quantidade de gente, além da prisão das
"mulheres e filhos dos principais, que os obrigaram a descer abaixo e pedir pazes com o
desesperado temor". "Principal" era o termo usual para designar os chefes das aldeias
indígenas - a ponto de a palavra aparecer no Vocabulário de Raphael Bluteau como "o
título que se dá no Brasil ao gentio mais estimado da aldeia e que a governa como
capitão dela".126 As expedições que adentravam os sertões para "resgatar" os índios e
forçá-los a se estabelecerem nos aldeamentos missionários eram chamadas
"descimentos".127 Assim, ainda que se possa considerar que os palmarinos descessem das
serras para Cucaú, o verbo "descer" é uma expressão diretamente relacionada aosgrandes deslocamentos populacionais decorrentes da política indigenista portuguesa.
Significativa também é a menção à vontade dos palmarinos não apenas de se
"avassalar e viver debaixo da proteção" real, mas também de receber "a água do
batismo". A conversão não impedia o processo de escravização dos africanos, que eram
batizados antes ou durante a travessia do Atlântico. Muitos autores consideravam que a
escravidão podia até mesmo ser um meio de instrução e salvação na fé cristã. 128 Para os
126 R. Bluteau, Vocabulário, verbete "Principal".127 Vide John Manuel Monteiro, Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, São
Paulo, Companhia das Letras, 1994, cap. 2; Nádia Farage, As muralhas dos sertões. Os povos indígenasno Rio Branco e a colonização, Rio de Janeiro, Paz e Terra/Anpocs, 1991, cap. 1; Ângela Domingues,Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no norte do Brasil na segunda metadedo século XVIII , Lisboa, CNCDP, 2000, caps. 1 e 2.
128 Para uma visão geral das relações entre as polêmicas sobre a legitimidade do cativeiro dos índios e odos africanos em Portugal, vide A. J. R. Russell-Wood, "Iberian expansion and the issue of black slavery: changing Portuguese attitudes, 1440-1770", The American Historical Review, 83 n.1 (1978): 16-
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índios que haviam se aliado aos portugueses e haviam se convertido à fé cristã, porém, a
liberdade foi sempre um direito reconhecido pela legislação - desde que vivessem em
aldeias. Fixados em terras com jurisdição própria, convertidos e vivendo sob a tutela de
ordens religiosas, eles podiam ser incorporados ao universo colonial.129
Cucaú parece ter sido apreendido sob esta chave pelas autoridades coloniais.
Essa dimensão é reforçada pelo fato de serem indicados padres para ensinar-lhes a
doutrina cristã. Uma carta posterior de Aires de Souza de Castro permite identificar que
foram enviados para Cucaú "dois padres da Recoleta de Santo Amaro".130
A identificação da ordem é reveladora. Trata-se da Congregação do Oratório,
ordem reformada de origem italiana, criada havia poucos anos, em 1662, com vocação
claramente missionária. A conversão do gentio era o principal propósito do seu ramo
pernambucano: os padres viviam entre os índios pelos sertões do rio São Francisco, com
ascetismo e sob regras severas, indo ao Recife de quando em vez para abasteceram-se de
vinho, hóstias e outros artigos necessários. Instalados de início na ermida de Santo
Amaro, a Congregação resolvera mudar-se para o Recife depois da aprovação de suas
regras pelo Vaticano, em 1672. Neste empreendimento, contara com o apoio do bispo,
dom Estevão Brioso de Figueiredo, do governador Aires de Souza de Castro, e de
negociantes daquela praça.131 A aliança com o governador e o impulso missionário
42; e também Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul , SãoPaulo, Companhia das Letras, 2000, pp. 155-187.
129 Cf. Beatriz Perrone-Moisés, "Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial" in: Manuela Carneiro da Cunha (org.), História dos Índios no Brasil , São Paulo,Companhia das Letras/SCM, 1992, pp.115-132; e também Mathias C. Kiemen, The Indian policy of Portugal in the Amazon region, 1614-1693, New York, Octagon Books, 1973. Para uma discussão maisdetalhada da necessidade da tutela dos missionários, vide Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, La
Compagnie de Jésus et l'institution de l'esclavage au Brésil: les justifications d'ordre historique,théologique et juridique, et leur intégration par une mémoire historique (XVIe-XVIIe siècles),Doutorado, Paris, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1998.
130 Carta de Aires de Souza de Castro de 8 de agosto de 1679. AHU_ACL_CU_015, Cx. 12, D. 1144. Essacarta está apenas parcialmente legível. Seu conteúdo pode ser recuperado por meio do resumo feito peloConselho Ultramarino, em Consulta de 26 de janeiro de 1680. AHU_ACL_CU_Consultas dePernambuco, Cod. 265, fls. 26-27v.
131 Cf. Evaldo Cabral de Mello, "A briga dos Néris" Estudos Avançados, 8, n. 20 (1994): 153-181; e, domesmo autor, A fronda dos mazombos, cap. 3. Ver ainda Maria do Céu Medeiros, Igreja e dominação no Brasil escravista.
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empregado na evangelização dos tapuias justificavam o fato de que, agora, aqueles
padres servissem de instrumento de submissão dos habitantes da aldeia de Cucaú.132
Decerto, no caso de Palmares, a conversão não era o motor dos descimentos e
nem os padres haviam sido os instrumentos das negociações. Além disso, a escolha podeter sido inspirada pela experiência anterior, quando o padre João Duarte do Sacramento,
um dos fundadores da ordem, foi mandado por Francisco de Brito Freire como
intermediário para negociar com os negros dos mocambos no rio São Francisco. De todo
modo, o estatuto das aldeias indígenas, que possuem um regime de governo separado do
das vilas, embora situadas em seus termos ou distritos, e nas quais a presença dos padres
é importante para legitimar uma jurisdição especial, pode ter servido de parâmetro para
as autoridades coloniais ao pensarem em Cucaú.
Outro ponto importante das negociações foi a concessão da alforria, algo bem
diferente da liberdade remetida a Gangazumba. O termo não é genérico, mas significa
especificamente "a liberdade que o senhor dá a seu cativo".133 A doação também não é
geral, pois exclui os que de Pernambuco haviam fugido para Palmares. Mais uma vez,
encontramos ambigüidades. Por um lado, o enunciado postula uma diferença entre as
terras sob jurisdição do governador de Pernambuco e as de Palmares, ao tratar de modo
diverso gente nascida em um e outro lugar. Como se sabe, o critério de nascimento é
parte importante para a qualificação das pessoas em sociedades do Antigo Regime.134 Adiversidade de tratamento dado aos negros da capitania e aos nascidos em Palmares é
mais um indício de que a autoridade de Gangazumba não é contestada.
Por outro lado, a concessão de alforria é um ato senhorial. Parte da condição de
que, aplicada a máxima escravista, os filhos das escravas - mesmo das que fossem
fugitivas - eram escravos. Podiam ser, portanto, alforriados. O ato senhorial podia incluir
e excluir da mercê concedida quem o senhor quisesse: as exceções são importantes para
confirmar o poder daquele que concede algo, tanto segundo as praxes do Antigo Regime
quanto do domínio sobre os escravos. É bem provável que a alforria - mesmo que
132 A referência a Cucaú como uma aldeia é bastante freqüente na documentação oficial. Cf, entre outros, oParecer do Conselho Ultramarino de 8 de agosto de 1680. AHU_ACL_CU_Consultas de Pernambuco,Cod. 265, fl. 29v.
133 R. Bluteau, Vocabulário, verbete "alforria".134 Ver, a respeito, Silvia Hunold Lara, Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América
Portuguesa. S. Paulo, Companhia das Letras, 2007, cap. 2.
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restrita, mas reforçada pela devolução de mulheres e parentes aprisionados pelas tropas
de Carrilho - pudesse funcionar como um atrativo capaz de facilitar a fidelidade aos
termos do acordo e o reconhecimento da submissão ao governo colonial.135
É interessante observar ainda que o papel menciona os "nascidos em Palmares", enão as "crias" - palavra pertencente ao vocabulário senhorial usada para designar os
filhos dos escravos. Nas discussões sobre os destinos dos prisioneiros, como vimos, ela
aparece para indicar um tratamento diferenciado para as crianças apreendidas, cujo
costume mandava ficarem com os governadores. A idéia de libertar os nascidos nos
mocambos também não é nova e pode ser observada em situações análogas anteriores,
como no tempo de Montalvão e Brito Freire.
Como se vê, o texto contém muitas ambigüidades e pode ter sido entendido de
modos bem diferentes por aqueles que estiveram envolvidos em sua produção e leitura.
Voltaremos muitas vezes a essas determinações e seus múltiplos significados ao longo da
tese - especialmente porque continuamos a focalizar o ponto de vista das autoridades
coloniais. Por ora, acompanhar os outros textos que foram se juntando a esse primeiro
"papel" - e com eles o desenrolar dos acontecimentos - é a medida mais prudente.
As partes haviam enfim chegado a um acordo. Depois de tentativas anteriores e
muitas discussões, de muitas guerras, sofrimentos e dificuldades, havia uma novidade
extraordinária. Pernambuco parecia ter conseguido achar um caminho para ficar livre dasameaças constantes dos quilombolas. Era preciso avisar Lisboa o quanto antes. Aires de
Souza de Castro, que assumira o governo da capitania havia pouco, tinha se
comprometido em relação a vários aspectos importantes, era natural que quisesse enviar
notícias na primeira oportunidade, na expectativa de que Lisboa concordasse com suas
decisões e atitudes.136 No mesmo dia em que foi escrito o papel que registrava o ajuste
resultante das negociações com os filhos de Gangazumba, em 22 de junho de 1678, ele e
o provedor da Fazenda de Pernambuco, João do Rego Barros, escreveram para Lisboa.
Já fiz menção a algumas passagens dessas cartas, mas vale a pena um panorama
mais completo do teor dos textos. A missiva do governador é breve, informando que
135 Como veremos mais adiante, esse é o entendimento explicitado na Consulta do Conselho Ultramarinode 26 de janeiro de 1680.
136 Vide, por exemplo, Carta de Aires de Souza de Castro de 19 de julho de 1678. AHU_ACL_CU_015,Cx. 11, D. 1124.
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havia continuado a tratar da guerra contra os Palmares e chamado Fernão Carrilho,
quando uma comitiva de "onze negros filhos e família daquele levantado a que chamam
rei destes Palmares" viera comunicar a intenção de se tornarem "obedientes vassalos de
Sua Alteza, temerosos do que se lhes havia feito e receando o que se lhe queria fazer".Considerava então que, se tudo ocorresse como o planejado, se conseguiria afinal "a
restauração desta terra". Como bom fidalgo, rendia a devida homenagem a seu
antecessor, dom Pedro de Almeida, que "com tanto zelo e calor" havia conduzido aquela
guerra. Por isso mesmo, antes que ele embarcasse de volta para Lisboa, havia feito uma
proposta diante da "sua presença e dos mais oficiais e práticos desta praça". A concisão
do texto é largamente compensada pela remessa do próprio acordo, em anexo à
missiva.137
A carta de de Rego Barros é mais longa, narrando alguns detalhes da negociação.
Nela, d. Pedro de Almeida é a figura principal, que havia se encarregado da "conquista e
guerra dos negros levantados dos Palmares (...) com tão boa fortuna" e sem custo para a
Fazenda real além da munição e que por isso merecia ser agradecido e honrado. Sob suas
ordens, muitos foram mortos ou destruídos e as "mulheres e filhos dos principais" foram
presos, "obrigando-os a descer abaixo a pedir as pazes com desesperado temor". O
governador prometeu aceitá-la "da parte de Sua Alteza" e mandou que viessem ajustá-la,
usando tanto de "liberais promessas" quanto da ameaça de uma "sanguinolenta guerra".Com isso o "rei sem dilação enviou logo dois filhos seus acompanhados de oito ou nove
mais daqueles negros", que chegaram logo depois da posse de Aires de Souza de Castro.
Os membros da comitiva receberam "a água do batismo" e foram ouvidos, diante dos
"dois governadores", do provedor e da câmara, designou-se um "sítio capaz para tratarem
do meneio da sua vida, entregando[-se] primeiro todos os escravos, que [para] lá tinham
fugido". Segundo o provedor, portanto, a embaixada viera para ajustar as pazes e o
principal ponto do acordo era a concessão de terras em troca da devolução dos fugitivos -
gesto primeiro e condição para os demais.138
Ambas as cartas devem ter sido enviadas a Lisboa por um dos navios da frota que
partia naquele ano, provavelmente o mesmo em que embarcou também d. Pedro de
137 Carta de Aires de Souza de Castro de 22 de junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116.138 Carta de João do Rego Barros de 22 de junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1118.
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Almeida, que retornava a Lisboa ao final de seu mandato.139 Em 19 de julho, "depois de
haver partido a frota", o governador enviou mais notícias, por um navio que arribou em
Pernambuco vindo da Paraíba "com a causa de fazer alguma água". As coisas
marchavam bem: havia "mais esperança em ter a obediência destes negros dosPalmares". Apesar de ter dado prazo de um mês para que deliberassem sobre "o conteúdo
naquele papel", em 23 dias "mandaram resolução de que estavam por ele e que muito a
estimavam".
As pessoas enviadas a Palmares haviam retornado em companhia de 16 negros,
entre eles "os que lhe costumam fazer a guerra e os que maiores vexações faziam nestes
povos", enquanto "os outros a que eles chamam reis ficavam ajuntando a gente, que
estava mui espalhada, para com ela se recolher ao sítio que se lhe tem assinalado".140 Os
acontecimentos pareciam se precipitar e as informações precisavam chegar depressa a
Lisboa.
Enquanto as cartas seguem para Lisboa, vejamos o que aconteceu com dom Pedro
de Almeida.
4. Com fé, lei e rei
Temos seguido até aqui, de modo prioritário, a documentação administrativa
produzida pelo governo de Pernambuco e pelo Conselho Ultramarino. Como vimos, em
diversas ocasiões, estas não são as fontes mais utilizadas pela bibliografia para analisar a
maior parte desses eventos. É certo que muitos dos documentos citados também foram
consultados e referenciados pelos historiadores, mas eles sempre preferiram tomar por
base a crônica escrita em 1678. Muitos construíram suas interpretações quase que
exclusivamente a partir desse texto. É hora de analisá-lo com mais vagar.
Como vimos, dom Pedro de Almeida não chegou a mandar para Lisboa notíciasmuito detalhadas sobre o que acontecia em Pernambuco, pois imaginava poder voltar
logo para Lisboa. Enviou uma carta em fevereiro de 1678 com a boa nova da vitória
139 Infelizmente não tenho dados precisos sobre a data da partida da frota nem dos navios que acompunham nesse ano. As informações foram deduzidas da correspondência aqui mencionada.
140 Carta de Aires de Souza de Castro de 19 de julho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1124.
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alcançada dizendo pretender levar os prisioneiros para o Reino, e contar tudo
pessoalmente, mas só seguiu para Lisboa cerca de dois meses depois que Aires de Souza
de Castro tomou posse do governo.141 Talvez tenha mandado escrever a crônica ou
incentivado alguém a fazê-lo nessa ocasião, como complemento da exposição que pretendia fazer diante da Corte. É difícil saber, em função da falta de registros. O
interessante, entretanto, é que ninguém até hoje se preocupou com esses detalhes.
Todos os historiadores utilizaram o texto tal como ele foi transcrito e publicado
em 1859, pelo conselheiro Drummond, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, que lhe atribuiu um título: "Relação das guerras feitas aos Palmares de
Pernambuco no tempo do governador dom Pedro de Almeida de 1675 a 1678".142 Leram-
no e dele retiraram informações sem se preocupar com quem o havia escrito nem por que
motivo. Sem qualquer menção ao original consultado pelo conselheiro, esta publicação
feita em 1859 tornou-se a referência documental básica para todos os historiadores que
até agora lidaram com a história de Palmares ou editaram coletâneas de documentos
relativos a ela.143 Bastava o texto e o que ele dizia.
Até meados do século XX, no entanto, muitos autores fizeram menção ao fato de
que se tratava de um documento que fora localizado na Torre do Tombo, cuja cópia havia
sido doada à Biblioteca Nacional.144 O conselheiro Drummond, sócio do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, atendia a uma das incumbências dessa instituição que,entre outras coisas, visava "coligir e preparar os materiais necessários para a história e
141 Aires de Souza de Castro tomou posse em meados de abril de 1678. Cf. Francisco Adolfo deVarnhagen, História Geral do Brasil [1854] 7ª. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1962, vol. 5, p. 251.
142 "Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador dom Pedro deAlmeida de 1675 a 1678 (M. S. offerecido pelo Exm. Sr. Conselheiro Drummond)". RIHGB, 22 (1859):303-329.
143 O primeiro a reproduzir a íntegra da crônica publicada em 1859 foi E. Carneiro, O Quilombo dos Palmares, 1630-1695. São Paulo, Brasiliense, 1947, pp. 187-206 (2ª ed., pp. 201-222). Para exemplos
mais recentes, ver por exemplo Leonardo Dantas Silva (org.), Alguns Documentos para a História da Escravidão. Recife: Fundaj/Massangana, 1988, pp. 27-44.
144 Nina Rodrigues menciona que o "importante manuscrito" teria sido "oferecido em 1859 ao InstitutoHistórico e Geográfico Brasileiro pelo Conselheiro Drummond", sem indicar se se trata de um originalou não, mas referencia em nota a publicação da RIHBG. Cf. Os africanos no Brasil , p. 73. Outros autoresindicam tratar-se de uma cópia de original da Torre do Tombo, doada à Biblioteca Nacional. Ver, por exemplo, Manuel Arão, "Os quilombos dos Palmares". RIAHGP , 24 n. 115 a 118 (1922): 233; MárioBehring, "A morte de Zumbi" RIAGA, 57 n. 14 (1930): 142-143. Edison Carneiro, ao reproduzir odocumento em O Quilombo dos Palmares, também indica que o original publicado em 1859 encontra-sena Torre do Tombo. Cf. p. 206 (2ª ed. p. 222).
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geografia do Brasil". O tema já havia sido objeto de discussão numa das sessões do
Instituto, na qual se havia recorrido ao caso de Palmares para exemplificar como a
consulta a novos documentos, obtidos em viagens científicas, poderia dirimir dúvidas até
então insolúveis com os escritos disponíveis.145
Como muitos outros sócios, Drummondera também ministro de Estado, e aproveitou suas viagens diplomáticas ao exterior para
visitar diversos arquivos, enviando de lá cópias de documentos ao cônego Januário da
Cunha Barbosa, secretário da instituição, alguns dos quais com recomendação para serem
publicados na revista.146
A seção de manuscritos da Biblioteca Nacional de fato guarda uma cópia da
crônica, feita no século XIX. O documento encontra-se num códice que compila diversas
cópias de documentos da Torre do Tombo, feitas provavelmente na mesma ocasião. Lá
está, com ligeiras diferenças de grafia, o texto publicado pelo conselheiro Drummond,
porém com um título bem diferente.147 Ao final, pode-se ler a referência: "Tomo primeiro
de Papéis Vários de folhas 149 até 155 verso existente no Armário dos Manuscritos do
Real Archivo da Torre do Tombo".
Em 1876, Pedro Paulino da Fonseca, membro do Instituto Arqueológico e
Geográfico Alagoano ofereceu ao Instituto Brasileiro e publicou em sua revista uma
segunda versão dessa crônica, dando ao seu texto outro título: "Memória dos feitos que
145 Desembargador Rodrigo de Souza da Silva Pontes, "Quaes os meios de que se deve lançar mão paraobter o maior numero possível de documentos relativos à História e Geographia no Brasil?" RIHGB, 3n.10 (jul. 1841): 149-157. A tarefa deveria ser realizada no Brasil e em missões no exterior, e foiconsiderada importante não apenas para o conhecimento da história, mas também para dirimir contradições entre os autores que tratavam de um mesmo tema. Talvez por ser alagoano, Pontes citacomo exemplo a necessidade de esclarecer as divergências entre Gaspar Barleus, Brito Freire e RochaPita ao tratarem da “famosa História da povoação” de Palmares.
146 Veja-se, por exemplo, as cartas de Antônio de Menezes Vasconcelos de Drummond de 10 de abril de1844 e 16 de abril de 1844. IHGB, Lata 142, pasta 6 e Lata 142, doc. 33.
147 "Descripção com notícias importantes do interior de Pernambuco como rio de São Francisco, PortoCalvo, Palmares, cabo de Santo Agostinho, as distâncias de huns lugares aos outros etcetera, das partesmais férteis; costumes dos Palmares (negros) e modo como vivem seu regimen, dos damnos que recebem
os portugueses d'eles: enfim o estado em que foram achados os Palmares, sobre a partida de Pero deAlmeida contra os ditos, e a descripção do que se fez para a ruína, em que vierão a cair os Palmares".Cartas de doação, de foral, diplomas, representações, e relações sobre algumas minas, a conjuraçãomineira, Pernambuco, Bahia, Paraíba, Rio de Janeiro e Minas Gerais, invasão holandesa, entre outros,1534-1792. BNRJ-Ms, 7, 3, 001, fls, 73-113, doc. 6. A biblioteca não possui informações sobre a entradadesse manuscrito em seu acervo, mas ele se encontra referenciado sob número 5988 no Catálogo de Exposição da História do Brasil . [1881] Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1981, vol.1, p.512. Agradeço a Márcio Santos a primeira indicação sobre esse documento e aos funcionários da seçãode manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro seus esforços para saber a origem dessedocumento.
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se deram durante os primeiros anos de guerra com os negros quilombolas dos Palmares,
seu destroço e paz aceita em junho de 1678".148 Nesse caso, trata-se de uma recriação do
texto original da crônica, não de uma transcrição - fato que é explicitamente reconhecido
pelo autor, que indica tomar por base um manuscrito existente na Biblioteca Pública deÉvora.149
A Biblioteca Pública de Évora possui um manuscrito anônimo, sem data nem
título e que está incompleto, embora se possa identificar que a letra seja do século XVII.
Esse documento foi referenciado no catálogo elaborado no início do século XIX pelo
mais famoso bibliotecário dessa instituição como tendo sido escrito em 1678, recebendo
ali o título "Relação do que se passou na guerra com os negros dos Palmares nos sertões
de Pernambuco".150 A comparação entre o manuscrito de Évora e o texto de Pedro
Paulino confirma que este último acrescentou dados e completou o texto, acrescentando-
lhe um final, que menciona acontecimentos até 1695. Assim, tudo indica que os dois
membros do Instituto Histórico consultaram fontes diferentes. Infelizmente ainda não se
pode ter certeza nem determinar se são cópias ou originais pois, apesar de vários
esforços, consultas e tentativas, ainda não consegui localizar o manuscrito quiçá
guardado na Torre do Tombo.151
Décio Freitas localizou duas outras versões dessa crônica em 1974, que foram
publicadas por ele em 2004. Ele afirma ter transcrito os textos de "cópias" guardadas
148 Pedro Paulino da Fonseca, "Memória dos feitos que se deram durante os primeiros annos de guerra comos negros quilombolas dos Palmares, seu destroço e paz aceita em junho de 1678". RIHGB, 39, n.1(1876): 293-322. Antes de iniciar o texto, o autor indica ainda um outro título: ""Memoria dosacontecimentos havidos nos primeiros annos de guerra contra os negros das Palmeiras, e dos successosobtidos, até a paz feita com o rei Gangasuma, em Junho de 1678". A referência ao manuscrito de Évora,com a respectiva cota, está na p. 321. Não há, no acervo do IHGB, nenhuma cópia da crônica de 1678.
149 Como bem nota Andressa Mercês Barbosa dos Reis, Zumbi: historiografia e imagens, Mestrado,Franca, Unesp, 2004, pp. 54-55, as alterações inseridas por Pedro Paulino da Fonseca distorcem o
sentido do documento em várias passagens. Elas são interessantes para um estudo sobre a produção daimagem de Palmares no século XIX, mas desqualificam seu texto para o tipo de análise queempreendemos aqui.
150 BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a n. 9. O documento foi referenciado no Catalogo dos manuscriptos da Bibliotheca Publica Eborense organizado por Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara. Lisboa, Imprensa Nacional, 1850, tomo I, p. 144. Esse primeiro tomo do catálogo, "que compreende a notícia dos códices e papéis relativos às cousas da América, África e Ásia", já estava pronto em 1844, quando Cunha Rivaraobteve a licença régia para a impressão de sua obra.
151 Na Torre do Tombo, minha procura até agora resultou infrutífera; aguardo informações da busca quevem sendo realizada por Odete Martins, pesquisadora dessa instituição, a quem agradeço o auxílio.
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textos guardados pela Torre do Tombo, Arquivo Histórico Ultramarino e Biblioteca
Nacional de Lisboa, é bastante plausível que tenham existido pelo menos duas cópias
dessa crônica no século XVII: a que se encontra na Torre do Tombo (ainda não
localizada) e o manuscrito existente em Évora, cuja letra foi datada como sendo doséculo XVII. Sem consultar todos os manuscritos, não se pode saber qual deles serviu de
matriz ou estaria mais próximo de sê-lo. A existência de cópias da crônica de 1678 em
arquivos que guardam documentos da Corte portuguesa e dos órgãos encarregados da
administração ultramarina indica, entretanto, que a notícia da vitória obtida em
Pernambuco em 1678 teve alguma circulação em Portugal, indo além dos circuitos
burocráticos do Conselho Ultramarino.156
É difícil determinar se a crônica foi redigida por ordem do governador ou por
alguém ligado a ele. Os elementos do texto sugerem ter sido ele escrito em Pernambuco,
pois seu anônimo autor emprega com freqüência "esta praça" para referir-se à capitania.
Ele deve ter sido alguém próximo a dom Pedro de Almeida, que acompanhou de perto os
acontecimentos, pois menciona nomes e detalhes difíceis de serem conhecidos por
alguém distante. Pode ter sido, por exemplo, João do Rego Barros, provedor da Fazenda
Real da capitania, que na carta de 22 de junho de 1678 que enviou ao príncipe, tantos
elogios fez a dom Pedro de Almeida.157 A narrativa foi produzida com o objetivo de
enaltecer o governador, seguindo o estilo das relações que costumavam ser escritas nesse período. É, portanto, um texto destinado a uma audiência portuguesa.
O relato começa por situar a dificuldade em destruir os Palmares, comparando a
destruição deles à vitória contra os holandeses: estes, inimigos vindos de fora, e aqueles
de "portas a dentro". Para dar conta do "incontrastável desta empresa" descreve primeiro
a localização dos mocambos, em "sítio naturalmente áspero, montuoso [montanhoso] e
agreste", onde se instalaram negros que fugiam do castigo de seus senhores aos quais se
juntaram outros, sobretudo no tempo da ocupação holandesa. Depois de mencionar seu
modo de vida, como se organizam para a guerra e quem os governa, mostra como esse
156 Tendo em vista a colação possível de ser realizada até agora, tomarei por base os documentos existentesem Évora e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que foi publicada pelo conselheiro Drummond.
157 Cf. Carta de João do Rego Barros de 22 de junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1118. Alémdos elogios, expressões e modos de tratar a vitória obtida também contribuem para essa possibilidade.Ivan Alves Filho menciona essa possibilidade em uma nota, sem contudo justificar sua hipótese. Memorial dos Palmares, p. 117, nota 64.
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"inimigo" tem infligido sucessivos danos e prejuízos aos moradores de Pernambuco, à
Coroa e seus vassalos:
"Destroem-se juntamente os vassalos, porque a vida, a honra e a fazendatraziam sempre em contínuo risco; a fazenda porque lha destroçavam e
levavam os escravos; as honras porque as mulheres e as filhas se tratavamindecorosamente; as vidas porque estavam perpetuamente expostas arepentinos assaltos, demais que os caminhos não eram livres, as jornadas pouco seguras, e só se marchava com tropas, que pudessem rebater osseus encontros."158
Em seguida, mencionando ter sido "até agora impossível" evitar todo esse dano,
passa a descrever as principais "entradas" feitas contra os Palmares, nas quais se perdeu
"grandes cabedais, assim de Sua Alteza, como dos povos, como de moradores
particulares, e perecendo muitos soldados, negros, índios, e auxiliares". Por fim, começa
a detalhar as ações empreendidas pelo governador para exterminar os Palmares: como
havia nomeado o sargento-mor Manoel Lopes para uma expedição que durara cinco
meses em 1675; como contratara o capitão Fernão Carrilho, providenciara junto às
câmaras para que tivesse provisões, armas e homens a seu dispor, e lhe dera instruções
precisas para enfrentar os inimigos. A campanha realizada por Carrilho entre setembro de
1677 e janeiro de 1678 é narrada a seguir, em pormenor: os principais embates e
escaramuças, as táticas empregadas, os problemas encontrados, as vitórias alcançadas.
Sua volta a Porto Calvo no final de janeiro, com vários prisioneiros, entre eles membrosda família de Gangazumba, as vitórias conseguidas pelas tropas que haviam permanecido
nos Palmares levaram dom Pedro de Almeida, animado por "uma prudente indústria e
razão de estado" a propor a paz aos negros dos Palmares.
Em tom de regozijo, o texto continua a descrever como, em abril, dom Pedro
entregou o governo a Aires de Souza de Castro, que finalmente colheu os frutos dessa
iniciativa, com a chegada de uma comitiva de Palmares "que se [veio] prostrar aos pés de
dom Pedro, com ordem e mandado do Rei [Gangazumba], para que em seu nome lhe
158 "Relação do que se passou na guerra com os negros dos Palmares nos sertões de Pernambuco" BPE,cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 52. No manuscrito da BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001, lê-se: "Destroem-se osvassalos, porque a vida e honra, a fazenda, [sic] porque lha destroçam, e lhe roubam os escravos, ashonras porque as mulheres, filhas irreverentemente se tratam; as vidas porque estão expostos sempre arepentinos assaltos; Demais que os Caminhos158 não são livres, as Jornadas pouco seguras; e só semarcha com tropas, que possam rebater os seus encontros"
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rendessem vassalagem, e lhe pedissem paz e amizade".159 A entrada da comitiva no
Recife, as cerimônias com que foram recebidas e as negociações entabuladas ocupam
então a parte final do texto, que informa ter sido o acordo de paz escrito e enviado a
Palmares.160
A vitória contra Palmares e o acordo de paz celebrado como meio de solidificar a
vitória são descritos como um trunfo político. O governador é nele a figura central, capaz
de manejar a situação, ordenar expedições e garantir uma vitória sobre um inimigo tão
importante quanto os holandeses:
"Como dom Pedro de Almeida era a alma que dava vida a estas empresas,do seu brio aprendiam os soldados a ser constantes, da sua resolução aserem atrevidos, do seu zelo a serem diligentes, da sua vigilância a seremcuidadosos, e da sua disposição a serem prudentes. Com todas estas
influências do governador dom Pedro, se conseguiu em quatro meses oque se intentou há muitos anos. Parece o sucesso por maravilhoso, que sófez lisonja que a fortuna quis fazer, e pesado bem o negócio foi acerto quea prudência de dom Pedro soube dispor. E mais custou a disposição que osucesso, pois gastando dom Pedro três anos em lavrar estes impossíveis,colheu em quatro meses o fruto destes trabalhos. E não deixa de emular esta ação prodigiosa a restauração singular, que se conseguiu destasCapitanias, que se na primeira se venceu um inimigo que nos ocupava omar, nesta se desbaratou outro que nos dominava a campanha."161
O encadeamento da narrativa está ordenado de modo a ressaltar as cerimônias que
cercaram a paz e mostrar como "a ruína em que vieram cair os Palmares" seria umaglória para o príncipe português. A descrição dos mocambos tem uma função específica:
mostrar como Palmares era poderoso e perigoso. O acordo de paz não consistira em
159 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 58. Na "Descripção com noticias importantes dointerior de Pernambuco..." BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001 lê-se: "os quais se vieram prostrar aos pés de DomPedro de Almeida com ordem do Rei para lhe renderem vassalagem, e pedirem a paz que desejavam".
160 O manuscrito de Évora termina aqui. O manuscrito na BNRJ-Ms, publicado pelo ConselheiroDrummond em 1859, contém dois parágrafos a mais, destinados a marcar a glória de "tão felizessucessos", mas não há outros eventos descritos.
161 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 56v. Em "Descripção com noticias importantes",BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001 lê-se: "como Dom Pedro era a alma que alentava esta empresa, do seu brioaprenderam os soldados a serem constantes, do seu zelo a serem diligentes, da sua vigilância a seremcuidadosos; da sua disposição a serem prudentes: com todas estas influências do governador dom Pedrose conseguiu em quatro meses, o que se intentou há muitos anos; pareceu o sucesso por maravilhoso,lisonja que a fortuna lhe quis fazer; e pesada bem as circunstâncias foi acerto que a prudência soubedispor; mais custou a disposição que o sucesso, pois gastando dom Pedro três anos em lavrar estesimpossíveis, colheu em quatro meses o fruto destes trabalhos: não deixa de emular esta ação prodigiosa arestauração singular destas Capitanias; só digo que se na primeira se venceu um inimigo, que de fora nosveio conquistar, nesta se superou outro que das portas a dentro nos dominava."
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simples vitória contra escravos fugidos, porém a "feliz restauração destas capitanias [de
Pernambuco]".162 O termo "restauração" é significativo: foi empregado para descrever a
guerra contra a Espanha em 1640, a expulsão dos holandeses de Angola em 1648 e de
Pernambuco em 1654. A vitória sobre Palmares tornava-se, portanto, um feito militar e político comparável a esses outros.
Glória, honra e fama: de fato, esses os méritos almejados pelo governador ao
deixar o governo de Pernambuco, tendo vencido os Palmares. Eis o parágrafo conclusivo
do manuscrito que está na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro:
"Toda a felicidade desta glória, toda a glória desta conquista soubemerecer o zelo generoso e a prudência singular de dom Pedro deAlmeida, que não reparando em nenhum impossível se dispôs a conseguir esta fortuna; seu nome será eterno na lembrança dos moradores de
Pernambuco; seu valor aclamado nas incultas montanhas dos Palmares,seu aplauso estendido nos perpétuos brados da fama."163
Infelizmente, ainda não consegui seguir os passos de dom Pedro de Almeida
depois que ele chegou a Lisboa. Vários indícios permitem concluir que a crônica não foi
entretanto fruto da simples vaidade ou do desejo de vanglória, nem do gesto enaltecedor
de um colega de letras ou armas. Tudo indica que seus desejos foram frustrados e dom
Pedro caiu em esquecimento - se não caiu em desgraça. Mesmo sem aprofundar a análise
sobre essa crônica, a variedade de detalhes que ela oferece e o contexto que circunstancia
sua produção permitem concluir que a narrativa sobre os acontecimentos em Pernambuco
dirigia-se a diversos interlocutores e fazia parte de um jogo político bastante complexo.
Em junho de 1678, dom Pedro de Almeida estava deixando o governo da
capitania e enfrentava problemas sérios. Como vimos, embora bem situado na corte, com
boas relações de parentesco e serviços militares de certo destaque, ele havia tido
dificuldades em obter o governo de Pernambuco.164 Sua nomeação não seguira os
procedimentos ordinários, tendo sido ordenada por decreto régio de 23 de julho de
162 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a n. 9, fl. 52v.163 "Descripção com noticias importantes", BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001, fl. 113.164 Mais uma vez, agradeço à Mafalda Cunha pelas informações, retirada da base de dados Optima Pars.
Vide nota 1.
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1673.165 Desde o início do governo, entrara em choque com João Fernandes Vieira - um
dos principais chefes militares de Pernambuco. Em 1677, o governador chegou até
mesmo a deixar de cumprir uma provisão régia que atribuía a Vieira a arrecadação e
despesa das verbas para as obras nas fortalezas, sendo por duas vezes advertido pelo príncipe regente.166 Quando o Conselho Ultramarino examinou a proposta feita por
Manoel Inojosa sobre a forma como se deveria fazer a guerra contra Palmares, sugeriu
João Fernandes Vieira para comandar aquela guerra,167 mas dom Pedro de Almeida não
seguiu essa recomendação, escolhendo sempre outros comandantes para as expedições
que enviou a Palmares.
Entre o governador e as câmaras locais, as relações também não eram boas. Além
das dissensões já examinadas em relação ao contrato com Fernão Carrilho, houve mais
problemas. Em dezembro de 1675, algumas câmaras de Pernambuco acusaram dom
Pedro de Almeida de criar cargos que não eram necessários e de proteger potentados na
Paraíba, que, por sua vez, também eram acusados de enriquecimento ilícito e cometer
assassinatos: por isso, um ano depois, em dezembro de 1676, o Conselho Ultramarino
ordenou que se investigasse com minúcia esses fatos por ocasião de sua residência.168 Na
documentação guardada pelo Arquivo Histórico Ultramarino pode-se encontrar, por
exemplo, pedidos das câmaras de Pernambuco, Paraíba e Itamaracá, em 1675 e 1676,
para que João Fernandes Vieira fosse nomeado governador da capitania.169
É bem verdade que também tinha aliados, já que se pode encontrar pelo menos
uma carta da câmara de Olinda elogiando sua administração,170 e a já mencionada carta
165 Cf. Decreto de 23 de julho de 1673. ANTT, Manuscritos do Brasil, n. 33 (microf. 4114), fl. 23v. Cincodias depois o Conselho Ultramarino pronuncia-se alertando o príncipe regente que a nomeação não haviaseguido a tramitação regular. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 981.
166 Para uma avaliação da contenda entre o governador e João Fernandes Vieira vide J. A. G. Mello, João Fernandes Vieira, pp. 424-427.
167 Consulta do Conselho Ultramarino de 28 de junho de 1677. BNRJ-Ms, Cod. II - 33, 4, 32.168 Cf. Pareceres do Conselho Ultramarino de 26 de fevereiro, 28 de outubro de 1678 e 26 de novembro de
1678, todos em BNRJ-Ms, Cod. II, 33, 4, 32. Residência era o termo empregado para a investigação dasações dos oficiais de Justiça (Juízes de fora, corregedores, ouvidores) durante o tempo em que residiramno lugar de sua jurisdição. Por extensão, o termo é empregado na administração ultramarina para todasas investigações realizadas ao final dos mandatos nomeados pelos soberanos. Cf. R. Bluteau,Vocabulário, verbete "residência".
169 Consulta do Conselho Ultramarino de 22 de dezembro de 1675 e Consulta do Conselho Ultramarino de20 de Outubro de 1676. Ambas em BNRJ-Ms, Cod. II - 33,4,32.
170 Carta dos oficiais da Câmara de Olinda ao príncipe regente de 22 de dezembro de 1677.AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1098.
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de João do Rego Barros. Era certo que a residência que iria enfrentar em Lisboa seria
problemática.171 De qualquer modo, os conflitos entre potentados locais na Paraíba e em
Pernambuco, bem como o desagrado das câmaras em relação ao ônus das guerras contra
Palmares e outras dissensões devem ter atravessado o Atlântico e ecoado em Lisboa,ganhando diferentes aliados entre os conselheiros do Ultramarino e outras autoridades
que gravitavam ao seu redor. A carreira política de dom Pedro de Almeida estava em
perigo e um relato dos sucessos obtidos no final de seu governo bem podia ser uma peça
importante nesse jogo de forças.
Esse contexto ajuda a iluminar algumas operações retóricas empreendidas
naquele texto. Como vimos, a descrição dos mocambos tinha ali a finalidade de mostrar
como Palmares era um inimigo poderoso e perigoso. É interessante examinar como isso
foi feito.
O relato começa por situar os mocambos ou cercas em uma larga extensão de
terras férteis com "palmeiras agrestes", identificados pelos nomes: o do Zambi, de
Acainene, dois chamados das Tabocas, o de Dambiabanga, Subupira, o de Osenga, do
Amaro e o do Andalaquituxe. Em seguida, depois de salientar mais uma vez as
características da mata e a qualidade das terras ocupadas, informa que desde que "houve
negros cativos nestas capitanias" também houve habitantes em Palmares e que seu
número crescera durante a ocupação holandesa e eles foram se aperfeiçoando no uso dasarmas. Depois disso, o texto passa a caracterizar com mais detalhe os aspectos da vida
em Palmares:
"Não vivem todos unidos para que um sucesso não acabe a todos; emPalmares distintos têm a sua habitação, assim pelo sustento, como pelasegurança; são grandemente trabalhadores, singularmente prevenidos, plantam todos os legumes da terra, de cujos frutos reservam providamenteceleiros para o tempo das guerras, e do inverno; o seu principal sustento éo milho grosso, dele fazem varias iguarias; as caças os ajudam muito, porque são aqueles matos delas abundantes."172
171 A residência era constituída na maior parte das vezes pela inquirição por cartas sobre eventuaisirregularidades cometidas durante o exercício de um posto de governo no Ultramar. Infelizmente nãolocalizei, até agora, os papéis referentes à residência de dom Pedro de Almeida.
172 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a n. 9, fl. 51v. Em "Descripção com noticias importantes", BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001: " não vivem todos juntos porque um sucesso não acabe a todos, em palmares distintostem sua habitação, assim pelo sustento, como pela segurança; são grandemente trabalhadores, plantãotodos os legumes da terra, de cujos frutos formam providamente celeiros para os tempos da guerra, e do
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Trata-se, portanto, de gente previdente e trabalhadora, que cultivava bons
alimentos e era governada por Gangazumba, "seu rei e senhor", venerado pelos "naturais
dos Palmares como os vindos de fora". Ele habita na "cidade real", chamada Macaco,
onde "tem palácio capaz da sua família, que é grande, [e] é assistido de todas as guardase oficiais que costumam ter as Casas Reais (...) fala-se-lhe por Majestade, e obedecem-
lhe por admiração".173 Além disso, "há entre eles ministros de Justiça, assim como de
guerra para as execuções necessárias, e todos os arremedos de qualquer República se
conhece entre eles". Mesmo que "estes bárbaros" estejam "tão esquecidos de toda a
sujeição, não perderam o reconhecimento da Igreja", pois têm ali capela com imagens do
Menino Jesus, "muito perfeita", de Nossa Senhora da Conceição e de São Brás, e um "a
que chamam ganga" que os batiza e casa. O "rei domina a todos", mas as "cidades" estão
a cargo de "potentados e cabos poderosos que as governam e assistem nelas".174
A terminologia empregada é toda ela portuguesa: fala-se em rei, cidades,
magistrados, etc. Alguns autores têm chamado a atenção para a miopia etnocêntrica do
olhar colonial, incapaz de compreender o outro. Robert N. Anderson, que mais avançou
nessa crítica, observa por exemplo que as fontes disponíveis sobre Palmares apresentam
pelo menos quatro tipos de dificuldades: "1) o inescapável etnocentrismo, encarnado na
linguagem, do europeu com respeito ao africano ou afro-americano; 2) a inadequação de
uma língua para traduzir outra, especialmente quando as estruturas sociais referidas nãotêm equivalentes na cultura da língua tradutora; 3) os problemas ortográficos em render
inverno; o seu principal sustento é o milho grosso, dele fazem varias iguarias; as caças os ajudam muito, porque são aqueles matos abundantes delas."
173 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 51v. Em "Descripção com noticias importantes",BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001: "reconhecem-se todos obedientes a um que se chama o Gangazumba, que quer
dizer Senhor Grande; a este tem por seu Rei e Senhor todos os mais assim naturais dos Palmares, comovindos de fora; tem palácio, Capas da sua família, é assistido de guardas e oficiais, que costumam ter asCasas Reais; é tratado com todos os respeitos de Rei, e com todas as cerimônias de Senhor"
174 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fls. 51v-52. Em "Descripção com noticias importantes",BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001: "E com serem estes bárbaros tão esquecidos de toda a sujeição, não perderamde todo o reconhecimento da Igreja; nesta Cidade tem capela a que recorrem nos seus apertos, e imagensa que encomendam suas tenções, quando se entrou nesta capela, achou-se uma Imagem do Menino Jesusmuito perfeita; outra da Senhora da Conceição, outra de S. Braz; escolhem um dos mais ladinos, a quemveneram como a pároco, este os batiza e os casa: porém o batismo é sem a forma determinada pelaIgreja". Nesse documento não há menção ao fato de o padre ser chamado de Ganga.
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os nomes próprios ou as palavras intraduzíveis de uma língua para outra e 4) a
possibilidade de transmissão falha de um manuscrito para outro."175
Isso não significa, entretanto que esses textos devam ser desqualificados e
descartados. Vários historiadores, diante desse dilema, recorreram ao conhecimento produzido em outras áreas, na lingüística, na antropologia ou na história da África
Centro-Ocidental para "traduzir de volta" o que teria sido grafado de forma inadequada
ou tentar resgatar de algum modo o que foi perdido pelas lentes européias ou
europeizadas. É um procedimento interessante e que tem rendido muitos frutos, como
veremos logo adiante. Por ora, no entanto, é preciso prestar mais atenção no modo como
os próprios textos foram escritos, pois esse procedimento analítico também é capaz de
revelar informações importantes.
No caso da crônica de 1678, Palmares aparece descrito como um estado bem
organizado do ponto de vista militar e político, com juízes e magistrados, uma capela e
imagens cristãs: tinha fé, lei e rei. Chamo a atenção, entretanto, que a famosa tríade pela
qual os portugueses avaliavam o grau de "civilização" dos povos com os quais tinham
contato é empregada em sentido inverso àquele usado para desqualificar os índios do
Brasil. Como se sabe, vários textos portugueses escritos nos séculos XVI e XVII, como
os de Pero de Magalhães Gandavo, Frei Vicente do Salvador, se referem à falta das letras
F, L, R entre os indígenas, para acentuar sua barbárie e justificar a necessidade dedominá-los e catequizá-los.176
Pero de Magalhães Gandavo, por exemplo, torna evidente a barbárie do gentio do
Brasil, ao afirmar que a língua de que os índios usavam "carece de três letras, convém a
saber, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto porque assim não têm
fé, nem lei, nem rei, e desta maneira vivem desordenadamente, sem terem além disto
175 Robert Nelson Anderson, "O mito de Zumbi: implicações culturais para o Brasil e para a diásporaafricana". Afro-Ásia, 17 (1996): 99-119.
176 Cf. Antonio Luís Ferronha, "O encontro inesperado" e Rui Loureiro, "A visão do índio brasileiro nostratados portugueses de finais do século XVI" in: Antonio Luís Ferronha (org.), O confronto do olhar.Lisboa, Ed. Caminho, 1991, pp.215-257 e 259-285; e Georg Thomas, Política indigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640. (trad.) São Paulo, Loyola, 1982, pp. 21-25; e Guillermo Giucci, Sem fé, lei ou rei: Brasil 1500-1532. (trad.) Rio de Janeiro, Rocco, 1993, especialmente cap. 5.
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conta, nem peso, nem medida."177 Alguns anos mais tarde, Frei Vicente do Salvador
reiterou essa máxima, ao observar que os índios "nenhuma palavra pronunciam com F, L
ou R, não só das suas, mas nem ainda das nossas, porque se querem dizer Francisco,
dizem Pancicu; e se querem dizer Luiz, dizem Duhi; e o pior é que também carecem defé, de lei e de rei, que se pronunciam com as ditas letras. Nenhuma fé têm nem adoram a
algum Deus; nenhuma lei guardam, ou preceitos, nem têm rei que lha dê, e a quem
obedeçam".178
Palmares, ao contrário, possuía um rei, venerado e reconhecido por todos, tinha
ministros da justiça e da guerra, e uma capela, "a que recorrem nos seus apertos". Assim
qualificado, constituía um Estado - um reino civilizado com o qual era possível fazer
guerras, negociar e estabelecer acordos. Assim, a vitória conseguida em 1678, bem como
o acordo de paz com Gangazumba, podiam se tornar feitos gloriosos e honrados.
Por isso, mais que ser um testemunho sobre a organização palmarina, esse texto
documenta um modo específico - essencialmente político - de apreender Palmares. Essa
forma de perceber e caracterizar Palmares aparece também em outros textos do século
XVII e XVIII, embora com algumas nuances.
É o caso, por exemplo, da Relação verdadeira da guerra que se fez aos negros
levantados do Palmar ,179 que narra a destruição de Macaco em 1694. Ali, os palmarinos
são descritos como bons soldados, bem treinados e disciplinados, com forte potencial bélico. Zumbi, seu líder, aparece como um herói, jogando-se em um abismo. A morte
heróica do inimigo torna a vitória sobre ele, nesse texto atribuído a Bernardo Vieira de
Melo, mais digna e louvável, já que "o vitorioso não triunfa numa guerra qualquer, mas
sim numa batalha encabeçada por um herói", como observa Maria Leda Oliveira, que
transcreveu e editou esse documento.180
177 Pero de Magalhães Gândavo, História da província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil [1ªed. 1576]. Texto disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000165.pdf , cap.7.
178 Frei Vicente do Salvador, Historia do Brazil . [1ª ed. 1627] Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1889, p.25.
179 Maria Lêda Oliveira, "A primeira Rellação do último assalto a Palmares" Afro-Ásia, 33 (2005): 270-324.
180 Idem, p. 262.
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Tal perspectiva também está presente nos famosos parágrafos de Rocha Pita
sobre a derrota final dos quilombos.181 Nesse caso, a vitória sobre Palmares aparece
como um feito importante do governo de Caetano de Melo de Castro. Aqui, o relato
também se inicia com algumas informações sobre Palmares: é preciso dar "noticias dacondição e princípio daqueles inimigos, da origem do povo ou república que
estabeleceram, das leis com que se governavam, e dos danos que pelo curso de mais de
sessenta anos nos fizeram". Como na crônica escrita em 1678, os mocambos aparecem
como um poderoso estado, com um "príncipe", Zumbi, que era "um dos seus varões mais
justos e alentados" e com "magistrados de justiça e milícias", governando-se por
"estatutos e leis [...] memórias e tradições conservadas de pais para filhos". Ainda que
Rocha Pita observe que de "católicos não conservavam já outros sinais que os da
santíssima cruz e algumas orações mal repetidas e mescladas com outras palavras e
cerimônias por eles inventadas ou introduzidas das superstições da sua nação", chegando
mesmo a afirmar serem eles "cismáticos", a tríade Fé, Lei e Rei ecoa mais uma vez
nessas páginas. Palmares aparece mais uma vez como um estado forte, e assim justifica-
se a necessidade de tão grande exército para derrotá-lo.
Escritos para audiências portuguesas ligadas à administração colonial, esses três
textos operam jogos de opostos construídos com intenções claramente políticas: na
crônica de 1678 os protagonistas são dom Pedro de Almeida e Gangazumba; na Relaçãoverdadeira, são Bernardo Vieira de Melo e Zumbi; na História da América portuguesa,
Caetano de Melo de Castro e Zumbi. Em todos eles, as características atribuídas aos
chefes palmarinos e aos mocambos operam no sentido de tornar ainda mais evidentes os
méritos de dom Pedro de Almeida, Bernardo Vieira de Melo ou de Caetano de Melo de
Castro e ainda mais gloriosa a vitória que obtiveram.
Assim, em 1678, dom Pedro de Almeida pôde se orgulhar de ter enfim
"restaurado" Pernambuco depois ter vencido os negros da Serra da Barriga e ter firmado
com seu rei um acordo de paz. Enfatizando as características políticas e militares de
Palmares como um estado, com fé, lei e rei, a crônica de 1678 procurava justificar a
opção pelo acordo de paz e caracterizá-lo como o coroamento de uma vitória militar.
181 Sebastião da Rocha Pita, História da América Portuguesa [1730], São Paulo, EDUSP/Itatiaia, 1976, pp.
213-219.
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Se esta constitui uma chave interpretativa importante para a compreensão desse
texto, é preciso saber a que modelo de estado Palmares está sendo associado. As
primeiras pistas podem ser procuradas na própria crônica escrita em 1678.
Os termos empregados para descrever a vida política, social e religiosa emPalmares são europeus: Gangazumba é rei e senhor dos Palmares, habita uma cidade real,
possui ministros de justiça e de guerra. Todavia, há também uma grande preocupação em
caracterizar diferenças. Se a descrição do local onde estão instalados os mocambos e de
suas características sociais e políticas poderia designar vários agrupamentos humanos, os
nomes próprios, de pessoas e lugares, pertencem a uma língua bem diferente do
português. São contudo as cerimônias utilizadas para reverenciar o rei e os rituais
empregados pela embaixada palmarina enviada ao Recife que marcam de maneira mais
definida tratar-se de um outro estado. Não por acaso o autor dedicou certa atenção a
esses aspectos.
Na narrativa, as negociações da paz aparecem sem surpresa, como se o fato desse
continuidade às comemorações do triunfo obtido pelo governador Pedro de Almeida, que
então transmitia seu cargo a Aires de Souza de Castro:
"Passados estes sucessos, alegres os povos com estes triunfos, livres ossoldados destas marchas, sossegados os moradores destes insultos, erecebendo dom Pedro os vivas desta fortuna, correram os meses seguintes
até os treze de abril em que entregou dom Pedro o governo destas praçasa Aires de Souza, em cujos dias se confirmou a verdade de toda estarelação, e lhe tocou parte da glória que dom Pedro soube dispor: porqueaos 18 de junho em um sábado a tarde, véspera do dia que na Paroquialdo Recife se fazia festa ao nosso Português Santo Antonio, entrou nesta praça o alferes, que tinha mandado dom Pedro com o aviso aos palmares,o qual trouxe em sua companhia dois filhos do rei com mais dez negrosdos mais assinalados nos Palmares".182
182 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fls. 57v-58. Em "Descripção com noticias importantes",
BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001: "Passados todos estes sucessos, alegres os povos com estes triunfos, livres ossoldados destas marchas, sossegados os moradores destes insultos, e recebendo dom Pedro os vivas, e
parabéns desta tão singular fortuna, correram os meses seguintes de Abril em que largou o Governodestas Capitanias a Aires de Sousa e Castro seu sucessor; em cujos dias brevemente se confirmou averdade desta relação; e lhe tocou parte da gloria que dom Pedro soube dispor. Porque aos 18 de Junhodo mesmo ano em um sábado á tarde, véspera do dia em que na Paroquial do Recife se celebrava a festado nosso português Santo Antonio, entrou o alferes que tinha mandado dom Pedro aos Palmares comaviso, acompanhado de 3 filhos do Rei com 12 negros mais".
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A referência à festa de Santo Antônio não é gratuita. Além de ser santo padroeiro
das armas portuguesas, a coincidência das datas não parece ser nada aleatória. No texto,
ela dá continuidade ao júbilo pela vitória ao mesmo tempo em que prepara e
circunstancia as cerimônias de recepção dos embaixadores.183
Um parágrafo, entretanto,encarrega-se de marcar a diferença:
"Notável foi o alvoroço, que causou a vista daqueles bárbaros, porquechegaram com seus arcos, e flechas, e com uma arma de fogo, cobertas as partes naturais como costumam, uns com barbas trançadas, outros commustachos [bigodes], e outros rapados, corpulentos e robustos todos. Acavalo vinha um dos filhos do Rei, por trazer ainda aberta a ferida de uma bala que na guerra o maltratou; todos se foram prostrar aos pés de domPedro, e lhe bateram as palmas em sinal do seu rendimento, e em protestação da sua vitória, ali lhe pediram a paz com os brancos; e lhe
declararam as ordens, que trazia do rei, e mais potentados e cabos queescaparam ao furor da nossa resolução."184
O "notável alvoroço" das pessoas no Recife é também uma operação textual: a
embaixada é composta de gente que se veste e se comporta de modo diferente dos
europeus. Essa diferença, no entanto, não provoca medo ou espanto, mas "alvoroço". A
embaixada foi recebida com "grandes mostras de contentamento" por dom Pedro, que a
remeteu ao novo governador, que a tratou com "grande (...) gosto", "singular
complacência", "afabilidade" e "brandura". Em seguida, Aires de Souza de Castro
"mandou vestir, e adornar de fitas vermelhas, com que ficaram os negroscontentíssimos". Assim, temos aqui os rituais diplomáticos comuns no Antigo Regime
português, com missas solenes e troca de presentes, permanência de membros da
embaixada no local enquanto duram as negociações e outros sinais de amizade entre as
183 O procedimento se faz presente em textos que relatam a recepção a outras embaixadas africanas por autoridades coloniais no Brasil, como no caso da embaixada enviada em 1750 pelo Daomé à Bahiadescrita por José Freire Monterroyo Mascarenhas, Relaçam da embaixada que o poderoso rei de Angomé Kiay Chiri Broncon ... Lisboa, Off. de Francisco da Silva, 1751. Para uma análise desse documento, ver
Silvia Hunold Lara, "Uma embaixada africana na América Portuguesa". Iris Kantor e István Jankso(orgs.), Festa: cultura & sociabilidade na América Portuguesa. S. Paulo, Edusp/Fapesp/ImprensaOficial, 2001, vol. 1, pp. 151-165.
184 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 58. Em "Descripção com noticias importantes", BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001: "Notável foi o alvoroço que causou a vista daqueles bárbaros; porque entraram comseus arcos e flechas; e uma arma de fogo, cobertas as partes naturais como costumam uns com panos,outros com peles, com as barbas, uns trançados, outros corridos, outros rapados, corpulentos, e valentestodos; a cavalo vinha o filho do rei, mais velho, porque vinha ferido da guerra passada; todos se foram
prostrar aos pés de dom Pedro de Almeida, e lhe bateram as palmas em sinal do seu rendimento, e em protestação da sua vitória; ali lhe pediram a paz com os brancos"
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partes. Há também elementos que indicam tratar-se de uma embaixada enviada por um
rei diferente, porém conhecido pelos portugueses.
Essa diferença, no entanto, não é explicitada pelo exótico nem por elementos
incompreensíveis por uma audiência portuguesa acostumada a notícias das terrasultramarinas. Vejamos o procedimento utilizado para saudar o governador. Ele já havia
sido mencionado na crônica, para indicar que Gangazumba era tratado em Macaco "com
todos os respeitos de rei e com todas as cerimônias de Senhor; os que chega[va]m à sua
presença [punham] o joelho no chão, e bat[ia]m as palmas das mãos, sinal do seu
reconhecimento e protestação da sua excelência".185 Prostrar-se aos pés de uma
autoridade e bater palmas não era um ritual desconhecido pelos portugueses. Ao
contrário. Essa prática é mencionada por diversas fontes do período, caracterizando-se
como um procedimento comum no Reino do Congo e no de Angola.
Em seu Vocabulário, Raphael Bluteau menciona que no Reino de Angola,
quando os macotas ("que são os nobres da terra") propõem algum negócio aos sobas
(nome dados aos soberanos locais) fazem-no "de joelhos e batendo nas palmas em sinal
de respeito".186 Frei Raimundo de Dicomano, no final do século XVIII, descreve a
cerimônia de entronização do sucessor no Reino do Congo. No segundo sábado depois
da morte do rei, o eleito era levado "para uma praça aonde está preparada uma cadeira e
o fazem assentar, se lhe prostram de joelhos aos pés, tomam o barro na cara, batem asmãos e gritam viva el-rei, e assim está feito o rei".187
Assim, a crônica escrita em 1678 mostra que os governadores de Pernambuco e
os embaixadores de Gangazumba negociaram um acordo de paz como delegados de
nações diferentes. Oferecer a narrativa do episódio nesses termos e caracterizá-lo dessa
forma são escolhas políticas. Ao atribuir aos mocambos da Serra da Barriga qualidades
similares àquelas encontradas pelos portugueses em suas relações com os sobas centro-
185 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 51v. Em "Descripção com noticias importantes",
BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001: "com todos os respeitos de Rei, e com todas as cerimônias de Senhor; os quechegam a sua presença põem logo o joelho no chão, e batem as palmas das mãos sinal do seureconhecimento, e protestação da sua excelência"
186 R. Bluteau, Vocabulário, verbete "sova".187 Cf. Antônio Brásio, "Informação do Reino do Congo de Frei Raimundo de Dicomano [(ca. 1798]"
Stvdia, 34 (1972): 30.
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africanos, o cronista do triunfo de dom Pedro de Almeida podia ultrapassar o circuito
pernambucano para ganhar dimensões mais amplas.
A tríade Fé, Lei e Rei se refere a um modo de compreender e justificar a
ocupação das terras e o domínio das gentes característico do processo colonizador português nos séculos XVI e XVII. Ao ser empregada aqui com o sinal inverso daquele
usado em relação aos índios americanos, o cronista indica que as negociações com
Palmares diferiam daquelas empreendidas com os outros habitantes da América. A chave
para entender o que sustenta essa escolha política está no outro lado do Atlântico, onde as
terras ocupadas pelos portugueses eram habitadas por povos que tinham fé, lei e rei. Com
eles houve relações diplomáticas desde o início, e as negociações e acordos aconteciam
com freqüência. Também havia guerras - e muitas. Lá, contudo, o nexo entre as guerras e
as negociações com os sobas havia sido o caminho encontrado pelos portugueses para
dominar o território, submeter suas gentes e auferir suas riquezas.
A analogia pôde ser empregada com êxito para caracterizar Palmares e dar
legitimidade política às negociações e ao acordo de paz. Em meados de 1678, tudo
indicava que a estratégia estava destinada ao êxito. Dom Pedro de Almeida podia colher
as glórias de uma conquista de grandes dimensões ao terminar seu governo.
Para os historiadores, no entanto, a leitura cuidadosa da documentação abre
caminhos importantes para a análise dos significados dos eventos de 1678. Os próximoscapítulos procuram trilhar alguns deles, em busca de elementos que possam contribuir
para entender como foi possível realizar essa operação retórica. O percurso permitirá
compreender, também, as condições mais gerais que possibilitaram as negociações entre
Aires de Souza de Castro e os filhos e Gangazumba e o contexto político no qual foi
possível pensar na implantação da aldeia de Cucaú. Não menos importante é o fato de
que ele nos aproximará do ponto de vista dos palmarinos.
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Capítulo 2
DIÁLOGOS
Grande parte da pesquisa histórica consiste em fazer dialogar textos variados,
escritos em momentos e com intenções as mais diversas. É do cruzamento dessas vozes
díspares e muitas vezes contraditórias que os historiadores extraem a possibilidade de
conhecer o passado. Contudo, esse é apenas um primeiro passo. Mais que conhecer o que
aconteceu (pois já se abandonou há muito a crença na possibilidade de saber o que
"realmente" se passou), os historiadores buscam compreender por que e como os eventos
ocorreram e de que maneira foram lembrados ao longo do tempo. Os acontecimentos
dependem das ações e das intenções de pessoas diversas, que produzem versões variadassobre eles. A essas versões somam-se as memórias e as histórias que foram escritas sobre
esses eventos, que também variam bastante. O passado, assim, não é um objeto único.
Por isso, não se pode ir adiante só com o exame das fontes. O resultado da análise
histórica depende do que o pesquisador enfatiza, das questões que coloca e das
perspectivas e abordagens que adota. Depende, também, do diálogo que estabelece com o
conhecimento já produzido. Por isso, esse capítulo abre espaço para ampliar a conversa
com a historiografia.
1. A força de uma tradição
Nina Rodrigues foi o primeiro autor a se debruçar com mais atenção sobre as
"origens africanas" de Palmares. Ao analisar suas características de governo, por
exemplo, ele afirma terem os Palmares se organizado "em um estado em tudo
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equivalente aos que atualmente se encontram por toda a África ainda inculta",
comparando-o com exemplos encontrados entre os Ewes, Egbas e outros povos do
Daomé ou do Senegal.1 Mais adiante, porém, especifica ser Palmares "uma criação
exclusivamente bantu", na qual predominavam os Angola.2
Ao recolher e cotejar asevidências sobre práticas religiosas e lingüísticas, bem como sobre costumes e tradições,
para discutir as hierarquias políticas entre os chefes palmarinos, o autor consolida esta
interpretação.3 Para Nina Rodrigues, mesmo que não houvesse só negros e que nem
todos fossem africanos em Palmares, a presença bantu exercia uma indiscutível
"influência diretora".4 Isso não significava, entretanto, julgar o episódio de forma
positiva: embora considerasse Palmares "um caso especial e sem exemplo na história dos
povos negros", concluía que os quilombolas haviam voltado "à barbárie africana" e que a
destruição de Palmares abrira caminho para a "civilização do futuro povo brasileiro".5
Escrevendo no início do século XX, Nina Rodrigues estava imbuído do espírito
científico e do ideário racista, porém tentava retirar deles elementos para valorizar a
presença negra na formação nacional.6 Sua avaliação do que era superior e inferior na
África e sua crença na marcha do progresso marcam o julgamento contraditório que
produziu sobre Palmares - um evento marcante mas que não havia sido liderado pelos
sudaneses, que tanto valorizava. No início do século e sobretudo nos anos 30 e 40, o
tema das raízes africanas no Brasil ia bem além das dimensões acadêmicas - oucientíficas, como então se dizia. Os debates sobre a sobrevivência de "africanismos",
sobre aculturação, miscigenação cultural e assimilação caminhavam juntos com a
necessidade de avaliar o significado da cultura africana no Brasil. Por isso, era
1 Nina Rodrigues, "A Troya Negra. Erros e lacunas da história dos Palmares" Diário da Bahia, 20, 22 e 23de agosto de 1905. Apesar das datas discrepantes, o artigo foi transcrito na Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, 11 n. 63 (1904): 645-572. Com o título alterado para "Assublevações de negros no Brasil anteriores ao século XIX. Palmares" o texto foi incluído no livro
póstumo Os africanos no Brasil. [1932]. 5ª ed., São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1977, pp. 71-93. Utilizo,aqui, essa última edição, pp. 77-78.
2 Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil , [1905], 5ª ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1977, pp. 88-89
3 N. Rodrigues, Os africanos no Brasil , pp. 90-93.4 N. Rodrigues, Os africanos no Brasil , p. 89.5 N. Rodrigues, Os africanos no Brasil , pp. 71-93.6 Para uma avaliação da produção de Nina Rodrigues e de seus discípulos, vide Mariza Corrêa, As ilusões
da liberdade: a escola de Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2ª ed. rev. Bragança Paulista, Ed.da Universidade São Francisco, 2001.
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importante entender e dimensionar o processo de desagregação vivido a partir da saída da
África, durante o cativeiro e depois da abolição. Importantes para a antropologia e a
sociologia, que estavam se constituindo como campos de investigação, esses debates
envolviam intelectuais nacionais e americanos interessados no que então se chamava de"estudos sobre o negro" no Brasil e nas Américas.7 Os dilemas daquele presente
orientavam um certo olhar sobre o passado.
Nesse período, os estudos lingüísticos e antropológicos sobre as culturas africanas
serviram de base para diversos autores interessados em valorizar a cultura negra no
Brasil ou afirmar a importância da África no processo de formação da nação.8 A partir do
artigo pioneiro de Nina Rodrigues, tais posições ecoaram na história de Palmares ao
reforçar a necessidade de discutir, mesmo diante dos poucos dados disponíveis, os
elementos políticos, sociais e religiosos da vida nos mocambos. Artur Ramos e Edison
Carneiro seguiram as pegadas de Nina Rodrigues, mas com posições diversas quanto ao
significado das raízes africanas de Palmares.
Para Arthur Ramos, o quilombo era um "estado com tradições africanas dentro do
Brasil (...) uma desesperada reação à desagregação cultural que o africano sofreu com o
regime da escravidão".9 Este "estado negro" constituía um "exemplo de organização
política e econômica", na qual se "evidencia[v]am as capacidades de liderança, de
administração, de tática militar, de espírito associativo, de organização econômica, deconstituição legislativa ... do negro brasileiro".10 Já não se tratava de uma criação
"exclusivamente bantu" como em Nina Rodrigues, mas de adaptações: "os usos e
costumes dos quilombos dos Palmares copiavam as organizações africanas de origem
7 Ver, a respeito, Marcos Chor Maio, A história do Projeto Unesco. Estudos raciais e ciências sociais no Brasil . Doutorado, IUPERJ, 1997, especialmente capítulo 5; Lourdes Martínez-Echazábal, "Oculturalismo dos anos 30 no Brasil e na América Latina: deslocamento retórico ou mudança conceitual?"
in: Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.), Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro,Fiocruz/CCBB, 1996, pp. 107.
8 Ver, para um panorama amplo sobre o tema, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Racismo e anti-racismono Brasil . São Paulo, Fundação de Apoio à USP/Ed. 34, 1999, especialmente cap. 3.
9 Arthur Ramos, "O espírito associativo do negro brasileiro". Revista do Arquivo Municipal , 47 n. 4,(1939): 121
10 Arthur Ramos, "O espírito associativo do negro brasileiro", pp. 122-123. Vide também Arthur Ramos, Onegro na civilização brasileira [1956] Rio de Janeiro, Livraria e Editora da Casa do Estudante do Brasil,[1971], p.75 e Arthur Ramos, A aculturação negra no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional,1942, pp. 137-140.
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Nina Rodrigues e Arthur Ramos, ao considerar Palmares "um pedaço da África
transplantado para o Nordeste do Brasil".15 Também para E. Carneiro era bantu a base
lingüística dos quilombolas, e sua cultura possuía algumas adaptações, como no caso da
religião, "mais ou menos semelhante à católica, o que se explica pela pobreza mítica dos povos de língua bantu a que pertenciam e pelo trabalho de aculturação no novo habitat
americano".16 Em sua obra, no entanto, os aspectos da resistência dos escravos foram os
mais valorizados. Apesar de todo um capítulo dedicado aos "negros dos quilombos", em
que são descritos os costumes e a vida política e religiosa nos mocambos, não há de fato
uma discussão sobre os elementos propriamente africanos da vida palmarina - apenas
referências mais gerais a práticas bantu. A cultura funcionava, para ele, como um
repertório para a resistência: a rebeldia dos escravos se expressava por meio de um
processo contra-aculturativo.
Em 1954, a extensa obra de Mário Martins de Freitas trouxe novos elementos.
Sua abordagem era um tanto ambígua, já que louvava ao mesmo tempo a bravura
daqueles que lutaram para derrotar Palmares e enaltecia a coragem dos quilombolas que
almejavam a liberdade e resistiram por tanto tempo às investidas coloniais.17 Toda a
primeira parte da obra foi dedicada à geografia, etnografia e história da África, mas o
resultado dessa análise nem sempre é claro. Segundo ele, os primeiros habitantes dos
Palmares seriam jagas:"aos jagas - belicosa tribo indomável do sobado do famoso Ngola Nbandi,aprisionados pelos portugueses durante o mandato do governador deAngola, Luiz Mendes de Vasconcelos, nomeado em 1616, e mandados para o Brasil como escravos - cabe a paternidade do grande movimento palmarino já anteriormente iniciado com alguns negros desgarrados".18
Instalados em uma região cheia de palmeiras, como na África, os habitantes de
Palmares teriam constituído no sertão de Pernambuco um sobado, ao qual se somaram
outros, no tempo da invasão holandesa, governados por um rei cujo título nobiliárquico
15 E. Carneiro, O quilombo dos Palmares. Sa o Paulo, Companhia Editora Nacional, 1958, p. 30. A ênfasecontra-aculturativa é afirmada no artigo "Singularidades dos quilombos" publicado originalmente em1953 e depois incorporado à 2ª ed. de O quilombo dos Palmares, pp. 13-25.
16 E. Carneiro, O quilombo dos Palmares, p. 59.17 Mario Martins de Freitas, Reino negro de Palmares, Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1954. A
segunda, edição (Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1988) é a que utilizo aqui .18 M. M. Freitas, Reino negro de Palmares, p. 162.
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era Zambi, "cuja autoridade repousava no sangue da casta sagrada dos jagas". Com o
tempo teria se desenvolvido uma organização mais centralizada, e o rei "tomou o título
militar de Gangazumba, comandante geral de todas as forças que foram distribuídas pelas
embalas e com comandantes subordinados ao alto comando".19
Não há evidênciadocumental para tais afirmações; Mário Freitas interpreta as informações colhidas nas
fontes administrativas e na crônica de 1678 segundo seus conhecimentos dos costumes
africanos que, como se pode perceber, são um pouco confusos.
A partir dos anos 1950, a historiografia brasileira sobre Palmares abandonou aos
poucos essa perspectiva analítica, para valorizar, cada vez mais, os aspectos da
resistência dos escravos diante da escravidão e sua luta pela liberdade do que os aspectos
culturais.20 Mais que as características contra-aculturativas salientadas por Edison
Carneiro, os autores que analisaram a história de Palmares nos anos 50 e 60 passaram a
valorizar o "protesto escravo". Para Clóvis Moura21 e Benjamin Perét,22 a resistência
escrava - a rebelião das senzalas, como a chamou Clóvis Moura - era uma das formas que
a luta de classes havia assumido no Brasil. A negação do cativeiro explicava as fugas e
os quilombos. Nesse contexto, Palmares teria sido o mais duradouro e extenso dos
"movimentos dos cativos contra a escravidão" - e o que "maior trabalho deu às
autoridades para ser exterminado".23 Seu estudo fornecia uma lição exemplar para os
militantes de esquerda e Palmares e seus líderes passaram a ser avaliados a partir de seu potencial revolucionário.24
19 M. M. Freitas, Reino negro de Palmares, p. 171.20 O quilombo foi referência importante para movimentos anti-racistas que tinham fortes traços
culturalistas, como no caso do quilombismo de Abdias do Nascimento. Como não implicaram numaanálise histórica de Palmares, deixo de tratar deles neste texto. Sobre o tema ver Abdias do Nascimento,O quilombismo. Documentos de uma militância pan-africanista. Petrópolis, Vozes, 1980.
21 Clóvis Moura, "O quilombo dos Palmares" Rebeliões da Senzala. Quilombos, insurreições, guerrilhas. S. Paulo, edições Zumbi, 1959, pp. 109-128. A segunda edição, revista e ampliada (Rio de Janeiro, Ed.Conquista, 1972, pp. 179-190) é a que utilizo.
22 Benjamin Péret, "Que foi o quilombo de Palmares?" Anhembi, 65 (abr. 1956): 230-249; e 66 (maio1956): 467-486. Sob a forma de livro, os artigos foram publicados por Lisboa, Fenda, 1988 e com otítulo O quilombo dos Palmares, por Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2002 (com estudoscomplementares por Robert Ponge e Mário Maestri), que utilizo aqui.
23 Clóvis Moura, "O quilombo dos Palmares", p. 179. Ver também, na mesma direção, Luiz Luna,"República dos Palmares" O negro na luta contra a escravidão. Rio de Janeiro, Ed. Leitura, 1968 (2ª ed.revista Rio de Janeiro, Catedral de Brasília/INL, 1976, pp. 217-238; e José Alípio Goulart, "Quilomboem Alagoas" Da fuga ao suicídio. Aspectos da rebeldia do escravo no Brasil . Conquista, 1972, pp. 223-228.
24 B. Péret, "Que foi o quilombo de Palmares?", especialmente "Ensaio de interpretação", pp. 113-137.
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Enquanto isso, nos anos 1960, com o desenvolvimento dos estudos africanistas
nos Estados Unidos, os estudos sobre o negro ganharam novas dimensões, tanto
acadêmicas quanto políticas. Palmares, assim como outras comunidades de fugitivos nas
Américas, chamaram a atenção dos pesquisadores, pois abriam possibilidadesinteressantes para estudar o modo como as culturas africanas se desenvolveram fora da
África.
Em 1965 Raymond Kent publicou um artigo em que os estudos acadêmicos sobre
a história e a cultura africanas foram arregimentados para realizar uma avaliação mais
pormenorizada da presença da África em Palmares.25 Aqui, não havia mais referências
genéricas aos bantu, mas análises lingüísticas que faziam referências aos Mbundo e aos
Imbangala.26 Baseado na então relativamente nova historiografia africanista, refutava a
hipótese de que os jagas teriam sido os fundadores de Palmares ou terem constituído sua
dinastia governante. Para ele, a maioria dos "palmaristas" teria vindo "do perímetro
Congo-Angola". Desde 1580, Angola se tornara o grande fornecedor de escravos, o que
significava que os fundadores de Palmares, embora não pertencessem a nenhum
subgrupo bantu específico, constituíam um "amálgama" no qual os crioulos eram
poucos.27 Ao adaptar vários modelos africanos, Palmares teria aos poucos se tornado
mais crioulo em função dos nascimentos e dos novos fugitivos: isso significava que um
sistema político africano podia ter sido transferido para outro continente e ali tinha sidocapaz de governar "não apenas indivíduos de vários grupos étnicos africanos mas
também os nascidos no Brasil, muito negros ou quase brancos, latinizados ou próximos
de raízes ameríndias", além de resistir por quase um século inteiro a dois poderes
europeus.28
Para Kent, assim como para outros autores que estudavam os quilombos nas
Américas, Palmares era um fenômeno interessante pois permitia observar a "recriação de
sociedades africanas num novo meio", constituindo uma demonstração da "vitalidade da
25 Raymond K. Kent, "Palmares: An African State in Brazil" Journal of African History, 6: 2 (1965): 161-175. O artigo foi posteriormente publicado em Richard Price (ed.), Maroon Societies. Rebel slavecommunities in the Americas. New York, Anchor, 1973, pp.170-190.
26 Para facilitar a leitura, adoto, aqui e em toda a tese, a notação internacional atual para as palavras centro-africanas, mesmo que elas não tenham sido grafadas dessa forma pelos autores.
27 R. Kent, "Palmares: An African State in Brazil", p. 166.28 R. Kent, "Palmares: An African State in Brazil", p. 175.
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escravidão. Os africanos trazidos pelo tráfico para as Américas provinham de regiões
diversas e tinham que enfrentar aqui relações sociais e políticas diferentes das africanas.
Apesar das diferenças étnicas e lingüísticas, os escravos possuíam uma herança comum
que se modificava e se transformava para enfrentar os senhores e as relações nassociedades escravistas das Américas.34 Não se tratava mais de "sobrevivências africanas"
como pensava Herskovits, mas de uma nova cultura, afro-americana, que nascia desse
encontro das diversas heranças africanas com a sociedade escravista no Novo Mundo.
Enquanto isso, no Brasil, a obra de Décio Freitas consolidava e dava corpo à
leitura militante da história de Palmares. Durante muitos anos, o autor se dedicou a
estudar ao tema, buscou novos documentos em diversos arquivos, avaliou e contestou
interpretações anteriores. Seu livro, cuja primeira edição foi publicada em 1973 e sofreu
sucessivas revisões,35 se constrói como um esforço para afirmar "o conteúdo político e
revolucionário das revoltas escravas" - dentre as quais Palmares ocupa um lugar ímpar.36
Enfatizar a preservação da cultura africana era, para ele, uma posição "alienada" e pouco
produtiva, pois os conhecimentos nessa área, "a despeito dos progressos ultimamente
realizados", estavam longe de ser satisfatórios, sem condições de oferecer subsídios para
uma análise conseqüente.37
Assim como Péret,38 Freitas nega qualquer possibilidade de união étnica ou
lingüística entre os escravos, já que o contingente trazido para o trabalho nos engenhosconstituía "um mosaico étnico e cultural sumamente diversificado".39 Ainda que o
capítulo dedicado a analisar as características dos quilombos seja intitulado "Angola
Janga", para ele, o que movia a resistência dos escravos "era a desgraça comum, ou em
34 Sidney W. Mintz e Richard Price, The birth of African-American culture. An anthropological perspective. Boston, Beacon Press, 1992. A primeira versão desse texto circulou como um impresso doInstitute for the Study of Human Issues, 1976. Tinha então o título An anthropological approach to the Afro-American past: a Caribbean perspective (trad: O nascimento da cultura afro-americana. Uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro, Pallas/Universidade Cândido Mendes, 2003).
35 Décio Freitas, Palmares. A Guerra dos Escravos. Porto Alegre, Movimento, 1973. A primeira edição foifeita no Uruguai, em 1971. As edições brasileiras posteriores, revisadas, foram publicadas em 1978 e1981. Utilizo a quinta e última, reescrita, revista e ampliada: Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984.Infelizmente, o empenho na busca de novas fontes e documentos não foi acompanhado pelo cuidado dereferenciá-los em notas. Há apenas, no final do volume, menção genérica aos fundos e arquivosconsultados.
36 Décio Freitas, Palmares, p. 12.37 Décio Freitas, Palmares, pp. 172-173.38 B. Péret, "Que foi o quilombo de Palmares?", p. 11539 Décio Freitas, Palmares, p. 48.
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outras palavras, um vínculo de classe".40 Palmares se tornava, então, fruto de um
movimento "essencialmente social", constituindo-se como "um asilo aberto a todos os
perseguidos e deserdados da sociedade colonial".41 Havia igualdade civil e política entre
os palmarinos,42
mas a necessidade de acomodar e agregar grupos heterogêneos do pontode vista étnico e cultural, bem como a premente necessidade de defesa diante dos
inimigos externos deram origem a um estado centralizado, com algumas características
africanas.43
Não por acaso, essa tendência analítica se desenvolveu em conexão direta com a
dinâmica do marxismo e dos partidos de esquerda - em particular do partido comunista -
no Brasil.44 Como vimos de modo breve na Introdução da tese, ao longo dos anos 1970 e
1980, Palmares e Zumbi tornaram-se símbolos da luta maior contra a opressão e exemplo
para os militantes. Em alguns casos, em busca da construção de uma epopéia
revolucionária, houve quem lamentasse a "incapacidade dos escravos" de por em xeque o
sistema escravista.45
40 Décio Freitas, Palmares, p. 51. Ver também Ivan Alves Filho, Memorial dos Palmares, pp. xii-xiii; e, domesmo autor, "O quilombo dos palmares como resistência e síntese cultural" in: Isabel Castro Henriques(org.), Escravatura e transformações culturais. África - Brasil - Caraíbas. Actas do Colóquio Internacional Universidade de Évora, 28, 29 e 30 de novembro de 2001. Lisboa, Editora Vulgata, 2002, pp. 271-283.
41 Décio Freitas, Palmares, p. 72.42 Décio Freitas, Palmares, p. 47. Na mesma direção caminham estudos específicos, que salientam o
caráter democrático da distribuição de terras em Palmares, como em Duvitiliano Ramos, "A posse útil daterra entre os quilombolas" in: Abdias do Nascimento, O negro revoltado. 2ª ed. Rio de Janeiro, NovaFronteira, 1982, pp.153-164. Tal perspectiva abriu caminho para que Palmares pudesse ser pensadocomo um mundo ideal, oposto ao "mundo do açúcar". Assim, nos mocambos teria havido "variedade deculturas agrícolas, abundância de alimentos, produção para consumo interno, [em que] a terra só temvalor pela utilidade [e a] sociedade não [é] dividida em classes, sem desníveis sociais (apesar de certos
privilégios concedidos aos chefes militares e políticos)". Joel Rufino dos Santos, Zumbi. São Paulo,Editora Moderna, 1985, p. 19. Sobre o mesmo tema, vide ainda Waldir Freitas Oliveira, "Economia dePalmares" in: Clóvis Moura (org.), Os quilombos na dinâmica social do Brasil . Maceió, EdUFAL,
2001, pp. 61-71.43 Décio Freitas, Palmares, pp. 101-104. A oposição entre a democracia inicial e a centralização naorganização política dos mocambos também foi abordada por B. Péret, "Que foi o quilombo dePalmares?", pp. 115-118.
44 Vários autores que trataram de Palmares, como Edison Carneiro, Alfredo Brandão, Aderbal Jurema,Décio Freitas e Ivan Alves Filho tiveram ligações com o PCB. Essa característica, mencionada por alguns autores, merece um estudo mais aprofundado, que ainda não foi feito. Cf. F. S. Gomes, "Aindasobre os quilombos", p. 205; e, do mesmo autor, Palmares. Escravidão e liberdade no Atlântico sul . SãoPaulo, Contexto, 2005, pp. 33-39.
45 D. Freitas, Palmares, p. 11; I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, pp. 199-200.
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Paralelamente, nas universidades brasileiras, uma nova abordagem da história dos
quilombos se desenvolveu. Inspirados pelas mudanças na historiografia da escravidão
nos Estados Unidos e em especial por novas propostas teóricas e políticas no estudo da
história social, os historiadores no Brasil passaram a focalizar com maior cuidado a vidados escravos sob a escravidão, procurando compreender o ponto de vista dos cativos e os
motivos para suas ações como escravos e suas formas de reagir contra o cativeiro.46 Mais
que avaliar as qualidades políticas das ações escravas a partir de concepções e conceitos
que lhes eram exteriores, o que se pretendia então era compreender o ponto de vista dos
escravos segundo seus próprios termos. Essa perspectiva analítica aos poucos suplantou
aquela abordagem militante e deu lugar a estudos mais acadêmicos, que focalizavam
dimensões diversas da vida dos escravos e, também, daqueles que fugiam e se
aquilombavam. O gesto político, aqui, estava em colocar os escravos como sujeitos da
história e valorizar uma lógica diversa das expectativas do marxismo ortodoxo.
Um bom exemplo dessas pesquisas, que despontaram no Brasil dos anos 1980,
pode ser colhido nas publicações feitas por ocasião do centenário da Abolição, em
particular num volume especial da revista Estudos Econômicos, dedicado ao "protesto
escravo". Encontram-se ali estudos que dão continuidade à vertente clássica das obras
dedicadas a analisar a insurgência negra no Brasil,47 bem como artigos que empreendem
uma análise das rebeliões escravas e de práticas de fuga ou de troca de senhor quefocalizam outras lógicas políticas, levando em conta o ponto de vista dos agentes
envolvidos nos diferentes contextos.48 Dentre eles, destaco um, que oferece uma
abordagem inovadora para a história de Palmares, escrito por Stuart B. Schwartz.49 Uma
versão anterior do artigo já havia sido publicada em 1970, focalizando casos de
46 Para um balanço dessa produção historiográfica ver, entre outros, S. H. Lara, "Blowin' in The Wind":Thompson e a Experiência Negra no Brasil" Projeto História, 12 (out.1995): 43-56.
47 É o caso, por exemplo, de Clovis Moura, "Da insurgência negra ao escravismo tardio" Estudoseconômicos,17, n. especial (1987): 37-59.
48 Veja-se, por exemplo, Marcus J. M de Carvalho, "'Quem furta mais e esconde": o roubo de escravos emPernambuco, 1832-1855"; Luiz R. B. Mott, "Rebeliões escravas em Sergipe"; e João José Reis, "Olevante dos malês na Bahia: uma interpretação política" Estudos Econômicos, 17, nº especial (1988):respectivamente pp. 89-110; 111-130 e 131-149.
49 Stuart. B. Schwartz, "Mocambos, Quilombos e Palmares: a resistência Escrava no Brasil colonial", Estudos Econômicos, 17, nº especial (1988): 61-88.
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quilombos baianos.50 Agora ganhava uma análise mais detalhada, que também tratava de
Palmares.51 Foi um dos poucos trabalhos publicados naquela ocasião sobre o quilombo
da Serra da Barriga.
Schwartz acompanhava a virada historiográfica dos estudos sobre a escravidão, esituava as fugas e os mocambos num quadro maior de resistência dos escravos, ao
examinar com mais detalhe duas comunidades de fugitivos: o quilombo do Buraco do
Tatu, na Bahia, destruído em 1763, e Palmares. Como muitos autores, ele considerou que
as comunidades de fugitivos tinham "raízes em algumas formas tradicionais africanas de
organização política e social" e combinavam "tais formas com aspectos da cultura
européia e adaptações especificamente locais".52 Seu artigo trazia porém uma
contribuição importante para o tema, ao comparar as formas de organização militar e
política dos quilombos com aspectos semelhantes que estavam sendo investigados por
alguns estudiosos da história centro-africana.
Com relação a Palmares, Schwartz afirmava que os vários mocambos,
governados por uma linhagem real, ecoavam formas políticas e sociais africanas,
formando "um único reino neoafricano".53 O termo é importante: não mais se trata de um
reino africano, ou uma comunidade afro-brasileira (ou afro-americana), como haviam
postulado antes outros autores. Palmares era uma comunidade na qual "escravos de
várias origens, africanos e crioulos, uniram-se em sua oposição comum à escravidão".54 Havia, assim, de certo modo, uma síntese das posições anteriores. Ao mesmo tempo em
que enfatizava o elemento comum e unificador de resistência à escravidão, Schwartz
considerava a presença africana e as diferenças culturais entre os escravos. Para ele,
porém, essas diferenças não teriam dissolvido as características africanas de Palmares,
pois o modo como elas haviam sido integradas, do ponto de vista político e militar,
seguia modelos africanos. Ao mesmo tempo, Schwartz questionava abordagens
50 Stuart B. Schwartz, "The 'Mocambo': Slave Resistance in Colonial Bahia". Journal of Social History, 3n. 4 (1970): 313-333. Uma versão intermediária foi publicada em S. B. Schwartz, "Black slaves inPalmares, Brazil - The mocambo revolt" Histoire, 41 (1982): 38-48.
51 Esse artigo ganhou uma nova versão em 1992. Vide S. B. Schwartz, "Repensando Palmares: resistênciaescrava na colônia" in: Escravos, roceiros e rebeldes. (trad.) Bauru, Edusc, 2001, pp. 213-255. Utilizoesse texto para as referências nos próximos parágrafos.
52 S. B. Schwartz, "Repensando Palmares", p. 245.53 S. B. Schwartz, "Repensando Palmares", p. 245.54 S. B. Schwartz, "Repensando Palmares", pp. 249-255.
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etnográficas centradas em "identidades étnicas ou culturais específicas", que muitas
vezes adotavam categorias como "angola" ou "congo", que para ele eram na verdade
mais invenções coloniais do que resultado de processos identitários propriamente
africanos.55
Ao invés disso, ele procurou compreender como e por que a palavra quilombo
passou a ser empregada para caracterizar Palmares e como essa palavra se tornou, a partir
de Palmares, a maneira de designar todas as comunidades de fugitivos no Brasil: "a
cronologia e a conexão [da palavra quilombo] com Palmares não são acidentais. No
termo quilombo está codificada uma história não escrita, que somente agora, devido a
pesquisas recentes sobre a história africana, pode ser, ao menos parcialmente,
compreendida".56
A chave para decifrar essa história estava nos kilombos Imbangala, sociedades
rituais que haviam permitido que esses guerreiros centro-africanos mantivessem coesão
social, religiosa, política e militar, ao invadir a região de Angola ao longo do século
XVII. Ao se fundirem com as linhagens nativas, os Imbangala haviam incorporado uma
instituição dos Mbundo, transformando-a em um poderoso instrumento militar ao
permitir a integração de povos desiguais e sem ancestrais comuns. Com rituais próprios,
ela tinha permitido coesão de homens que não estavam integrados por laços de
parentesco nem por deuses ancestrais e que passavam a viver em acampamentos, deguerras e conquistas. Dois estados haviam se formado na região centro-africana, a partir
do contato entre os Mbundo e os Imbangala: os reinos de Matamba e Kassange. 57 Como
bem observa Schwartz, se os fundadores de Palmares se inspiraram no kilombo
Imbangala para a formação de sua sociedade, "sua versão dele era incompleta ou, pelo
menos, uma variante do modelo original".58 Mas havia fortes paralelos:
"uma figura fundamental no kilombo era o nganga a zumba, um sacerdotecuja responsabilidade era lidar com o espírito dos mortos. O Gangazumba
de Palmares era provavelmente o detentor desse cargo, que não era de fatoum nome próprio, mas um título. Há outros ecos das descrições de Angola
55 S. B. Schwartz, "Repensando Palmares", p. 248.56 S. B. Schwartz, "Repensando Palmares", p. 249. Schwartz apóia-se especialmente em Joseph C. Miller,
Kings and kinsmen: early Mbundu states in Angola, Oxford, Clarendon Press, 1976.57 S. B. Schwartz, "Repensando Palmares", pp. 251-254.58 S. B. Schwartz, "Repensando Palmares", p. 254.
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que parecem sugestivos. No kilombo Imbangala a liderança dependia dealgum tipo de aclamação ou eleição popular, exatamente como afirmamalguns dos relatos brasileiros. É bastante curiosa a observação de AndrewBatell, que viveu entre os Imbangala e relatou que seu maior luxo era ovinho de palma e que suas rotas e acampamentos eram influenciados pela
disponibilidade de palmeiras. Seus comentários fazem com que aassociação entre a comunidade de fugitivos e a região de Palmares pareçamais do que coincidência".59
Como se pode observar, para Schwartz há instituições centro-africanas
específicas que podem ter sido fonte de inspiração e que talvez tenham sido adaptadas e
transformadas. Não se trata mais de sobrevivências ou heranças africanas, nem de uma
nova cultura. Ele procurou compreender como a marca africana nas ações dos escravos
podia ser compatível com a diversidade étnica dos cativos e com os desafios vividos por
eles na América. Além da cultura, havia em sua análise elementos mais amplos, ligados aestratégias políticas africanas. O que estava em jogo era uma cultura política: uma
experiência africana de integração de povos diversos e de geração de solidariedades que
também era empregada também na América.60
Apesar da importância da contribuição analítica do artigo de Schwartz, a nova
senda interpretativa aberta por ele teve pouco impacto na historiografia brasileira.
Certamente os estudos sobre as fugas e os quilombos brasileiros passaram por
modificações significativas, mas não nessa direção. Mesmo que a vertente militante
tenha sido abandonada, o interesse predominante continuou a enfatizar os aspectos e os
significados sociais das fugas, ao invés da cultura dos fugitivos. Alguns historiadores já
haviam observado que algumas fugas eram temporárias, usadas pelos escravos para
59 S. B. Schwartz, "Repensando Palmares", p. 253. Ao reproduzir o trecho, tomei a liberdade de corrigir um pequeno deslize do tradutor na última frase da citação.
60 Essa perspectiva se baseava nas análises desses mecanismos e instituições africanas, como as realizadas
por Igor Kopytoff, "The internal African Frontier: the making of African political culture" in: Igor Kopytoff (ed.), The African frontier . Bloomington, Indiana University Press, 1987, pp. 3-84,desenvolvidas por Stephen Palmié, "African States in the New World? Remarks on the Tradition of Transatlantic Resistance" in: Thomas Bremer e Ulrich Fleischmann (eds.), Alternative cultures in theCaribbean. First International Conference of the Society of Caribbean Research, Berlin 1988 Frankfurt,Vervuert, 1993, pp. 55-67; e Palmié, Stephan “Ethnogenetic Processes and cultural transfer in Afro-American Slave Populations” Wolfgang Binder (ed) Slavery in the Americas. Wurzburg, Königshousenand Neumann, 1993, pp. 337-363. Schwartz leu esses dois artigos antes de serem publicadosdefinitivamente, como papers escritos em 1988 e 1989. Cf. S. B. Schwartz, , "Repensando Palmares",
pp. 245 e 249.
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exigir dos senhores mudanças nas condições de trabalho.61 Outros, como Marcus
Carvalho, já haviam verificado que as fugas podiam ser instrumentalizadas pelos
senhores, que escondiam fugitivos interessados em seu trabalho.62 Com relação aos
quilombos propriamente ditos, o panorama mudou por completo desde as pesquisasrealizadas por Flávio dos Santos Gomes, no início dos anos 1990.63
Até os anos 1970 os agrupamentos de escravos fugidos eram vistos em geral
como lugares sociais e políticos que se colocavam "fora" do mundo escravista: os
fugitivos buscavam o isolamento nas matas, afastando-se das fazendas e engenhos, como
forma de proteger a liberdade conquistada e só retornavam às fazendas e lavouras quando
recapturados. Ao estudar formações quilombolas extensas no Vale do Paraíba e na
Baixada Fluminense, Flávio Gomes documentou as trocas entre quilombolas e
taberneiros locais e as relações entre os que estavam nos matos e os escravos que
continuavam nas senzalas. Seus estudos abriram a possibilidade de investigar novas
dimensões da vida nos quilombos e suas relações com as várias modalidades de fuga,
com outros grupos e segmentos sociais. Mas não contemplavam, assim como no caso da
maior parte dos estudos sobre a escravidão, as questões da cultura dos escravos - ou seja,
o fato de serem africanos, dessa ou daquela parte da África, ou de serem crioulos pesava
pouco na análise empreendida.
O centenário da morte de Zumbi não ofereceu novidades, nem deu margem a umestudo específico sobre Palmares. As diversas perspectivas de análise se desenvolveram,
multiplicando os estudos sobre os quilombos em várias regiões e períodos da história da
escravidão no Brasil. Os temas têm variado, abordando ora questões da vida interna dos
quilombos, ora suas ligações com a sociedade escravista. Ainda que vários deles tenham
buscado compreender a lógica dos escravos e dos fugitivos, o tema da cultura e das
61 Um bom exemplo é a fuga dos escravos de Sergipe do Conde, que depois propuseram um tratado de paza seu senhor. Vide Stuart B. Schwartz, "Resistance and accommodation in eighteenth-century Brazil: theslaves' view of slavery" The Hispanic American Historical Review, 57 n. 1 (1977): 69-81.
62 Marcus J. M. de Carvalho, "' Quem furta mais e esconde': o roubo de escravos em Pernambuco, 1832-1855" Estudos Econômicos, 17, nº especial (1978):89-110.
63 Ver, especialmente, Flávio dos Santos Gomes, Histo rias de quilombolas: mocambos e comunidades de
senzalas no Rio de Janeiro, se culo XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995; e A hidra e os
pântanos.
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heranças africanas não tem sido relevante. Talvez isso possa ser explicado por dois
movimentos paralelos.
No caso do Brasil, muitos estudos ganharam dimensões políticas mais diretas, ao
se conectarem às reivindicações dos remanescentes de quilombos, que foramreconhecidas pela Constituição de 1988. Nesse movimento o termo quilombo se alargou,
ganhando novas dimensões, às vezes distantes do significado que ele possuía no século
XVII e XVIII. Houve, assim, um novo modo de politizar o tema, levando-o para longe
das lides históricas.
Por outro lado, em termos mais gerais, tem havido um grande interesse
historiográfico pelos processos de contato cultural. Na antropologia e na história os
termos mais antigos do sincretismo e da mestiçagem têm sido revisitados, ganhando às
vezes novas roupagens e significados. Assim, de modos diversos, a idéia da formação de
uma nova cultura no Novo Mundo, proposta por Sidney Mintz e Richard Price nos anos
1970, tem ganhado muitos adeptos, ainda que nem sempre a referência a esses autores
seja evidente. A ênfase nos processos de crioulização e formação de sociedades
multiétnicas ou multiculturais caracteriza hoje grande parte dos estudos sobre a
escravidão nas Américas.
Os estudos mais recentes sobre Palmares vão nessa direção. Mesmo concordando
com uma predominância centro-africana entre os habitantes dos mocambos, Robert N.Anderson,64 por exemplo, ressaltou que "na segunda metade do século XVII, Palmares
era claramente um comunidade multiétnica e praticamente crioula".65 Essa interpretação
foi reforçada por alguns arqueólogos como Pedro P. A. Funari, Charles Orser Jr. e Scott
Joseph Allen que, baseados na predominância de artefatos indígenas encontrados nas
escavações realizadas na Serra da Barriga, acreditam ter documentado a existência de
uma população multiétnica em Palmares e discutem sua caracterização em termos de um
"mosaico cultural".66
64 Robert N. Anderson, "The Quilombo of Palmares: A New Overview of a Maroon State in Seventeenth-Century Brazil." Journal of Latin American Studies 28 (1996): 553-62.
65 R. N. Anderson, "The quilombo of Palmares", p. 559.66 Pedro Paulo de A. Funari, "A arqueologia de Palmares. Sua contribuição para o conhecimento da história
da cultura afro-americana in J. J. Reis e F. S. Gomes (orgs.), Liberdade por um Fio. São Paulo,Companhia das Letras, 1996, pp. 26-51; Charles E. Orser Jr. e Pedro P. A. Funari, "Archaeology andslave resistance and rebellion" World Archaeology, 33 n.1 (jun. 2001): 61-72; e Scott Joseph Allen, "A
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Em outra chave, Flávio Gomes procurou inserir a história de Palmares numa
perspectiva atlântica.67 Sua análise valoriza a perspectiva aberta por Richard Price, em
Moroon societies, politizada pela abordagem de Paul Gilroy,68 e acrescentada pelos
estudos que enfatizam as trocas e os nexos atlânticos.69
Infelizmente, sua obra faz partede uma coleção que possui restrições editoriais, e se destina a oferecer um panorama
abrangente do tema. Assim, ele compensou a ausência de notas de rodapé com a
reprodução de vários documentos na íntegra, colocou várias questões e apresentou
sugestões interpretativas instigantes, mas não pôde aprofundar nenhuma delas.
Os estudos de Robert Anderson e Flávio Gomes mencionam o caminho analítico
proposto por Schwartz mas, por motivos diversos, não lhe dão continuidade. Anderson
lhe retira a dimensão política, para reafirmar que "a persistência e adaptação de
elementos culturais africanos como o quilombo no contexto crioulo afro-brasileiro, de
fato, demonstra a continuidade da cultura africana e da cultura da diáspora africana no
processo de transculturação ocorrido no Novo Mundo".70 Ou seja, não havia mais uma
cultura política, um idioma cultural Imbangala-Mbundo de integração de gente
desenraizada que havia se transferido para a América, mas continuidades culturais
transformadas pela diáspora africana. Flávio Gomes toma a análise de Schwartz como
exemplo das conexões possíveis entre Palmares e o universo africano, colocando diversas
questões interessantes sobre a troca de experiências entre as duas margens do Atlântico.Ainda que sejam apenas indicações, suas perguntas indicam que ele pensa em conexões
mais diretas, como no caso da circulação de notícias e de pessoas.71 O caminho merece
ser explorado, contudo é diverso do apontado por Schwartz.
Assim, a tradição que focaliza os aspectos da cultura voltou a ter interesse para os
que se dedicam à análise da história dos quilombos e das comunidades de fugitivos. Ela
'cultural mosaic' at Palmares? Grappling with historical archeology of a seventeenth-century Brazilianquilombo" in P. P. A. Funari (org.), Cultura Material e Arqueologia Histórica, Campinas, IFCH-Unicamp, 1998, pp. 141-178.
67 Flávio dos Santos Gomes, Palmares, especialmente pp. 13-28 e 116-120.68 Paul Gilroy, The black Atlantic. Modernity and double consciousness. Londres, Verso, 1993 (trad: O
Atlântico negro. São Paulo, Ed. 34/UCAM-CAA, 2001)69 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. Formac ão do Brasil no Atla ntico Sul, séculos XVI e
XVII . Sa o Paulo, Companhia das Letras, 2000.70 R. N. Anderson, "The quilombo of Palmares", p. 565.71 F. S. Gomes, Palmares, especialmente pp. 119-120.
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tem preponderado também nos estudos sobre as negociações com os fugitivos. Com
relação a esse tema, no entanto, quase nada há a respeito dos quilombolas no Brasil,
ainda que esse seja um aspecto importante na história das fugas e dos fugitivos nas
Américas, como veremos a seguir.
2. Pelas Américas
A história das fugas e dos quilombos no Brasil está ligada a uma tradição
militante que tendeu a valorizar a luta pela liberdade empreendida pelos fugitivos. No
caso da história de Palmares, como vimos, tal perspectiva redundou na construção de
análises que na maior parte das vezes cultivaram as características heróicas do quilombo
e de suas lideranças com o propósito de inspirar outras lutas revolucionárias. Por sua
longevidade e pela extensão geográfica que ocupou, Palmares aparece como caso
excepcional na história dos quilombos no Brasil.
Muitos historiadores já observaram que os quilombos conhecidos foram aqueles
destruídos, registrados pelos documentos produzidos pela repressão. De fato. Apenas
alguns, mais raros, conseguiram permanecer bem escondidos e escapar das investidas
coloniais e imperiais. Poucos remanescentes de quilombos atuais têm suas raízes em
quilombos desse tipo - em geral, constituem comunidades que se formaram por outros
motivos e que passaram a assumir posteriormente uma identidade quilombola.72 Nesse
quadro, as negociações de 1678 aparecem como uma exceção.
Também os estudos sobre as fugas e quilombos (ou palenques, cumbes, marrons
e cimarrones) nas Américas tenderam a dar menos importância aos acordos de paz. O
livro organizado por Richard Price em 1973, no contexto do movimento pelos direitos
72 Para uma discussão sobre o tema, ver Hebe Mattos, "Novos quilombos: re-significações da memória docativeiro entre descendentes da última geração de escravos" in: Ana Lugão Rio e Hebe Mattos, Memórias do cativeiro. Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro, CivilizaçãoBrasileira, 2005, pp. 255-301. Ver também José Maurício Arruti, Mocambo. Antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru, Edusc, 2006, bem como os artigos que compõem a parteintitulada "Herança quilombola" na coletânea Clóvis Moura (org.), Os quilombos na dinâmica social do Brasil . Maceió, EdUFAL, 2001, pp. 301-376. Para uma avaliação crítica das tensões entre a análisehistórica e a defesa de posições políticas com relação à história dos quilombos e dos remanescentes dequilombos, ver Richard Price, "Reinventando a história dos quilombos: rasuras e confabulações". Afro- Ásia, 23 (1999):239-265.
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de entradas organizadas contra eles, poderiam ter conquistado a paz echegado provavelmente a criar uma vibrante e singular cultura afro-americana".76
Dolorosamente perto de conseguir condições para criar uma cultura vibrante e
singular... É a perspectiva americana que certamente possibilita que esse autor inverta osentido que a maior parte dos historiadores de Palmares atribui às negociações de 1678.
De certo modo, para Richard Price, é como se o objetivo final dos movimentos de fuga
fosse a formação de uma comunidade de fugitivos forte o suficiente para conseguir
conquistar a paz e a estabilidade. Ele não está preocupado com o significado político que
os fugitivos podem ter para nós, hoje, mas com o que era importante para as próprias
comunidades de fugitivos, segundo a lógica daqueles que fugiam.77 Não por acaso, essa
forma de compreender a questão se aproxima de todo o desenvolvimento mais recente dahistoriografia sobre a experiência dos escravos nas Américas, mencionado há pouco.
Tal concepção também está presente no livro recente de Alvin O. Thompson, que
faz questão de explicitar que valoriza a luta dos oprimidos diante do que ele denomina de
"estados autoritários", ao oferecer um amplo panorama dos movimentos de fuga e das
comunidades formadas por fugitivos nas Américas. Dois capítulos dessa obra são
dedicados à análise das negociações e dos tratados de paz que, para ele, fazem parte de
um quadro maior de estratégias de luta dos escravos, já que estes estavam acostumados a
negociar com seus senhores vários aspectos da vida sob a escravidão, a fim de reduzir o
peso das condições de vida ou de trabalho ou obter certas regalias. Thompson examina
diversos tipos de negociação entre fugitivos e autoridades escravistas, desde aquelas que
envolviam diretamente os chefes quilombolas até as que eram feitas por senhores e
autoridades coloniais com vistas a alterar suas estratégias e políticas.78
Há, assim, várias possibilidades. Os senhores podiam, por exemplo, oferecer aos
escravos (não aos fugitivos) liberdade em troca da revelação de planos de revoltas ou do
76 R. Price, "Palmares como poderia ter sido", pp. 57-58.77 Como já se observou, Flávio Gomes apoiou algumas de suas observações sobre Palmares na obra de
Richard Price sobre os Saramakas. Gérard Police aprofunda essa comparação, levantando vários pontosde convergência entre as duas experiências. Cf. Quilombos dos Palmares. Lectures sur un marronnagebrésilien. Guyane, Ibis Rouge, 2003, pp. 26-27 e 250-254; e Flávio dos Santos Gomes, Palmares. Escravidão e liberdade no Atlântico Sul . São Paulo, Contexto, 2005, pp. 117-125
78 Alvin O. Thompson, Flight to Freedom. African runaways and Maroons in the Americas. Kingston,University of the West Indies Press, 2006, pp. 265-315. Os próximos parágrafos estão baseados naanálise empreendida por esse autor, resumindo suas idéias principais.
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engajamento em milícias enviadas para prender seus líderes, para guiar ou compor as
tropas expedidas contra os quilombos. O interessante da análise de Thompson é que ele
não leva em conta apenas os interesses senhoriais mas também os dos próprios escravos,
que eventualmente aceitavam essas ofertas como uma reação às perdas causadas pelosataques dos quilombolas a suas roças ou à captura de suas mulheres e familiares. As
negociações resultariam ainda de tentativas de obter alguma recompensa individual - a
própria liberdade, postos, insígnias ou favores e privilégios. Havia também composições
que envolviam escravos ou fugitivos e estados escravistas, como no caso de áreas
vizinhas sob domínio de nações diferentes, umas com escravidão e outras em que ela já
havia sido abolida, ou situações em que havia invasões territoriais e ofertas de liberdade
eram utilizadas para angariar adeptos das fileiras inimigas. Em vários casos, haveria até
acordos entre as potências imperiais com relação à restituição de fugitivos, desertores,
etc. Do ponto de vista dos escravos e fugitivos, aproveitar conjunturas específicas e lidar
com os interesses em jogo ou com as diferentes jurisdições talvez fosse algo produtivo,
porém arriscado.
As negociações com os próprios fugitivos podiam envolver tanto indivíduos,
alguns membros ou toda a comunidade quilombola. As ofertas incluíam anistia (com ou
sem liberdade) para os que se entregassem em certo prazo, liberdade para os nascidos no
quilombo em troca da devolução dos escravos fugidos (todos eles ou somente os fugidoshavia certo número de anos), liberdade apenas para os líderes e seus familiares ou
capitães mais próximos, para quem entregasse ao menos um fugitivo ou para aqueles que
servissem de espiões ou guias. As promessas eram feitas por intermediários, anunciadas
em editais ou publicadas em jornais e muitas vezes limitavam-se àqueles que não haviam
cometido crimes, como assassinatos, por exemplo. Normalmente tais oferecimentos
vinham dos senhores e seus agentes, mas indicam que eles tinham certa urgência em
chegar a um acordo "amigável". Em alguns casos, os mediadores tiravam algum proveito
da situação, manejando os dois lados para obter vantagens individuais, como aumentar as
dificuldades da captura de fugitivos para obter recompensas maiores dos senhores ou das
autoridades ou transformando-se de mediadores em caçadores de escravos.
Em alguns casos, os fugitivos voltavam de forma espontânea, esperando ser
perdoados sem punição ou negociando com os senhores condições para o retorno às
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fazendas. Algumas fugas eram planejadas com esse objetivo, como meio para fortalecer a
posição dos cativos na negociação. Em outros casos, a oferta de anistia para os que
voltassem podia ser uma alternativa oferecida pelos governantes, junto com outras, como
o engajamento em milícias especiais ou a possibilidade de comprarem a próprialiberdade. Os arranjos eram diversos e dependiam dos envolvidos e das conjunturas: se,
por exemplo, o acordo tivesse sido oferecido depois de expedições violentas, de crises de
fome ou epidemias, ou como alternativa à luta armada; variavam também conforme o
tempo que os quilombos haviam conseguido resistir, envolvendo toda a comunidade ou
apenas parte dela. Para os escravos, a vida nos quilombos muitas vezes era bem mais
atribulada e incerta do que nas fazendas, sobretudo durante os períodos de guerra aberta.
Esse talvez fosse mais um motivo para o acordo, conforme o que e como os escravos
conseguiam negociar os termos da relação de trabalho com seus senhores.
Os tratados e acordos de paz propriamente ditos implicavam que as autoridades
coloniais reconhecessem os fugitivos como uma comunidade independente, com
autonomia política, e muitas vezes envolviam a confirmação do direito dos fugitivos a
certas terras. As cláusulas variavam muito; com freqüência incluíam o reconhecimento
da liberdade para os que tinham se incorporado ao quilombo até certa data, a proibição de
admitir novos fugitivos, a obrigação de devolver os escravos a seus senhores, mediante
pagamento de taxas, o compromisso de ajuda para conter invasores externos ou paraintegrar milícias contra novos fugitivos ou aqueles que resistiam ao acordo. Muitos
previam o estabelecimento dos quilombolas em cidades livres, com administração e
autonomia judicial, com ou sem a presença de padres católicos ou pastores protestantes.
Alguns tratados eram negociados porém não chegavam a ser implementados,
enquanto outros duraram anos, décadas ou séculos. Claro que era possível haver
dissimulação e trapaças - de ambos os lados. A avaliação do significado dos tratados
também variava, podendo ser considerado uma capitulação, o resultado de uma
necessidade imperiosa ou uma forma de enfraquecer os fugitivos. O ponto de vista dos
fugitivos é difícil de ser conhecido e muitos talvez achassem ter conseguido triunfar
sobre a vontade senhorial de reescravizá-los. A mudança do enfrentamento para o
diálogo e para o acordo resultava da percepção, por parte de ambos os lados, de que
algum tipo de acomodação era necessária. Para os quilombolas, o acordo podia significar
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não ter mais que contar os mortos e feridos e conseguir uma situação melhor - embora
algumas cláusulas eventualmente contivessem limites para o acesso à caça e coleta de
produtos da floresta. Algumas vezes, depois de tratados que incluíam cláusulas de
fornecimento de víveres por parte do governo, as comunidades tornaram-se dependentesdas remessas feitas pelo governo, mesmo que fossem vistas como presentes ou tributos.
Para os senhores e autoridades, negociar um tratado era reconhecer a
incapacidade de vencer os quilombolas pela guerra, mas significava também que, uma
vez acertada a paz, eles iriam retomar suas vidas e seus negócios, sem medo de novas
taxas para subsidiar as expedições ou ver suas fazendas destruídas pela guerra. Podia
constituir, também, uma política mais estável de controle sobre os escravos em geral: a
capitulação dos fugitivos seria um exemplo de que a liberdade era algo a ser sempre
negociado com os senhores. E, sem dúvida, dominar os quilombolas abriria caminho para
que suas terras fossem apossadas pelos fazendeiros ou distribuídas entre os soldados.
O panorama oferecido por Thompson é vasto e para cada possibilidade há sempre
um caso concreto como exemplo, que percorrem vários séculos e diversas regiões das
Américas. Ainda que cada caso tenha suas peculiaridades, é possível fazer uma avaliação
geral. Com certeza, muitos interesses estavam em jogo: governo, autoridades, senhores
de escravos, soldados, caçadores de escravos, mediadores, fugitivos, seus líderes, e
escravos da vizinhança. Cada um interpretava o tratado a sua maneira, segundo seusinteresses, em benefício próprio. E atribuía ao outro (ou aos outros) intenções e
motivações diversas - sem contar diferenças internas a cada grupo: dissensões entre
senhores, entre autoridades e entre os próprios fugitivos. Eram elas que levavam, na
maioria dos casos, ao fracasso dos acordos. Algumas eram motivadas pelas cláusulas
acordadas, como a de devolução de fugitivos para as autoridades, ou a de liberdade
restrita a apenas alguns - motivo de dissensões freqüentes entre os quilombolas, pois
criavam desigualdades às vezes difíceis de suplantar, sobretudo entre as lideranças dos
quilombos.
Os exemplos fornecidos por Thompson e pela maior parte da bibliografia que ele
discute tratam de negociações e acordos de paz com os mocambos e quilombos ocorridos
em sua maior parte no século XVIII. Poucas são as situações anteriores ao acordo
ajustado com Gangazumba. De modo diverso dos historiadores, no entanto, as pessoas
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desconhecem o futuro; por isso, é preciso prestar atenção à cronologia. Vejamos algumas
das experiências anteriores ou contemporâneas do acordo de 1678.
No Panamá, em 1580, foram feitos dois acordos com os fugitivos liderados por
Darien, que reconheceram a liberdade de dois palenques, Puerto Bello e Ballano, pertode Nombre de Dios. Esses tratados continham uma cláusula pouco comum, permitindo
que os escravos maltratados pelos senhores pudessem comprar a própria liberdade pelo
mesmo preço pago pelos senhores ao adquiri-los.79 As informações são parcas, mas
indicam que o local ocupado pelos fugitivos foi reconhecido pelas autoridades e que os
maus-tratos haviam constituído um ponto importante para as fugas.
Em Cartagena, em 1619, Domingo Bioho, um antigo rei africano também
chamado "el rey Benkos", liderou uma revolta que se estendeu por toda a região,
envolvendo muitos escravos. Instalou-se num povoado defendido por paliçadas e resistiu
a duas investidas contra eles. Quando se preparava uma nova expedição, o governador
julgou os custos muito altos e resolveu fazer as pazes com Benkos, que não pôde mais
usar o título de rei, mas pôde usar roupas européias, espada e adaga. Houve, portanto,
uma avaliação política sobre os custos e benefícios da guerra pelas duas partes, que se
decidiram pelo acordo. Surpreendido em nova conspiração contra o governador, Benkos
foi capturado e enforcado.80
Na Jamaica, quando os ingleses invadiram a ilha, cerca de 1.500 escravos pertencentes aos espanhóis aproveitaram para fugir. Os ingleses tentaram atraí-los para o
seu lado, mas eles permaneceram nas montanhas, dividindo-se em vários grupos.
Algumas vezes guerreavam ao lado dos espanhóis, outras vezes saqueavam as áreas
ocupadas pelos ingleses. Em junho de 1658 um grupo deles, liderado por Lubolo, foi
descoberto por um regimento inglês que lhes ofereceu aliança: em troca de deixar de
ajudar os espanhóis, ficariam livres, suas roças não seriam destruídas e teriam direito de
governar sua gente. Sem a colaboração dos fugitivos, os espanhóis foram rapidamente
derrotados. Lubolo e sua gente receberam direitos civis e terras e constituíram uma
milícia que nos anos seguintes acabou colaborando com os ingleses na perseguição aos
que recusavam se submeter. Depois da morte de Lubolo, o grupo diminuiu e acabou se
79 A. O. Thompson, Flight to Freedom, pp. 289-290.80 Aquiles Escalante, "Palenques en Colombia" in: R. Price (ed.), Maroon societies, pp. 77-79
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dividindo, internando-se nas matas.81 Nesse caso, os fugitivos aproveitaram a
oportunidade das contendas entre as nações colonizadoras para obtenção de vantagens e
direitos. A liderança de Lubolo parece ter sido importante tanto para o crescimento do
poder dos fugitivos quanto para as negociações visando a manutenção da independênciada comunidade e dos direitos conquistados. O acordo se desfez não por ter sido quebrado
por uma das partes, mas porque a própria comunidade se fracionou e se dissolveu, depois
da morte de Lubolo.
Na Martinica, em 1665, um grupo de fugitivos liderados por Francisque Fabulé
fez tantos estragos na ilha que as autoridades resolveram negociar com ele. Enviaram um
escravo como intermediário e o acordo foi firmado. Fabulé recebeu mil libras de tabaco e
o compromisso de que nenhum fugitivo do grupo seria castigado. A calma retornou à
ilha, contudo, depois de algum tempo Fabulé foi castigado por insuflar uma escrava a
matar seu senhor. Depois de ser punido pelo delito, voltou a fugir, foi capturado e
condenado às galés.82 O episódio é interessante por mostrar que o acordo podia ser uma
estratégia em meio a outras. Ele podia colocar um fim às turbulências causadas por
comunidades de fugitivos que se fortaleciam, mas não significou que a reintegração dos
fugitivos na ordem escravista - já que Fabulé passou a servir na casa do governador -
tenha impedido novas ações.
Em 1677, na região de El Cobre, em Cuba, cerca de 378 pessoas fugiram durantealgum tempo para as montanhas, para evitar que muitos fossem transferidos das minas de
cobre para as fortificações em Havana. Negociaram com as autoridades e conseguiram
que ninguém seria removido sem permissão, que só trabalhariam para o rei dois meses
por ano e obtiveram terras onde se instalaram com seu próprio cabildo.83 Aqui temos
uma situação bastante complexa, em que a fuga é um instrumento para negociar com os
senhores melhores condições de trabalho e a permanência num certo local. A vitória dos
81 Cf. Mavis C. Campbell, The Maroons of Jamaica, 1655-1796. A history of resistance, collaborattion and betrayal. Granby, Begin & Garvey Publishers, 1988, especialmente pp.14-25. Ver também OrlandoPatterson, "Slavery and lave revolts: a sociohistorical analysis of the first Maroon War, 1665-1740" in:R. Price (ed.), Maroon societies, pp. 254-255.
82 Gabriel Debien, "Marronage in the French Caribbean" in: R. Price (ed.), Maroon societiees, p. 108.83 A. O. Thompson, Flight to Freedom, p. 284. Ver também Maria Elena Díaz, The Virgin, the King and
the Royal slaves of El Cobre: negotiating freedom in colonial Cuba, 1670-1780. Stanford, StanfordUniversity Press, 2000.
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fugitivos é grande, pois eles não apenas conseguiram seus objetivos, como ainda
obtiveram independência política e econômica, ao terem acesso a terras e representação
diferenciada.
Como se pode verificar por essas breves informações, todos foram acordosrelativamente efêmeros, que contêm uma ou mais variáveis mencionadas por Thompson.
Há um episódio, entretanto, que guarda características mais permanentes e mais
próximas do tratado firmado com Gangazumba: é o caso dos fugitivos liderados por
Yanga, na região de Veracruz, na região sul da costa leste do atual México. Vejamos os
detalhes.
Desde que as plantações de açúcar se instalaram nas terras ao sul do golfo do
México, para lá afluíram muitos escravos africanos - e as montanhas serviram de abrigo
para os fugitivos. Eles atacavam os viajantes e os comboios de mercadorias que subiam
do litoral para o altiplano e eram rechaçados pelas autoridades coloniais. Em 1570, vários
palenques foram destruídos, mas grupos remanescentes conseguiram se reagrupar em
núcleos entrincheirados nas montanhas, onde sobreviveram por mais de 30 anos
liderados por Gaspar Yanga. Em 1609, depois de resistir a um novo ataque por parte das
tropas espanholas,84 Yanga negociou a paz com as autoridades da Nova Espanha. Depôs
as armas em troca do reconhecimento da liberdade de todos os que haviam fugido até
setembro de 1608 e da fundação de um pueblo livre, onde se instalaram com seu própriogoverno e justiça, sem intervenção dos espanhóis, localizado a dez quilômetros de
Córdoba. Também se comprometiam a capturar e entregar às autoridades os escravos que
fugissem e buscassem abrigo no pueblo, a ajudar a Coroa espanhola em caso de ataques
estrangeiros e a pagar tributos como todos os demais negros e mulatos forros.85 Yanga
tornou-se governador desse pueblo, batizado de San Lorenzo de los Negros, onde se
instalaram mais de 500 fugitivos. A vila foi oficialmente criada por volta de 1630,
84 Para uma descrição de uma das batalhas, vide Jane Landers, "La cultura material de los cimarrones: loscasos de Ecuador, La Española, México y Colombia" in: Rina Caceres (ed.), Rutas de la esclavitud en África y América Latina. São José, Editorial de la Universidad de Costa Rica, 2001, pp.147-149.
85 Uma transcrição do acordo pode ser encontrada em Jane Landers, "Cimarrón and citizen. Africanethnicity, corporate identity and the evolution of free black towns in the Spanish Circum-Caribbean" in:Jane G. Landers e Bary M. Robinson (eds.), Slaves, subjects and subversives. Albuquerque, Universtiyof New Mexico Press, 206, pp.133-135. O artigo (pp.111-145) oferece uma interessante e detalhadaanálise do tema.
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mudando depois de nome, para San Lorenzo de Cerralvo, em honra do vice-rei Rodrigo
Pacheco y Osorio, marqués de Cerralvo.86
A vida em San Lorenzo não era fácil. Os fazendeiros de Córdoba não se
conformavam com o acordo. Agrediam seus habitantes, tentavam impedi-los de fazer aguardente, usurpavam suas terras e perseguiam-nos das mais diversas maneiras.87 Os
habitantes de San Lorenzo recorriam ao vice-rei, que intercedeu em favor deles em várias
circunstâncias e o povoado conseguiu sobreviver, tornando-se um "patrimônio comum de
todos os escravos da zona, que sabiam da possibilidade de chegar à liberdade por meio
do rompimento brusco das correntes".88 De fato, a experiência de Yanga e seus
companheiros se tornou conhecida e serviu de exemplo. Outros pueblos libres foram
formados na região, como San Miguel de Soyaltepeque, em 1670.
Na mesma região, no início do século XVIII, outros palenques haviam se
formado e crescido com o aumento das fugas individuais ou em grupo. Em 1735 eles
estavam ligados a uma rebelião de escravos liderados por Miguel de Salamanca, ao que
parece movidos pelo boato de que o rei espanhol havia concedido liberdade para os
escravos. O boato talvez tivesse surgido das movimentações de autoridades locais que
tentavam negociar com os cimarrones a deposição de armas em troca da criação de um
outro pueblo livre. A rebelião se espalhou com rapidez e tropas foram enviadas para
contê-la. Muitas foram as batalhas, até que a traição de um dos levantados levou à prisãodos líderes que foram executados em praça pública em 1737. Mas vários deles
conseguiram fugir e se esconderam nas montanhas, formando novo palenques. Em 1741,
houve nova tentativa de rebelião, com novos ataques, prisão do líder, chamado Inácio,
que também acabou enforcado na vila de Córdoba.
Os rebeldes remanescentes permaneceram nas montanhas e em 1743 solicitaram à
Real Audiência a sua liberdade em troca da deposição das armas. Apesar de contarem
com o apoio do alcaide de Teutila - povoado próximo aos palenques - e de comerciantes
86 Além do artigo de J. Landers mencionado na nota anterior, vide David M. Davidson, "Negro SlaveControl and Resistance in Colonial Mexico, 1519-1650", in R. Price (ed.), Maroon societies, pp. 82-103;e Adriana Naveda Chávez-Hita, "De San Lorenzo de los Negros a Los Morenos de Amapa: cimarronesveracruzanos, 1609-1735" in: Rina Caceres (ed.), Rutas de la esclavitud en África y América Latina, pp.157-174.
87 A. N. Chávez-Hita, "De San Lorenzo de los Negros a Los Morenos de Amapa, pp.160-161.88 A. N. Chávez-Hita, "De San Lorenzo de los Negros a Los Morenos de Amapa, p. 161.
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interessados em seus produtos, os ataques dos fazendeiros contra os fugitivos
continuaram. Em 1762, os cimarrones apresentaram-se como voluntários em Veracruz,
respondendo ao chamado do vice-rei, para lutar em favor dos espanhóis contra os
ingleses. Em troca, conseguiram a liberdade. Em 1767, aproveitando que pessoasfavoráveis estavam em postos importantes em vilas vizinhas, escreveram ao vice-rei
solicitando o reconhecimento formal de suas liberdades. Finalmente, depois de alguns
anos, o vice-rei acabou por acatar o pedido e os cimarrones estabeleceram-se no povoado
chamado Nossa Senhora de Guadalupe de los Morenos de Amapa.89
Cinqüenta anos depois da independência do México, em função dos esforços do
historiador e romancista Vicente Riva Palacio, Yanga ganhou foros de herói nacional.90
Em 1932, a cidadezinha de San Lorenzo passou a se chamar Yanga e existe até hoje. 91
Lá, uma enorme estátua de quatro metros de altura sobre um pedestal enfeitado com
canas-de-açúcar dá as boas vindas aos visitantes do município.92
Yanga havia sido escravizado na África Ocidental. Era de nação Bran e talvez
pertencesse a uma linhagem real. Escapou com alguns companheiros de Veracruz,
formando seu palenque na região montanhosa de Cofre de Perote.93 Nela, havia pelo
menos um grupo de gente vinda de Angola. Eles formavam uma milícia separada,
liderada por Francisco de la Matosa.94 Para os historiadores que trataram da história da
comunidade de fugitivos e de San Lorenzo de los Negros, a procedência daqueleshomens e mulheres não foi determinante para a análise, embora vários tenham se
debruçado sobre o tema com a intenção de participar dos debates sobre a presença dos
africanos nas Américas.
89 Sobre o tema ver ainda William B. Taylor, "The foundation of Nuestra Señora de Guadalupe de losMorenos de Amapa" The Americas, 26 n. 4. (1970):439-446; e Patrick J. Carrroll, Blacks in colonial Veracruz. Race, ethnicity and regional development. Austin, University of Texas Press, 1991, pp. 82-92;e Joe Pereira, "Maroon heritage in Mexico" in: E. Kofi Agorsah (ed), Maroon heritage. Archaeological,
ethnographic, and historical perspectives. Barbados, Canoe Press, 1994, pp. 94-108;90 Riva Palacio mergulhou nos arquivos e escreveu uma história de Yanga que foi publicada como parte deuma antologia em 1870 e como uma brochura separada em 1873. Há várias reedições, a última de 1997.Vide Vicente Riva Palacio, Los 33 negros y otros episodios relacionales. México, Alianza Cien, 1997.
91 Há diversos festivais celebrando a memória desses eventos. Ver, por exemplo, Sagrario Cruz-Carretero,"Yanga and the black origins of Mexico" The Review of Black Political Economy (2005): 73-77.
92 John Ross, "Raízes Negras". Sem fronteiras, 258 (mar. 1998), p. 25.http://ospiti.peacelink.it/zumbi/news/semfro/258/sf258p25.html
93 Jane Landers, "Cimarrón and citizen, p. 121.94 Jane Landers, "Cimarrón and citizen, p. 126.
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É difícil saber se a experiência de San Lorenzo de los Negros chegou a ser
discutida em Lisboa. O período da união das Coroas tem sido cada vez mais visitado
pelos historiadores, em geral voltados para questões da história cultural e política. Aos
poucos, contudo, começa a haver um interesse sobre o significado da proximidade daexperiência espanhola e portuguesa na administração dos territórios ultramarinos.95 Mas
nem de longe parece ter tocado no tema da conexão das políticas discutidas nas duas
Cortes com relação à escravidão.
Para os historiadores, no entanto, a possibilidade da comparação é um recurso
analítico importante. A aproximação entre a história e as características de Palmares com
outras comunidades de fugitivos nas Américas já foi aventada por vários historiadores,
como vimos. Destaco, entretanto, um artigo de Jane Landers , dedicado a discutir o modo
como as lideranças de comunidades de fugitivos legitimavam sua autoridade, no qual
compara Gangazumba e Yanga.96
Segundo a autora, nem todas as lideranças examinadas reivindicavam descender
diretamente de linhagens reais ou afirmavam ter exercido o poder na África, mas
operavam de modo semelhante: mantiveram um poder centralizado e constituíram
dinastias reais, algumas das quais chegaram a ser reconhecidas pelas autoridades
coloniais. Isso aconteceu com Gangazumba, cujos parentes governavam os mocambos e
também no caso de Yanka, cujos filhos puderam herdar seu cargo no governo do pueblo.Agindo como africanos, eles associaram o poder político ao religioso e militar, muitos
baseados na autoridade dos mais velhos e dos chefes de famílias extensas. Em algumas
comunidades, as diferenças étnicas puderam ser contempladas, com milícias separadas
como vimos acima. Em outras, como no caso de Gangazumba, as relações de parentesco
estendiam seu poder sobre várias cidades. Landers aventa a hipótese de Gangazumba e
Yanka terem usado os acordos com os europeus para estabilizar sua liderança e dar
continuidade à dinastia.97
95 Um balanço da produção recente no Brasil e em Portugal sobre esse período pode ser encontrada em
Pedro Cardim, "O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os primeiros Bragança". Hispania¸64 n. 1 (2004):117-156.
96 Jane Landers, "Leadership and authority in Maroon settlements in Spanish America and Brazil" in: JoséC. Curto e Renée Soulodre-La France (eds.), Africa and the Americas. Interconnections during the slavetrade. Trento, Africa World Press, 2005, pp.173-184.
97 Jane Landers, "Leadership and authority in Maroon settlements", p. 181.
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A possibilidade de comparações entre a história de Palmares e do acordo de 1678
e eventos semelhantes nas Américas é promissora. Examinada a partir da experiência
americana, o acordo de Gangazumba se torna menos excepcional. Muitas de suas
cláusulas reaparecem em outras experiências análogas, em diferentes áreas decolonização. Do mesmo modo, é instigante a eventual conexão entre essas experiências,
e seria interessante verificar - como sugeriu Flávio Gomes - se os episódios que
mencionamos aqui, selecionados propositadamente entre aqueles que ocorreram no
período anterior a Palmares, poderiam ter sido conhecidos pelas autoridades coloniais em
Lisboa. É pouco provável, com exceção de San Lorenzo de los Negros, cujas
negociações se desenvolveram durante o período da união ibérica, mas, como vimos,
ainda não há pesquisas a respeito. Do ponto de vista dos escravos, é menos provável que
as informações tenham circulado.
Cogitar esta possibilidade não é, entretanto, de todo irrelevante. Ao invés de
procurar pistas sobre o trânsito das próprias pessoas ou das notícias pelo Atlântico, talvez
seja mais interessante abordar o tema a partir de outra perspectiva. O próximo item tenta
explicar por quê.
Além da cultura
A política tem estado presente todo o tempo nas discussões a respeito das
comunidades de fugitivos nas Américas. A ênfase em suas características africanas,
assim como seu abandono para destacar para os aspectos revolucionários da luta contra a
escravidão estiveram ligados à defesa de posições políticas. Nas últimas décadas, saber
se os fugitivos recriaram ou transformaram a herança africana que trouxeram consigo, ou
se criaram uma nova cultura, e se ela era mais ou menos africanizada também se tornou
um debate permeado por engajamentos diversos.98 Ao lidar com as permanências e
sobrevivências, transformações, adaptações ou gêneses de culturas nas Américas, os
historiadores e antropólogos abordam as formas de dominação vigentes no sistema
escravista e o modo como os escravos e os fugitivos reagiram a elas - discutem, portanto,
98 Para um balanço desses debates, vide Richard Price, "O milagre da crioulização: retrospectiva". Estudos Afro-Asiáticos, 25 n. 3 (2003): 383-419.
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o passado. Ao mesmo tempo, estão envolvidos no debate mais amplo sobre o lugar das
heranças africana ou européia nas sociedades americanas, com todos os seus
desdobramentos político-institucionais, dentro e fora da academia - e falam do presente.
Ao longo do tempo, assim como as ênfases políticas variaram, também o próprioconhecimento sobre a África e sobre os africanos escravizados e seus descendentes nas
Américas se transformou. De uma África mais abstrata e relativamente genérica, sem
mudanças ao longo do tempo, como a que aparece nos trabalhos de Arthur Ramos e
Melville Herskovits, os estudiosos passaram a identificar etnias e contextos históricos de
modo cada vez mais preciso. Ao mesmo tempo, tornou-se possível diferenciar a
variedade de situações de contato entre culturas na própria África, antes e depois da
chegada dos europeus, assim como distinguir processos históricos específicos no Novo
Mundo. Hoje não mais se fala em bantus e sudaneses como na época de Nina Rodrigues
e há muito a divisão mais ampla entre África Central e Ocidental já não é suficiente.
Com relação à África Central Ocidental, por exemplo, é possível saber quais "africanos",
por que motivos e meios, trazidos por quais traficantes, foram levados para esse ou
aquele lugar das Américas.99 O debate atual entre os que enfatizam os africanismos ou a
crioulização tem levado esses aspectos em consideração, acrescentando-se ainda o fato
de que vários africanistas têm discutido os processos de crioulização na própria África.100
Grande parte dessa discussão, no entanto, tem se desenvolvido em termos da"bagagem cultural" trazida pelos escravos, para usar um termo de Mintz e Price.101 O que
tem sido destacado são os valores e costumes cotidianos, padrões de relacionamento
social e familiar, práticas lingüísticas e crenças religiosas. O debate sobre as instituições
políticas está presente, sem dúvida, mas de forma limitada. A formulação de Mintz e
99 Ver, entre outros, Philip D. Curtin, The Atlantic slave trade. A census. Madison, The University of Wisconsin Press, 1969; David Eltis, Economic growth and the ending of the Transatlantic slave trade.
Nova York, Oxford University Press, 1987; Joseph C. Miller, Way of Death. Merchant capitalism and
the Angolan slave trade, 1730-1830. Madison, The University of Wisconsin Press, 1988; e David Eltis,Stephen D. Behrendt, David Richardson e Herbert S. Klein, The transatlantic Slave Trade, 1527-1867: adatabase on CD-Rom. Nova York, Cambridge University Press, 1999.
100 Ver, entre outros, Berlin, Ira. 'From Creole to African: Atlantic Creoles and the origins of African-American Society in mainland North America" The William and Mary Quarterly, 53 n. 2 (abr. 1996):251-288; Linda M. Heywood, "As conexões culturais angolano-luso-brasileiras" in: Selma Pantoja(org.), Entre Áfricas e Brasis. Brasília, Paralelo/Marco Zero, 2001, pp. 51-71; e o recente Linda M.Heywood and John K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, and the foundation of the Americas,1585-1660. New York: Cambridge University Press, 2007
101 S. W. Mintz e R. Price, O nascimento da cultura afro-americana, p. 71
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Price guarda dois aspectos importantes, que é preciso discutir. De um lado, ela está
baseada na idéia de que "embora imensas quantidades de conhecimento, informações e
crenças devam ter sido transportadas na mente dos escravos, estes não puderam transpor
o complemento humano de suas instituições tradicionais para o Novo Mundo. (...)Sacerdotes e sacerdotisas, sim, mas o corpo sacerdotal e os templos, não. Príncipes e
princesas, sim, mas cortes e monarquias, não".102
De outro, supõe a existência de grande diversidade cultural entre os escravos:
eram "aglomerados heterogêneos de homens e mulheres"103 arrancados de suas
sociedades e vidas cotidianas. Enquanto havia certa homogeneidade cultural entre os
europeus - conforme fossem portugueses, ingleses, etc. - os africanos "provinham de
culturas e sociedades diversas e falavam línguas diferentes, amiúde reciprocamente
ininteligíveis".104 Aos poucos, eles teriam conseguido, nos porões dos navios negreiros e
durante a vida nas fazendas americanas, no contato com os europeus e sua cultura,
estabelecer laços de solidariedade e criar uma nova cultura. Por isso, as novas relações
sociais e culturais teriam sido "forjadas nas fogueiras da escravidão".105 Ao se
reconhecerem portadores de uma gramática cultural comum, tiveram condições de
"compor para si uma ordem social, dentro das margens de manobra definidas pelo
monopólio do poder senhorial", uma cultura que se desenvolveu dentro do sistema
escravista, mas separada das instituições senhoriais.106
Como se pode observar pelo balanço da historiografia realizado no início desse
capítulo, essa forma de abordar o tema se tornou predominante entre os historiadores que
estudam a experiência de escravos e fugitivos. Há um certo padrão cronológico que foi se
fixando: os primeiros laços se construíram na travessia do Atlântico, entre malungos,
depois entre os primeiros escravos nas fazendas, que iam integrando os novos escravos
que chegavam àquela comunidade que aos poucos se estabelecia e se desenvolvia.
Também nas comunidades de fugitivos esse padrão podia ser observado. Formadas por
gente diferenciada, os fugitivos também criavam uma nova sociedade. No momento de
102 S. W. Mintz e R. Price, O nascimento da cultura afro-americana, p. 38.103 S. W. Mintz e R. Price, O nascimento da cultura afro-americana, p. 61.104 S. W. Mintz e R. Price, O nascimento da cultura afro-americana, p. 26.105 S. W. Mintz e R. Price, O nascimento da cultura afro-americana, p. 112.106 S. W. Mintz e R. Price, O nascimento da cultura afro-americana, pp. 60 e 61.
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sua formação, quando estavam mais frágeis, as comunidades se constituíam em função
da defesa, e organizavam-se em torno do poder e da autoridade dos guerreiros. Ao
conseguirem se estabelecer, desenvolviam formas mais estáveis e mais crioulizadas. Se
obtivessem sucesso nesse processo, chegavam eventualmente a negociar com oseuropeus para se perpetuarem no tempo.107
Não discordo essencialmente dessa forma de abordar a questão. Contudo, é como
se, ao atravessar o Atlântico, os escravos só tivessem trazido formas de viver, pensar e
agir. Grande parte da discussão tem girado em torno do confronto entre aqueles que
acham que esse processo de transformação cultural foi mais ou menos marcado pelas
formas da cultura africana - em geral ou dessa ou daquela região da África, conforme
avançam os conhecimentos sobre o tráfico atlântico. Na maior parte das vezes, essa
proposta analítica tem gerado estudos sobre as identidades, as formas de coesão dos
vários grupos ou sobre os processos de assimilação pelos quais passaram. Uma certa
acepção de cultura acabou por se tornar predominante e um modo de apreender o tema se
tornou quase uma regra.
Há pouco, destaquei a importância da tese proposta por Stuart Schwartz sobre a
relação entre o kilombo Imbangala e o quilombo de Palmares. Como observei, ela abre
uma possibilidade de superar a divergência entre a diversidade cultural dos escravos -
com o corolário da criação de uma cultura diferenciada da africana - e a ênfase nasmarcas africanas da cultura dos escravos e fugitivos nas Américas. O caminho apontado
por Schwartz levava em conta a existência de uma cultura política africana, na qual a
integração de povos diversos e desenraizados era parte importante. É uma cultura
política que poderia ter presidido as ações dos escravos e fugitivos nas Américas - e não
simplesmente a continuidade de traços ou elementos culturais.
Essa proposta está relacionada às teorias de Igor Kopytoff, que têm sido
retomadas também por outros autores que lidam com as experiências dos escravos nas
Américas.108 Para Kopytoff, a África é um "continente de fronteiras", no qual diferentes
tipos de crises (fomes, guerras civis, rivalidades étnicas, conflitos entre regimes políticos,
107 A tese foi desenvolvida por Richard Price em "Introduction. Maroons and their communities" in: R.Price (ed), Maroon societies, pp. 1-30.
108 Jane Landers, por exemplo, retoma Kopytoff ao analisar as lideranças de grupos fugitivos em váriasregiões da América espanhola. J. Landers, "Leadership and authority in Maroon settlements", p.174.
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etc.) induzem com freqüência a movimentos populacionais que forçam grupos de
africanos a se deslocar e recriar novos laços sociais. Instalando-se nas fronteiras de
sociedades existentes, essas novas sociedades reproduzem, de forma mais simplificada, a
ordem social de origem. O deslocamento seria constitutivo das sociedades africanas,assim como a recriação de modelos sociais baseados nas formas tradicionais do
parentesco, dos rituais políticos e religiosos, e da autoridade dos que chegam antes ou
depois.109
Essa idéia já havia sido utilizada por Stephen Palmié para pensar o outro lado do
Atlântico como parte das fronteiras africanas.110 Para ele, não se tratava de opor
processos africanos ou de crioulização, mas de pensar como, na história cultural afro-
americana, continuidade e ruptura operavam simultaneamente. Ao fazer isso,
aproveitando-se do conceito de Kopytoff, ele mudava a chave interpretativa das
identidades culturais para formular a questão em termos de sociedade, nação e estado.111
A parte principal de suas pesquisas dedicam-se a compreender os cultos de aflição no
Caribe, mas Palmié ocupou-se das comunidades de fugitivos em pelo menos dois artigos.
Neles, Palmié associou as teses de Mintz e Price às de Kopytoff e considerou que
os mecanismos que teriam permitido a consolidação de laços entre os que atravessaram o
Atlântico e os que fugiam seguiram procedimentos africanos. Para ele, as duas
abordagens apontavam para a necessidade de prestar atenção em "princípiossubjacentes", ou em uma gramática cultural mais ampla que teria permitido aos escravos
e aos fugitivos criar um senso de comunidade.112 Por isso, verificou as possibilidades
interpretativas do conceito de Kopytoff, fez críticas a ele e explorou seu potencial
analítico para pensar as dimensões políticas desse processo.
109 Igor Kopytoff, "The internal African frontier: the making of African Political culture" in: Igor Kopytoff (ed.) The African frontier. The reproduction of traditional African societies. Bloomington, IndianaUniversity Pres, 1987, pp. 3-83. Ver também, do mesmo autor, "The internal African frontier: cultural
conservatism and ethnic innovation" in: Michael Rösler e Tobias Wendl (eds.), Frontiers and borderlands. Anthropological perspectives. Frankfurt, Peter Lang, 1999, pp. 31-44.
110 Stephen Palmié, "African frontiers in the Americas?" in: Wim Hoogbergen (ed.), Born out of resistance: on Caribbean cultural creativity. Utrecht, ISOR-Publications, 1995, pp. 286-300; e "AfricanStates in the New World? Remarks on the Tradition of Transatlantic Resistance" in: Thomas Bremer eUlrich Fleischmann (eds.), Alternative cultures in the Caribbean. First International Conference of theSociety of Caribbean Research, Berlin 1988 Frankfurt, Vervuert, 1993, pp. 55-67. Cito, aqui, as versõesfinais desses artigos, que circularam antes como papers, escritos em 1988 e 1989.
111 Stephen Palmié, "African frontiers in the Americas?", p. 287.112 S. W. Mintz e R. Price, O nascimento da cultura afro-americana, cap. 1
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Foi nesse contexto que propôs que a instituição Imbangala do kilombo, estudada
em profundidade por Joseph Miller,113 podia ser vista como uma alternativa institucional
"de fronteira" na região angolana, capaz de transformar grupos que se deslocavam num
espaço político instável em estados. As novas configurações políticas estavam baseadasem certas formas de poder religioso e em títulos e cultos que se rearranjavam para
suplantar as linhagens e assimilar heterogeneidades. Os estados de Matamba, fundado
por Nzinga, e o estado de Kasanje, fundado por meio da fusão de elementos Mbundo e
Imbangala, eram bons exemplos desse processo.114 Essa instituição poderia ter operado
também no Novo Mundo, funcionando como um princípio orientador da sociedade em
Palmares.
Palmié usa a expressão "Brazilian 'Marron State' of Palmares", que para ser
traduzida perde sua capacidade sintética: ao retomar a expressão usada por Raymond
Kent, que afirmou ser Palmares um estado africano no Brasil ("an African State in
Brazil"), ele acrescentou a ela o fato de ser um estado formado por fugitivos, no Brasil.115
Como na África Central, o kilombo teria servido para reagrupar e dar coesão a gente
diversa, fazendo em seguida re-emergir cultos ancestrais e "fechando a fronteira":
reinstalados e reagrupados, os princípios do parentesco renascem, junto com os cultos
ancestrais que servem de base para estruturar um novo estado. Nesse contexto, o
aparecimento de cargos políticos revelava o desenvolvimento do processo deestabilização social - até que novas fronteiras se formassem. Assim, para ele, pensando
do ponto de vista institucional, nganga zumba remeteria mais a um título que a uma
pessoa: uma forma de liderança política e religiosa a indicar que a nova sociedade se
consolidava - sob a forma de um Estado.
Assim, as negociações do nganga zumba no Brasil poderiam ser interpretadas
como um gesto político para consolidar esse novo estado africano: parte de uma política
de estabilização, fortalecida por laços de parentesco e descendência, diferente da
experimentada no início, quando teria prevalecido o estado de guerra. Como se vê, não se
trata de uma instituição - o kilombo - que se transfere de uma margem a outra do
113 Joseph Miller, Poder político e parentesco. Os antigos estados Mbundu em Angola. (trad.) Luanda,Arquivo Histórico Nacional, 1995.
114 S. Palmié, "African States in the New World?", p. 62.115 S. Palmié, "African States in the New World?", p. 298.
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Atlântico, mas de um procedimento político mais amplo, que fornece uma gramática
tanto para a formação dos laços de coesão entre os fugitivos como para sua modificação
e para a formação de um Estado, segundo moldes africanos.
Palmié escreve quase ao mesmo tempo que Schwartz e os artigos de um e outrosão citados por ambos, em versões preliminares, ficando difícil distinguir as duas
propostas. Ao escrever em 1995, depois portanto da versão final do artigo de Schwartz,
Palmié incorpora várias de suas observações, para construir uma formulação que julgo
importante. Ao concordar com Schwartz, ele observa porém que há muitas diferenças
entre o kilombo Imbangala e o quilombo de Palmares e que esse pode ter sido um dos
modelos políticos utilizados pelos quilombolas. Caminhar nessa direção é, para ele, uma
boa maneira de levar em conta processos históricos e não essências identitárias.116
Creio que se trata de fato de um bom caminho. Não pretendo entrar na discussão
sobre os méritos e problemas da proposta teórica sobre as fronteiras de Kopytoff ou sobre
a capacidade hermenêutica de conceitos gerais e abstratos. Prefiro reter a proposta de ir
além da cultura pensada em temos de identidades étnicas (que tendem a ser tratadas de
modo essencialista) para enfatizar a cultura política. Ela me parece ser importante por
dois motivos. Em primeiro lugar, a reflexão realizada por Stuart Schwartz e Stephen
Palmié reconhece que os africanos, ao serem transportados pelo Atlântico, traziam
também em sua bagagem uma cultura política. Para retomar a formulação de Mintz ePrice, mesmo que "príncipes e princesas" não tivessem sido escravizados, e sem que
"cortes e monarquias" tivessem sido transpostos para o Novo Mundo, um modo de criar
sociedades e de organizá-las certamente pôde acompanhar os homens e mulheres na
diáspora. Além de portadores de "imensas quantidades de conhecimento, informações e
crenças" eram também sujeitos políticos. Em segundo lugar, essa abordagem permite
explorar outras formas de conexão entre a experiência africana na África e nas Américas,
além de proporcionar mais espaço para a análise da mudança e da transformação -
elementos tão caros à análise histórica.
O caminho não é novo. Alguns historiadores já exploraram a dimensão política
das instituições dos escravos - em particular ao tratarem das rebeliões. Para ficar com
116 S. Palmié, "African States in the New World?", p. 296.
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autores brasileiros, destaco os estudos de João José Reis e Robert W. Slenes. O primeiro
estudou a revolta dos malês em 1835 na Bahia, mostrando como as identidades religiosa
e étnica dos africanos vindos da África Ocidental moldaram tanto o modo como viveram
a escravidão na cidade da Bahia, quanto o modo como se revoltaram.117
Não eramsimplesmente "africanos": as diferenças étnicas e religiosas entre eles foram cruciais para
as duas experiências. Os principais líderes da revolta eram nagôs, e havia forte
participação de haussás. Essas identidades, entretanto, não foram suficientes para definir
o caráter do movimento, que foi profundamente marcado pelo islamismo. Esse, por sua
vez, não apagou as marcas étnicas, mas ajudou a diferenciar africanos e crioulos e fez
com que os malês - muçulmanos nagôs - dessem o tom ao movimento. Como afirma o
próprio autor, "é inútil delimitar em casos como este a fronteira exata entre religião e
rebelião".118 Mais que étnica ou religiosa, no entanto, a revolta foi escrava - um
movimento de indivíduos escravizados que buscavam a liberdade e tinham pela frente
um poderoso inimigo - os senhores brancos da Bahia.119 Reis não faz qualquer referência
às teses de Schwartz, Palmié ou Kopytoff - mesmo porque seu objeto é outro. Em sua
análise, porém, são as questões relacionadas à formação da força política capaz de
alimentar a rebelião (fundada nesse caso em elementos religiosos e étnicos) que orientam
a investigação e a interpretação daquele movimento social.
Robert W. Slenes estudou a formação de uma "proto-nação bantu" no Sudeste doBrasil na primeira metade do século XIX. Ao compartilhar a experiência comum do
tráfico e da escravidão em áreas rurais do Rio e de São Paulo, africanos de várias etnias,
de línguas e costumes diferentes (mas na maior parte bantus) descobriram paradigmas
culturais comuns e criaram uma nova identidade capaz de lhes permitir viver na
escravidão e enfrentar os senhores. Se de início sua pesquisa voltou-se para aspectos
mais culturais, como a formação de uma língua franca, baseada no substrato lingüístico
comum do kimbundu, do kikongo e do umbundu, e sobre práticas escravas, como os
117 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês. São Paulo, Brasiliense,1986. A segunda edição, revista e ampliada (São Paulo, Companhia das Letras, 2003) aprofundou aanálise dos elementos religiosos e étnicos do movimento rebelde, acrescentando novos capítulos sobre otema.
118 J. J. Reis, Rebelião escrava no Brasil . São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 247.119 J. J. Reis, Rebelião escrava no Brasil , p. 282.
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jongos, que permitiam uma comunicação entre os cativos distante da compreensão
senhorial,120 ela aos poucos avançou para o terreno da política.
Em trabalhos mais recentes, tem explorado em perspectiva comparativa os
significados políticos dos cultos kimpasi (cultos comunitários de aflição, relacionados asituações de crise) realizados por Beatriz Kimpa Vita e seus seguidores no Kongo do
século XVIII, aqueles praticados pelos membros da Cabula no Norte do Espírito Santo,
no início do século XX, e em S. Roque, em meados do século XIX, além dos cultos
praticados pelos escravos de Vassouras e Valença que planejaram uma insurreição no
Vale do Paraíba em 1848.121 Também Slenes não faz referência aos autores mencionados
acima, mas sua pesquisa está orientada pela necessidade de pensar religião e política em
conjunto, procurando na experiência africana elementos desse modo de agir que podem
ter ocorrido entre os escravos no Brasil.
Esses dois autores buscam, assim, analisar uma gramática política que esteve
baseada em práticas e instituições africanas específicas que informaram um modo
particular de alguns africanos, em situações históricas determinadas, armarem planos e
revoltas contra a escravidão e seus senhores. Evidentemente, a política faz parte da
cultura, no sentido mais amplo. Mas aqui se trata de sublinhar como instituições sociais e
religiosas serviram de esteio para ações politizadas, cujos sentidos nem sempre são fáceis
de compreender à primeira vista. Mais que formas ou crenças religiosas, traços culturaisdessa ou daquela nação ou etnia, é o modo como esses elementos se articularam, no
contexto da escravidão, seguindo modelos africanos, que interessou a esses autores.
João José Reis e Robert W. Slenes analisam contextos escravistas bem diferentes
da realidade da escravidão em Pernambuco no século XVII, que precisa ser levada em
conta no caso de Palmares. Uma das grandes diferenças é o fato de a escravidão, no
120 Cf. Robert W. Slenes, "'Malungu, ngoma vem!': África coberta e descoberta no Brasil" Revista USP, 12
(dez./jan./fev.1991-92): 48-67. A versão mais acabada do estudo sobre os jongos aparece em “‘Eu Venhode Muito Longe, Eu Venho Cavando’: Jongueiros Cumba na Senzala Centro-africana” in: Silvia HunoldLara e Gustavo Pacheco. (orgs.), Memória do Jongo, as gravações históricas de Stanley J. Stein.Vassouras, 1949. Livro-CD. Rio de Janeiro: Folha Seca/Cecult, 2007, p. 109-156.
121 Robert W. Slenes, "Saint Anthony at the Crossroads in Kongo and Brazil: ‘Creolization’and IdentityPolitics in the Black South Atlantic, ca. 1700/1850" in: Livio Sansone, Elisée Soumoni e Boubacar Barry(eds), Africa, Brazil and the constructions of trans-Atlantic Black identities. Trenton, Africa Worls Press,2008, pp.209-236. Vide também “L’Arbre nsanda replanté: cultes d’affliction kongo et identité desesclaves de plantation dans le Brésil du Sud-Est entre 1810 et 1888” Cahiers du Brésil Contemporain(EHESS, Paris), n. 67/68, p. 217-313.
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século XVII, estar articulada aos mecanismos mais amplos da colonização moderna. Se
se pretende investigar gramáticas políticas, o enquadramento mais geral não pode ser
tratado como simples moldura. Esse contexto certamente faz parte do campo empírico
que está sendo examinado aqui e deve ser levado em conta para aprofundar a discussão.Dito de outro modo, ao buscar a gramática política africana em ação no processo de
formação e desenvolvimento de Palmares é importante pensar que nem a África nem os
mocambos estavam isolados ou excluídos desse contexto mais geral.
O fenômeno histórico que enquadra a questão que se está discutindo é o da
expansão européia moderna, que incorporou novas áreas "além-mar" ao domínio
europeu. No caso português, esse processo envolveu a formação de um império colonial,
no qual territórios espalhados pelos quatro cantos do mundo, habitados por uma
diversidade de povos, estavam articulados. Não há dúvida a respeito das tensões e
dilemas que a dominação colonial fez brotar e os historiadores não se cansam de debater
a natureza dos vínculos e dos nexos políticos, econômicos e culturais que estiveram em
jogo no processo da dominação e exploração das riquezas do Novo Mundo pelos
europeus.122
Grande parte da literatura que trata do tema em relação ao processo da expansão e
da colonização portuguesas tem se dedicado a analisar seus aspectos econômicos ou
como as forças políticas se articularam para controlar os novos territórios e explorá-los.São os mecanismos administrativos e os modos de governar as áreas coloniais que têm
interessado a maior parte das investigações. Como já observei mais extensamente em
outro lugar, o significado da escravidão e da experiência escrava não tem sido levado em
conta na análise das questões políticas imbricadas na história do império colonial
português.123 Não se trata apenas de incorporar o tráfico negreiro como parte importante
122 Há, evidentemente, modos diversos de abordar o tema, com implicações teóricas que não vou discutir aqui. Para uma análise clássica e marcante da colonização portuguesa moderna ver Fernando Antonio
Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). S. Paulo, Hucitec, 1979,especialmente cap. 2. Para um exame dos nexos coloniais no século XVII português, vide Luiz Felipe deAlencastro, O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul. Séculos XVI e XVII. S. Paulo,Companhia das Letras, 2000.
123 Cf. Silvia Hunold Lara, "Conectando Historiografias: a escravidão africana e o antigo regime naAmérica portuguesa" in: Maria Fernanda Bicalho e Vera Lúcia Amaral Ferlini (orgs.), Modos deGovernar. Idéias e Práticas Políticas no Império Português (sécs. XVI-XIX). S. Paulo, Alameda CasaEditorial, 2005, pp. 21-38.
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122
dos mecanismos da exploração colonial ou de enfatizar os nexos econômicos e políticos
entre a África e o Brasil, mas de verificar qual o peso que as políticas africanas de um
lado e de outro do Atlântico tiveram na constituição das políticas coloniais - na África e
no Brasil.Se buscamos enfatizar que os africanos também traziam em sua bagagem uma
cultura política, é preciso conceder a eles a condição de sujeitos políticos atuantes no
processo mais amplo da colonização, nos dois lados do Atlântico. Para não me estender
em demasia com observações genéricas e abstratas, destaco três pontos que considero
importantes para a análise que desenvolvo aqui.
Em primeiro lugar, o modo como povos e civilizações diversas foram forçados a
entrar em contato com os europeus variou bastante. Para pensar a política, no contexto
dos impérios coloniais da época moderna, deve-se levar em conta que culturas diferentes,
de algum modo, tiveram - com maior ou menor tensão - que dialogar. Uso a palavra aqui
no sentido amplo - que não quer dizer somente entendimento e concordância, mas
comunicação.
Mintz e Price, mesmo enfatizando o convívio de africanos de origens diversas,
não deixaram de mencionar as tensões do contato cultural entre africanos e europeus nas
Américas. Na abordagem desse tema, é bastante freqüente partir do princípio de que
havia uma diferença radical entre europeus e africanos. Há entretanto um artigo de JohnThornton em direção contrária, pois aponta a similitude entre a monarquia portuguesa e
conguesa no século XVI.124 Para contestar o anacronismo presente em várias análises das
relações entre portugueses e o reino do Kongo, Thornton volta à documentação
quinhentista para mostrar como Portugal e o Kongo possuíam estruturas sociais,
econômicas e políticas parecidas o suficiente para que os membros de uma e outra
sociedade pudessem operar com certa familiaridade.
Além disso, apesar de Portugal possuir mercadorias diferenciadas e técnicas mais
eficazes que o Kongo, ambos os reinos tinham basicamente o mesmo nível econômico,
com taxas de produtividade semelhantes, afetadas por períodos de fomes e pestes. Eram
as diferenças nas técnicas de transporte e nas táticas militares, bem como nas armas e nos
124 Cf. John Thornton, "Early Kongo-Portuguese relations: a new interpretation" History in Africa, 8(1981): 183-204.
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123
tecidos portugueses que interessavam ao reino do Kongo e foram incorporados pelos
congoleses. Ambos os reinos possuíam sistemas monetários que possibilitavam redes
extensas de comércio, baseadas no ouro e na prata em Portugal e em tecidos específicos e
conchas nzimbu no Kongo e cowri para trocas de longa distância. Além disso, os doisreinos "eram monarquias governadas por um rei e por uma classe de nobres na qual as
relações de parentesco, clientelismo e influência dominavam o sistema político".125 Os
conceitos de soberania, nobreza e vassalagem, por exemplo, eram equivalentes nos dois
reinos e o fato de Afonso I se intitular "rei do Kongo e senhor dos Ambundos" mostra
que a correspondência podia ser reconhecida por ambos os lados. Do mesmo modo, o
fato de o ngola ser chamado de "rei" não era apenas retórica, mas descrevia tanto as
relações internas entre o rei do Ndongo e seus vassalos quanto entre eles e os
portugueses.126
As observações de Thornton são importantes, pois abrem a possibilidade de
entender as relações entre os portugueses e o Kongo a partir de um novo prisma, em que
estão presentes conflitos de hierarquia e jurisdição entre governos. Estamos, portanto,
num outro patamar da análise da política, não apenas aquele que considera os africanos
de um lado e os europeus de outro, mas uma forma de interação política e cultural entre
eles que ajudou a moldar e conformar o processo pelo qual a expansão colonial pode ser
realizada na África. Isso significa também dizer que, a partir do século XVI, a gramática política africana não é exclusivamente "africana", mas envolve também algum tipo de
relação com gramáticas européias.
Em segundo lugar, chamo a atenção para o fato de que a análise de Thornton
deriva de uma leitura cuidadosa das fontes administrativas - mais especificamente da
troca de cartas entre o Kongo e Portugal. Para evitar o anacronismo e a projeção de
contextos posteriores na análise do século XVI, ele leva em conta o contexto social no
qual essa documentação foi gerada e para quem ela foi escrita - e o modo como sua
forma e linguagem se encaixavam na sociedade portuguesa e congolesa.127 Há, portanto,
uma linguagem política e institucional documentada nas fontes que também é preciso
125 J. Thornton, "Early Kongo-Portuguese relations", p. 186.126 J. Thornton, "Early Kongo-Portuguese relations", especialmente pp. 193-197.127 J. Thornton, "Early Kongo-Portuguese relations", especialmente, pp.183-186 e 197-198.
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conhecer. Ao invés de postular o eurocentrismo presente na produção dessas fontes,
trata-se de explorá-las também do ponto de vista das ações dos africanos em contato com
os europeus.128
Por fim, em terceiro lugar, é preciso lembrar das lições mais singelas da análisesocial: nem todos os homens e mulheres são iguais. Mais uma vez, não falo do ponto de
vista cultural, mas da perspectiva da política - ou seja, das relações de dominação. Como
sabemos, as relações de poder estão diretamente ligadas ao modo como a produção e a
distribuição das riquezas ocorrem em uma certa sociedade, mesmo que elas não se
expressem em termos classistas.129 Grande parte da análise do processo da colonização
do Novo Mundo tem sido realizada por meio da oposição de categorias genéricas, como
metrópole e colônia, africanos e europeus, senhores e escravos. Se o problema é pensar
as relações de dominação, há que se levar em conta que, no interior dessas categorias, há
diferenças sociais - e políticas. Nem todos os interesses metropolitanos são convergentes,
nem todos os europeus são iguais, nem todos os senhores exploram seus escravos da
mesma forma; do mesmo modo, há diferenças e divergências entre grupos na colônia,
entre africanos e entre escravos. Em particular quanto a esses dois últimos, mais uma
vez, é preciso ir além da diversidade de culturas, para pensar em diferenças sociais e
políticas.
O próximo capítulo procura navegar por esses mares, em busca de elementos que permitam compreender as diversas gramáticas políticas acionadas no contexto em que
Palmares se formou e negociou com o governo de Pernambuco. Dessa vez, ao contrário
do primeiro capítulo, a balança penderá para o lado dos escravos.
128 Essa perspectiva tem sido explorada com resultados muito interessantes por Ana Paula Tavares eCatarina Madeira Santos (orgs.), Africae Monumenta. A apropriação da escrita pelos africanos. Lisboa,Instituto de Investigação Científica e Tropical, 2002, especialmente pp. 471-533; e Catarina MadeiraSantos, "Escrever o poder. Os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entre as elites africanas
Ndembu". Revista de História, 155 (2006): 81-95.129 Sobre o tema, ver E. P. Thompson, "Eighteenth century English society: class struggle without class?"
Social History, 3 (maio 1978): 133-165, bem como outros artigos do mesmo autor em E. P. Thompson,Costumes em comum. (trad.) S. Paulo, Companhia das Letras, 1998.
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125
Capítulo 3
CONJUNÇÕES
A documentação administrativa produzida pelo processo colonizador português
no século XVII é essencialmente dialógica: cartas, relatórios, instruções e ordens que
circulam entre diversas partes do império, carregando notícias, juízos políticos, queixas e
demandas, na direção das Conquistas e do Reino. Para ler essas fontes de uma
perspectiva histórica é preciso ir muitas vezes do contexto ao texto e vice-versa, de modo
a iluminar tanto as palavras quanto os acontecimentos. Esse é o caminho para
compreendê-los sem projetar nos homens do passado nossas próprias idéias e lógicas.
Ainda que tenham sido produzidas por um grupo pequeno de pessoas, essas
fontes trazem dados sobre muita gente e situações variadas. Cada peça do conjunto
oferece um ponto de vista bastante circunstanciado dos fatos. Não poucas vezes, os
historiadores são tentados a somar as informações produzidas por gente diferente, em
conjunturas diversas, para construir um panorama uniforme e coerente. O procedimento é
arriscado, pois se pode perder tanto a possibilidade de acompanhar mudanças ao longo
do tempo quanto de captar a diversidade das vozes que, de um modo ou de outro, estão
registradas na documentação. O exercício analítico experimentado nesse capítulo
pretende escapar da armadilha, ao explorar os laços que unem as duas margens do
Atlântico no século XVII.
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1. Os negros do Palmar
Gangazumba, rei dos Palmares; Acainene, sua mãe; Gangazona, seu irmão;
Tuculo, seu filho; Andalaquituxe e Zumbi, seus sobrinhos; Osenga, Dambiabanga,
Pacasa, Dambi, grandes potentados, chefes de mocambos: seus nomes são conhecidos pelo cronista de 1678 e aparecem em vários outros documentos da correspondência
oficial da capitania de Pernambuco e do Conselho Ultramarino. São anotados os nomes,
as relações de parentesco e o lugar que ocupam na hierarquia política e militar dos
Palmares. Um dos prisioneiros é designado como "Gangamuissa mestre de campo de
toda a gente de Angola e genro do rei, casado com duas filhas suas".1 Esses não são
nomes próprios usuais em português, mas há outros bem mais familiares. Fernão
Carrilho, por exemplo, enviou "Mateus Zambi e sua mulher Madalena Angola, ambos demaiores anos [idosos], os quais são sogros de um dos filhos do rei", para avisar sobre a
possibilidade de um acordo.2 Havia ainda Gaspar, "capitão da guarda do rei", e João
Tapuia e Ambrósio Negro, "ambos capitães afamados naquelas campanhas e entre
aqueles bárbaros".3 Os cativos que foram especialmente agraciados com a alforria, no
acordo feito no Recife em 1678, se chamavam Amaro e João Mulato.4
Esses registros documentam a existência de um conhecimento bastante grande
sobre a vida nos Palmares por parte das autoridades coloniais quanto a nomes, relações
de parentesco, hierarquias políticas e cargos militares. Ao mesmo tempo, o autor
anônimo da crônica e as autoridades que redigiram as cartas e demais documentos
administrativos também se referem de modo mais genérico aos "negros dos Palmares". O
cronista indica, por exemplo, que foram "alguns negros" que se esconderam naquele
"inculto e natural couto", ao fugirem dos castigos de seus senhores. A palavra "negro"
tem aqui um sentido genérico, não sendo sinônimo de escravo ou de fugitivo, pois
algumas vezes foi preciso diferenciar os "negros cativos [existentes] nestas capitanias" de
1 Cf. "Relação do que se passou na guerra com os negros dos Palmares nos sertões de Pernambuco". BPE,cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 55v.
2 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 56v.3 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fls. 55v-56.4 "Cópia do papel que levaram os negros dos Palmares". Documento anexo à carta do governador Aires de
Souza de Castro de 22 de junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116. Transcrito no anexo 5.
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vencer os Palmares. Manuel Inojosa, ao propor seu plano para destruir Palmares,
procurou se informar dos seus costumes. Um dos pareceres do Conselho Ultramarino que
examinou sua proposta menciona ter ele mandado "um negro seu escravo com promessa
de alforria a que fosse viver entre os ditos negros fingindo fugir ao cativeiro e assim lhesentrando na confiança tomar notícia sobre o modo como vivem, trabalham, casam e
governam, pois com saber dos negócios do inimigo se facilita o sucesso da guerra".9
Colhidas e acumuladas de modos diversos, as informações sobre os negros dos
palmares parecem ter constituído um certo conhecimento, já que as fontes são em geral
convergentes. No circuito das autoridades que lidavam com os assuntos das conquistas
portuguesas, o período de formação dos mocambos não é identificado de maneira
precisa. O cronista de 1678 registra que desde que "houve negros cativos nestas
capitanias, principiaram [a existir] os habitadores dos Palmares",10 sem dar maiores
detalhes. De fato, há menção a vários mocambos nas áreas açucareiras do Estado do
Brasil desde o final do século XVI. No regimento do governador Francisco Geraldes, de
1588, o rei indica ser preciso acabar com os "negros de Guiné e Angola [que andam]
levantados".11 Como vimos, em 1597, o provincial da Companhia de Jesus, mencionou
haver "negros de Guiné alevantados" que habitavam "algumas serras" no Estado do
Brasil.12
Ainda que alguns historiadores utilizem esses documentos para registrar aexistência de mocambos na região onde floresceu Palmares desde o final do século
XVI,13 cabe observar que essas evidências são vagas e se referem ao Estado do Brasil,
sem precisar qualquer região específica. A primeira menção a "negros levantados" em
Pernambuco é de 1602, durante a permanência na capitania do recém-nomeado
9 Consulta do Conselho Ultramarino de 8 de novembro de 1677. D. Freitas, República de Palmares. Pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII . Maceió, Edufal, 2004, pp. 141-142.
Infelizmente não consegui localizar o original.10 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 57v.11 Traslado do regimento que levou Francisco Geraldes que sua magestade ora mandou por governador do
Estado do Brasil em março de 88, RIHGB, 67 n. 1 (1906): 224.12 Carta do Padre Pedro Rodrigues, provincial da Companhia de Jesus, de 1º de maio de 1597. ABN , 20
(1898): 255.13 Ver, por exemplo, Décio Freitas, Palmares. A guerra dos escravos. [1973]. 5ª ed. reescrita, revista e
ampliada. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984, p. 29; Ivan Alves Filho, Memorial dos Palmares, Rio deJaneiro, Xenon, 1988, p. 5; e Flávio dos Santos Gomes, Palmares. Escravidão e liberdade no AtlânticoSul . São Paulo, Contexto, 2005, p. 48.
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numerosas mas não grandes aldeias a que chamam mocambos" habitavam trinta mil
pessoas.21 Em 1678, o cronista anônimo que elogiou os feitos de dom Pedro de Almeida
afirmou ser "opinião vulgarmente recebida de todos os que cursaram aquela campanha"
que Palmares abrigava "mais de vinte mil almas"; todavia, com a guerras empreendidas pelo governador "foram declinando no número".22 Segundo o cronista, a cerca real de
Macaco "fortificada toda em cerco de pau a pique" teria "mais de mil e quinhentas
casas", e Subupira, "cidade fortificada de pedras e madeira, compreend[ia] mais de
oitocentas casas".23 As estimativas parecem todavia estar mais atreladas a uma avaliação
política do perigo daqueles negros levantados do que em cômputos compatíveis com
dados sobre a população de Pernambuco, presentes nas fontes contemporâneas ou
resultantes de pesquisas históricas.24.
A identificação do grupo e de suas dimensões populacionais precedeu o
conhecimento mais detalhado sobre quem eram seus líderes. Na documentação da
primeira metade do século XVII, apenas o relato do capitão Blaer menciona o fato de que
"havia entre os habitantes [dos mocambos] toda sorte de artífices, eles chamam seu rei de
Damby e ele os governava com severa justiça".25 Gaspar Barléus, que escreve apoiado no
relato de Lintz e Baho, talvez tenha tido acesso ainda ao texto de Blaer, mas não refere
nome ou título algum, descrevendo dois Palmares, um grande e outro pequeno.26 Na
documentação portuguesa, apenas a partir de 1678 há identificação dos nomes. É na cartade dom Pedro de Almeida de 4 de fevereiro de 1678 que se pode encontrar a primeira
21 Francisco de Brito Freire, Nova Lusitânia. História da guerra brasílica. [1675] Ed atual. e rev. SãoPaulo, Beca, 2001, p. 177.
22 "Relação do que se passou na guerra com os negros dos Palmares nos sertões de Pernambuco" BPE, cod.CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 53.
23 "Relação" BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 51v e 52.24 Ao comentar estas cifras, Stuart B. Schwartz considerou que, se a região possuía cerca de 200 engenhos
em meados do século XVII, com a média de 100 escravos cada um, o número de habitantes de Palmaresigualaria o total de escravos na economia açucareira na região. Vide S. B. Schwartz, pp. 246. Cf. também
João José Reis, "Quilombos e revoltas escravas no Brasil". Revista USP , 28 (1995/6): 16-17. O próximoitem desse capítulo oferece dados sobre a população escrava em Pernambuco no século XVII.
25 João Blaer, "Diário de viagem do Capitão João Blaer aos Palmares em 1645". Alfredo de Carvalho, quetraduziu o texto para a publicação em RIAHGP , 56 (1902): 87-96, escreve: "havia entre os habitantestoda sorte de artífices e o seu rei os governava com severa justiça...". Mariana Françozo verificou ooriginal no Arquivo Nacional em Haia, coleção OWIC (Oud West Indische Compagnie), entrada1.05.01.01, inventário número 60, documento 47, f. 92 e constatou a diferença. Cito pelo original,segundo a tradução realizada por ela, a quem agradeço muitíssimo sua generosa gentileza de ler, cotejar,traduzir o texto para mim.
26 G. Barléu [Caspar van Baerle], História dos feitos recentemente praticados, p. 253.
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referência ao "rei por nome Gangazumba" - que o governador dá como tendo sido morto
numa das batalhas lideradas por Fernão Carrilho.27 Todos os outros nomes e cargos
aparecem em textos escritos depois disso e a principal fonte é, sem dúvida, a crônica de
1678.Isso significa que, mesmo que os nomes indicassem títulos entre os palmarinos,
para as autoridades em Pernambuco - e em seguida em Lisboa - eles se referiam a
indivíduos. É bem possível imaginar que informações sobre os nomes dos líderes possam
ter sido obtidas dos prisioneiros feitos nas várias guerras e que algum conhecimento
tenha surgido do contato mais próximo dos padres oratorianos que negociaram com eles
em nome de Francisco de Brito Freire, em 1663, por exemplo.28 Naquela ocasião, porém,
o que as cartas registram é a existência de um "maior, que governa a todos" e de "o cabo
de um mocambo", sem nomes próprios. A estrutura de um governante maior e de chefes
de mocambos que lhe são subordinados aparece na documentação antes de 1678. Foi a
partir das negociações havidas nesse ano, porém, que a percepção do significado mais
amplo das hierarquias palmarinas parece ter se firmado entre as autoridades coloniais.
O "principal", "maior", "maioral" ou "rei" não apenas governava os mocambos,
seus "cabos" e habitantes como liderava uma rede de parentes que, por sua vez, ocupava
postos políticos e militares. A parentela composta por relações consangüíneas ou de
afinidade era reconhecida pelos capitães das tropas e pelos governadores de Pernambuco,que a utilizavam para levar recados, ordens e cartas. Os documentos não indicam que
essa relação entre parentesco e posições de poder causasse estranheza para aquelas
autoridades coloniais. Elas podem ter reagido à estrutura de governo em Palmares da
mesma forma que os portugueses haviam se comportado diante da monarquia que
governava o Kongo, no século XV, como observou Thornton.29 Gangazumba era "rei e
senhor" de uma linhagem governante, com poder e jurisdição sobre terras e gentes.
27 Carta de 4 de fevereiro de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1103. No original "Ganazumbà".Utilizo aqui e em toda a tese "Gangazumba" por ser mais próximo do que foi fixado pela bibliografia. Avariação no registro dos nomes próprios palmarinos na documentação administrativa e na historiografia éum tema bem interessante, que pretendo tratar com detalhes em artigo futuro.
28 Ver "A voz da experiência", capítulo 1.29 Cf. John Thornton, "Early Kongo-Portuguese relations: a new interpretation" History in Africa, 8 (1981):
183-204.
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Como vimos, ao glorificar dom Pedro de Almeida, a crônica de 1678 reconheceu
Palmares como tendo fé, lei e rei. A operação não era, entretanto, apenas retórica. A
partir do acordo de paz ajustado em 1678, a linhagem palmarina passou a ser incorporada
aos registros administrativos. Deve ter contribuído para isso o fato de eles terem uma procedência conhecida pelas autoridades coloniais e pelos colonos pernambucanos.
Todas as fontes dizem que os habitantes dos Palmares haviam fugido dos
engenhos de Pernambuco: gente vinda de Guiné, ou de Angola e Guiné, conforme os
identificavam as autoridades coloniais. Até o final do século XVI, Guiné era um termo
genérico30 que designava as terras da costa atlântica da África, empregado algumas vezes
para diferenciar os negros trazidos da África daqueles "da terra", isto é, dos índios.
Somente depois da fundação de Luanda, em 1575, e do estabelecimento dos portugueses
na região entre os rios Bengo e Kwanza, Angola começou a aparecer na documentação
como uma denominação mais específica.31
No século XVII, os africanos enviados para o Estado do Brasil e em particular
para Pernambuco saíam basicamente de Angola, como se verá em detalhe mais adiante.
Essa predominância é atestada por numerosos documentos, como no caso de Diogo
Campos Moreno, que em 1612 informou ao rei que os moradores de Pernambuco tinham
"muitos escravos de Guiné, pelas muitas entradas que aqui fazem todos os anos navios de
Angola".32 Em junho de 1671, poucos meses depois de tomar posse como governador da
capitania, Fernão de Souza Coutinho escreveu ao príncipe sobre as entradas que
pretendia enviar contra Palmares no verão seguinte.33 Sua primeira frase exprimia uma
certeza: os Palmares eram formados por "negros de Angola fugidos ao rigor do cativeiro
e fábricas dos engenhos desta capitania". Essa identidade foi levada em conta pelos
conselheiros do Ultramarino em outubro daquele ano, que decidiram recomendar
30 R. Bluteau, em seu Vocabulário, indica que Guiné é "ampla região da África, entre a terra dos negros, omar atlântico, os reinos de Congo e Biafara, e a terra a que chamam Leoa".
31 Cf. Luiz Viana Filho, O negro na Bahia. 2ª ed. São Paulo, Livr. Martins Ed., 1976, pp.25-31; e MariaInês Cortes de Oliveira, "'Quem eram os ‘negros da guiné'? A origem dos africanos na Bahia" Afro-Ásia,19/20 (1997): 37-73.
32 D. C. Moreno, Livro que dá razão do Estado do Brasil , p. 190.33 Carta de Fernão de Souza Coutinho de 1º de junho de 1671. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 917.
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medidas severas para evitar que os prisioneiros permanecessem em Pernambuco, no
Brasil ou em qualquer outra conquista de Portugal.
Em Pernambuco e em Lisboa podia haver discordância sobre o melhor método
para acabar com os negros dos Palmares, porém todos pareciam concordar que eles eramgente vinda de Angola que havia fugido das senzalas da região. Os motivos das fugas
variam pouco, já que o "rigor do cativeiro" e os "maus tratos" se repetem em vários
documentos. As autoridades pernambucanas e lisboetas pareciam convergir também em
relação à necessidade de cortar a comunicação entre os que permaneciam escravos e os
que tinham fugido para Palmares. A idéia de enviar os prisioneiros para fora da capitania
baseava-se na constatação de que não apenas eles tornavam a fugir, como às vezes
levavam outros a fazê-lo. Ao identificarem os levantados dos Palmares como "negros de
Angola fugidos" do cativeiro, tratavam de procurar medidas eficientes que evitassem
novas fugas e alimentassem o crescimento dos mocambos.
Essa forma de identificá-los enuncia a percepção de uma solidariedade entre
companheiros de infortúnio, que sofriam sob os "rigores do cativeiro" e que haviam
fugido de seus senhores. Mas há, aqui, algo mais. Um episódio pode bem ilustrar essa
outra dimensão.
Em dezembro de 1671, ao avançar para o interior de Angola, os portugueses
tiveram que enfrentar mais uma vez o rei do Ndongo, que resistia ao domínio portuguêshavia algum tempo. Ele havia atacado algumas caravanas e se retirado para a capital, na
região das Pedras Negras (Mpungo Andongo). Os portugueses enviaram um grande
número de soldados, sob o comando de Luís Lopes de Siqueira e, depois de um cerco de
vários meses, conseguiram tomar a capital. O rei foi morto e houve muitos prisioneiros,
entre eles parentes do soberano, que foram mandados para Lisboa. Os portugueses
estabeleceram um forte no local, que ao mesmo tempo marcava o avanço do domínio
português no sertão de Angola e o fim do reino do Ndongo.34 O feito militar teve certa
34 Sobre a batalha de Mpungo Andongo ver Gastão Souza Dias, Os portugueses em Angola. Lisboa,Agência-Geral do Ultramar, 1959, pp.156-158.
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repercussão em Portugal, como mostra um relato publicado em Lisboa, atribuído ao
conde da Ericeira, um dos intelectuais mais destacados da corte portuguesa no período.35
Como em outras ocasiões nas guerras centro-africanas, alguns prisioneiros mais
destacados foram deportados. O filho e o irmão do rei do Ndongo seguiram para Lisboa ecerca de 14 "parentes mais chegados do dito rei" embarcaram para o Brasil, enviados
pelo governador de Angola. Em setembro de 1672, o príncipe português escreveu ao
governador do Estado do Brasil pedindo que esses últimos fossem remetidos para o
Reino, pois não podiam voltar para Angola, "pela perturbação que podiam causar", e não
era conveniente que ficassem no Brasil "para se evitar o dano que se pode seguir de
buscarem meio de fugirem para os mocambos, donde [eram] conhecidos dos negros deles
[e] nos se[riam] mais prejudiciais".36
Enviados a Portugal em vista do pedido régio, foram distribuídos por conventos e
fortalezas.37 Como eram muitos e seu sustento onerava a Fazenda real, em 1679 aventou-
se a possibilidade de devolvê-los para Angola ou de remetê-los para o Brasil. A resposta
obtida foi a mesma de 1672:
"em Angola, com o séquito que tinham, podiam alterar aquele gentio, demodo que nos fosse de grande prejuízo, e no Brasil havia o mesmo, ou por poderem fugir para Angola, ou meterem-se com os negros dos Palmares,com que lhe parecia ser mais ajustado passá-los ao Maranhão, donde não
havia embarcações que fossem a Angola e menos negros com que seacumulassem".38
Mesmo que em 1682 ao menos alguns deles ainda permanecessem em Portugal,39
o périplo dos membros da família real do Ndongo indica o duplo potencial político
35 Cf. [D. Luís de Menezes (3.º conde da Ericeira)], Relação do felice successo que conseguiram as armasdo Serenissimo principe D. Pedro, nosso senhor, governadas por Francisco de Tavora, governador ecapitão general do reino de Angola, contra a rebellião de D. João, rei das Pedras e Dongo, no mez dedezembro de 1671. Lisboa, Miguel Menescal, s.d. BNL, RES 903P, n. 11. A publicação saiu anônima.Cf. também MMA, vol. X, pp. 143-152 doc. 64.
36 Carta de Sua Alteza para o governador Afonso Furtado de Mendonça, de 6 de Setembro de 1672. DH ,67 (1945): 213-214. Veja-se também Consulta do Conselho Ultramarino de 21 de agosto de 1672.MMM, vol. XIII, pp. 180-181, doc. 73. O episódio é comentado rapidamente por Stuart B. Schwartz, quemenciona uma carta do governador geral do Brasil de 24 de maio de 1673 (AHU, Bahia, Cx. 11). S. B.Schwartz, "Introdução" in: S. B. Schwartz e Alcir Pécora (orgs.), As excelências do governador. SãoPaulo, Companhia das Letras, 2002, p. 32.
37 Ver, a respeito, os documentos n. 73, 109, 125, 159, 222, MMM, vol. XVIII, pp. 180-181, 239, 297-298,381-382, 532-533.
38 Consulta do Conselho Ultramarino de 18 de julho de 1679. MMM, vol. XIII, pp. 507-508, doc. 206.39 Consulta do Conselho Ultramarino de 12 de junho de 1682. MMM, vol. XIII, pp. 532-533, doc. 222.
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dessas comunicações: um refere-se às atlânticas, entre Pernambuco e Angola, outro
àquelas internas a Pernambuco, entre os africanos (escravos ou não) das áreas sob
domínio colonial e os Palmares. Somente nesse contexto é possível compreender o
perigo político da presença desses exilados no Estado do Brasil.O episódio revela ainda uma outra dimensão dessas conexões: as ligações
comerciais e políticas entre o Brasil e Angola conectavam também os africanos - isto é,
não aproximavam apenas autoridades coloniais e traficantes que atuavam ou tinham
interesses nas duas margens do Atlântico. Se os membros da família real do Ndongo não
eram de fato "conhecidos" pelos habitantes dos Palmares, podiam ser "reconhecidos" por
eles com facilidade. A constatação, feita por gente acostumada a lidar com as questões da
administração colonial, tem um peso político evidente. Se o retorno da linhagem real a
Angola punha em risco a vitória obtida em Mpungo Andongo, o que aconteceria caso ela
se juntasse à linhagem que governava Palmares?
2. Escravos para Pernambuco
O episódio dos membros da família real do reino do Ndongo que foram
desterrados para Portugal depois da batalha de Npungo Andongo em 1671 ressalta dois
temas conexos, importantes para a compreensão do contexto no qual as autoridades
portuguesas e coloniais identificavam os negros dos Palmares como gente vinda de
Angola. O primeiro diz respeito às relações constantes e estreitas entre Bahia,
Pernambuco e Angola na segunda metade do século XVII. O segundo, ao tráfico
negreiro, que era o principal elo daquelas relações.
De fato, a proximidade entre Brasil e Angola era grande e as ligações se faziam
em muitos níveis e acentuou-se durante o processo de expulsão dos holandeses de
Luanda. Comparativamente, a rota Luanda - Pernambuco era das mais curtas, durandoem média 35 dias. Além disso, as duas regiões possuíam muitas similitudes geográficas e
climáticas, o que facilitou a troca de frutas, legumes e outros alimentos.40 O processo de
40 Segundo A. J. R. Russell-Wood, "Angola dependia mais do Brasil do que de Portugal metropolitano.Havia um intercâmbio legal de mercadorias entre as duas colônias, sem que fosse necessário que
passassem por qualquer troço [sic] europeu, apesar de Angola fazer parte de um comércio triangular
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ocupação dos dois territórios, porém, havia sido bem diferente, e cada lado do Atlântico
possuía riquezas e modos de explorá-las bem diversos - mas estreitamente relacionados.
Os africanos aprisionados na região angolana foram a principal fonte de mão de
obra utilizada no Brasil a partir do final do século XVI. Em torno do tráfico de escravosarticularam-se muitos interesses que fortaleceram os vínculos administrativos, políticos,
militares, econômicos, comerciais e até religiosos entre as áreas de ocupação portuguesa
nos dois lados do Atlântico. Muitos governadores, juízes e provedores mandados para
Angola haviam ocupado cargos no Brasil e vice versa.41 Em muitos anos, aportavam em
Angola mais navios do Brasil do que de Portugal. O Brasil enviava soldados,
suprimentos e cavalos para Angola e, depois de 1676, o bispo de Angola tinha que
responder ao arcebispado da Bahia.42
Sem dúvida alguma, o tráfico de escravos era o lastro de todas essas ligações.
"Sem negros não há Pernambuco e sem Angola não há negros" disse uma vez o padre
Vieira.43 A famosa frase sintetiza essa relação, além de destacar a região açucareira do
nordeste do Estado do Brasil, que nos interessa aqui. Os números do tráfico, cada vez
mais conhecidos, são eloqüentes.
Infelizmente, no entanto, para o período e a região de que tratamos, os dados são
bastante fragmentários.44 A literatura sobre o assunto é extensa e muitas revisões têm
entre Portugal, a África Ocidental e o Brasil." Cf. Um mundo em movimento. Os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). (trad.) Lisboa, Difel, 1992, p. 215. Essa obra oferece um bom panoramados fluxos populacionais e das trocas de mercadorias no Império português.
41 Para alguns exemplos, vide Maria de Fátima Silva Gouvêa, "Conexões imperiais: oficiais régios noBrasil e Angola (c.1680-1730)" in: Maria Fernanda Bicalho (org.), Modos de Governar. Idéias e Práticas Políticas no Império Português (sécs. XVI-XIX). S. Paulo, Alameda Casa Editorial, 2005, pp.179-197; e Maria de Fátima Silva Gouvêa e Marilia Nogueira dos Santos, "Cultura política nadinâmica das redes imperiais portuguesas, séculos XVII e XVIII" in: Martha Abreu, Rachel Soihet eRebeca Gontijjo (orgs), Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Riode Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, pp. 89-110.
42 Para uma análise das ligações administrativas, militares, políticas e religiosas entre Angola e o Brasil
vide Anne Wadsworth Pardo, A comparative study of the Portuguese colonies of Angola and Brazil and their independence from 1648-1825. Doutorado, Boston, Boston University, 1977; e, especialmente,Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
43 Carta de Antonio Vieira ao marquês de Niza, de 12 de agosto de 1648. João Lúcio de Azevedo (coord.), Antonio Vieira. Cartas, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1970, vol. 1, p. 234.
44 Os principais estudos sobre o tráfico concentram-se sobre os séculos XVIII e XIX. Vide, por exemplo,David Eltis, Economic growth and the ending of the Transatlantic slave trade. Nova York, OxfordUniversity press, 1987; Joseph C. Miller, Way of Death. Merchant capitalism and the Angolan slavetrade, 1730-1830. Madison, The University of Wisconsin Press, 1988; e David Eltis, Stephen D.
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sido feitas desde o trabalho pioneiro de Maurício Goulart e Frédéric Mauro, que
calcularam entre 300 e 350 mil escravos chegados no Brasil na primeira metade do
século XVII e entre 500 e 550 mil em todo o século.45 Philip D. Curtin precisou esses
números, estimando 50 mil escravos desembarcados no Brasil até o final do século XVI eoutros 560 mil ao longo do século XVII.46 Estas estimativas ainda se sustentam, embora
nem sempre haja concordância entre os autores.
David Eltis, Stephen D. Behrendt e David Richardson revisaram os cálculos
anteriores. Ao comparar as cifras dos desembarques feitos pelos navios de diferentes
bandeiras, concluíram que o cômputo de Curtin de 50.000 escravos chegados ao Brasil
antes de 1600 permanece. Para o período subseqüente, entretanto, há algumas alterações:
consideraram as cifras de Curtin altas para o período entre 1600 e 1650, e ajustaram-na
para 150.000 desembarques feitos em navios portugueses e 26.300 em navios
holandeses; para o período subseqüente, entre 1650 e 1700, estimam que 177.000
escravos desembarcados no Brasil seria um número mais compatível com os registrados
para outras partes das Américas.47 Luiz Felipe de Alencastro ponderou que as reduções
propostas por esses autores não levaram em conta o contrabando para o Rio da Prata, que
passava pelos portos brasileiros, no período 1600-1625, o declínio da escravidão
indígena e a expansão do gado no período entre 1650-1700. Baseado em estatísticas da
saída de escravos de Angola, que computam no final dos anos 1670 entre 8 mil e 10 milescravos por ano, Alencastro afirmou que esses números deviam ser corrigidos para
Behrendt, David Richardson e Herbert S. Klein, The transatlantic Slave Trade, 1527-1867: a databaseon CD-Rom. Nova York, Cambridge University Press, 1999. Os dados desse banco vêm sendoatualizados, mas até agora não foram disponibilizadas as novas informações sobre o século XVII.
45 Mauricio Goulart, A escravidão africana no Brasil das origens à extinção do tráfico [1950] 3ª ed. SãoPaulo, Alfa-Omega, 1975, p. 122; e Frédéric Mauro, Le Portugal, le Brésil et l'Atlantique au XVIIe siècle(1570-1670), Paris, S.E.V.P.E.N., 1960, pp. 174-180.
46 Philip D. Curtin, The Atlantic slave trade. A census. Madison, The University of Wisconsin Press, 1969, pp. 116 e 119.
47 David Eltis, "The Volume and Structure of the Transatlantic Slave Trade: A Reassessment" The Williamand Mary Quarterly, 58 n. 1 (2001): 23-26 e tabela III, p. 45; David Eltis, Stephen D. Behrendt, DavidRichardson "A participação dos países da Europa e das Américas no tráfico transatlântico de escravos:novas evidências" Afro-Ásia, 24 (2000): 26-27. Este artigo foi publicado posteriormente, com algumasrevisões: David Eltis, Stephen D. Behrendt, David Richardson, "National participation in theTransatlantic slave trade: new evidence" in: José C. Curto e Renée Solodre-La-France (eds.), Africa and the Americas. Interconnections during the slave trade. Trenton, Africa World Press, 2005, pp. 13-41. Osnúmeros adotados aqui se referem a essa última versão do texto. Para uma avaliação mais detalhada dotráfico holandês para o Brasil vide Pedro Puntoni, A mísera sorte. A escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico no Atlântico sul, 1621-1648. São Paulo, Hucitec, 1999, pp.150-162.
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cima, preferindo as estimativas mais antigas feitas por Mauro e Goulart, que haviam sido
tomadas como base por Curtin.48 A tabela 1 ajuda a acompanhar o vai e vem dos
números.
Tabela 1 - Estimativa do número de africanos desembarcados no Brasil
Número de Africanos desembarcados no BrasilPeríodo F. Curtin D. Eltis et al . L.F. Alencastro
1551-1575 10.000 10.0001576-1600 40.000 50.000 40.0001601-1625 100.000 150.0001626-1650 100.000 176.300 50.0001651-1675 185.000 185.0001676-1700 175.000 177.000 175.000
Totais 610.000 403.300 610.000Fontes: P. D. Curtin, The Atlantic slave trade, pp. 116 e 119; D. Eltis, S. D. Behrendt eD. Richardson, "National participation in the Transatlantic slave trade: new evidence",
pp. 13-41; L. F. Alencastro, O trato dos viventes, pp. 69 e 376-377
Como se vê, corrigidas para cima ou para baixo, conforme os procedimentos
adotados para calibrar as cifras, o volume total das importações ao longo do século XVII
permanece em patamares bastante semelhantes. Evidentemente, nem todos esses
escravos enviados para o Brasil saíam de Angola.49 Desde por volta de 1580, contudo, a
maior parte do tráfico negreiro que se dirigia para as costas do Brasil (e para as
Américas), partia dos portos exportadores da África Central, primeiro Mpinda e depois
Luanda. Isso resultava em grande parte das guerras que marcaram o processo de
colonização na região Kongo-Angola e forneciam a maior parte dos cativos transportados
pelos portugueses.
48 L. F. Alencastro, O trato dos viventes, pp. 69 e 376-377. Alencastro consultou uma versão ainda inéditado artigo de D. Eltis, "The Volume and Structure of the Transatlantic Slave Trade...", mencionado nanota anterior.
49 Há, por exemplo, 84.400 escravos vindos da Costa da Mina para a Bahia, desde o início das exportaçõesde tabaco em 1678 até 1700. Vide L. F. Alencastro, O trato dos viventes, p. 376. Roquinaldo Ferreirainforma que, a partir da segunda metade do século XVII, escravos obtidos em Benguela também foramexportados pelo porto de Luanda, mas foi somente a partir do final do século que essa região foi setornando um parceiro importante no tráfico atlântico. R. Ferreira, Transforming Atlantic Slaving: Trade,Warfare, and Territorial Control in Angola, 1650-1800. Doutorado, Los Angeles, University of California, 2003, especialmente caps. 1 e 2.
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A partir das últimas décadas do século XVI, Angola e o Brasil passam a ser o
centro desse comércio. Não só o declínio da produção açucareira em São Tomé permitiu
que as exportações de escravos se voltassem para o Brasil e para as Américas, como os
asientos que levavam cativos para as áreas sob o domínio de Castela passaram a ser firmados com gente que tinha fortes conexões com Angola.50 Assim, ao longo do século
XVII, os escravos de Angola representavam cerca de 50 a 60% de todo o tráfico negreiro
realizado pelos europeus.51 Conforme o ritmo das guerras na África Central, saíam dessa
região entre 9 mil e 12 mil escravos por ano, chegando em ocasiões excepcionais até a 15
mil por ano.52
O impacto dos números obtidos pelos historiadores foi constatado em outros
termos pelos contemporâneos, sem tanta precisão mas com igual magnitude, como se
pode verificar pela passagem abaixo, retirada de um dos sermões do padre Antônio
Vieira:
"Uma das grandes coisas que se vêem hoje no mundo, e que nós pelocostume de cada dia não admiramos, é a transmigração imensa de gentes enações etíopes, que da África estão continuamente passando a estaAmérica. A armada de Enéas, disse o príncipe dos poetas que levara Tróiaà Itália; e das naus que dos portos do mar Atlântico estão sucessivamenteentrando nestes nossos, com a maior razão podemos dizer que trazem aEtiópia ao Brasil. Entra por essa barra um cardume monstruoso de baleias,
salvando com tiros e fumos de água nossas fortalezas e cada uma pare um baleote; entra uma nau de Angola e desova no mesmo dia quinhentos,seiscentos, talvez mil escravos!"53
No Brasil, como em Pernambuco, os principais compradores de escravos
africanos eram os senhores de engenho e os lavradores de cana. O padre José de Anchieta
e Fernão Cardim contam 66 engenhos em Pernambuco entre 1580 e 1590. Gabriel Soares
de Souza estima 50 engenhos na capitania, enquanto Abreu e Brito contava 63 engenhos
em 1591, produzindo cada um 6 mil arrobas de açúcar.54 Frei Vicente do Salvador acusa
50 Linda M. Heywood e John K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, and the foundation of the Americas, 1585-1660. Nova York, Cambridge University Press, 2007, p. 39.
51 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 268.52 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, pp. 160-16153 Pe. Antônio Vieira, "Sermão vigésimo sétimo" Sermões. Problemas sociais e políticos do Brasil . (ed.
Antônio Soares Amora) São Paulo, Cultrix, 1995, p. 57.54 A Bahia teria 46 engenhos segundo Anchieta e Cardim e 36 segundo Gabriel Soares de Souza. Dados
retirados de M. Goulart, A escravidão africana no Brasil , pp.100 e 104.
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a existência de 100 engenhos em Pernambuco, 18 ou 20 em Itamaracá e cerca de 20 na
Paraíba.55 A invasão holandesa desorganizou parcialmente a produção de açúcar.
Cotejando fontes diversas, Pedro Puntoni calcula que em 1638, pouco tempo depois da
ocupação, dos 107 engenhos que os holandeses encontraram em Pernambuco, 40continuavam abandonados; dos 20 existentes em Itamaracá, 12 estavam funcionando,
assim como 18 dos 20 engenhos da Paraíba.56 Em 1640, já se contavam 121 engenhos
moentes em Pernambuco, 23 em Itamaracá e 20 na Paraíba.57
Na segunda metade do século XVII, a capitania de Pernambuco era uma das
grandes áreas produtoras de açúcar da América portuguesa. Contava com cerca de 200
engenhos de açúcar; eles eram menores do que seus congêneres baianos, mas chegavam a
produzir perto de 500 mil arrobas de açúcar por ano, quase tanto quanto a Bahia, no
mesmo período.58 Estavam instalados em zonas de boa terra, concentrando-se no
massapê da várzea dos rios Capiberibe, Ipojuca e Jaboatão, logo com acesso a boas rotas
fluviais para o transporte do açúcar. Depois de expulsos os holandeses, os engenhos se
recuperaram, porém tiveram que enfrentar a concorrência da produção caribenha,
enquanto o processo colonizador avançava paulatinamente para os sertões.59
A capitania era, portanto, um sorvedouro de escravos. Maurício Goulart estima
que entre 1601 e 1652 teriam entrado cerca de 108 mil escravos em Pernambuco: "75
mil, de 1601 a 1630; 6 mil, de 1631 a 1636; 23.163, de 1637 a 1645; 2 mil, nos anos de46 e 47; e não mais de 2 mil, de 1648 a 1652."60 Mauro estimou que em Pernambuco
entraram 75.000 escravos antes de 1630, e 108.000 entre 1600 e 1652.61 Além de
Pernambuco, a Bahia era outro grande centro importador de africanos e os senhores de
55 M. Goulart, A escravidão africana no Brasil , p. 106-107.56 P. Puntoni, A mísera sorte, p.78.57 P. Puntoni, A mísera sorte, p. 85.58 Stuart B. Schwartz, "O Brasil colonial, c.1580-c.1750. As grandes lavouras e as periferias" in: Leslie
Bethell (org.), História da América Latina. América Latina colonial. (trad.) São Paulo, Edusp/FundaçãoAlexandre de Gusmão, 1999, vol. 2, pp. 341-347. O artigo oferece um panorama geral da produçãoaçucareira no Brasil desse período.
59 O período entre a expulsão dos holandeses (1654) e a revolta dos mascates (1711) é pouco estudado e osdados não são precisos. Sobre a expansão para os sertões vide Pedro Puntoni, A guerra dos bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720, São Paulo, Hucitec/Edusp,2002, especialmente capítulo 1.
60 M. Goulart, A escravidão africana no Brasil , p. 112. A análise que resulta nesses números está nas pp.109-111.
61 Frédéric Mauro, Le Portugal et l'Atlantique au XVIIe siècle, pp. 174-180.
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engenho das duas capitanias dominavam o tráfico de escravos no Atlântico sul em
meados do século XVII.62 Precisavam de escravos e contavam com uma boa produção de
cachaça e tabaco, produtos que se tornaram importantes no comércio negreiro em Angola
a partir de 1650-1660.63
David Eltis, utilizando a Base de Dados sobre o Tráfico Transatlântico de
Escravos, chegou a estimar os desembarques de escravos nas diversas regiões do Brasil.64
Esses dados, sistematizados na tabela 2, ainda que genéricos e um pouco superiores à
revisão dos valores globais feitos mais uma vez pelo próprio David Eltis, juntamente
com Stephen D. Behrendt e David Richardson, mostram a importância do Nordeste - e,
portanto de Pernambuco - no comércio negreiro em relação à Bahia:
Tabela 2 - Escravos desembarcados no Brasil
RegiõesPeríodo Nordeste Bahia Sudeste Totais
1519-1600 35.000 15.000 50.0001601-1650 86.300 60.000 30.000 176.3001651-1675 15.600 15.600 15.600 46.8001676-1700 30.200 75.900 30.200 136.300
Totais 167.100 166.500 75.800 409.400Fonte: D. Eltis, "The Volume and Structure of the Transatlantic Slave Trade", tabela III,
p. 45.
Esses números são bastante altos se compararmos com a quantidade de escravos
existentes na capitania de Pernambuco nesse período. Mais uma vez, os dados são
62 Joseph C. Miller, "A economia política do tráfico angolano de escravos no século XVIII" In: SelmaPantoja e José Flávio Sombra Saraiva (orgs.), Angola e Brasil nas rotas do Atlântico sul. Rio de Janeiro,Bertrand do Brasil, 1999, p. 16. Sua análise apóia-se em José Gonsalves Salvador, Os cristãos novos e ocomércio no Atlântico meridional (com enfoque nas capitanias do sul, 1580-1680). São Paulo, Pioneira,
1978 e do mesmo autor, Os magnatas do tráfico negreiro (séculos XVI e XVII) São Paulo, Pioneira, 198.Ver ainda Joseph Miller, "Capitalism and slaving: the financial and commercial organization of theAngolan slave trade, according to the accounts of Antonio Coelho Guerreiro, 1684-1692". International Journal of Historical Studies, 17 n. 1 (1984): 1-56.
63 Cf. José C. Curto, "Vinho verso cachaça: a luta luso-brasileira pelo comércio do álcool e de escravos emLuanda,c. 1648-1703" in: S. Pantoja e J. F. S. Saraiva (orgs.), Angola e Brasil nas rotas do Atlântico sul ,
pp. 69-97.64 David Eltis, "The Volume and Structure of the Transatlantic Slave Trade", tabela III, p. 45. Os mesmos
dados estão reproduzidos em David Eltis e David Richardson, "Os mercados de escravos africanosrecém-chegados às Américas: padrões de preços, 1673-1865" Topoi, 6 (2003): 16.
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século, estima-se que chegavam ao Brasil todos os anos cerca de 2.000 portugueses. 69
Tendo em vista essas estimativas, pode-se calcular que os escravos constituíam 44,8% da
população no final do século XVI. Essa porcentagem chegaria a 68% no final do século
seguinte - dado que acompanha não apenas o crescimento da produção de açúcar, mastambém do volume do tráfico negreiro.
Esses números mostram que as autoridades coloniais e metropolitanas estavam
corretas ao registrar que os escravos de Pernambuco eram gente vinda de Angola. Ainda
que Henrique Dias pudesse comandar "Angolas, Minas e Ardras",70 a escravaria
pernambucana provinha mesmo, em grande parte, da África Central. Ao longo do século
XVII, isso significava dizer que haviam sido escravizados em Angola. Ao examinar o
contexto político e econômico do tráfico de escravos no início do século XVII, Joseph
Miller considera que
"a primeira geração de centro-africanos enviados para o nordeste do Brasilveio essencialmente das terras costeiras do sul do Kwanza, junto comalguma gente do interior de Luanda ou da área do baixo Zaire, e devem ter se juntado a índios escravizados e outros cativos da África ocidental, paraformr uma população de trabalhadores de diversas procedências. Oscentro-africanos dominaram assim a população inicial de escravos nasAméricas no início do século XVII, em números quase equivalentes nascidades hispano-americanas e nos engenhos de açúcar no Brasil."71
Em um estudo anterior, esse autor já havia mostrado que as áreas de obtenção de
escravos na África Central no final do século XVI e início do século XVII eram
relativamente restritas. O Kongo foi o primeiro grande fornecedor de escravos para os
portugueses. Ao longo do século XVII, o crescimento do reino do Ndongo e a
interferência portuguesa na política interna dos reinos africanos fizeram avançar a
fronteira da escravização em direção ao sul do Kongo e além do rio Kwanza. Luanda
tornou-se, então, o grande porto exportador de escravos. Entre 1650 e 1680 a fronteira se
69 Cf. A. J. R. Russel-Wood, Um mundo em movimento, pp. 97-98 e Maria Luiza Marcílio, "A populaçãodo Brasil colonial" in: L. Bethell (org.), América Latina colonial , vol. 2, pp. 319-322.
70 Escrevendo em 1648 para o comando da WIC, Henrique Dias afirmou que seu terço era composto “dequatro nações (...) Minas, Ardas, Angolas e Crioulos". Apud: Kalina Vanderlei Silva, "Os Henriques nasVilas Açucareiras do Estado do Brasil: Tropas de Homens Negros em Pernambuco, séculos XVII eXVIII" Estudos de História. Franca, 9, n.2 (2002).
71 Joseph C. Miller, "Central Africa during the era of the slave trade, c. 1490-1850" in: Linda M. Heywood(ed.), Central Africans and cultural transformations in the America Diaspora. Nova York, CambridgeUniversity Press, 2002, p. 27. A tradução é minha.
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Nessa região, no século XVII, havia três maneiras básicas de obter escravos. A
primeira era enviar comerciantes às feiras de escravos nas regiões fronteiras ao reino do
Kongo e Angola. Na região Mpumbu havia uma das mais importantes feiras, e talvez
dela tenha derivado o nome dado aos comerciantes especializados nesse comércio,chamados pombeiros.72 Os pumbos localizavam-se em geral nos entroncamentos das
rotas comerciais, variando de importância conforme estivessem ligados ao comércio
regional ou atlântico e as mercadorias ali negociadas. Como bem lembra Isabel Castro
Henriques, as feiras não serviam apenas para o abastecimento do tráfico atlântico, mas
destinavam-se também à comercialização de produtos para o consumo africano -
incluindo-se aí os escravos destinados às sociedades africanas e ao trabalho nas
propriedades portuguesas.73 Adriano Parreira fez um estudo detalhado do comércio na
região angolana no século XVII. Ele examina o traçado das rotas, o sistema de
pagamento de xikaku, taxas pagas nas passagens fluviais e nas fronteiras de cada
jurisdição, os impostos para mercadorias específicas, como o sal, as caravanas formadas
por escravos para o transporte das mercadorias.74 O nzimbu, uma concha obtida na costa
de Angola, e os panos de fibra vegetal, sobretudo os feitos de folhas de palmeira, eram as
mais importantes moedas de troca. Havia ainda o sal e, sobretudo, as mercadorias
importadas, seja de outras regiões da África (como no caso dos panos de ráfia de Loango,
os pintados da região entre os rios Kongo, Kuvo e Kwango, e os kundi e meio-kundi doKongo), seja da Europa, Índia e Américas. Os principais produtos, nesse caso, eram os
vinhos das Canárias e Madeira, a aguardente e o tabaco do Brasil, e os tecidos - das sedas
à panaria indiana estampada em Portugal.75
72 David Birmingham, The Portuguese conquest of Angola, Londres, Oxford University Press, 1965, p. 25.73 Isabel Castro Henriques, "A rota dos escravos. Angola e a rede do comércio negreiro" in: João Medina e
Isabel Castro Henriques (orgs.), A rota dos escravos. Angola e a rede do comércio negreiro. Lisboa,CNPCDP, 1996, p. 133.
74 Adriano Parreira, Economia e sociedade em Angola na e poca da Rainha Jinga, se culo XVII . Lisboa,
Estampa, 1990, caps. 2 e 3. Ver também W. G. L. Randles, L'ancien royaume du Congo, cap. 14.75 Os panos eram tão importantes no comércio de escravos que os escravos passaram a ser chamados peças:
um escravo adulto equivalia a uma peça de tecido importado pelo qual ele era trocado. Cf. Joseph Miller,"Slave prices in the Portuguese Southern Atlantic, 1600-1830". in: Paul Lovejoy, Africans in bondage.Studies in slavery and the slave trade. Madison, The University of Wisconsin Press, 1986, p. 44; e J. C.Miller, Way of Death, pp.66-69.
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Mapa 2 - As principais rotas comerciais na África Central no século XVII
Fonte: Adriano Parreira, Economia e sociedade em Angola na e poca da Rainha Jinga, se
culo XVII . Lisboa, Estampa, 1990, p.78
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Aos pumbos somaram-se os mercados nas cidades litorâneas e nos presídios,
núcleos fortificados de residência dos portugueses no interior. Estabelecidos em pontos
estratégicos do ponto de vista militar e comercial, os presídios marcavam ao mesmo
tempo a penetração portuguesa pelo sertão e seu domínio sobre as redes comerciais.76
Noséculo XVII, os principais presídios eram Massangano (1583/85), Muxima (1599),
Cambambe (criado no final do século XVI ou início do XVII, próximo à feira do
Ndongo), Ambaca, (1611), Pungo Andongo (estabelecido em 1671, depois da vitória
sobre o reino do Ndongo) e Caconda, (1685).77
O segundo método de obtenção de escravos eram os tributos pagos pelos sobas
Mbundo, depois de conquistados pelos portugueses. Em terceiro lugar, as guerras
forneciam muitos prisioneiros. A depender do tipo de guerra, de quem havia comandado
as investidas e de seus resultados, os prisioneiros pertenciam aos governadores
portugueses ou aos sobas. Os governadores e os comandantes que realizavam as guerras
em seu nome, ficavam com alguns prisioneiros, descontavam o quinto da Coroa e
distribuíam os restantes pelos soldados. Comerciantes particulares, negros e brancos,
acompanhavam as expedições, para comprar esses prisioneiros, gerando assim um tráfico
específico, dependente das guerras.78 Certamente havia o risco de a mercadoria ser
perdida com a derrota portuguesa. Os números são às vezes extraordinários. Birmingham
informa por exemplo que, na batalha de Ngoleme, os mercadores perderam o equivalenteao carregamento de 24 navios.79
Os dois próximos itens examinam os significados políticos dessas formas de
obtenção de escravos.
3. Guerras em Angola
Quando os portugueses chegaram à foz do Zaire, em 1483, o Kongo era um reino
relativamente forte e estruturado em províncias (como Soyo, Mbata, Wandu e Nkusu)
76 I. C. Henriques, "A rota dos escravos. Angola e a rede do comércio negreiro", pp. 139-140.77 I. C. Henriques, "A rota dos escravos. Angola e a rede do comércio negreiro", p. 140.78 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p.119.79 D. Birmingham, The Portuguese conquest of Angola, p. 25.
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governadas por linhagens locais ou por chefes escolhidos pelo rei e dele dependentes.80 A
partir do final do século XV, a penetração portuguesa na região do Kongo consolidou-se
com a conversão do mani Mvemba-a-Nzinga ao cristianismo, que se fez batizar com o
nome de Afonso I. A capital passou a se chamar São Salvador e a nobreza conguesa,além de incorporar o cristianismo, adotou nomes e costumes portugueses, como vestir
sedas e outros tecidos finos, como sinal de distinção e diferenciação social. A troca de
cartas entre monarcas, a prática de enviar infantes congueses para estudar em Portugal, as
missões evangelizadoras e as embaixadas entre os dois reinos foram comuns no século
XVI.81
As armas e a religião portuguesas, bem como suas mercadorias, ajudaram a
fortalecer o poder do rei do Kongo, assim como o comércio de escravos - principal
interesse de Portugal na região. O desenvolvimento da cultura da cana em São Tomé
fomentou o tráfico já existente desde meados do século anterior em direção a Lisboa e
outras cidades portuguesas. Por volta de 1530, o número de escravos exportados do
Kongo pelo porto de Mpinda somava entre 4 mil e 5 mil cativos por ano. 82 Nesse
período, os escravos eram obtidos por meio do pagamento dos tributos, cuja arrecadação
era mediada pelo rei do Kongo, e das guerras para manter o controle sobre os potentados
locais que, por sua vez, ocorriam na região dos Mbundo, ao sul, entre os rios Dande e
Kwanza.83 Tanto o rei de Portugal como o do Kongo insistiam que todos os escravosdeviam ser exportados a partir do porto de Mpinda.84
80 Os principais trabalhos sobre o Kongo nos séculos XVI e XVII são: W. G. L. Randles, L'ancien royaumedu Congo des origines à la fin du XIXe siècle . [1968] Paris, École Pratique des Hautes Études/Mouton,2002; John K. Thornton, The kingdom of Kongo. Civil war and transition, 1641-1718. Madison,University of Wisconsin Press, 1983; Anne Hilton, The kingdom of Kongo. Oxford, Oxford UniversityPress, 1985. Para um bom panorama em português ver Alberto da Costa e Silva, A manilha e o libambo.
A África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2002, pp. 359-405.81 Ver também Carlos Alberto Garcia, "A acção dos portugueses no antigo reino do Congo (1482-1543)" Boletim Geral do Ultramar , 513 (1968): 3-30; 515 (1968):11-36; 516(1968):77-89; Ilídio do Amaral, Oreino do Congo, os mbundu (ou ambundos), o reino dos "ngola" (ou de Angola) e a presença portuguesa, de finais do século XV a meados do século XVI . Lisboa, Ministério da Ciência e Tecnologia,1996, pp. 24-29; Adriano A. T. Parreira, The kingdom of Angola and Iberian Interference, 1483-1643.Upsala, s.e., 1985, cap. 1.
82 D. Birmingham, The Portuguese conquest of Angola, p. 783 Idem, ibidem.84 D. Birmingham, The Portuguese conquest of Angola, p. 9.
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Na época da chegada dos portugueses, o Ndongo era um pequeno reino, tributário
do rei do Kongo. Como o rei do Ndongo tinha o título de ngola, os portugueses
chamaram a região de Angola. A baía de Luanda oferecia boas condições para os navios
e o interesse na obtenção de escravos foi aos poucos promovendo incursões diretas no Ndongo com a finalidade de obter escravos. A região litorânea de Angola passou a ser
freqüentada por comerciantes que queriam escapar ao controle de Portugal e do Kongo,
especialmente por aqueles que comerciavam com a ilha de São Tomé, onde havia uma
produção açucareira significativa e, portanto, uma demanda crescente por escravos.85
A primeira expedição oficial em território angolano foi realizada em 1520,
embora a conquista da região pelos portugueses só tenha se efetivado com as expedições
de Paulo Dias de Novais, em 1560 e 1575. Ao avançar em direção ao sul do reino do
Kongo no final do século XVI, os portugueses imaginavam encontrar minas de prata e
evangelizar novos povos, contudo sabiam que a grande riqueza adviria do fornecimento
de escravos para as plantações de cana em São Tomé e no Brasil e para as possessões
espanholas na América.86
Em 1568 e 1574, o Kongo foi invadido por grupos Imbangala, que chegaram a
expulsar portugueses e congoleses de São Salvador. A retomada do reino, em 1571-74,
ocorreu por força das armas portuguesas, aumentando o incentivo para a conquista da
região ao sul, onde esperavam conseguir manter um domínio mais estável. Portugalconcedeu as terras na região entre o sul do Kongo e o rio Kwanza a Paulo Dias de
Novais, para que ele, como governador vitalício, ali instalasse uma nova colônia. Novais
tentou estabelecer uma colonização branca na região de Angola, enfrentando a
concorrência dos comerciantes de São Tomé que traficavam ilegalmente na região. Nessa
época, o reino do Ndongo já havia se fortalecido, sobretudo a partir das relações que
vinha mantendo com o tráfico atlântico. Era vassalo do reino do Kongo, mas tinha sua
própria política em relação a Portugal e aos comerciantes que apareciam no litoral de
Luanda, bem como com os potentados da região.
85 Sobre o interesse português pela região de Angola ver Ilídio do Amaral, O reino do Congo, pp.149-192;e também A. A. T. Parreira, The kingdom of Angola and Iberian Interference, 1483-1643, cap. 2.
86 Sobre o período em que Angola foi governada por Paulo Dias de Novais, vide Ilídio do Amaral, Oconsulado de Paulo Dias de Novais. Angola no último quartel do século XVI e primeiro do século XVII .Lisboa, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 2000. Para um panorama geral sobre o avanço
português em Angola ver A. C. Silva, A manilha e o libambo, pp.407-450.
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O tráfico se desenvolveu com intensidade crescente na região de Angola,
sobretudo a partir de 1579, quando Novais investiu com suas tropas contra o Ndongo.87
Ao contrário do que ocorria no Kongo, onde os portugueses combatiam grupos
dissidentes com o apoio dos poderes locais, em Angola os portugueses lutavam aomesmo tempo contra o Ndongo e os Imbangala, em especial na região de Kasanje.88 As
posições portuguesas dependiam das guerras de conquista: eram elas que permeavam as
relações com os reinos e sobas locais, que permitiam o controle sobre as redes comerciais
que forneciam lucros por meio da cobrança de impostos e do próprio comércio de
escravos e marfim (os principais produtos). Elas constituíam, também, as formas mais
rápidas de enriquecimento, pois ofereciam ocasiões propícias para o comércio particular
e para o roubo. A tensão entre defender e controlar as redes comerciais ou guerrear
envolvia não apenas os interesses da Coroa, como incluía ainda aqueles dos
governadores, dos agentes do tráfico e dos sobas.
Com a união das coroas em 1580, a morte de Dias Novais em 1589 e a derrota
fragorosa em Ngoleme em 1590, a coroa espanhola avaliou a situação e tentou alterar sua
política, para reconquistar Angola, promover mais uma vez a colonização e investir na
busca de minas de prata e na agricultura. Ao invés de contar com os particulares, que se
assenhoreavam dos sobados conquistados, e com o apoio dos jesuítas - como na época de
Novais -, a Coroa chamou para si a relação com os sobas locais. Até 1605, essasmudanças acompanharam as tentativas, afinal frustradas, de controlar as minas de sal de
Kisama e de achar minas de prata em Cambambe. As excursões a Kisama e a Cambambe
foram acompanhadas por novas guerras, que geravam escravos, mas não o domínio
almejado sobre a região. A partir de 1605 ficou claro que era o tráfico e não as minas a
base da prosperidade dos portugueses na região.89 O domínio sobre ela e sobre seus
habitantes devia articular-se de forma a poder garantir que o tráfico se desenvolvesse
conforme os interesses de todos. As guerras tornaram-se parte importante desse processo.
Havia vários tipos de guerras, movidas por diversos motivos. No período entre
1607 e 1660 elas derivaram sobretudo da crise dinástica do reino do Kongo e das tensões
87 D. Birmingham, The Portuguese conquest of Angola, p. 13.88 D. Birmingham, The Portuguese conquest of Angola, p.19.89 D. Birmingham, The Portuguese conquest of Angola, p. 24.
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entre os portugueses e o reino do Ndongo, constituindo a principal fonte dos escravos
traficados. Como bem observam Linda Heywood e John Thornton, essas não eram
guerras "étnicas", mas políticas, originadas da diferença de interesses entre portugueses e
grupos políticos diversos nos reinos do Kongo e Mbundo. De um lado, os portuguesesqueriam obter escravos para enviá-los para o Brasil e para a América espanhola (e assim
cumprir o asiento). No reino do Ndongo, as linhagens lutavam pelo controle do reino e
usavam ora os portugueses ora os Imbangala para se fortalecer. A luta entre os que
queriam as alianças ou manter a independência levou à escravização de muitos Mbundo,
bem como de habitantes do Kongo ou de suas províncias, que se aliaram algumas vezes
ao Ndongo contra os portugueses. No caso do reino do Kongo, as questões dinásticas
levavam a guerras entre os postulantes ao trono, que realizavam alianças ora com grupos
políticos africanos ora com os portugueses, e terminavam por escravizar também alguns
habitantes do Kongo.
A intensidade e a freqüência das guerras podem sugerir que elas eram feitas a
esmo, conforme os desígnios e interesses mais imediatos. Ao contrário. Havia limites
impostos pela Coroa e as investidas só podiam ser realizadas depois de declaradas justas
pelo voto de uma Junta composta pelo bispo, ouvidor geral, provedor da Fazenda e
ministros. Apesar dessas regras, muitos governadores ordenaram guerras sem aprovação
prévia. Mesmo as guerras justas davam margem a várias apropriações privadas,consideradas ilegais. Dentre os motivos que indispuseram o governador Tristão da Cunha
(1666-1667) e a população de Luanda, numa das várias "alterações ultramarinas" que
terminaram com a expulsão das autoridades locais,90 estava, por exemplo, uma guerra
contra o Libolo, que tivera o objetivo explícito de capturar escravos.91
Linda Heywood e John Thornton realizaram um detalhado estudo das guerras
realizadas entre 1607 e 1660, conseguindo determinar os lugares em que elas ocorreram,
90 Ver, a respeito, Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, "O império em apuros. Notas para o estudo dasalterações ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII e XVIII" in:Júnia Ferreira Furtado (org.), Diálogos oceânicos. Minas Gerais e as novas abordagens para uma históriado império ultramarino português. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2001, pp. 197-254.
91 Antonio Luís Alves Ferronha, "Angola. A revolta de Luanda de 1667 e a expulsão do governador geralTristão da Cunha" in: Júnia Ferreira Furtado (org.), Diálogos Oceânicos. Minas Gerais e as novasabordagens para uma história do império ultramarino português . Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001,
p. 261.
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quem era escravizado e quem os escravizava.92 Acompanho esses autores nas próximas
páginas.
Depois das guerras em Kisama, na virada do século XVI para o XVII, a Coroa
determinou ao novo governador, Manuel Pereira Forjaz, em 1607, que cuidasse deestabelecer a paz com os sobas e impulsionasse a agricultura, de modo a fazer crescer as
taxas e manter a paz nas conquistas. A estratégia previa a fixação dos portugueses em
pontos específicos, a fim de evitar as guerras privadas para capturar escravos e manter
controle sobre o comércio e sobre a costa do Kongo e Loango, para limitar a interferência
holandesa que começava a se fazer presente naquela região. A partir de então, os
governadores ficaram proibidos de realizar qualquer ação militar que não fosse para
defender Luanda e os presídios.93
Interessado no comércio, o governador Manuel Pereira Forjaz estabeleceu uma
extensa rede que ligava os negociantes de Lisboa, das ilhas do Atlântico, do Brasil, das
Índias de Castela e Buenos Aires com os portos centro-africanos, que por sua vez podiam
ser abastecidos por caravanas vindas até mesmo de Mpumbu, a nordeste do Kongo, e
Songo, ao sul do Ndongo, e Benguela:94 os tecidos e roupas, trigo, vinhos das Canárias,
cavalos e produtos de luxo eram trocados por escravos remetidos para o Brasil ou Índias
de Castela e o resultado das vendas voltava para a Europa na forma de letras de
créditos.95 Nesse tempo, os escravos comerciados vinham de longe, do leste (atingindotalvez até Moçambique), e do sul, em Benguela; em alguns anos, chegavam a 10 ou 13
mil os embarcados de Angola.96
Parecia ser um sistema eficiente, mas não do ponto de vista da Coroa, pois os
mercadores achavam muitos meios de burlar os impostos. Havia também a necessidade
de controlar a recalcitrância dos sobas, que muitas vezes escapavam do domínio
português ou se negavam a abrir as rotas para o tráfico ou dele participar. As guerras
92 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, especialmente cap. 3. Observo,entretanto, que este estudo não trata dos escravos enviados para o Brasil, mas daqueles que foramremetidos para as colônias inglesas e holandesas nas Américas. Contudo, os processos de escravizaçãona África Central eram os mesmos, controlados pelos portugueses.
93 B. Heintze, "Angola nas garras do tráfico de escravos", p. 13.94 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 110 e 11395 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p.11396 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 113
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do Kongo ao norte de Luanda, incluindo Kasanze, Sonsa e pontos de travessia do rio
Bengo.
Em meio a essas guerras, nem sempre os Imbangala nem sempre aliavam-se aos
portugueses: realizavam ataques por conta própria ou se juntavam a facções contrárias aeles. E, claro, faziam prisioneiros, vendidos aos milhares para o tráfico atlântico. Havia
ainda colonos que se aproveitavam para realizar guerras particulares ou simples
pilhagens, a fim de angariar escravos que acabavam enviados para o mesmo destino.
Assim, as guerras e o caos delas decorrente faziam com que a zona de fornecimento de
escravos fosse mais restrita do que aquela atingida pelas redes comerciais que
funcionavam até 1611. A escravização, agora, ocorria nas áreas de guerra: no interior do
reino do Ndongo e na região ao sul do reino do Kongo. 102
No período entre 1621 e 1641, o planalto do Ndongo e em seguida o vale do rio
Kwango continuaram a ser o cenário de guerras destinadas a adquirir minas, terras e
escravos, ou a submeter os sobas.103 Para se defender dos ataques portugueses e
Imbangala, Ngola Mbandi, rei do Ndongo, tentou negociar com os portugueses, sem
sucesso. Um tratado que previa a retirada da fortaleza de Ambaca das terras no Ngola, a
expulsão dos Imbangala da região, o batismo de vários membros da família real e a
retomada do comércio com os portugueses chegou a ser negociado, com a mediação de
Njinga, irmã mais velha do rei.104 O acordo entretanto nunca foi cumprido e as tentativasde apaziguar a região foram retomadas após a morte de Ngola Mbandi, com a nomeação
de sucessores ligados à Coroa portuguesa. As manobras políticas e diplomáticas
acompanharam o restabelecimento das feiras nas regiões próximas a Mbwila e mais ao
102 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 123.103 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, pp. 123-124104 Foi durante essas negociações que Njinga sentou-se sobre as costas de uma escrava, para mostrar-se
igual aos portugueses. Os estudiosos divergem quanto às fontes e significados do gesto. Ver, a respeito,L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 124-126; e Luís da CâmaraCascudo, "A rainha Jinga no Brasil" Made in Africa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, pp. 25-32. Para uma abordagem mais panorâmica sobre a trajetória de Njinga ver Roy Glasgow, Nzinga. Resistência africana à investida do colonialismo português em Angola, 1582-1663. (trad.) São Paulo,Perspectiva, 1982; e Selma Pantoja, Nzinga Mbandi. Mulher, guerra e escravidão. Brasília, Thesaurus,2000
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sul, na direção do rio Zenza e de Ambaca, onde se comerciavam escravos vindos das
terras mais a leste.105
A oposição de Njinga à intervenção portuguesa na sucessão do Ndongo abriu
novas oportunidades para a guerra, que envolveu facções, sobas e famílias não reinantesdo Ndongo, com grupos de Imbangala lutando de vários lados, em batalhas na região de
Kabasa, Mpungo Andongo, Kindonga e Tunda.106 Njinga venceu algumas delas,
manipulou várias forças políticas e militares, aliou-se aos Imbagala, conseguiu
estabelecer sua capital durante algum tempo nas ilhas de Kindonga e dali atacou
Matamba, onde finalmente estabeleceu sua própria capital, que ela muitas vezes chamava
de kilombo, reforçando sua aliança com os Imbangala.107 Foi assim que nasceu o reino de
Matamba, que tanto trabalho deu aos portugueses.
Njinga tentou ainda continuar as negociações com os portugueses, sem sucesso.
Durante todo esse período, o coração do reino do Ndongo continuou a ser uma das
grandes fontes de escravos para o comércio em direção às Américas.108 Apenas no vale
do Kwango, mais próximo de Luanda, o desenvolvimento de uma administração e
economia mais estáveis levou, aos poucos, à diminuição do caos e das guerras.109
Nesse mesmo período, no Kongo, a morte do rei Álvaro II em 1614 desencadeou
uma guerra entre os membros da família real que reivindicavam o trono e abriu novas
oportunidades de domínio político e obtenção de escravos para os colonizadores. Asguerras começaram com o ataque português a Kasanze, vassalo do reino do Kongo e
vizinho de Luanda, com muitos prisioneiros enviados ao Brasil.110 Em seguida foi a vez
de atacar províncias de Mbamba, porém os portugueses foram vencidos. As invasões
chegaram a ser questionadas em Roma, houve devolução de alguns prisioneiros,111 mas
nada além disso. As guerras civis no reino do Kongo só terminaram com a ascensão de
Garcia II ao trono em 1641. Foi nesse contexto que a presença holandesa se tornou mais
105 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, pp. 127-128.106 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, pp. 127-128.107 Cf,, por exemplo, a carta de Njinga ao governador de Angola de 13 de dezembro de 1655. MMM, vol.
II, pp. 524-28.108 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 127.109 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p.124.110 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, pp. 136-137.111 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 139-140.
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agressiva (em função das rivalidades com a Espanha a partir de 1621), oferecendo uma
alternativa para novas alianças contra os portugueses. A aproximação entre o reino do
Kongo e os holandeses significou que a área de escravização mais uma vez mudou do
interior para a zona mais próxima do litoral. Os traficantes portugueses puderam comprar milhares de congoleses cristãos de Mbamba, São Salvador, Nsundi e Soyo.112 Havia
ainda ações militares e comerciais na colônia de Benguela, ao sul, e alguns escravos eram
exportados de longe, de Kakongo e Loango, que forneciam de quando em vez cativos
para o comércio atlântico.113
A invasão holandesa de Luanda (1641-1648) e a aliança com o reino do Kongo,
bem como a tentativa de engajar Njinga contra os portugueses, mudaram o cenário das
guerras depois de 1641.114 O interesse holandês em controlar as redes do tráfico por meio
de alianças com o rei do Kongo e o conde do Soyo trouxe novas possibilidades para os
que estavam sob domínio português. Explorando a insurgência local, os holandeses
enviaram expedições para a região ao longo dos rios Bengo e Kwanza. Os mercadores
luso-africanos do Kongo foram perseguidos (algumas vezes expulsos das vilas, com seus
bens e escravos confiscados115) e as posições portuguesas foram atacadas, embora
algumas ofensivas tenham sido acompanhadas por tentativas de negociação, iniciadas por
um ou outro lado.116 Durante esse período, o rei do Kongo enfrentou também rivalidades
internas. Na região de Mbamba e Mpenda havia sobas descontentes e o Soyo,mergulhado em crises sucessórias, resistia ao domínio do Kongo - em guerras que
forneceram mais prisioneiros e escravos.117 Njinga aproveitou para fazer suas próprias
alianças, na tentativa de retomar o reino do Ndongo dos portugueses, mas conseguiu
apenas expandir seu domínio sobre Sengas de Cavanga.118
Enquanto isso, os portugueses, ajudados por seus aliados Imbangala, investiram
contra os rebeldes na região dos Dembos. Portugueses e holandeses chegaram a um
acordo em 1643, no intuito de estabelecer zonas de domínio territorial e redes
112 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 142.113 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, pp. 143-144.114 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 145.115 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 147.116 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 147.117 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, pp. 152-153.118 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, pp. 146-148.
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comerciais.119 O Kongo continuou a resistir aos portugueses e procurou aliados africanos,
Njinga, em especial.120 Com ajuda de tropas enviadas do Brasil, incluindo parte do terço
dos Henriques, os portugueses enfrentaram Njinga, chegando a invadir sua capital em
Cavanga.121
Em 1643 uma grande aliança entre holandeses, congoleses, soldados dossobas leais aos holandeses e arqueiros de Njinga derrotou os portugueses, destruindo 200
vilas e propriedades à volta de Masangano, Muxim e Cambambe.122 Em 1648, com o
apoio das tropas comandadas por Salvador Correia de Sá, vindas do Brasil, os
portugueses conseguiram retomar Luanda e restabelecer alianças com vários sobas à
volta da capital, no Bengo, libertando Masangano e Muxima, além de voltar a controlar o
vale do Kwanza.123
Reconquistada a capital, foi a vez de recuperar o domínio sobre o Libolo, ao sul, e
na região do Dembo, ao norte, em guerras que resultaram na reafirmação dos laços de
vassalagem dos sobas e também na obtenção de escravos.124 O debate entre estabelecer
rotas comerciais e empreender guerras ofensivas voltou à tona.125 De qualquer modo, o
abastecimento de escravos era garantido pelas guerras entre os africanos. Njinga, em
permanente estado de alerta, atacou a partir de seu kilombo em Matamba vários de seus
vizinhos, incluindo Kasanje e regiões próximas a Mbwila. Kasanje, por sua vez,
estabeleceu seu kilombo em Ngangela e dali investiu contra Matamba, Lubolo, Bembe,
Haku, Songo, Yaka, abastecendo o mercado de Luanda com mais e mais escravos.126 Em 1656, o governador Luís Martins de Souza Chichorro conseguiu fazer novo
acordo com Njinga. Ela se comprometeu a largar os costumes Imbangala que havia
adquirido desde 1626-1629, voltou a ser cristã, e o reino de Matamba passou a ser
reconhecido pelos portugueses, que assim garantiram acesso aos escravos que pudesse
119 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 149.120 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 148.121 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 150. Sobre o envio das tropas
de Henrique Dias para Angola, vide L. F. Alencastro, O trato dos viventes, pp. 228 e 259; Hebe Mattos,"Henrique Dias: expansão e limites da justiça distributiva no Império português" in: Ronaldo Vainfas,Georgina Silva dos Santos e Guilherme Pereira das Neves (orgs.), Retratos do Império. Niterói, EdUFF,2006, pp. 35-36.
122 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 151.123 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 152.124 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 154.125 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, pp. 154-155.126 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 156
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portuguesas. Essa batalha marcou o fim do Ndongo como reino independente, como
vimos.
Em Matamba, a morte de Njinga reabriu os enfrentamentos com os portugueses,
que acabaram por perder as posições conquistadas. Enquanto isso, Kasanje se fortalecia,tornando-se um intermediário poderoso no tráfico com a região do Lunda, que
despontava como um grande fornecedor de cativos. No início da década de 1680, o reino
de Kasanje envolveu-se em guerras sucessórias, das quais participaram também
Matamba e os portugueses. De novo, as batalhas implicaram perdas para os comerciantes
de Luanda e Luís Lopes e Siqueira, que havia participado das batalhas de Mbwila em
1665 e Mpungo Andongo em 1671, foi enviado para conter os rebeldes de Kasanje e
Matamba. Dessa vez ele foi vencido. O tratado de paz com Matamba, firmado em 1683,
previa a devolução aos portugueses dos escravos que haviam fugido, o pagamento de
indenização em escravos, o abandono de qualquer pretensão em relação a Kasanje e a
exclusividade do comércio de escravos com os portugueses.131 Como observa
Birmingham, essa última cláusula é uma novidade, reveladora dos novos problemas a
serem enfrentados na região: a concorrência com os comerciantes ligados aos interesses
holandeses e ingleses.132
Na verdade, apenas o registro escrito da cláusula era novo. Toda a história das
guerras na África Central se desenvolveu, desde o início do século XVII, em um contextomaior de conflitos envolvendo diversas nações européias.133 O mais importante dentre
eles foi a guerra dos Trinta Anos, que colocou em confronto os holandeses e os estados
da península Ibérica, unidos sob a mesma coroa entre 1580 e 1640. Indo além do teatro
europeu, os conflitos extravasaram pelos territórios ultramarinos e adicionaram novos
ingredientes às guerras que escravizavam tantos homens naquela parte do continente
africano. Por isso, durante todo o tempo, os europeus interessados no tráfico negreiro
precisaram controlar os sobas da região, por meio das guerras e dos acordos de paz, e
131 D. Birmingham, The Portuguese conquest of Angola, p. 41.132 D. Birmingham, The Portuguese conquest of Angola, p. 41.133 B. Heintze, "Angola nas garras do tráfico de escravos", p. 14. Para uma visão mais ampla das
rivalidades européias e sua importância na concorrência colonial, vide Fernando Antonio Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808)" . São Paulo, Hucitec, 1979,especialmente cap. 1.
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evitar que eles se aliassem ou comerciassem com seus rivais. Os sobas, por sua vez,
exploravam essas rivalidades européias em seu benefício.
O tráfico negreiro estava imbricado na história da presença dos portugueses na
África Central, aqui narrada de um ponto de vista político e militar. A profusão dedetalhes torna patente o fato de as guerras terem sido o principal instrumento para
obtenção de escravos, tanto para os colonos portugueses quanto para os potentados
africanos. O poder militar português foi fundamental para submeter os sobas e deles
angariar tributos - pagos em grande parte com prisioneiros. O domínio político sobre os
reinos centro-africanos e sobados garantia ainda privilégios para os interesses
portugueses nas feiras e rotas comerciais. Sem guerras e acordos de vassalagem, os
navios do tráfico que zarpavam para a América não podiam ser abastecidos. Havia,
portanto, uma sintaxe que conjugava guerra e paz, e articulava autoridades portuguesas e
linhagens locais, do Kongo, Ndongo, Matamba e Kasanje.
4. Sobas, vassalos e kijikos
Como deixa evidente o episódio dos membros sobreviventes da família real do
Ndongo desterrados depois da batalha de Mpungo Andongo, nem todos os prisioneiros
das guerras eram enviados para o tráfico Atlântico. Os portugueses reconheciam haver diferenças sociais e políticas entre os centro-africanos e não deixavam de levá-las em
conta ao tratar com os poderes locais na região do Kongo e de Angola e ao operar os
mecanismos que produziam escravos para o tráfico negreiro.
Este aspecto nem sempre tem sido considerado pela bibliografia, que tende a
discutir os números do tráfico sem contemplar a origem dos escravos ou, quando o faz,
privilegia características étnicas e culturais em detrimento de componentes sociais e
políticos. A sintaxe da guerra não era entretanto praticada do mesmo modo por todas as
pessoas envolvidas: nem todos os centro-africanos eram ou podiam ser escravizados.
Essa constatação nos leva a examinar mais de perto as diferenças entre os centro-
africanos articulados à guerra e ao comércio de escravos.
Nos reinos do Kongo e Angola, o poder estava assentado em linhagens
descendentes de um ancestral comum (muitas vezes mítico) ou por uma divindade. O
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domínio sobre as pessoas e o território era exercido por meio de uma rede hierárquica de
linhagens aparentadas, que controlava seus membros e os escravos pertencentes a elas,
usados como criados, soldados e trabalhadores. Ao mesmo tempo político e religioso, o
controle das linhagens combinava-se à capacidade de obter tributos (cobrados em produtos, serviços, incluindo os militares, e escravos). Por meio desse sistema
corporativo e hierarquizado, a riqueza, medida em produtos e escravos, circulava e podia
ser acumulada. A cobrança de taxas e tributos e as guerras - originadas por crises
dinásticas ou por rivalidades políticas - eram as formas mais freqüentes de crescimento
econômico e aumento de poder político.134
No Kongo, as linhagens nobres que cercavam o rei e as instaladas nas províncias,
relacionadas entre si por meio do casamento, mantinham relações comerciais e políticas
controladas a partir da capital, mbanza Kongo, batizada de São Salvador pelos
portugueses. A nobreza estava em geral sediada nas cidades (mbanza), que dominavam
um conjunto de aldeias (lubata), cada uma com seus respectivos chefes locais (nkulutu) e
líderes religiosos (kitomi). A unidade do reino mantinha-se pelo controle centralizado no
rei (mani ou ntotela) do Kongo, que governava os chefes locais, tanto os ligados a ele
quanto os de províncias relativamente independentes com as quais mantinha relações de
soberania e vassalagem. Além dos nobres, a população se dividia em livres e escravos,
adquiridos nas guerras de conquista. Os prisioneiros podiam ser integrados às linhagenscomo dependentes ou como escravos, que possuíam certo grau de liberdade e podiam
enriquecer ou se libertar.135
No reino do Ndongo, o rei ou ngola governava linhagens matrilineares que
possuíam posições titulares definidas como relações de parentesco (tios e sobrinhos, pais
e filhos, etc.). As linhagens instalavam-se em aldeias, governadas em termos políticos e
religiosos por um grupo de homens que ocupavam as posições titulares (ngundu) e
controlavam o acesso à terra e aos meios naturais. O principal posto era ocupado com
freqüência pelo mais idoso, chamado soba, que governava a linhagem assistido por um
conselho de anciãos (makota). A população se dividia entre livres (chamados morinda) e
134 John K. Thornton, A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. (trad.) Rio deJaneiro, Elsevier, 2004, pp. 127- 137.
135 J. K. Thornton, The kingdom of Kongo, pp.15-27.
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Do ponto de vista institucional, era o nome de uma sociedade de iniciação de origem
Ovimbundo, apropriada pelos Imbangala, cujos rituais excluíam as mulheres e crianças,
implicavam sacrifícios humanos e práticas divinatórias e possuíam um conjunto de
proibições (kijila). Como forma de organizar e congregar guerreiros, transformou-se emuma das mais importantes instituições políticas centro-africanas no século XVII.
Fundindo-se às linhagens locais, formaram, a partir de meados do século XVII, novos
estados - Matamba e Kasanje entre eles.140
Os portugueses conectaram-se a essa estrutura política, como parceiros políticos e
militares, interessados que estavam em obter escravos, por meio do controle indireto das
rotas comerciais e dos tributos. No caso do Kongo, a presença portuguesa foi garantida
pela associação direta com o rei, que conseguiu manter sua relativa independência. As
cerimônias dos tratados e acordos entre os soberanos do Kongo e de Portugal misturavam
elementos africanos e europeus, os comerciantes portugueses e padres tinham salvo
conduto e influíam na política congolesa, mas não havia governadores do Kongo
nomeados por Lisboa.
Angola, ao contrário, foi ocupada militarmente. A região do reino do Ndongo, um
reino tributário do Kongo, foi conquistada por tropas portuguesas e, a partir de 1575,
tornou-se uma capitania com um governador nomeado pelo rei. A partir de 1607, a Coroa
retomou para si o governo, passando a nomear a cada três anos um capitão-mor egovernador da "conquista e reino de Angola e das mais províncias dela".141 Tornou-se,
assim, um poder concorrente em relação aos demais reinos e chefes locais, lutando para
impor a eles laços de vassalagem. Assim como os chefes africanos, buscava alianças com
o poder militar oferecido pelos bandos Imbangala. Conjugava guerra e alianças para
fortalecer seu domínio sobre a região, seus habitantes e riquezas.
quilombos, ocilombo..." Mensagem. Revisa Angolana de Cultura, 4 (1989): 5-19. Ver tambémKabengele Munanga, "Origem e histórico do quilombo na África". Revista USP , 28 (1995/96): 56-63.
140 J. C. Miller, Poder político e parentesco, caps. 8; e A. Parreira, Economia e sociedade em Angola, pp.154-155
141 Ver, por exemplo, a Carta patente do governador do. Manuel Pereira, de 2 de agosto de 1606. Alfredode Albuquerque Felner, Angola. Apontamentos sobre a ocupação e início do estabelecimento dos portugueses no Congo, Angola e Benguela extraídos de documentos históricos. Coimbra, Imprensa daUniversidade, 1933, pp. 426-427.
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relação desigual e as cláusulas com sanções aplicavam-se em geral aos vassalos e não aos
portugueses. A negociação envolvia os representantes da Coroa portuguesa
(governadores, capitães mores dos presídios, ou os chefes dos concelhos ou distritos) e os
sobas ou seus embaixadores. Os rituais europeus mesclavam-se aos costumes africanosenvolvendo rituais específicos, como a troca de presentes, etiquetas formais, etc.
Assim aconteceu com o duque de Hoando, uma província que foi "resgatada" do
domínio do rei do Kongo quando os portugueses venceram dom Antonio na batalha de
Mbwila, em outubro de 1665. Em janeiro do ano seguinte, o duque e seus makotas
juraram fidelidade ao rei de Portugal e prometeram entregar minas de metal ao invés do
tributo anual, prestar auxílio militar em caso de necessidade, não guerrear contra os
outros vassalos de Portugal, dar passagem franca e desimpedida às tropas e caravanas
comerciais ligadas aos portugueses, entregar os escravos fugidos que estivessem em suas
terras e senhorios, renovar os laços de vassalagem sempre que houvesse um novo
governador ou que um novo duque fosse eleito, além de colaborar na propagação da
religião cristã em suas terras. Em troca, o rei português comprometeu-se a defender e
amparar o duque nos conflitos com seus rivais e respeitar todos os seus foros e
privilégios.146 Estava implícito que o duque, seus nobres e súditos não seriam
escravizados pelos colonos portugueses.
Em certas ocasiões, sobretudo quando envolviam os governantes dos grandesreinos centro-africanos e não apenas sobas locais, as negociações podiam durar anos e se
realizavam por meio de diversas embaixadas, que atuavam conforme o desenrolar das
guerras e o equilíbrio de poder na região. O melhor exemplo é, sem dúvida, as várias
tentativas de acordo entre os governadores portugueses e Njinga, tantas vezes
mencionadas pela bibliografia e tratadas de modo breve no item anterior.
Nesse caso, os primeiro contatos ocorreram em 1621, quando Njinga liderou,
como irmã mais velha de Ngola Mbandi, a embaixada enviada pelo rei do Ndongo a
Luanda. No decorrer dos anos, enquanto o Ndongo foi incorporado ao domínio português
por outras vias, Njinga se rebelou e se constituiu como um poder autônomo, depois de
aliar-se aos Imbangala. O acordo de paz entre ela e o governador Luís Martins de Souza
146 Vide "Capítulos do juramento do duque de Hoando, de 11 de janeiro de 1666". MMA, vol. XIII, pp. 3-5, doc. 1.
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Chichorro, finalmente acertado em 1656, envolveu sua reconversão ao catolicismo, o
abandono dos costumes Imbangala adotados desde a aliança com Kalundula, bem como
o compromisso de que ela e seus vassalos viveriam dali em diante em paz, "quieta e
amiga de amigos e inimiga de inimigos" dos portugueses. Sua irmã dona Bárbara, quehavia ficado refém dos portugueses em Luanda desde a década de 1620, foi trocada por
130 escravos. Ao assinar o acordo, em 12 de outubro de 1656, Njinga possuía sua própria
corte, que participou da cerimônia realizada em Matamba, na qual estavam presentes
também os delegados do governador português. Lá, o texto foi lido em kimbundo; em
Luanda, foi depois registrado em português no cartório da cidade.147
Se houvesse quebra das cláusulas que regiam a vassalagem, o vassalo era
considerado "rebelde" e contra ele as guerras podiam se justificar como punição ou como
demonstrações de força para trazê-lo de volta à antiga submissão. Beatrix Heintze
observa que, num certo sentido, os tratados de vassalagem correspondiam, na prática, a
acordos de capitulação e sujeição. A guerra, que em no mais das vezes precedia a
cerimônia de vassalagem, tendia a reforçar essa avaliação. Por outro lado, a aliança com
os portugueses fortalecia o poder dos chefes centro-africanos e das linhagens a eles
ligadas, e lhes garantia certa autonomia.148 Em alguns casos, o fato de serem escritos
permitia que fossem usados para acionar mecanismos institucionais portugueses em
busca de fazer valer reivindicações e direitos.149 Em algumas lutas pela sucessão, por exemplo, uma das facções podia recorrer aos portugueses para denunciar o rival por
haver quebrado o acordo ou ganhar a simpatia ao oferecer presentes e escravos. As
ocasiões de renovação do governo em Luanda muitas vezes ofereciam oportunidades
para esse tipo de manobras e intrigas, que eventualmente chegavam a ser discutidas pelo
Conselho Ultramarino.150
Assim, a tradição política centro-africana que conjugava guerras e acordos de paz
acontecia em kimbundo e português, e interessava aos falantes das duas línguas.
Guerras, campanhas punitivas ou defensivas, acordos políticos e alianças militares
147 "Traslado do auto de pazes da Rainha Jinga com o governador de Angola (15 de janeiro de 1657)",MMA, XII, fls. 89-93, doc. 35.
148 B. Heintze, "Luso-African feudalism in Angola?", pp. 129-131.149 C. M. Santos, "Escrever o poder.", especialmente pp. 89-92.150 Beatrz Heintze, "Ngola a Mwiza: um sobado angolano sob domínio português no século XVII". Revista
Internacional de Estudos Africanos, 8/9 (1988): 221-233.
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estavam imbricados e promoviam a produção e a circulação de escravos. A ação militar
não era possível sem o domínio político e vice-versa: ela legitimava e assegurava os
acordos de vassalagem, ao mesmo tempo em que fazia parte de suas cláusulas. Os
tributos estipulados pelos capítulos ajustados com os sobas forneciam escravos que, por sua vez, eram obtidos por meio das guerras ou das feiras - que só funcionavam se
abastecidas de prisioneiros e se as caravanas atravessassem os sertões.
Essa sintaxe política, que permitia e mantinha o tráfico, implicava diferenciar os
centro-africanos. As fronteiras da escravização, para retomar a expressão de Joseph
Miller, eram circunscritas do ponto de vista geográfico e também social. Os escravos que
foram para o Brasil - e para Pernambuco - não provinham apenas de Angola:
escravizados conforme a articulação entre forças militares e políticas dessa região,
pertenciam a grupos sociais específicos.
Praticada por centro-africanos e colonos portugueses, essa sintaxe possuía regras
que deviam ser observadas. As guerras não podiam ser feitas a esmo - tinham que ser
reconhecidas como legítimas. Não se trata, porém, de uma concepção de "guerra justa",
restrita ao universo português e aos colonizadores.151 O tema é interessante e merece ser
explorado com mais detalhe, pois revela como as diferenças sociais e jurídicas faziam
parte dos mecanismos das relações entre os portugueses e os reinos centro-africanos e
como seus elementos podiam ser acionados com sentidos diversos pelas várias partes emconfronto.
Durante as campanhas contra o Ndongo empreendidas pelo governador Mendes
de Vasconcelos com apoio das tropas Imbangala, foram feitos vários prisioneiros, depois
enviados para o tráfico atlântico ou mantidos como kijikos para trabalhar nas
propriedades dos portugueses. A realização da guerra foi contestada e Vasconcelos
chegou a ser acusado de capturar muita "gente inocente", indo contra as leis de Deus e do
rei português, pelo bispo Manoel Batista Soares, em carta dirigida a Lisboa, em 1619.152
A devolução dos sobas e dos prisioneiros ilegalmente escravizados foi um dos pontos das
151 Um bom exemplo é o capítulo 16 do regimento da secretaria de Angola, que determinou que um oficialdeveria cuidar das causas do mocamos - ou seja, das demandas dos africanos que se achassemindevidamente escravizados. Cf. Decreto de 28 de fevereiro de 1688. AHU, Angola, Cx. 13 doc. 59.Apud: M. F. S. Gouvêa e M. N. Santos, "Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas,séculos XVII e XVIII", pp. 103 e105.
152 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 119.
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negociações entre Njinga e João Correia de Souza, em 1621.153 Como o acordo nuca foi
cumprido, não houve nenhuma devolução de prisioneiros; as fontes registram no entanto
que muitos desses kijikos fugiram, juntando-se às fileiras de Njinga.154 Considerados
livres por Njinga e escravos fugidos pelo governo de Angola,155
ficaram espremidosentre as forças que se batiam pelo controle da região.
Vencida a guerra contra Kasanze, em 1622, o mesmo governador Correia de
Souza trapaceou ao chamar os sobas e potentados locais vencidos para um acordo. Ao
invés de realizar a cerimônia de vassalagem, porém, acusou-os de rebeldes e prendeu 26
deles que, acompanhados por outros mais de mil cativos, foram enviados para o
governador geral do Brasil, com a recomendação de que se lhes dessem terras "onde
pudessem ficar juntos ou separados".156 Mais da metade morreu na travessia do Atlântico
ou na chegada ao Brasil.157 Em 1623, quando o rei do Kongo denunciou ao papa as
invasões feitas por Correia de Souza e os Imbangala, o rei Filipe IV chegou a prometer
investigações sobre o episódio. Escreveu ao governador do Brasil e ordenou a devolução
dos mais de mil cristãos levados de Kasanze para o Brasil.158 Em Angola, o bispo Simão
de Mascarenhas, que substituíra interinamente Correia de Souza, devolveu prisioneiros
que tinham permanecido na região, repatriando um primo do duque de Mbamba e cerca
de 50 membros da elite congolesa que haviam sido aprisionados. O novo governador,
Fernão de Souza, também devolveu mais alguns cativos, obedecendo a ordens régias.159 Apesar de as informações sobre esses dois episódios serem esparsas, o que está
disponível permite algumas conclusões importantes. Ambos mostram como as diferenças
entre livres e escravos estavam presentes no processo da escravização, introduzindo uma
variável significativa nos enfrentamentos políticos e militares na região. A legitimidade
153 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p.126.154 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 128.155 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 129. O debate volta à tona em
1637, cf. p. 135.156 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, pp. 136-137. R. Glagow, Nzinga,
p. 141 que teriam sido enviados para o Brasil Ngole a Kaita, Ndambi Ngonga e Kiteshi Kandambi157 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles p. 137.158 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 139.159 L. M. Heywood e J. K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, p. 140. Joseph Miller, ao tratar do
episódio, menciona que um dos devolvidos a Angola, com o título de panji a ndona teria recriado o reinode Kasanze. Cf. "A note on Kasanze and the Portuguese". The Canadian Journal of African Studies, 6, n.(1972): 43-56.
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polêmica sobre a restituição de dez mil súditos do rei do Ndongo à liberdade é um bom
exemplo de como a questão era complexa e às vezes durava anos.162
Em 1653, dom Felipe (ngola Ari I), rei do Ndongo, escreveu ao rei de Portugal
para reclamar que seus súditos haviam sido injustamente escravizados. Segundo ele, anosantes Antonio Teixeira de Mendonça havia capturado seus súditos, que agora eram
obrigados a trabalhar nas propriedades de seus herdeiros. Mendonça havia sido um
poderoso colono que iniciara sua carreira militar em Ambaca, tendo se destacado tanto na
defesa de Massangano durante a ocupação holandesa que chegou a fazer parte do
triunvirato que governou o reino de Angola em 1648, antes da chegada do governador
Salvador de Sá e Benavides. Depois de ajudar a perseguir os sobas que haviam se aliado
aos holandeses, foi recompensado com títulos e distinções de nobreza, tornando-se um
homem de grande "cabedal, assim de negros bons soldados, como de fazenda".163
Quando morreu, seus bens foram herdados pela viúva e pela filha, que aumentaram as
posses por meio de novos casamentos.
A acusação foi discutida pelo Conselho Ultramarino que, em abril de 1654,
recomendou a devolução de toda aquela gente. Todavia, as dúvidas sobre eles, se súditos
livres do ngola Ari ou se escravos, permaneciam. As investigações feitas junto a ex-
governadores de Angola revelaram que Mendonça costumava freqüentar a corte do
ngola, enamorou-se por sua filha e com ela viveu mais de quinze anos. Muito querido dorei, era tido como seu genro; por isso, os súditos do ngola seguiam-no na guerra e na paz
e muitos moravam em suas casas e fazendas. Eram súditos livres, portanto, e deviam ser
restituídos e indenizados por seu trabalho. Ordens foram enviadas para Angola e fizeram-
se os pagamentos indenizatórios.
Privadas de trabalhadores, as herdeiras viram-se em maus lençóis e reclamaram
ao rei, em 1661. Protestaram por não terem sido consultadas e pelo fato de o rei
português ter tomado sua decisão ouvindo apenas "um rei negro que se tem o nome de
162 O caso é analisado por J. C. Curto, "A restituição de 10.000 súditos Ndongo 'roubados' na Angola demeados do século XVII", pp. 185-208. Os próximos parágrafos estão baseados em seu artigo.
163 A descrição provém de documentos que compuseram sua indicação para ocupar o governo de Angolaem 1649. J. C. Curto, "A restituição de 10.000 súditos Ndongo 'roubados' na Angola de meados doséculo XVII", p. 194.
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cristão, os costumes são gentílicos".164 Disseram ter comprado em hasta pública os
escravos que tinham em suas propriedades e que muitos súditos do ngola Ari nelas
haviam se refugiado para escapar de tiranias. Estavam, aliás, em litígio com o rei do
Ndongo e pediam os canais da justiça fossem acionados para solucionar a contenda - queera judicial e não política, segundo elas. O Conselho Ultramarino mudou radicalmente de
postura e deu razão a elas. Mandou que o assunto fosse investigado pelo ouvidor geral
em Luanda, que deveria ter a última palavra sobre a restituição ou não dos "escravos".
Embora não se tenha o resultado do processo, essa palavra, empregada pelo rei na carta
que enviou ao governador de Angola, já indica o rumo que as coisas tomaram.
O episódio mostra como os canais que articulavam interesses centro-africanos e
portugueses eram múltiplos e podiam ser acionados em várias direções. Em geral, os
litígios desse tipo se resolviam por meio de processos e inquirições realizadas nos
presídios ou nas cidades do litoral de Angola. A possibilidade de recorrer ao rei
português, no entanto, estava sempre presente, ajudando a dar estabilidade ao sistema no
qual estava assentada a presença portuguesa.165 Essa estabilidade, porém, só funcionava
se e enquanto fosse reconhecida pelos aliados centro-africanos dos portugueses. Curto
afirma, com razão, que a contenda - pela quantidade de gente envolvida e pela magnitude
dos contendores - ocorreu logo antes da morte de ngola Ari. Dom João Ngola Ari II, seu
sucessor, pôs fim à aliança com os portugueses e iniciou as guerras que levaram à batalhade Mpungo Andongo e ao fim do Ndongo como estado independente, em 1671.
Há ainda um outro ponto que merece destaque, que também aparece com
freqüência nas negociações entre os sobas e os administradores portugueses: o da
devolução dos escravos fugidos. Como vimos, os escravos que faziam parte dos
pagamentos dos tributos, taxas e demais "presentes" devidos pelos sobas aos portugueses
podiam ter sido adquiridos pela via comercial, nas feiras, ou eram prisioneiros feitos nas
guerras. Grande parte dos escravos era vendida no circuito atlântico, mas uma parte
permanecia na região. Eles eram tão importantes para os centro-africanos quanto para os
portugueses, pois constituíam o contingente de trabalhadores que cultivava os campos,
164 Consulta do Conselho Ultramarino de 2 de setembro de 1661. Apud: J. C. Curto, "A restituição de10.000 súditos Ndongo 'roubados' na Angola de meados do século XVII, p. 203.
165 J. C. Curto, "A restituição de 10.000 súditos Ndongo 'roubados' na Angola de meados do século XVII", p. 205-206.
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transportava os bens, tratava da lida da casa e, ao servirem como soldados, ajudavam a
arranjar mais escravos e a assegurar o poder político.166
Para um escravo, uma vez doado como parte de um tributo, negociado como
prisioneiro de guerra ou vendido, o risco de ser enviado para o comércio atlântico eragrande. Os que permaneciam como trabalhadores dos africanos, portugueses e luso-
africanos, e sobretudo os que ficavam com o mesmo dono, tinham mais chances de não
serem selecionados para a venda além-mar. Como a possibilidade de compra da
liberdade era mínima, a fuga tornava-se um expediente eficaz para escapar à
escravidão.167
Os fugitivos dirigiam-se normalmente para longe da zona de influência
portuguesa, para escapar dos senhores, das guerras e dos pumbeiros, ou procuravam asilo
nos sobados inimigos de seus senhores. A zona de Kasanje, até o início dos anos 1620,
era um desses refúgios. Em 1615, os portugueses organizaram uma expedição contra o
mani de Kasanje, sob pretexto de ele ter "roubado" escravos e não querer devolvê-los.
Kisama, ao sul do rio Kwanza, também era um bom refúgio para os escravos fugidos dos
presídios de Muxima, Massangano e Cambambe - o que ofereceu motivo para diversas
expedições punitivas e negociações específicas para devolução de fugitivos. O mesmo
ocorria com a região dos ndembu, ao norte do Kwanza, e com Matamba, conforme a
conjuntura.168 A devolução desses fugitivos podia funcionar como pretexto para guerrasou fazer parte dos acordos com os sobas e chegou a provocar debates em Lisboa. Em
alguns casos, a promessa de liberdade para os fugitivos que integrassem a "guerra preta",
como foi feito no início da campanha contra Njinga em 1626, era uma arma utilizada
para enfraquecer a força dos exércitos inimigos.169
Diferentes entre si do ponto de vista político e social, os "centro-africanos"
transportados da África para o Brasil - e para Pernambuco - compartilhavam porém uma
cultura política específica. Haviam sido aprisionados segundo mecanismos diversos mas
articulados e foram obrigados a se transformar igualmente em escravos no Novo Mundo.
166 Beatrix Heintze, Asilo ameaçado: oportunidade e conseqüências da fuga de escravos em Angola no século XVII . Luanda, Ministério da Cultura/Museu Nacional da Escravatura, 1995, p. 18.
167 B. Heintze, Asilo ameaçado, pp. 8-9.168 Cf. B. Heintze, Asilo ameaçado, p. 9-17.169 B. Heintze, Asilo ameaçado, p. 18.
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ao modo pelo qual a Coroa de Portugal estabelecia seu domínio sobre o território. O
contato entre os colonos portugueses e os centro-africanos esteve associado às guerras e
às outras formas de obtenção de escravos, bem como ao modo como se exercia o poder
nessa região. Por isso, elas correspondem, também, a áreas em que a sintaxe política dasguerras e dos acordos era praticada.
Essa cultura política não era "exclusiva" dos centro- africanos e podia, literal e
metaforicamente, ser praticada em kimbundo, kikongo e português. Os habitantes da
África Central pertenciam a dois subgrupos lingüísticos bantu próximos, o kikongo (na
região do Kongo) e o kimbudo. Segundo depoimentos contemporâneos, as línguas
faladas na zona angolana eram bastante similares, como o espanhol e o português.173
Ainda que a língua dos que vinham do interior fosse mais diversificada, muitos falavam
o "angola", que funcionava como uma língua franca.174 Tendo em vista que o kimbundo
era a língua falada pelos habitantes do reino do Ndongo, é provável que o "angola"
estivesse baseado no kimbundo ou dele contivesse muitos elementos.
O "papel" ajustado em 1678 entre Aires de Souza de Castro e os filhos de
Gangazumba indica que os habitantes de Palmares falavam um língua diferente do
português, conhecida por alguns padres e soldados da capitania, como o sargento-maior e
capitão de infantaria enviados para explicar as "conveniências e a firmeza" do acerto
realizado no Recife.175 Se eram gente vinda de Angola, essa língua deve guardar algumamarca dessa procedência. É bastante plausível que a língua falada em Palmares tenha
sido o kimbundo ou o "angola", nele baseado.
Não se trata apenas de uma questão lingüística. O fato de os senhores não terem
domínio sobre a comunicação entre os escravos é um fator importante. Além da cultura e
da língua, contudo, havia uma experiência política que fazia parte da bagagem que os
centro-africanos aprisionados e vendidos na África Central, especialmente na região do
Ndongo, levaram para a América. Tais convergências culturais, a possibilidade de usar
canais de comunicação diversos de seus senhores e, sobretudo, essa cultura política em
173 Cf. Essa é a opinião de Duarte Lopes e Filippo Pigafetta. John K. Thornton, A África e os africanos na formação do mundo atlântico, p. 262.
174 J. K. Thornton, A África e os africanos, p. 262.175 Cópia do papel que levaram os negros dos Palmares. Doc. anexo à carta de Aires de Souza de Castro de
22 de junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116. Transcrito no anexo 5.
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comum faziam com que o temor das autoridades coloniais em relação à presença dos
príncipes do reino do Ndongo no Brasil tivesse muitas razões de ser. Mais que
"conhecidos", eles podiam ser reconhecidos pelos negros dos palmares de Pernambuco.
Podiam se tornar aliados, parceiros, e fortalecer o reino negro que havia se formadonaquelas serras do interior. Vale a pena perguntar mais uma vez: o que aconteceria se
aqueles príncipes exilados se juntassem à linhagem que governava Palmares?
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Capítulo 4
ALTERNATIVAS
Muitos já observaram que a história não conhece verbos regulares. Também não pode ser analisada na base de conjecturas contra-factuais. Sem dúvida, lidamos com o
passado - com o que aconteceu, não com o que poderia ter acontecido. Para compreendê-
lo e explicá-lo, as respostas não podem ser simples. Lógicas binárias e raciocínios
causais não conseguem dar conta da multiplicidade de razões e sentidos das ações
humanas. Muito menos de suas contradições.
Por isso, sempre que uma explicação for demasiado evidente, é bom desconfiar.
Nos detalhes da documentação, no que não combina, não encaixa, nem se ajusta reside a
brecha para aprofundar a análise e, talvez, achar elementos que ajudem a compreender a
complexidade da vida - e, portanto, da história.
1. A aldeia de Cucaú
Conta Aires de Souza de Castro que, 23 dias depois de redigido o papel que
consolidava os termos negociados entre os filhos de Gangazumba e o governador de
Pernambuco, nova embaixada palmarina foi enviada ao Recife. Isso deve ter acontecido
antes de 19 de julho de 1678, data em que ele escreveu uma carta ao príncipe português.Mais uma vez, Gangazumba enviava seus emissários, que vinham acompanhados pelos
soldados do terço dos Henriques, para ratificar as determinações ajustadas em 22 de
junho. Enquanto isso, segundo informa o governador, "outros a que eles chamam reis
ficavam ajuntando a gente, que estava mui espalhada, para com ela se recolher ao sítio
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que se lhe tem assinalado".1 O acordo ia ser implementado e o governador começou a
tomar as medidas necessárias.
É possível que a sintaxe política centro-africana tenha presidido as escolhas das
duas partes que haviam feito o ajuste. De um lado, dom Pedro de Almeida e Aires deSouza de Castro talvez buscassem a paz para obter certa estabilidade, e operassem
conforme práticas que não eram de modo algum desconhecidas no império português e
que haviam mostrado bons resultados na África Central. De outro, Gangazumba também
recorria a ela em busca de uma aliança que ajudasse a fortalecer a linhagem que
governava Palmares e garantisse que os seus súditos não seriam escravizados. Havia,
porém, outros elementos importantes que caracterizavam a vida - política, militar e
econômica - desse outro lado do Atlântico - e que o tornavam bastante diferente do Reino
e Conquista de Angola.
Em 22 de julho, para cuidar que o acordo pudesse se concretizar, Aires de Souza
de Castro determinou às câmaras e capitães das vilas de Serinhaém, Porto Calvo e
Alagoas que separassem "uma pouca de farinha" para que os negros dos Palmares
tivessem "algum sustento" enquanto não pudessem se "valer de suas plantas e
agilidade".2 Enviou também uma carta ao coronel das ordenanças para que ele ajudasse a
comboiar os que viessem se "aquartelar ao sítio que pareceu mais acertado e
conveniente" e a transportar a farinha arrecadada pelas câmaras.3 As medidas tinham aintenção de auxiliar o deslocamento daquela gente, e é provável que pretendessem
também cuidar para que as condições fossem cumpridas como o combinado - além de ser
um gesto "para que eles experiment[ass]em no nosso agrado a segurança com que os
reduzimos".4
O deslocamento de tanta gente não era um ato corriqueiro e demandava vários
preparativos. Era preciso "juntar a gente" e cuidar de seu sustento, pois o trajeto iria
1 Carta de Aires de Souza de Castro de 19 de julho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1124.2 Cartas de Aires de Souza de Castro para as câmaras de Serinhaém, Porto Calvo e Alagoas e para os
capitães mores das ditas vilas, ambas de 22 de julho de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 335v, doc. 10e fl. 335v-336, doc. 11, respectivamente.
3 Carta de Aires de Souza de Castro para o coronel das ordenanças de 22 de julho de 1678. AUC, CCA,IV, 3ª-I-1-31, fl. 336, doc. 12.
4 Carta de Aires de Souza de Castro para o coronel das ordenanças de 22 de julho de 1678. AUC, CCA,IV, 3ª-I-1-31, fl. 336, doc. 12.
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durar alguns dias. Do ponto de vista do governo, havia que cuidar para que os palmarinos
de fato fossem para o local determinado e, ao mesmo tempo, para que não fossem
atacados ou aprisionados - e o ajuste viesse por água abaixo. Nesse caso específico, a
movimentação de tanta gente revestia-se ainda de circunstâncias rituais, pois se tratavade implementar um ajuste negociado e acertado entre governos até então rivais.
A providência de fornecer farinhas e destacar soldados para o comboio não era
incomum. Já havia sido tomada em outros casos, como nas negociações entre o
governador Francisco de Brito Freire e os "tapuias da nação de João Duim" [Jundui], em
outubro de 1661. Nessa ocasião, com a ajuda dos padres do Oratório, o governador havia
conseguido que os índios se deslocassem e se instalassem em uma aldeia, que devia ficar
nas cabeceiras do rio Ipojuca, onde havia "muita caça, mel, peixe do rio, e ferramenta
para trabalharem".5 A pedido dos índios, o governador aceitou mudar o local da aldeia
para uma região próxima ao rio Capibaribe, desde que não estivessem "tanto ao sertão
que pareça que desconfiamos de sua vizinhança, nem tão chegados aos currais que dela
possam receber dano".6 Acertado o local, Brito Freire designou soldados do terço do
Camarão para acompanhar os índios durante quinze dias e ajudá-los a iniciar as
plantações para seu sustento.7 Além disso, comprometeu-se a dar 100 alqueires de
farinha em cada um dos primeiros três meses depois da mudança, para que pudessem se
sustentar.8 Ato contínuo, designou o padre João Duarte do Sacramento para ficar naaldeia e nela "levantar logo igreja no lugar que escolher e tiver por mais conveniente para
conversão daquelas almas", que se contavam pelo número de seiscentos.9
O procedimento adotado por Aires de Souza de Castro em relação ao descimento
dos habitantes de Palmares para Cucaú era, portanto, muito semelhante ao que se passou
com os Junduí dezessete anos antes. Para além da farinha providenciada e da presença
dos oratorianos, a comparação permite retomar observações feitas no primeiro capítulo,
5 Concessão feita por Francisco de Brito Freire em 12 de outubro de 1661. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl.62-62v, doc. 53.
6 Concessão feita por Francisco de Brito Freire em 22 de outubro de 1661. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl.60v-61, doc. 49.
7 Ordem de 1º de novembro de 1661. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 61v, doc. 51.8 Concessão feita por Francisco de Brito Freire em 12 de outubro de 1661. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl.
62-62v, doc. 53.9 Ordem de 25 de outubro de 1661. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 61-61v, doc. 50.
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com relação à possibilidade de o governador de Pernambuco ter percebido a povoação de
negros que se formava na proximidade de Serinhaém como uma aldeia indígena.
A fixação dos índios em aldeias remonta à época do primeiro governo geral, em
que havia uma intenção catequética explícita. Dos sucessos iniciais na Bahiaquinhentista, no entanto, o aldeamento rapidamente se transformou num terreno de
conflitos entre índios, padres, senhores de engenho e autoridades coloniais.10 Não
pretendo historiar aqui esses embates nem os debates jurídicos que eles envolveram;
basta observar que o assentamento dos indígenas em aldeias e o modo como eram
formadas e governadas estavam imbricados na delicada questão da liberdade dos índios.
Ao longo do século XVII, a mesma legislação que oscilou entre reconhecer a plena
liberdade dos índios e permitir sua escravização, reformou diversas vezes as formas de
administrar as aldeias e os modos de utilizar o trabalho indígena.11
Convencidos pelo diálogo ou pela força das armas, os grupos indígenas eram
forçados a se deslocar do interior para pontos próximos ao litoral, onde permaneciam sob
o governo de padres jesuítas ou de missionários - ou ainda de administradores leigos -
conforme a determinação régia em vigor. De início, os únicos responsáveis pelas missões
eram os jesuítas, mas logo outras ordens religiosas vieram se juntar a eles. A lei de 1611
restringiu a alçada dos padres aos assuntos espirituais, ao determinar que o governo fosse
exercido por um capitão - em geral, um morador de destaque na região. A lei de 9 deabril de 1655, para o Estado do Maranhão, e as provisões de 17 de outubro de 1653 e a
lei de 12 de setembro de 1663 proibiram a designação de capitães e determinaram que as
aldeias fossem governadas pelos missionários e pelos "principais" das nações
indígenas.12
10 Para uma análise da legislação indígena no século XVI e início do XVII, ver Georg Thomas, Políticaindigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640. São Paulo, Loyola, 1982; e Carlos Zeron, LaCompagnie de Jésus et l’institution de l’esclavage au Brésil. Les justifications d’ordre historique,théologique et juridique, et leur intégration par une mémoire historique (XVIe-XVIIe siècles).Doutorado, Paris, EHESS, 1998, cap. 3.
11 Cf. Beatriz Perrone-Moisés, "Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial" in: Manuela Carneiro da Cunha (org.), História dos Índios no Brasil. São Paulo,Companhia das Letras/SCM, 1992, pp.115-132; e também Mathias C. Kiemen, The Indian policy of Portugal in the Amazon region, 1614-1693. N. York, Octagon Books, 1973.
12 B. Perrone-Moisés, "Índios livres e índios escravos", p. 119.
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Localizadas em função dos interesses da administração colonial na defesa do
território ou dos colonos em aproveitar o trabalho indígena, as aldeias tinham suas terras
reconhecidas como um território sob jurisdição especial.13 Governadas em nome do
soberano português, pelos padres, capitães ou até pelos índios, elas constituíam um lugar diferenciado em relação ao termo das vilas e cidades, sob a alçada das câmaras. O regime
de missões servia, assim, a interesses que mesclavam o proselitismo cristão, a avidez por
mão de obra, e a preocupações mais gerais de defesa do território colonial contra os
ataques dos índios bravios ou dos negros dos mocambos.14
A política indigenista portuguesa também implicava a exploração das rivalidades
entre as várias nações - aspecto também aproveitado pelos holandeses e franceses em
suas tentativas de se fixar na América portuguesa. Os Potiguar da Paraíba, os Jundui do
Rio Grande, os Cariri e os Goianás da região do São Francisco foram os principais
aliados dos holandeses, enquanto os portugueses eram auxiliados por outros Potiguar e
por índios que haviam sido convertidos e integravam algumas tropas, como a liderada
por Antônio Felipe Camarão. A expulsão dos holandeses foi, não acaso, seguida de
guerras - chamadas "dos bárbaros" - destinadas a submeter esses contingentes indígenas,
de modo a reconstruir o domínio português.15 A negociação com os Jundui empreendida
por Brito Freire em 1661 foi apenas um dos muitos episódios desse quadro maior.16
A sintaxe política centro-africana não era pois a única a articular guerras eacordos de paz em Pernambuco. Na capitania - assim como no resto do Estado do Brasil
e no do Maranhão - os descimentos e as aldeias eram práticas constantes para "reduzir"
os índios e trazê-los à obediência do soberano português. A recusa em descer para as
missões ou a fuga delas transformava os índios em rebeldes e sujeitos a "campanhas de
13 Este é mais um tópico que variou conforme as leis promulgadas, mas esteve sempre contemplado pela
legislação. Cf. Manuela Carneiro da Cunha, "Terra indígena: história da doutrina e da legislação" in: Osdireitos dos índios. Ensaios e documentos. São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 58-61.
14 Georg Thomas, Política indigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640, caps. 5 e 6.15 Pedro Puntoni, A guerra dos bárbaros. Povos indígenas e as colonização do sertão. Nordeste do Brasil,
1650-1720.São Paulo, Hucitec, /Edusp, 2002.16 Nesse caso, houve negociações mas não um acordo escrito. Nas guerras contra os "bárbaros" do sertão
das capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande e Ceará, houve casos, na década de 1690, em oschefes indígenas acabaram por assinar tratados de paz com as autoridades coloniais que foramregistrados por escrito. Para alguns exemplos desses acordos ver P. Puntoni, A guerra dos bárbaros, pp.300-304.
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punição". Podiam servir de justificativa para a guerra contra eles, do mesmo modo que os
ataques dos índios bravios do sertão contra os colonos.
Assim, no Brasil e em Pernambuco, a cultura política que informava as ações dos
escravos fugitivos - da formação de mocambos ao fortalecimento das linhagens -encontrava outros elementos, diversos daqueles existentes na África Central. Ainda que
os negros dos Palmares tivessem sido reconhecidos pelas autoridades coloniais como um
poder separado, cujo governo estava assentado em uma linhagem similar à do reino do
Ndongo, as negociações realizadas em 1678 não necessariamente levavam a uma aliança
como aquelas realizadas com os sobas de Angola. Para Aires de Souza de Castro, é bem
provável que elas significassem, também, a transformação dos mocambos em uma
aldeia.17
Essa forma de apreensão pode justificar talvez o fato de que as negociações não
tenham considerado a permanência dos negros em Palmares, mas seu descimento para
Cucaú, em região mais próxima de Serinhaém - e da sede da capitania. Outros fatores,
talvez tenham pesado para determinar o deslocamento daquelas pessoas, já que as terras
de Palmares - seguindo o costume - podiam ser distribuídas aos participantes mais
destacados das campanhas contra os mocambos, como forma de remunerar seus serviços.
A presença dos padres oratorianos, ordem missionária por excelência e bastante
ligada aos poderes coloniais em Pernambuco, como vimos, reforça a hipótese de que omodelo da aldeia indígena tenha orientado as ações de Aires de Souza de Castro. Quando
tentou negociar com os mocambos em 1663, Francisco de Brito Freire enviou o padre
João Duarte Sacramento ao rio de São Francisco - o mesmo que fora habitar com os
Jundui em 1661. Naquela ocasião, o rei dos Palmares se recusou a aceitar a proposta do
governador.
É difícil saber se também dessa vez o padre João Duarte foi o encarregado de ir
para Cucaú; é bem possível, pois ele continuava atuante em Pernambuco nessa época e
só morreu em 1686, durante a epidemia de febre amarela.18 Alguns documentos
permitem saber entretanto que um dos padres foi João da Costa. Anos depois, ao assinar
17 A hipótese é reforçada pelo fato de o governador ter sido encarregado da instalação da Junta das Missõesem Pernambuco, criada por ordem régia em 7 de março de 1681. O processo foi entretanto cercado de
problemas e a Junta só funcionou a partir de 1692.18 Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos mazombos, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 103-104.
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[seu] gosto". Reiterou a promessa de lhe fazer "muitas honras e [lhe] dar patentes e
insígnias", como era costume fazer "aos pretos que nos cá servem". Avisou ainda ter
mandado a farinha, e ofereceu-se para ser o procurador de Gangazumba, em todas as suas
"pretensões", em retribuição ao fato de ter ele vindo "para a paz e obediência no tempodo [seu] governo".22 Em seguida, assegurou ter certeza da palavra dada pelo chefe
palmarino e ratificou as promessas feitas no "papel" que havia enviado. Disse ainda estar
cuidando bem de sua mulher e dos filhos, e explicou singelamente não ter enviado ainda
os "meninos" por considerar o grande embaraço de caminhar com eles pelo mato - mas
prometeu remetê-los assim que chegassem a Cucaú. Deu notícias do filho que ficara para
ser tratado de uma ferida,23 agradeceu o presente enviado - muito estimado - e
mencionou mandar outros. Despediu-se, por fim, com o compromisso de dar a
Gangazumba, a seu irmão e ao Zumbi tudo o que quisessem - desde que viessem em paz.
Ao referir-se aos soldados que tinham acompanhado a embaixada palmarina, o
Aires de Souza de Castro informou estarem eles agora encarregados de ajudá-lo no
"trabalho do caminho". O governo de Pernambuco teve, mais uma vez, a preocupação em
utilizar oficiais do terço dos Henriques - a "gente preta que obra debaixo da obediência"
das autoridades pernambucanas.24 O capitão Estevão Gonçalves havia acompanhado a
primeira embaixada;25 depois foram o sargento-mor João Martins e o capitão Alexandre
Cardoso que voltaram aos Palmares para "trazer a resolução" de Gangazumba sobre oajuste.26 Todos eram, segundo o governador, "soldados mui honrados e mui antigos";
sabiam ler e escrever o português, mas também podiam falar a língua dos Palmares.
22 Infelizmente ainda não consegui esclarecer o significado da oferta para ser o "procurador" deGangazumba. Pode estar ligado ao ofício de "procurador dos índios", mencionado no alvará de 26 de
junho de 1596 e na lei de 9 de abril de 1655, cuja finalidade era proteger os indígenas. O termo, porém, écomum na administração portuguesa, e reforça a idéia de Aires de Souza de Castro considera Cucaú
como um território sob jurisdição separada.23 O fato aparece referenciado também na crônica de 1678 - mas apenas na versão existente em"Descripção com noticias importantes do interior de Pernambuco..." BNRJ-Ms, Cod. 7,3,001, já que a"Relação do que se passou na guerra com os negros dos Palmares nos sertões de Pernambuco" BPE, cod.CXVI - 2 - 13 - a, n. 9 está incompleta.
24 A expressão, como vimos, consta do "papel" que documentou o ajuste realizado em 1678. Cópia do papel que levaram os negros dos Palmares. Documento anexo à carta do governador Aires de Souza deCastro de 22 de junho de 1678 AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116. Vide anexo 5.
25 Ordem de Aires de Souza de Castro de 20 de junho de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 344, doc. 37.26 Ordem de Aires de Souza de Castro de 21 de junho de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 344, doc. 38.
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Credenciavam-se, desse modo, a desempenhar a tarefa de mediadores e colaboradores na
instalação dos palmarinos em Cucaú.27
A carta registra a continuidade da relação entre autoridades que se reconhecem
mutuamente com poderes e respectivas hierarquias governamentais, ao mesmo tempomilitares e políticas. Ela reitera os termos do que fora acordado em junho daquele ano e
registra a boa intenção do governador em manter sua palavra, assim como cobra a mesma
atitude de Gangazumba. As providências e decisões foram anotadas de forma a registrar
que a implementação do ajuste estava garantida, assim como as promessas feitas na
ocasião. Mais que rituais comuns no Antigo Regime, a troca de cartas, presentes e
deferências estão imbricadas em várias sintaxes políticas, que se combinam para
construir uma forma de domínio na área colonial. A sintaxe política centro-africana pode
ter prevalecido para Gangazumba; para as autoridades pernambucanas, porém, elas
mesclavam-se a outros modos de agir em relação aos habitantes da colônia - como no
caso dos aldeamentos indígenas ou da incorporação de libertos no terço dos Henriques.
Aires de Souza de Castro e os demais oficiais pernambucanos não parecem ter
tido dificuldade em relação aos nomes de origem africana, que nesses documentos
designam pessoas específicas, nem a outras características centro-africanas dos
palmarinos. Porém, a presença constante dos "línguas" (tradutores) nas tentativas
anteriores de negociação com os palmarinos e nessa de 1678 indica o reconhecimento daexistência de campos culturais distintos e bem caracterizados. Gangazumba negociou e
se comportou na implementação do acordo de modo semelhante a muitas lideranças
africanas diante das autoridades portuguesas do outro lado do Atlântico. Como tal, ele foi
identificado pelas autoridades coloniais: como "rei" dos Palmares, detentor de poderes
políticos assentados em uma rede de relações familiares, que lhe permitia falar em nome
de seus "súditos".
A parentela real, nomeada em vários documentos referentes a Palmares - e
especialmente nessas cartas - tem papel de destaque. Foram os filhos e irmãos do rei que
lideraram as embaixadas e falaram em seu nome, foram dois de seus filhos que
27 Anos mais tarde, ao mencionar o episódio em sua folha de serviços, Antonio Pinto Ribeiro afirmou quefora buscar Gangazumba e o havia ajudado a "baixar com mais de 400 pessoas". Cf. Nomeação de
pessoas para o posto de sargento-mor da ordenança da praça de Pernambuco, em 28 de janeiro 1684.AHU_ACL_CU_Consultas Mistas, Cod. 17, fl. 399 v.
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permaneceram no Recife para atestar a veracidade da palavra empenhada.28 A hierarquia
política e militar de Palmares foi, assim, reconhecida e aceita pelo governo de
Pernambuco, que acompanhou sua instalação nas terras de Cucaú.
Tudo parecia caminhar bem. Todavia, era preciso tomar algumas medidas decaráter preventivo. Cumprindo ordens régias, que deve ter trazido de Lisboa, o
governador convocou todos os soldados dos terços pagos da capitania, para uma "mostra
geral" no Recife, a realizar-se no máximo até o último dia do mês de agosto, e os da
infantaria e da cavalaria, em setembro.29 O som das caixas anunciando a ordem, bem
como o ajuntamento de soldados devia causar boa impressão, no momento em que os
temidos palmarinos desciam em direção a Cucaú. Tanta gente armada junta também
suscitava problemas. Talvez por isso, no final de setembro, o governador tenha
aproveitado para limitar o uso de espadas, proibir que qualquer pessoa entrasse com arma
de fogo no Recife e que os escravos pudessem andar com qualquer outra arma, sob pena
de serem castigados e de seus respectivos donos, além de terem o cativo confiscado,
fossem multados em quarenta mil réis.30
Em meados de novembro daquele ano, Aires de Souza de Castro escreveu mais
uma vez para Gangazumba e, dessa vez, também para Gangazona. As duas cartas
mantêm a praxe da correspondência administrativa e usam agora o vocativo "amigo", ao
saudar os destinatários. A diferença em relação ao tratamento mais seco da carta de 24 de julho significa não uma proximidade maior, mas que a fórmula das cartas administrativas
podia ser integralmente aplicada. O governador saúda Gangazumba e lhe dá as boas
vindas por ter chegado a Cucaú, manifesta seu agrado por terem os palmarinos vindo em
28 Ivan Alves Filho afirma Aires de Souza de Castro adotou dois filhos de Gangazumba quando da primeiraembaixada enviada ao Recife. Há outras referências de que, ao serem batizados, teriam recebido nomescristãos que incorporam o nome do governador. I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, Rio de Janeiro,Xenon, 1988, p. 91. A informação deve ter origem em Domingos Loreto Couto que destaca, dentre os
"homens pretos" pernambucanos "valorosos", dom Pedro de Souza Castro Ganazona (sic), natural deCucaú, filho de Gangazumba, e Brás de Souza Castro, irmão de Gangasona e também filho deGangazumba, ambos combateram contra os "negros rebelados". Glórias de Pernambuco e desagravos do Brasil [1757], ABN, 25 (1903): 107. Não localizei documentos que registrem essas informações.
29 Dois bandos do governador Aires de Souza de Castro, ambos de 26 de julho de 1678. AUC, CCA, IV,3ª-I-1-31, fl. 355v, doc. 68 e fl. 355v-356, doc. 69, respectivamente.
30 Bando do governador Aires de Souza de Castro de 20 de setembro de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31,fl. 337, doc. 14. As penas referem-se explicitamente a soldados e oficiais, diferentemente de outros
bandos com determinações semelhantes em momentos diversos. A pena pecuniária é sempre de 40 milréis e aplicada em vários casos, não apenas se o transgressor for um escravo.
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em breve, em companhia de Zumbi. Gangazona é tratado com a mesma deferência que
Gangazumba, mas Aires de Souza de Castro o reconhece como um potentado de menor
hierarquia, ainda que se comprometa a estender a ele os "mesmos privilégios" acertados
com o primeiro. Mais uma vez a confiança na palavra empenhada e a confirmação das promessas feitas foram reafirmadas por textos administrativos.32
Além da instalação das pessoas em Cucaú, outras cláusulas do ajuste também
eram cumpridas. No início de dezembro o governador ordenou ao provedor da Fazenda
Real que registrasse a restituição "aos negros dos Palmares, [d]as pessoas todas dos
quintos" que deviam ser remetidas para Portugal. Elas haviam sido entregues à
Provedoria por dom Pedro de Almeida, e agora seriam devolvidas aos palmarinos. Do
mesmo modo, o provedor ficou encarregado de registrar a entrada na Provedoria "de seis
pessoas que eles trouxeram para se entregarem a seus donos".33 A Fazenda real devia
arcar, ainda, com os gastos feitos com "Gangazona e os 40 negros que em sua companhia
vieram dos Palmares". O total somava 36$950 réis, incluindo 12$730 réis de dois
vestidos para ele e uma sobrinha e 24$220 réis com mantimentos.34 Como se vê, os
rituais da troca de presentes e do tratamento diferenciado em relação às autoridades do
sobado de Cucaú continuavam a ser praticados e tinham lugar nas finanças da capitania.
Os poucos números referentes ao deslocamento de pessoas e devolução de
prisioneiros registrados pela documentação são espantosamente baixos: entre trezentas equatrocentas pessoas instalaram-se em Cucaú, embaixadas com dez a quarenta pessoas e
apenas seis cativos devolvidos para seus senhores. Como no caso das cifras sobre a
população de Palmares, é difícil estimar tanto as quantidades como discutir o significado
dos números registrados pelas fontes administrativas para os que participavam daqueles
acontecimentos.
32 Carta de Aires de Souza de Castro a Gangazona de 12 de novembro de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31,fl. 337v, doc. 16. O documento está transcrito no anexo 4.
33 Ordem de Aires de Souza de Castro de 2 de dezembro de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 338, doc.17.
34 Ordem de Aires de Souza de Castro de 2 de dezembro de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 338, doc.18.
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Tudo parecia caminhar bem, mas - coincidência ou não - no final de dezembro,
foi a vez de passar em revista as ordenanças, com a convocação de todos os homens entre
quatorze e cinqüenta anos para uma revista no último dia do ano. 35
A documentação é sem dúvida avara em informações, mas todos os dadossugerem que as cláusulas do ajuste firmado em junho de 1678 entre os enviados de
Gangazumba e o governo de Pernambuco estavam sendo implementadas. Os palmarinos
desciam em grupos, sob as ordens de seus chefes, para se estabelecerem em Cucaú. O
contato entre as lideranças de Palmares e o governo da capitania se fazia conforme as
regras de praxe, com troca mútua de presentes e as condições eram cumpridas. Os
prisioneiros foram devolvidos e alguns escravos restituídos a seus donos.
A bibliografia é ainda mais econômica que a documentação. Se as negociações de
1678 ocupam um lugar menor na historiografia sobre Palmares, Cucaú mereceu ainda
menos atenção.36 O local sequer aparece nos mapas elaborados por Edison Carneiro em
1947,37 que serviram de base para quase todos os autores posteriores.38 De fato, é difícil
saber onde ficava o "sítio do Cucaú". Não há dados sobre o local nas fontes e apenas dois
autores, Robert N. Anderson e Gérard Police, anotam a localização de Cucaú em seus
mapas.39 Décio Freitas informa que a região ficava a 32 quilômetros de Serinhaém,40
35 Bando de 26 de dezembro de 1678. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 359, doc. 78.36 Rocha Pombo chegou a afirmar que os palmarinos "não deixaram (...) suas florestas para recolher-se às
matas do Cucaú" e chamou o tratado de "imaginário". Rocha Pombo, História do Brasil . Nova ed. il. Riode Janeiro, W. M. Jackson, 1951, vol. 2, p.125.
37 Edison Carneiro, O Quilombo dos Palmares, 1630-1695. São Paulo, Brasiliense, 1947, entre pp. 9 e 10.38 Cucaú não é mencionado nos mapas das várias edições da obra de D. Freitas, Palmares (ed. 1982, p. 8;
ed. 1985, p. 33), nem em obras mais recentes, como na edição brasileira de B. Péret, O quilombo dos Palmares, Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2002, pp.145- 151; Flávio dos Santos Gomes, Palmares. Escravidão e liberdade no Atlântico Sul . São Paulo, Contexto, 2005, p. 87; e Pedro Paulo de A. Funari,
"A arqueologia de Palmares. Sua contribuição para o conhecimento da história da cultura afro-americanain João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (orgs.), Liberdade por um Fio. História dos quilombos no Brasil . S. Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 35. O mapa da página do Parque Memorial Quilombodos Palmares situa Cucaú ao norte de Serinhaém:http://www.quilombodospalmares.org.br/index.php?sec=quilombo_palmares_localizacao (acessado em14 de agosto de 2008).
39 G. Police, Quilombos dos Palmares, p. 170 e Robert N. Anderson, "The Quilombo of Palmares: A NewOverview of a Maroon State in Seventeenth-Century Brazil." Journal of Latin American Studies 28(1996): 546.
40 D. Freitas, Palmares, p. 110.
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número próximo do oferecido por Police, que menciona cinco léguas, sem que se saiba a
origem dos dados.41
Mapa 4 - Os mocambos de Palmares e Cucaú
Fonte: Gérard Police, Quilombos dos Palmares. Lectures sur un marronnage brésilien.Guyane, Ibis Rouge, 2003, p. 170.
41 G. Police, Quilombos dos Palmares, p. 146. Uma légua corresponde a 3.000 braças ou 6.600 metros nosistema atual; assim cinco léguas são 33 quilômetros.
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espécie de vinho; nestas árvores pegam uns vermes da grossura dum dedo, que comem,
pelo que têm em grande estima estas árvores."45 O cronista de 1678 registra que das
palmeiras os habitantes dos mocambos faziam "vinho, azeite, sal, roupas; as folhas
servem às casas de coberturas, os ramos de esteios, os frutos de sustento, e da contexturacom que as pencas se cobrem no tronco se fazem amarras para todo o gênero de
ligaduras".46
A preferência por palmares é significativa, sobretudo se lembrarmos da
importância do vinho das palmeiras em rituais sociais e religiosos na África Central. A
literatura sobre a região angolana é farta em referências sobre o tema. Adriano Parreira,
por exemplo, indica que além de os ramos, as folhas e o tronco das palmeiras serem
aproveitados na construção das casas, os Imbangala usavam a folhas das palmeiras para
construir as paliçadas que ladeavam as ruas de seus kilombos. A fibra exterior da empela
servia para encher colchões e travesseiros, assim como as folhas para fabricar cestos e
esteiras. Os panos podiam ser feitos de vários tipos de palmeira, aproveitando-se as fibras
de umas e outras para o fabrico de sacos, cobertores, esteiras e vestuário. Alguns deles,
mais trabalhosos e difíceis de serem tecidos, eram destinados para uso exclusivo dos
titulares. Outros, como vimos, podiam servir de moeda.47
O extenso estudo de José Curto sobre o álcool na África Central é rico em dados
sobre o uso ritual do vinho de palma, chamado malavu. Obtido da fermentação da seivaretirada do cume da palmeira, essa bebida era consumida sobretudo pelo nobres, sobas e
reis e desempenhava papel importante nos rituais religiosos e em cerimônias de
importância política e social, como a recepção de convidados e casamentos. Por isso
mesmo, ainda que não fosse armazenável, pois azedava com facilidade, chegou a ser
usado como imposto e mercadoria para troca. Sua importância era tão grande que, em
muitas campanhas militares no século XVII, os invasores adotavam a tática de cortar as
palmeiras dos oponentes.48
45 "Diário da viagem do capitão João Blaer aos Palmares em 1645", RIAHGP , 56 (1902): 2346 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 51.47 Adriano Parreira, Economia e sociedade em Angola na e poca da Rainha Jinga, se
culo XVII . Lisboa,
Estampa, 1997, pp. 52-54.48 José C. Curto, Alcool e escravos. O comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela
durante o tráfico atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central Ocidental. Lisboa, Editora Vulgata, 2002, especialmente pp. 48-62.
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Assim, se as terras próximas a Serinhaém foram escolhidas por Gangazumba por
terem "palmeiras para o seu sustento",49 certamente poderiam abrigar costumes cujas
raízes remontavam ao outro lado do Atlântico. Ali o reino que se formara nos Palmares
podia se instalar e crescer, e a linhagem que o governava conseguiria se enraizar. ParaAires de Souza de Castro, a formação de uma aldeia - ou talvez de um sobado estável -
poderia ser o fim dos confrontos com os negros rebeldes que tanto atormentavam os
moradores da capitania.
2. Problemas
Pouco mais que isso se consegue saber sobre os acontecimentos relacionados à
mudança da gente de Gangazumba para Cucaú. Além dos documentos citados, há ainda o
relato feito por Aires de Souza de Castro na carta dirigida ao príncipe português, datada
de 8 de agosto de 1679.50 Ela informa que pelo menos três mocambos desceram para
Cucaú. Nem todos, porém: segundo o governador, não se havia conseguido "reduzir com
a mesma brevidade" um deles, "por ficar mais distante". Nele haviam se refugiado a
maior parte dos cativos que tinham "repugnância" de "tornarem [a voltar] para a casa de
seus senhores". Duas tentativas para submetê-los foram feitas, uma delas com a ajuda do
"maioral dos negros que assistira na aldeia de Cucaú" - um dos que "foram dar obediência quando [ele] logo chegara àquele governo". Contudo, apenas alguns haviam
atendido a seu chamado e teriam ido com ele para Cucaú.
O governador também pondera que, como agora o governo de Pernambuco
contava com guias fornecidos pelos "próprios negros", seria "fácil induzi-los por força"
mesmo que tivessem penetrado no "mais oculto destes Palmares". Aires de Souza de
Castro intentava fazê-lo logo após a partida da frota. Por outro lado, observava ter feito a
distribuição das sesmarias e que os Palmares estavam "cheios de estradas e de muitos
gados"; mesmo assim, os moradores "ainda" não estavam seguros em suas casas. Ao
49 "Relação", BPE, cod. CXVI - 2 - 13 - a, n. 9, fl. 58v.50 Carta de Aires de Souza de Castro de 8 de agosto de 1679. AHU_ACL_CU_015, Cx. 12, D. 1144. Essa
carta está apenas parcialmente legível. Seu conteúdo pode ser recuperado por meio do resumo de seuconteúdo feito pelo Conselho Ultramarino, em Consulta de 26 de janeiro de 1680.AHU_ACL_CU_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 26-27v.
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em se juntar aos outros - além de trazer "consigo a melhor gente de guerra". Como
Gangazona não havia conseguido convencê-lo, o governador, depois de consultar os
capitães e oficiais da câmara, se resolveu "logo dar guerra e destruir este negro rebelde",
pagando-se as custas da tarefa com os quintos das casas do Recife.55
A descrição feita por Rego Barros é mais objetiva e pragmática - e mais
pessimista. Por esse relato, são apenas dois mocambos e não três que desceram para
Cucaú e Zumbi vai descrito com características bélicas fortes o suficiente para justificar a
decisão pela guerra: ele não só reunia os melhores combatentes, como tinha uma "tropa".
Somadas as informações das duas cartas, fica claro que a percepção das autoridades
coloniais justificava a resistência de Zumbi pelo medo de ser punido por seus crimes e a
de seus companheiros por não quererem voltar a ser escravos. Se os motivos
correspondem ou não à avaliação dos palmarinos é difícil confirmar. As informações
sugerem que, diferentemente do grupo de Gangazumba, em que havia filhos e netos -
portanto gente nascida nos mocambos - Zumbi agregava em torno de si gente que havia
vivido na escravidão - e que não queira voltar para ela.
As duas cartas indicam ter havido divergências entre os chefes dos mocambos em
Palmares. Elas não quebraram, entretanto, suas hierarquias internas: a liderança de um
parente do rei manteve-se e a discordância gerou o afastamento de todo um mocambo
sob sua liderança. A rebeldia, nesse caso foi dupla, já que Zumbi recusou, ao mesmotempo, a liderança de Gangazumba e o que fora ajustado em junho de 1678. Lembrando
das observações de Igor Kopytoff, pode-se afirmar que o procedimento não era
extraordinário - e era até comum em situações de crise na África Central, em que o
deslocamento de grupos que se separam das sociedades originais faziam avançar a
fronteira.56 Como bem observaram Stuart Schwartz e Stephan Palmié, o kilombo pode ter
servido de modelo e guia para que os dissidentes avançassem cada vez mais dentro das
55 Consulta do Conselho Ultramarino de 26 de janeiro de 1680. AHU_ACL_CU_Consultas dePernambuco, Cod. 265, fls. 26-27v. O escrivão erra ao transcrever o nome de Gangazumba, substituindoo nome próprio por um advérbio: "dois príncipes potentados, enganosamente (sic) e seu irmão". fl. 27
56 Cf. Igor Kopytoff, "The internal African frontier: the making of African Political culture" in: Igor Kopytoff (ed.) The African frontier. The reproduction of traditional African societies. Bloomington,Indiana University Pres, 1987, pp. 3-83. Para maiores comentários ver o item "Além da cultura" nocapítulo 2.
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matas, buscando os lugares "mais ocultos" daqueles palmares, em busca de refúgio e de
condições para se estabelecerem em torno de uma liderança militar.
Como previa uma das cláusulas do acordo de 1678, era o caso de tomar
providências conjuntas para obrigar os renitentes a se juntarem aos que desciam paraCucaú - o que estava sendo feito por tropas conjuntas, comandadas por gente de
Palmares e por oficiais de Pernambuco. A guerra ia recomeçar - mas não do mesmo
modo que até então fora feita, pois envolvia membros da linhagem governante dos
Palmares e Gangazona participava das expedições e dos combates.
Mesmo sem contar com notícias de Lisboa, como a situação exigia, o governador
continuou a agir, e tomou as providências necessárias. Entre 17 de agosto e 13 de
setembro expediu várias ordens, com a finalidade de armar uma expedição. Elas se
encarregaram de tornar evidente que a decisão de "fazer de novo a guerra" fora tomada
em reunião da Junta da capitania e se justificava pelo fato de que nem todos os negros
dos Palmares tinham aceitado viver "debaixo da obediência deste governo nas partes que
se lhe assinalou": havia "faltado a esta palavra o negro Zumbi com os mais do seu
mocambo".57 Assim, o binômio da obediência e da rebeldia foi retomado e posto mais
uma vez em prática, a fim de justificar a guerra para reduzir os que se recusavam a
cumprir o acordo.
Ainda em agosto, o governador nomeou Manoel Lopes para comandar aexpedição e publicou um edital a fim de incentivar as pessoas a integrarem a expedição:
os prisioneiros escravos dos moradores seriam entregues aos donos, mediante o
pagamento de um "assento", como de costume, mas os outros poderiam ser livremente
repartidos entre os participantes da entrada (sem o pagamento do quinto, portanto), e os
que enviassem escravos para carregar os mantimentos seriam atendidos em seus pedidos
de postos em milícias e ofícios públicos.58 Mandou que as câmaras de Serinhaém, Porto
Calvo, Alagoas e Rio de São Francisco, "com toda a brevidade", ajuntassem a gente e os
mantimentos necessários. Ordenou à câmara de Itamaracá que enviasse o que se havia
arrecadado com o contrato do sal,59 e determinou ao provedor da Fazenda que
57 Edital de 17 de agosto de 1679. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 339v, doc. 2458 Edital de 17 de agosto de 1679. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 340, doc. 2559 Ordem de 18 de agosto de 1679. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 360v, doc. 86.
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moradores" e de matá-los "livremente" se resistissem.64 Enquanto isso, Manoel Lopes
pedia mais mantimentos, o que foi providenciado por ordem dirigida à câmara de
Alagoas.65
Além das expedições militares, o governador também tratou de tomar outrasmedidas importantes, que interferiam no domínio dos senhores sobre os escravos
reavidos. Elas estavam baseadas na constatação de que os negros aprisionados durante as
guerras contra Palmares que permaneciam em Pernambuco "em muito pouco tempo, não
somente fugiam mas ainda seduziam a outros para que o fizessem". Por isso, era mesmo
preciso que fossem enviados para o Rio de Janeiro ou para Lisboa - única forma de se
conseguir de fato "extingui-los". Em 26 de fevereiro de 1680, o governador ordenou
então que os moradores que tivessem escravos "destes que se aprisionaram e que
conhecidamente forem seus" os embarcassem para fora da capitania num prazo de oito
dias. Permitiu a permanência das mulheres desde que entregues "conforme o assento que
nesta parte se usa". Como se tratava de uma "conveniência do serviço" real, os custos
corriam por conta dos senhores.66 Além de arcar com os custos da guerra, os senhores
teriam agora que pagar para deportar os cativos nela aprisionados. A ordem, pouco
popular entre os proprietários de escravos reavidos depois de tantos esforços, não impõe
penas, talvez para deixar alguma margem de negociação ou evitar abrir outra frente de
batalha.Tantas dificuldades não impediram a obtenção de algum êxito. As tropas
conseguiram prender "um negro a que chamam Moioio", a quem os moradores de Porto
Calvo, Alagoas e Rio de São Francisco acusavam de "grandes crimes e insolências". Ele
fora enviado à cadeia do Recife, às ordens do ouvidor geral e auditor da gente de guerra
para ser processado e castigado.67 É revelador o fato de se recorrer à Justiça. Como se
viu, as ações dos negros dos Palmares eram percebidas sob a tópica da rebeldia. Os
64 Patente de 16 de fevereiro de 1680. "Segundo Livro de Vereações da Câmara de Alagoas", RIAGA (1875):184-185.
65 Em 26 de fevereiro, por exemplo, a vila de Alagoas determinava que seus moradores deveriam custear oenvio ao arraial onde havia se instalado em Palmares um comboio que devia chagar lá "até 10 defevereiro" com vinte arrobas de carne, quinhentas curimãs e duas mil tainhas, carregados por 50 negros."Segundo Livro de Vereações da Câmara de Alagoas", RIAGA (1875): 184.
66 Bando de 26 de fevereiro de 1680, AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 340v-341, doc. 28.67 Aviso de Aires de Souza de Castro de 18 de março de 1680. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 341v, doc. 30.
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rebeldes podiam ser reduzidos à obediência - como no caso da instalação da aldeia de
Cucaú - e os escravos fugidos deviam ser aprisionados e devolvidos a seus donos. No
caso de criminosos, era preciso punir os crimes cometidos contra os moradores - daí o
recurso à Justiça.O fato foi comunicado ao governador geral do Estado do Brasil, que felicitou o
colega de Pernambuco.68 A correspondência entre dois os governadores mostra que os
esforços para a destruição do mocambo de Zumbi e a prisão dos que resistiam e
continuavam pelos matos ultrapassavam os limites da capitania, já que o governador
geral se comprometia a voltar a pagar os soldos de Manoel Inojosa, que também
participava das guerras contra Palmares. Em Pernambuco, outras câmaras além das mais
próximas de Palmares, como no caso da vila de Olinda, associavam-se para pagar os
oficiais que corriam os matos em busca de fugitivos.69
Mais uma vez, a via da guerra não foi a única a ser tentada. Manoel Lopes, o
sargento mor encarregado do comando das expedições, fez publicar um bando em que
pedia a qualquer pessoa que, "por alguma indústria", noticiasse "ao capitão Zumbi" que o
governador "novamente lhe tem perdoado em nome de sua alteza que Deus guarde todos
os crimes que contras estes povos tem cometido", desde que "se reduza à obediência das
nossas armas, buscando (...) a seu tio Gangazona para viver a mesma liberdade com toda
[a] sua família". Como se vê, a oferta reiterava os termos acordados em junho de 1678,que eram cumpridos por Gangazona, "homem que soube[ra] guardar sua palavra".70 Ao
autorizar qualquer pessoa a servir de intermediário, o sargento mor reconhecia ter
dificuldade para localizar Zumbi e, ao mesmo tempo, saber que outras pessoas podiam
chegar até ele sem serem incomodadas.
O interessante é que Manoel Lopes e o governador não pediram que Zumbi se
entregasse, mas que fosse morar "com seu tio Gangazumba, ficando com toda [a] sua
família liberta". O reconhecimento do poder dos potentados com os quais se havia
68 Carta de Roque da Costa Barreto a Aires de Souza de Castro de 2 de março de 1680, AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 341, doc. 29.
69 Ordem de Aires de Souza de Castro para a câmara de Olinda de 20 de março de 1680, AUC, CCA, IV,3ª-I-1-31, fl. 362, doc. 95.
70 Bando do sargento mor Manoel Lopes de 26 de março de 1680. "Dezenove documentos sobre osPalmares pertencentes à Collecção Studart", RTIC , 20 (1906): 268-269.
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negociado a paz era, assim, reiterado - agora na figura de Gangazona. Essa era a forma
de reduzir a rebeldia de Zumbi.
Mais interessante ainda é o fato de o bando, além de ofertar a paz, trazer
explicações sobre a prisão de algumas lideranças palmarinas. João Mulato, Canhongo,Gaspar e Amaro haviam sido detidos, pois "tinham combinado com muitos escravos (...)
cativos para se alevantarem faltando às pazes prometidas" e por terem matado "com
peçonha seu rei Gangazumba para melhor fazerem a sua aleivosia". A prisão se
justificava pelo crime cometido, não porque o governador desejasse faltar "ao que com
eles tinha efetuado". A situação era, portanto, delicada. Dois dos agraciados com a
alforria em 1678, João Mulato e Amaro, haviam conspirado contra o ajustado em 1678;
por isso fora preciso prendê-los. Poderiam ser reescravizados por ingratidão; como
tinham cometido o crime de atentar contra a vida de um rei reconhecido pelas
autoridades coloniais, deviam ser processados e punidos. É difícil imaginar que essa
lógica tenha sido compreendida ou aceita por Zumbi.
Na sintaxe política centro-africana, como vimos, a discordância política
implicava a separação das facções em disputa e a aliança de uma delas com grupos rivais.
Assim fizeram os portugueses e muitos sobas do Ndongo e Njinga, como vimos. Em
alguns casos, as lutas sucessórias e as conspirações contra os sobas e potentados muitas
vezes incluíam o assassinato por envenenamento. Infelizmente, as fontes sãofragmentárias demais para que a hipótese possa ser verificada. Não há dados para saber
se houve ou não ligação entre Zumbi e o grupo acusado de ter matado Gangazumba, nem
se a conspiração objetivava a fuga coletiva ou a deposição de Gangazumba.
Também dessa vez, é a carta enviada pelo governador de Pernambuco a Lisboa,
em 22 de abril de 1680 que oferece um panorama mais abrangente da situação.71 Ele
conta que, assim que partira a frota, havia mandado Manoel Lopes e outras tropas da
capitania entrar "para o sertão" e atacar todos os "mocambos e famílias". Eles tinham
conseguido derrotar os negros, pois havia muitos "cativos e mortos, que passa[v]am de
oitocentas peças", além dos que morriam "de doença [e] por falta de mantimentos e [do]
71 Carta do governador da capitania de Pernambuco, Aires de Sousa de Castro de 22 de abril de 1680.AHU_ACL_CU_015, Cx. 12, D. 1163. O documento está ilegível e seu conteúdo é resumido naConsulta do Conselho Ultramarino de 8 de agosto de 1680. AHU_ACL_CU_Consultas de Pernambuco,Cod. 265, fl. 29v.
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aperto que se lhes fizera". Só restara "Zumbi que é o que hoje os governa, mas com mui
poucos". Como havia ainda gente que estava se "passando para nós por não terem outro
remédio" e as tropas continuavam suas diligências, mesmo no "rigor do inverno", a
avaliação do governador e dos moradores era relativamente otimista, ainda mais porqueeram ajudados pelo "maioral dos negros que assistia na aldeia de Cucaú (...), com zelo e
fidelidade".
Mas isso não era tudo: os que haviam permanecido em Cucaú "se foram
desviando do que prometeram" e estavam "conjurados para se retirarem outra vez
levando muitos escravos dos moradores daquela vizinhança, além de darem avisos e
levarem mantimentos e munições para a defesa dos outros postos". Fora então preciso
"mandá-los prender e havê-los por cativos, como os mais". A decisão fora tomada com o
"parecer dos letrados, soldados e pessoas de maior capacidade" e o quinto da Coroa,
obtido com os prisioneiros, fora aplicado para custear as guerras. A pilhagem livre para
os soldados fora aplicada apenas em relação aos outros prisioneiros.72
Nem uma palavra sobre a morte de Gangazumba e a prisão de seus autores. O
balanço da situação não parecia muito alentador para Aires de Souza de Castro. Os
rebeldes que não haviam descido para Cucaú estavam quase de todo derrotados, mas ele
fora obrigado a prender e cativar muitos dos que estavam na aldeia. Ainda que o
governador não enuncie com todas as palavras, o acordo fracassara. O quadro parececlaro: ele se certificara de que os que estavam em Cucaú conjuravam para fugir e os
mandara prender. Não foram entretanto enviados à justiça nem despachados para fora da
capitania, mas escravizados. Ao considerá-los "cativos, como os mais", Aires de Souza
de Castro quebrou o padrão até agora seguido, que separava rebeldes, fugidos e
criminosos. A decisão deve ter sido difícil, pois fora necessário consultar várias pessoas.
Todos eram fugitivos - e a gente da ordenança estava liberada para escravizar qualquer
negro que andasse pelos matos.
Embora a documentação nem sempre seja clara quanto ao destino das expedições
e mencione somente a guerra contra os negros dos Palmares, ao que tudo indica
72 As citações, aqui, foram retiradas do resumo da carta do governador de 22 de abril de 1680, constante daConsulta do Conselho Ultramarino de 8 de agosto de 1680. AHU_ACL_CU_Consultas de Pernambuco,Cod. 265, fl. 29v, pois o original está muito estragado. Cf. AHU_ACL_CU_015, Cx. 12, D. 1163.
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Edison Carneiro observa que, apesar das festas em Olinda e Recife, e do fato de
os vitoriosos se sentirem tranqüilos o suficiente para pedir a doação de terras e sesmarias
em recompensa de seus serviços, as dúvidas se concretizaram: o acordo não foi aceito
"pelos chefes mais resolutos dos Palmares".76
Zumbi, sobrinho do rei, se internou nosmatos, "certamente com outros chefes de mocambos mais jovens", para continuar a lutar.
Foi tentada uma negociação com Zumbi, sem êxito: "enérgico, resoluto, obstinado,
Zumbi iria dar à luta o caráter heróico que a celebrizou entre as insurreições de escravos
no Brasil".77
A oposição entre velhice e juventude, associada ao binômio acomodação e
resistência aparece em diversos autores e é a principal chave interpretativa dos
acontecimentos. A ela se agregam outros elementos. Manuel Arão afirmou, por exemplo,
que o acordo de paz não tinha sido tratado com as autoridades competentes do quilombo,
e teria sido esse o motivo da dissensão que culminou no assassinato de Gangazumba e na
emergência de um novo rei, Zumbi.78 O tema da autoridade está presente também em
Jaime de Altavilla, que ponderou que os quilombolas possuíam ideais e princípios e
marcou uma distância moral entre Gangazumba e Zumbi, evidenciada pela aceitação da
paz pelo primeiro e pela renúncia às regalias e galhardias das ofertas feitas ao segundo.79
Alfredo Brandão, por sua vez, considerou que Zumbi "desconfiou das promessas dos
portugueses", recusou-as, "revoltou-se contra o próprio tio, o rei, matou-o com peçonha,reuniu os seus cabos de guerra, internou-se nas matas e, como chefe, como rei, continuou
a luta".80
Mesmo para Benjamin Péret, que não dedicou muita atenção ao acordo de paz, é
importante afirmar que Gangazumba teria sido "destituído e envenenado por ter pedido a
paz com os brancos ou por ter concordado com ela". Para ele, a autoridade de Zumbi
residia "na recusa da paz aceita por Gangazumba e na supressão deste último (para a
76 E. Carneiro enfatiza que os governantes palmarinos eram idosos, como Gangazumba e seus auxiliaresmais imediatos. Afirma ainda ser ele um "homem idoso quando resolveu fazer as pazes de 1678". Cf. OQuilombo dos Palmares, pp. 69-70.
77 E. Carneiro, O Quilombo dos Palmares, p. 119.78 Manuel Arão, "Os quilombos dos Palmares". RIAHGP , 24 n.115/118 (1922): 246-247.79 Jayme de Altavilla [Amphilophio de Mello], "A Redempção dos Palmares" RIAGA, 11 (1926): 59.80 Alfredo Brandão, "Os negros na história de Alagoas". Estudos Afro-Brasileiros. Trabalhos apresentados
ao 1 Congresso Afro-Brasileiro reunido no Recife em 1934. [ed fac simile] Recife, Fundaj/Ed.Massangana, 1988, p. 72.
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qual, sem dúvida, colaborou)".81 Para esse autor, ao contrário de Gangazumba, Zumbi
liderou uma guerra sem fim contra os brancos, na qual "um dos dois [lados] dev[ia]
desaparecer".82 A oposição entre Zumbi e Gangazumba aparece também em Clóvis
Moura que registra que Gangazumba presidia o conselho formado pelos chefes dos principais quilombos, "até o ano de 1678 quando, havendo negociado a paz com os
brancos, perdeu o prestígio entre seus pares e foi assassinado, tendo sido substituído por
Zumbi, que passou à história como líder incontestável e herói de Palmares".83
Segundo Mário M. Freitas, entretanto, como foi o filho mais velho de
Gangazumba que foi ao Recife assinar a paz, ela acabou sem ser "ratificada pelo rei
supremo dos palmarinos e deus da guerra dos quilombos". Não fica claro, no seu texto,
se apenas a gente de Gangazumba se dirigiu a Cucaú. Para ele, a paz foi minada pelas
investidas contra os quilombos - a "colônia de Cucaú" entre eles -, pelo "cordão de
segurança" à volta de Cucaú e da serra da Barriga, que fechavam o comércio dos negros
com as vilas vizinhas, bem como pelo bando que isentava os voluntários do pagamento
do quinto, e pelo incômodo dos moradores de Porto Calvo e Serinhaém diante da
concessão da "floresta majestosa do Cucaú ao rebelados".84 Sem ver conflitos entre
Zumbi e Gangazumba, Mário M. Freitas considerou que a trégua teria sido quebrada
quando Zumbi tomou conhecimento de que o governador distribuíra entre seus capitães
as terras dos Palmares "e que nada mais restava para os negros senão a floresta de Cucaú,onde deveriam viver ilhados para o resto da vida, cercados pelas armas da opressão".85
Avaliando os eventos de um ponto de vista político, tanto do lado dos negros quanto dos
governadores, soldados e moradores, Mário M. Freitas situa as negociações no
81 Benjamin Péret, O quilombo dos Palmares. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2002, pp. 118, 125 e 126.82 B. Péret, O quilombo dos Palmares, pp. 125-126. Por isso mesmo, as iniciativas posteriores de paz
empreendidas por Zumbi "eram meras astúcias de guerra, destinadas a dar ao quilombo um descanso quelhes permitiria retomar forças" (p. 126).
83 Clóvis Moura, "O quilombo dos Palmares" Rebeliões da Senzala. Quilombos, insurreições, guerrilhas.
[1959] 2ª ed. revista e ampliada Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1972, p. 180. Ainda segundo o autor, nosPalmares, "os chefes militares de maior prestígio colocaram-se contra o acordo e, depois de discutirem oassunto, resolveram desrespeitá-lo, executar o rei e entregar a direção de Palmares ao Zumbi, sobrinhodo rei, elemento novo e de 'grande valimento'" (p. 188).
84 M. M. Freitas, Reino Negro de Palmares, p. 253.85 M. M. Freitas, Reino Negro de Palmares, p. 254. Sua avaliação lembra a de Rocha Pombo, que
entretanto negou que os palmarinos tivessem se deslocado para Cucaú. Ao invés disso, teriam tratado"logo de concentrar-se em um grande núcleo, ou de reunir o maior número de guerreiros em uma grandefortaleza central que servisse de refúgio para os habitantes dos mocambos do interior". R. Pombo, História do Brasil , vol. 2, p.125.
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cruzamento de intenções e estratégias diversas, que contribuem para o seu resultado não
tenha sido efetivo.86
Décio Freitas, por sua vez, lamenta a falta de fontes sobre os "dramáticos
sucessos ocorridos em Palmares" depois da assinatura do "pacto do Recife",87
mas apontaa existência de "múltiplas e obstinadas resistências, principalmente devido à cláusula
cruel que imolava ao cativeiro os nascidos fora de Palmares." Por isso, apenas um
"reduzido número" de palmarinos seguiu Gangazumba, e "mesmo os beneficiários do
pacto desconfiavam instintivamente das intenções das autoridades coloniais e dos
senhores de escravos".88 Segundo ele, "sobram indicações de que houve luta armada
entre as duas facções" e muitos procuraram refúgio em outros mocambos.
Longe da autoridade de Gangazumba, e sob a liderança de Zumbi, teria se armado
"a resistência".89 O novo chefe, "que se arrimaria como o combatente mais indômito da
liberdade de sua gente",90 retomou Macaco e instalou uma ditadura91 para fazer frente às
necessidades da guerra e agiu de modo a minar a autoridade de Gangazumba.92 Para isso
contribuía o clima de insatisfação e insegurança entre os moradores da região, que
convenceram Manuel Lopes a fazer rondas pelas matas. O governador tentou intervir a
pedido de Gangazumba mas as incursões para capturar fugitivos continuaram, as roças
eram destruídas e "a cláusula sobre a liberdade de comércio com os moradores estava
reduzida a letra morta".93
86 Nesse sentido, é secundado por C. Moura, que menciona o fato de o acordo ter sido desaprovado em
Lisboa, que considerou que a prática podia ser enganosa e colocar em risco a reputação das autoridades,ao negociar com negros fugitivos. "O quilombo dos Palmares", p. 188.
87 D. Freitas, Palmares, p.123.88 D. Freitas, Palmares, p. 123.89 D. Freitas, Palmares, p. 124.90 D. Freitas, Palmares, p. 121.91 D. Freitas, Palmares, p. 115. Freitas diz retomar a expressão "ditadura de salvação pública" , usada por
Benjamin Péret. Este autor, no entanto, anota que o "reinado"de Zumbi correspondeu a um "verdadeirogoverno de 'salvação pública' antecipado, pois trata-se da realidade de vencer ou morrer". B. Péret, Oquilombo dos Palmares, p. 126.
92 A. Brandão contesta essa possibilidade, defendendo a tese de que os quilombolas, diante da destruiçãodos mocambos e das tropas que continuavam nessa região, deslocaram-se para a Serra Dois Irmãos, enão voltaram para a Serra da Barriga. "Os negros na história de Alagoas", pp. 73-76. Sobre isso ver também, do mesmo autor, Viçosa de Alagoas. O município e a cidade (notas históricas, geographicas earcheologicas. Recife, Ed. Imprensa Industrial, 1914, pp. 5-37.
93 D. Freitas, Palmares, p.128.
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Como se vê, o exame mais detalhado das fontes cede lugar a inferências que
operam no sentido de confirmar um sentido geral atribuído pelos autores à história de
Palmares. O jogo de opostos serve como explicação, sem que a natureza das relações
entre os palmarinos, e entre eles e as autoridades coloniais seja investigada.Pouco se fala sobre os acontecimentos em Cucaú. Segundo Edison Carneiro, o
"juramento de vassalagem" foi logo esquecido por aqueles que haviam se estabelecido
nas novas terras. Começaram a fugir e a juntar-se às fileiras de Zumbi, levando
mantimentos e munições, serviam de espiões para ele e recrutavam escravos das
vizinhanças para os Palmares.94 Como Gangazona foi enviado para intermediar e tentar
com que Zumbi depusesse as armas, à oposição entre Gangazumba e Zumbi agrega-se
agora uma outra, ente Zumbi e Gangazona. O próprio Carneiro contrasta os dois:
enquanto um liderava a resistência, outro várias vezes serviu de intermediário nas
tentativas de negociação e colaborou com as forças oficiais.95
Richard Price, como vimos, é um dos poucos que contesta essa imagem de
Gangazumba. Para ele, nem teria havido traição nem fraqueza; as comparações com
acordos realizados no Suriname indicam que na maior parte das vezes os fugitivos
continuavam escondidos das autoridades coloniais, sem que se efetivasse a determinação
de devolver os companheiros para o cativeiro.96 Flávio Gomes, por sua vez, critica a
"oposição Gangazumba - como traidor da causa dos mocambos - versus Zumbi, o heróidestemido",97 ao recomendar ser melhor tratar dos diversos motivos econômicos e
geopolíticos para os quilombolas, para os senhores locais e para as autoridades
coloniais.98
Quais teriam sido esses motivos? A bibliografia informa que os moradores de
Porto Calvo e Serinhaém estavam insatisfeitos. A negociação se fizera à revelia de vários
interesses dos senhores da região. Acordada pelo governador da capitania e em nome do
príncipe regente, a liberdade dos quilombolas fora garantida por instâncias superiores aos
94 E. Carneiro, O quilombo dos Palmares, p. 120.95 E. Carneiro, O quilombo dos Palmares, p. 119.96 Richard Price, "Palmares como poderia ter sido" in: J. J. Reis e F. S. Gomes (org.), Liberdade por um
Fio, pp. 52-59. Gérard Police segue suas pegadas, ao propor uma comparação detalhada entre as duascomunidades de fugitivos. Cf. Quilombos dos Palmares, pp. 26-27 e 250-254.
97 F. S. Gomes, Palmares, p. 134.98 F. S. Gomes, Palmares, pp. 134-140.
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interesses locais, sem ouvir as câmaras. Muitos reclamavam que as melhores terras
haviam sido concedidas aos rebelados e que os soldados que patrulhavam a região
também causavam prejuízo em suas plantações.99 Afinal, a região era visitada por
expedições em busca de fugitivos, que exigiam mantimentos ou destruíam roças, econtinuavam a onerar os moradores e dificultar a vida econômica.
A concessão de terras na região da Serra da Barriga para os que haviam
participado das forças repressivas não parece ter compensado os senhores e as câmaras
locais, que arcavam com aqueles custos.100 A documentação encontrada contudo não
registra tais insatisfações; mostra, ao contrário, que as câmaras haviam sido consultadas -
pelo menos por meio das instituições normais, da junta da capitania ou de consultas a
letrados e pessoas experientes naquela guerra. A divergência de opiniões, o ônus da
continuidade da guerra e as esperanças frustradas com o fracasso da paz ajustada não
deviam contribuir para um clima otimista na capitania.
3. Debates em Lisboa
Aires de Souza de Castro atravessou quase o tempo todo de seu governo sem que
Lisboa se pronunciasse especificamente sobre as medidas tomadas em relação aos negros
dos Palmares. Nenhuma carta foi enviada a ele sobre esse assunto, mesmo que ogovernador tenha tentado manter Lisboa informada sobre todos os acontecimentos. Não
havia notícia do que pensavam os conselheiros do Ultramarino ou o príncipe sobre o
ajuste de paz e sobre os acontecimentos posteriores. Pelo menos não de modo oficial.
Isso não significa que Lisboa tenha ficado indiferente ao que se passava em Pernambuco.
Ao contrário.
A primeira reação foi reticente. Na margem da carta enviada por Aires de Souza
de Castro em 22 de junho de 1678 o secretário do Conselho Ultramarino anotou: "que se
espere por cartas do governador".101 Outra anotação, feita em 9 de novembro de 1678, à
margem da carta enviada em 22 de junho pelo provedor da Fazenda, manda consultar o
99 M. M. de Freitas, Reino negro de Palmares, p. 257; e I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, p. 94.100 Cf. D. Freitas, Palmares, p. 126 e I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, pp. 92-95.101 A anotação não está datada. Cf. Carta do governador Aires de Souza de Castro ao príncipe de 22 de
junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116.
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procurador da Coroa.102 O procurador respondeu dois dias depois e ponderou que, ainda
que a guerra não tivesse sido ordenada pelo príncipe, o "ajuste com os negros" se
justificava, pois um "dano iminente pede remédio pronto". Os governadores eram
homens experimentados, e cabia a eles considerar se aquela submissão não poderia ser uma forma de o "inimigo" refazer suas forças. De qualquer modo, haviam agido bem ao
batizá-los, contudo, como aquele "gentio" era "acostumado a exercitar-se em roubos" e
vivia na "liberdade, tão apartados da lei de Deus", era prudente que ficassem "o mais
longe que puder das nossas praças", sem que seu número "aumenta[sse]" ou que
"fabrica[sem] novas aldeias". O procurador considerou ainda a alforria concedida
"àqueles que não podia sujeitar" como um "modo de os cativar", e que a promessa de
devolução dos filhos e mulheres "que já estavam cativos em tão justa guerra" era "muito
pródiga", já que não só acarretava prejuízo aos que haviam se tornado seus novos
senhores, como contribuía para favorecer aqueles que, de fato, deviam ser castigados.103
Resposta rápida, mas ambígua. Havia anuência em relação ao ajuste feito,
entendido como um modo para submeter os levantados. Seus termos porém implicavam
riscos que deviam ser ponderados: os interesses dos proprietários dos escravos
capturados tinham sido prejudicados e havia o perigo de crescer o número de aldeias dos
negros. Esta não era a única opinião: conforme as cartas foram chegando, a controvérsia
se cresceu.É difícil saber detalhes sobre a seqüência dos debates, pois os papéis foram
misturados pelos arquivistas.104 Um rascunho de parecer, sem assinatura, datado de 9 de
dezembro do mesmo ano, é francamente contrário ao que se passava em Pernambuco:
pondera-se ali que aqueles negros não constituíam "nação política" com que se pudesse
empenhar o nome do regente português e que eles, "por seus próprios nascimentos eram
102 Anotação à margem da carta de João de Rego Barros de 22 de junho de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx.
11, D. 1118.103 Parecer do Procurador da Coroa de 11 de outubro de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1118.104 No Arquivo Histórico Ultramarino, as cartas enviadas de Pernambuco em 22 de junho de 1678 pelo
governador e pelo provedor da Fazenda de Pernambuco, as cartas de Aires de Souza de Castro de 19 de julho de 1678 e de 8 de agosto de 1679, e aquela do provedor da Fazenda, de 16 de agosto de 1679fazem parte de três conjuntos documentais separados. Contudo, elas foram discutidas ao mesmo tempo.Além do próprio parecer de 1680, que analiso mais adiante, na capa da primeira carta de Rego Barros háuma anotação feita pela Secretaria do Conselho que diz: "Dentro as cartas do governador Ayres de Souzade Castro que tratam dessa matéria". Cf. Carta de João do Rego Barros de 22 de junho de 1678.AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1118.
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escravos" - donde se seguia que "conceder[-lhes] a liberdade era um dano" aos direitos
reais e àqueles dos moradores.105
A grande diferença entre as duas opiniões reside em considerar ou não todos os
habitantes de Palmares como escravos fugitivos. O Procurador da Coroa havia sidocuidadoso: falara em escravos, mas também em cativos feitos em uma guerra que
considerava justa, em inimigos e gentios. Sua avaliação tende a perceber os negros dos
Palmares pela chave das relações com os indígenas, mas também reconhece a
possibilidade de serem levantados e, portanto, de haver espaço para uma negociação
política - o que era negado pelo parecerista anônimo. Para este último, os palmarinos
eram tomados taxativamente por escravos fugidos, para os quais só havia a alternativa da
apreensão e reescravização.
Tudo indica que o Conselho estava dividido. Quase chegou a uma conclusão: na
margem da carta escrita por Aires de Souza de Castro há uma anotação, datada do início
de dezembro, de um parecer do Conselho, mas que foi logo em seguida rasurada, para
deixar de ter vigor. O pouco que se consegue ler indica sugerir ao príncipe a
desaprovação das medidas tomadas por Aires de Souza de Castro. Mas não se pode ter
qualquer certeza sobre seu conteúdo.106
Opiniões contraditórias, pareceres escritos e depois riscados: a discussão entre os
Conselheiros do Ultramarino deve ter sido grande. Mas não houve, pelo que se podededuzir, uma decisão final a ser encaminhada ao príncipe. Pelo jeito, decidiram esperar
que mais notícias chegassem de Pernambuco - embora também (até agora) eu não tenha
encontrado nenhum pedido explícito a esse respeito. As notícias vieram, com as cartas de
Aires de Souza de Castro de 19 de julho de 1678 e de 8 de agosto de 1679, e aquela do
provedor da Fazenda, de 16 de agosto de 1679, examinadas há pouco nesse capítulo.
Foi apenas em 26 de janeiro de 1680, mais de um ano depois dos primeiros
debates e pareceres, que o Conselho conseguiu emitir uma opinião para ser enviada ao
regente. O parecer se refere ao conteúdo de todas as cartas mencionadas, de junho de
105 Parecer anônimo de 9 de dezembro de 1678. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116.106 As rasuras são de época mas deixam que se desconfie de seu conteúdo: "Ao conselho parece fazer
presente a V. A. que [....] o governador de Pernambuco nesta sua carta vos desserviu [?] que tinham[tirou?] as nossas armas na guerra que se faz aos negros dos Palmares e estado em que hoje se acham eque acordando o governador daria gra[...] de fara [?] obrada, se faz tudo presente a V.A. Lisboa [...] [6?]de novembro de 1678." [seguem-se três rubricas]. AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116.
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importante. Nos anos 1670, o delicado problema da liberdade dos índios e das missões
também freqüentava as reuniões do Conselho.
Em setembro de 1663 uma provisão régia havia regulado a liberdade dos índios
do Maranhão, ao determinar a forma pela qual eles deviam ser administrados pelos padres da Companhia de Jesus e pelas outras ordens religiosas.110 A ordem não havia
entretanto resolvido os conflitos entre as ordens religiosas e, para melhor encaminhar os
debates que sempre retornavam, os conselheiros haviam elaborado uma espécie de
questionário, com vários itens. Entre 1671 e 1673, ex-governadores, franciscanos,
mercedários, carmelitas e jesuítas responderam aos quesitos propostos pelo Conselho,
oferecendo opiniões sobre vários aspectos a respeito do modo como as aldeias deviam
ser administradas, como deviam ser feitos os resgates e o modo da repartição do trabalho
dos índios.111
Entre as questões discutidas, estava a possibilidade de as aldeias serem
governadas pelos próprios índios e serem atribuídas a uma ou várias ordens missionárias.
As opiniões eram divergentes, mas franciscanos e mercedários defendiam que os capitães
designados para governar as aldeias apenas queriam enriquecer rapidamente e que o
melhor modo de catequizar os índios e mantê-los próximos dos brancos era deixar que
governassem suas próprias aldeias. A posição foi derrotada em 1680, quando a Coroa
decidiu proibir todos os resgates e declarar, mais uma vez, ser contra toda e qualquer forma de escravização dos índios. Ao mesmo tempo, determinou que todos deviam ser
recolhidos em aldeias, assentadas em terras que lhes seriam concedidas, livres de
tributos, e governadas exclusivamente pelos jesuítas.112
De certo modo, estes debates sobre os índios do Maranhão ecoam outros,
relativamente contemporâneos, relacionados com a criação de missões no sertão do rio
São Francisco, vistas como meio de manter os índios sossegados e afirmar o domínio
português sobre terras distantes do litoral. O contexto era um pouco diferente, pois os
ataques dos tapuias às fazendas do Recôncavo baiano eram constantes e as expedições
militares contra eles também. Mesmo assim, em pareceres escritos em 1675 e 1679,
110 Provisão de 12 de setembro de 1663, ABN, 66 (1948): 29-31.111 A análise mais detalhada destes debates continua sendo a realizada por Mathias C. Kiemen, The Indian
policy of Portugal in the Amazon region, caps. 5 e 6.112 Lei de 1º de abril de 1680, ABN, 66 (1948): 57-59.
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Salvador Correia de Sá defendeu uma proposta dos padres capuchos que queriam
estabelecer missões entre "o gentio que não quiser voluntário vir para o mar"; segundo
ele, este era o meio mais eficaz para estender o domínio e estabelecer a "vassalagem (...)
pela terra adentro".113
Como se vê, havia em Lisboa um campo de debates que pode explicar o fato de
Gangazumba e sua gente terem sido compreendidos pelas autoridades metropolitanas do
mesmo modo que os índios que desciam para as aldeias no Maranhão ou do sertão do
São Francisco - do mesmo modo que aconteceram com Aires de Souza de Castro. O
reconhecimento da liberdade para os nascidos em Palmares e a concessão das terras em
Cucaú eram temas que se entrelaçavam a uma política mais larga de domínio sobre a
população do sertão na América portuguesa. Assentados em uma aldeia em Cucaú, os
antigos levantados teriam proteção real e, isentos da obrigação de qualquer "trabalho
particular",114 ali permaneceriam com suas famílias, como vassalos da Coroa, vivendo e
morrendo "pela fé de Cristo". No contexto em que ainda se debatia a possibilidade de
auto-governo dos índios do Maranhão - posição derrotada em 1680 - a criação de um
reduto de negros livres, sob a proteção real, podia representar a melhor forma de reduzir
aqueles levantados e por fim às longas guerras que causavam tantas despesas e dissensos
entre os moradores e as autoridades coloniais.
Podia, mas não era deu certo. O desdobramento dos acontecimentos emPernambuco tornou evidente o fracasso da iniciativa. Mais de seis meses depois, quando
teve que analisar a carta enviada pelo governador em 22 de abril de 1680, que
comunicava a continuidade da guerra e os problemas que começavam a existir em Cucaú,
o Conselho mais uma vez se calou, e encaminhou as notícias ao príncipe, sem qualquer
comentário.115 Os próprios acontecimentos talvez se encarregassem de resolver o
113 Voto de Salvador Correia de Sá sobre a missionação e o povoamento do sertão, Conselho Ultramarino,ca. 1675. Citado por Pedro Puntoni, A guerra dos bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertãonordeste do Brasil, 1650-1720, São Paulo, Hucitec/Edusp, 2002, p. 72. Para uma análise das guerrascontra os tapuias no Recôncavo e no sertão do São Francisco, nos anos 1650-1670, vide A guerra dosbárbaros, pp. 89-122.
114 O termo aparece explicitamente no acordo de 1678. A expressão é frequentemente empregada paradesignar os serviços prestados pelos índios aldeados (e sob tutela dos missionários) aos particulares, istoé, aos moradores e colonos.
115 Consulta do Conselho Ultramarino de 8 de agosto de 1680. AHU_ACL_CU_Consultas de Pernambuco,Cod. 265, fl. 29v.
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impasse entre as diversas opiniões; nesse caso, contudo, eles acabaram por gerar novos
problemas. E novos e acirrados debates.
Desta feita, o que esquentou a discussão foi a re-escravização dos habitantes de
Cucaú. Décio Freitas menciona uma carta do bispo do Recife ao Conselho Ultramarino,que impugnava a escravização das crianças e dos que não haviam participado da
revolta.116 Embora até agora não tenha localizado esse documento,117 há outras fontes
que indicam que as discussões em Lisboa foram intensas.
O principal indício dessa intensidade é o fato de que o príncipe finalmente tenha
se pronunciado, por meio de um alvará, em 10 de março de 1682. Há pouquíssimas
informações sobre os debates que levaram à redação desse texto, e em quais as instâncias
deliberativas eles ocorreram.118 É difícil saber por que, ao invés de uma determinação
comum, comunicada por meio de uma carta régia, por exemplo, ele optou pela via de um
documento legal de maior envergadura. Talvez porque se tratasse, agora, de definir
questões relativas à liberdade e ao cativeiro dos negros dos Palmares - e não apenas de
julgar as atitudes dos governadores e dos moradores de Pernambuco em relação a eles.
De qualquer modo, com toda a pompa de um documento legal, o príncipe português
promulgou medidas destinadas a terminar de vez com os "danos que pertencem ao
sossego público" e solucionar as questões legais criadas pela re-escravização daqueles
que haviam se rebelado depois de ajustada a paz.Ordenou, em primeiro lugar, a continuidade da campanha armada contra os
rebeldes de Palmares e determinou que os moradores de Pernambuco abrissem mão "do
direito que p[udessem] ter ao domínio" daqueles negros para que os capturados
pudessem ser distribuídos aos soldados. Os senhores que mostrassem "alguma
repugnância" em se desfazer de seus cativos deveriam pagar 12 mil réis por escravo
apreendido, para cobrir os gastos havidos naquela empresa. Tais medidas visavam não só
116 D. Freitas, Palmares, p. 120.117 O tema não era indiferente ao bispo. Em carta dirigida ao papa em 6 de agosto de 1680 dom Estevão
Brioso mencionou a presença dos oratorianos na "colônia de etíopes, vulgo Palmares", situada perto deSerinhaém. Cf. Arquivo Secreto do Vaticano, Congregazione del Concilio, Relationes Diœcesium[Congr. Concilio, Relat. Diœc.] 596 (Olinden). Agradeço muito a Bruno Feitler a oferta da transcriçãodesse documento.
118 É bastante provável que o alvará tenha sido decidido pelo príncipe a partir de parecer emitido pelo bisposecretário de Estado, por volta de agosto de 1681. Cf. Decreto de 13 de agosto de 1681.AHU_ACL_CU_015, Cx. 12, D. 1203.
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incentivar os soldados a manter a guerra, sem onerar os cofres públicos, mas também
levavam em conta os interesses senhoriais, procurando equilibrar os dissensos entre os
que estavam do mesmo lado na contenda.
Em seguida, o texto passava a regular tanto "a liberdade, como o cativeiro dostais negros": os que eram livres antes de ir para os Palmares, assim como seus
descendentes, continuariam livres; os que antes eram escravos continuavam escravos,
abrindo-se um prazo de cinco anos para as demandas judiciais a respeito. A fórmula
parecia ser simples, mas exigiu várias explicações e adendos e, sobretudo, tinha que lidar
com a espinhosa questão da liberdade concedida aos nascidos nos Palmares - que já havia
aparecido anteriormente no Conselho Ultramarino.
O alvará determinava ainda que seriam perdoados os que tivessem cometido
algum crime antes da fuga, se se apresentassem voluntariamente. Entretanto, nenhum
deles, livres ou escravos, podia continuar no Estado do Brasil (à exceção dos menores de
7 anos e dos que haviam respeitado o acordo de 1678); os cativos presos que tornassem a
fugir seriam "lançados na galé". Por fim, tocava na questão central. O "indulto"
concedido pelo governador, que libertara os "negros e mulatos, suas mulheres e filhos e
descendentes" que haviam buscado a "obediência" real, ficava mantido. Esta liberdade,
entretanto, não era reconhecida para aqueles que haviam incorrido em "traição": ela os
levara de volta "ao antigo estado", e eles haviam perdido o direito ao benefício. Para quetudo fosse averiguado, o príncipe regente ordenava a abertura de uma "devassa do crime
de traição" cometido pelos negros de Palmares depois de terem acordado a paz com o
governador de Pernambuco. Os culpados seriam condenados à morte, e suas cabeças
levantadas em "postes altos e públicos" no lugar do delito para que o tempo as
consumisse.119
Como se pode observar, o alvará de 1682 reiterou os termos do acordo de 1678 e,
de certo modo, lhe serviu de continuação. Ao mesmo tempo, porém, interpretou-o de
forma restritiva. Reafirmou a liberdade para os nascidos em Palmares, tal como
concedida pelo governador de Pernambuco, mas registrou o ato como um simples
119 Alvará de 10 de março de 1682. Silvia Hunold Lara (org.), "Legislação sobre Escravos Africanos naAmérica Portuguesa in José Andrés-Gallego (coord), Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid, Fundación Histórica Tavera/Digibis/Fundación Hernando de Larramendi, 2000(CD-Rom).
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"indulto". Os que haviam desrespeitado a concessão real passavam a ser considerados
traidores e deviam ser condenados à morte. Por outro lado, nenhuma palavra do longo
alvará se refere explicitamente a Cucaú. Como reconhecia a liberdade para os que
haviam buscado a "obediência" real, tudo indica que em Lisboa se imaginava que Cucaúcontinuava a existir. Talvez tivesse continuado - não há entretanto registro disso nas
fontes.
O texto dedica atenção ainda àqueles que haviam incorrido em "traição". Não fica
claro se o tal crime se refere à conjuração mencionada por Aires de Souza de Castro, à
morte de Gangazumba ou à fuga para juntar-se a Zumbi. Aliás, os nomes palmarinos
estão completamente ausentes do texto do alvará, que fala apenas, genericamente, nos
negros dos Palmares. De qualquer modo, a questão havia sido repassada para a Justiça e
os que haviam incorrido no crime perderiam a liberdade, tivesse sido ela obtida ou
concedida a qualquer título. Apesar de reiterar os termos do ajuste de 1678, o alvará
reequacionava os termos do debate e anunciava a decisão por meio de um documento
assinado pelo próprio príncipe.
Mesmo assim, o alvará não foi capaz de extinguir os debates em Lisboa. Em
1683, o jesuíta Manuel Fernandes, deputado na Junta dos Três Poderes e conselheiro do
príncipe regente, escreveu um parecer que retomou o tema. Para ele, "todos estes negros
aldeados [eram] livres e que não podiam ser cativos". Aires de Souza de Castro, emnome do príncipe português, lhes dera a liberdade e eles
"nela estiveram e viveram algum tempo, fazendo-se cristãos e assistindocom eles ministros que os instruíam, batizavam e o bispo de Pernambucocrismou a muitos; e dada esta liberdade e feitos cristãos, não se podiamcativar, porque é contra as leis daquele Estado".120
Não se tem notícia de qualquer lei que impeça cristãos de serem cativos, mas a
confusão pode ter sido causada pela proximidade, mais uma vez, com os temas e os
termos do debate sobre o cativeiro e a liberdades dos índios do Maranhão. Separando os
"aldeados" dos que eram "dos Palmares", Manuel Fernandes contestava o argumento do
governador que justificava a reescravização dos aprisionados pelo fato de a liberdade ter
120 Parecer de Manoel Fernandes de 8 de janeiro de 1683. BA, Movimento do Orbe Lusitano, vol. 5. Códice50-V-39, doc. n. 153, fls. 397-397v. Décio Freitas é o único a mencionar este parecer, mas o colocacomo parte dos debates que antecedem a promulgação do alvará de 1682. Cf. D. Freitas, Palmares, pp.120-129.
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sido dada com a condição de permanecerem obedientes ao rei. Ao se referir
explicitamente ao "papel em que a estes homens se prometeu e deu liberdade" e
transcrever algumas de suas passagens, o parecerista tentou mostrar a inexistência de
cláusulas condicionais e defender que os aldeados tinham "pouco comércio com os dosPalmares e seus aliados": não mereciam, portanto, qualquer castigo. Fernandes termina
sua argumentação observando que todas as informações colhidas sobre o provável crime
de traição - apresentada como a principal justificativa para a reescravização dos
habitantes de Cucaú - eram "extrajudiciais". Como a matéria era grave, exigia
procedimentos formais mais claros e jurídicos.121
Como se vê, o jesuíta tocava no ponto fundamental da legitimidade da liberdade
concedida àqueles homens e mulheres, e se posicionava de modo claro ao indicar que a
solução do dilema era essencialmente jurídica. A chave interpretativa, aqui, mais uma
vez é a da aldeia indígena. Como os índios aldeados, os negros de Cucaú não podiam ser
escravizados.
Outro importante conselheiro do regente, Roque Monteiro Paim também se
pronunciou sobre os acontecimentos - mas foi favorável à decisão tomada por Aires de
Souza de Castro. Para ele, o governador havia consultado "todas aquelas pessoas que o
podiam aconselhar e seguiu o parecer, que em todos foi uniforme" e, de acordo com o
que informava o bispo de Pernambuco, "não impugnou mais que o cativeiro dos menorese inocentes, que ou pela idade, ou pelas ações não houveram culpa". A frase faz pensar
que o governador tenha tido o cuidado de separar as crianças dos adultos ao distribuir os
prisioneiros de Cucaú, seguindo o costume já observado em outras ocasiões - mas não há
fontes que permitam comprovar essa informação. Roque Paim considerou que o alvará
de 1682 encaminhava bem a questão, ao reconhecer a liberdade concedida anteriormente
e ao remeter para a justiça a decisão sobre os negros que tivessem "a culpa de
rebelião".122
121 Idem, ibidem.122 Parecer de Roque Monteiro Paim de 19 de janeiro de 1683. BA, Movimento do Orbe Lusitano, vol. 5.
Códice 50-V-39, doc. n. 154, fl. 398.
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O final do parecer de Roque Paim é revelador. Ele indica que a discussão sobre o
tema devia seguir na Junta das Missões e que "todos devem ver estes papéis". 123 Ele
provavelmente se refere aqui à Junta Geral das Missões, que fora criada em 1655 e tinha
por atribuição abrigar as questões referentes às missões ultramarinas atendendo àsdemandas dos missionários.124 Ou seja: o debate deveria se deslocar do Conselho
Ultramarino para um órgão que estava acostumado a lidar com o difícil tema da liberdade
- dos índios no Brasil e, agora, também dos negros.
Tantos debates, mas nenhuma ação efetiva. Os efeitos do alvará de 1682 foram
poucos. A tal devassa nunca chegou a ser realizada e a correspondência oficial revela
muitas dificuldades para a designação dos juízes; mais de um ano depois, a comissão
encarregada do assunto ainda não conseguia apresentar nenhum resultado prático.125 Até
agora, não foi possível localizar qualquer traço dos que estiveram em Cucaú. A
documentação subseqüente revela apenas que o alvará de 1682 serviu para justificar
novas operações militares. Os preparativos para as novas expedições começaram com a
posse do novo governador, dom João de Souza, em 21 de janeiro de 1682.
4. Guerra e paz
O final do governo de Aires de Souza de Castro foi gasto com providências paraas guerras contra Palmares. Ele alegou ser "preciso continuar a guerra aos negros
levantados dos Palmares (...) com causa mais justificada pelos grandes danos que têm
feito aos moradores das capitanias (...) vizinhas", e convocou todos os oficiais e soldados
das companhias que haviam sido mandadas para Buenos Aires para fazer nova entradas
contra os mocambos.126 Cuidou de arranjar munição e mantimentos e de reforçar a tropa
com o terço dos índios do Camarão, aos quais forneceu armas. 127
123 Parecer de Roque Monteiro Paim de 19 de janeiro de 1683. BA, Movimento do Orbe Lusitano, vol. 5.Códice 50-V-39, doc. n. 154, fl. 398.
124 Cf. Márcia E. A. Souza e Mello, Pela propagação da fé e conservação das conquistas portuguesas. As juntas das missões, séculos XVII-XVIII. Doutorado, Porto, Universidade do Porto, 2002.
125 I. Alves Filho, Memorial dos Palmares, p. 101. 126 Ordem de 12 de agosto de 1686. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 342v-343, doc. 33.127 Ver ordens de 7, 8 e 16 de outubro de 1680. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 363, doc. 100; fl. 363, doc.
100; e fl. 363v, doc. 102; bem como o Termo de Vereação de 19 de dezembro de 1680, "Segundo Livro
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O tom mudou completamente. Nem sombra da autoridade afável que seguia os
rituais do Antigo Regime ao tratar com Gangazumba e Gangazona ou explicava os
motivos de suas determinações às oficiais coloniais; o governador queria agora acabar de
vez com "os negros dos Palmares", por considerá-los "uma canalha vil e rebelde [que] de pouco tempo a essa parte se resolvera a fazer alguns excessos dignos do maior castigo".
O edital que mandou publicar era duro. Mandava que todas as tropas da capitania
fizessem arraiais "donde mais convier" e que nenhum soldado poderia "dar quartel a
nenhum negro de armas", sob penas de ser tratiado na polés128. Os "negros dos
moradores que tive[ss]em fugido para o sertão e por medo e temor da guerra se
recolhe[ss]em outra vez à casa de seus senhores" deviam ser remetidos para o Recife
para serem expulsos da capitania - tomou entretanto o cuidado de determinar que uma
indenização fosse paga aos respectivos proprietários, "como [fosse] mais conveniente ".
Qualquer pessoa que ocultasse algum daqueles negros seria castigada. Para incentivar as
tropas, determinou que "todas as bagagens de crias e negros que se tomarem da dita
guerra ser[iam] livres para se repartirem por todos os que forem e ela" e que os
criminosos que participassem da guerra seriam perdoados de suas culpas, desde que não
tivesse cometido um crime de morte.129
As medidas deram certo resultado, já que houve negros presos - alguns foram
remetidos para o Reino, como parte do quinto,130 outros faleceram na prisão.131 O novogovernador, dom João de Souza, ao escrever para Lisboa dando conta das primeiras
notícias de seu governo, elogiou o antecessor:
"Muito é o que Aires de Souza de Castro obrou nas disposições e eficáciaem prejuízo dos negros dos Palmares e utilidade de todas estas capitanias,reduzindo-os de poderosos em que os achou a diferente estado em quehoje se vêm, destituídos das maiores cabeças que os capitaneavam, por morrerem na última guerra que o ano passado [em 1681] lhe mandou
de Vereações da Câmara de Alagoas", RIAGA (1875): 186-187; e Ordem de 2 de maio de 1681, AUC,CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 367v, doc. 120.
128 Ou seja, ser suspenso na polé (roldana fixada em uma armação de madeira, como no caso da forca),com pesos amarrados nos pés, e depois ser solto subitamente, de modo a destroncar os braços. Cf.Bluteau, Vocabulário. verbete polé.
129 Edital de 16 de agosto de 1681. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 343-343v, doc. 34.130 Cf. Pareceres do Conselho Ultramarino de 19 de agosto de 1681 e 2 e 13 de dezembro de 1681. AHC,
cod. 265, fl. 32, e AHU_ACL_CU_015, Cx. 12, D. 1209 e AHC, cod. 265, fl. 33.131 Cf. Ordem de 20 de dezembro de 1680. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 365, doc. 111.
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experiência dos exemplos passados e a pouca confiança que se deve ter da palavra de semelhantes homens, me pareceu ouvi-lo pelo capitão mor dessa vila [do Recife] João da Fonseca para maior justificação do ânimo edesejo de evitar dispêndios que semelhante guerra repetidamente costumacausar aos moradores deste Pernambuco e com efeito se ajustou a
sujeição dos ditos negros, sítio em que haviam de habitar, entrega doscativos que haviam de fazer tempo determinado para a conclusão de tudo,a que o dito Zumbi e seus sequazes têm faltado, mostrando em todas assuas ações um malévolo e pernicioso ânimo, preparando-se com toda asagacidade para resistirem à guerra que certamente se lhe há de fazer,esperando na bondade de Deus há de permitir se acabe no tempo do meugoverno tão grande a opressão".137
O tempo decorrido entre os dois documentos - de quase um ano - pode indicar ter
havido um momento em que as negociações devem ter parecido promissoras. Os termos
do acordo eram semelhantes aos ajustados com Gangazumba quatro anos antes. Contudo, por malícia de Zumbi ou não, o ajuste fracassou, levando dom João de Souza a preparar
uma nova guerra. O recurso da negociação parece ter se esgotado, pois o governador
recomendou a todos, dessa vez, que de modo algum "se lhes admitisse proposição de
pazes que oferecessem, por a experiência ter mostrado em muitas ocasiões a falsidade do
ânimo com que intentam semelhantes partidos". Para o governador, agora, apenas a
guerra conseguiria castigar a "insolente e escandalosa culpa" daqueles negros.
Fernão Carrilho havia sido nomeado para uma das companhias pagas de
Pernambuco em 17 de novembro de 1681 e foi encarregado de comandar a nova
expedição. O capítulo 15 de seu regimento determinava expressamente que "não
atendesse em nenhum caso a aquelas pazes, na consideração que os negros lhas
propusessem, antes procurasse com o maior esforço possível oprimir e castigar a tirania
inveterada de bárbaros tão prejudicialíssimos". Tudo indica que o fracasso de Cucaú e
das tentativas posteriores haviam calado fundo nas autoridades coloniais. Parra assegurar
que a guerra fosse retomada, foram tomadas as providências de sempre, com ordens para
as câmaras contribuírem com armas, homens e mantimentos.138
137 Carta do governador de Pernambuco para as câmaras de Serinhaém, Porto Calvo, Alagoas e Rio de SãoFrancisco de 1º de julho de 1683. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 386v-387, doc. 60.
138 Ordem de 1 de julho d 1683. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 387v, doc. 62; Carta de 6 de julho de 1683,AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 387v-388, doc. 63; Ordem aos oficiais da câmara de Olinda de 16 desetembro de 1683, AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 374v, doc. 14; Ordem para o provedor da Fazenda Realde 8 de novembro de 1683, AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 390-390v, doc. 74.
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Alguns documentos expedidos nesse contexto indicam que a guerra pretendida
pelo governador era generalizada, pois em novembro de 1683 autorizou o capitão do
campo de Olinda a entrar nas casas e fazendas em busca dos "escravos fugidos e
levantados para os prender".139
Em fevereiro de 1684 concedeu a Manuel Albuquerque aautorização para fazer uma entrada na região de Serinhaém, também para prender os
negros levantados dos Palmares, concedendo-lhe o privilégio de ficar com todos os
prisioneiros que não tivessem senhor.140 Como Cucaú ficava no distrito de Serinhaém,
creio se tratar de agir também contra os que tinham ficado por ali. Em 17 de abril de
1684, foi a vez de Brás de Araújo ser autorizado a buscar negros levantados "em
mocambos, ou casas e fazendas", para prendê-los.141 Como no final do governo de Aires
de Souza de Castro, as medidas invadiam o sagrado domínio senhorial - o que sugere
terem sido providências extremas, para remediar um grave mal.
Nem todos entretanto estavam de acordo com a necessidade de uma perseguição
sem quartel, como queria o governador. Segundo relatou dom João de Souza a Lisboa,
Fernão Carrilho, mesmo antes de entrar em combate, resolveu por conta própria fazer as
pazes com o novo chefe dos mocambos.142 A violação da cláusula lhe valeu a prisão,
julgamento e pena de degredo para a capitania do Ceará.143 Para substituí-lo, Zenóbio
Acioli de Vasconcelos foi encarregado de dar continuidade à guerra contra Palmares.144
Em Lisboa, mais uma vez, a avaliação parece ter sido diferente das autoridadesem Pernambuco. Em 1685, ao ser nomeado o novo governador para a capitania, deve ter
havido certa concordância para que a paz fosse mais uma vez tentada, já que o rei chegou
a redigir uma carta régia ao "capitão Zumbi dos Palmares". Por meio dela, ofereceu-lhe o
perdão "de todos os excessos" que havia praticado dizendo entender que a sua "rebeldia"
fora motivada pelas "maldades praticadas por alguns maus senhores em desobediência às
minhas reais ordens". A frase é enigmática, e não há dados para esclarecê-la. Em seguida
139 Ordem de 22 de novembro de 1683. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 375-375v, doc. 17.140 Concessão de 14 de fevereiro de 1684. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 375v-376, doc. 18.141 Ordem de 17 de abril de 1684. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 377, doc. 23.142 Carta do governador de Pernambuco ao príncipe de 10 de agosto de 1684. AHU_ACL_CU_015, Cx. 13,
D. 1298.143 Ordens de 24 de julho de 1684, AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 393, doc. 87 e fl. 393-393v, doc. 88; e
Parecer do Conselho Ultramarino de 29 de novembro de 1684. AHU_ACL_CU_Consultas dePernambuco, Cod. 265, fl. 37v.
144 Ordem de 4 de novembro de 1684. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 378v-379, doc. 31.
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o rei "convida[va]" Zumbi a escolher um local para residir com sua mulher, filhos e
capitães, "livres de qualquer cativeiro e sujeição", como fiéis e leais súditos, sob a
proteção real.145
O documento deve ter sido levado pelo novo governador e, como observa DécioFreitas, não se sabe se chegou a ser ou não entregue ao chefe negro.146 Os termos
lembravam de perto as bases do acerto com Gangazumba, anos antes. Este era, de novo,
um período de troca de governo e os impasses entre as negociações e os avanços
militares se repetiam.
Em carta de agosto de 1685, ao relatar a Lisboa suas impressões iniciais sobre o
estado em que se encontrava a capitania de Pernambuco que acabara de assumir, João da
Cunha Souto Maior observou ter dificuldades em manter a guerra e ponderou que, se
Palmares lhe oferecesse a paz, seria forçado a aceitá-la.147 Em novembro, em nova carta
ao rei, explicou que diante das queixas em contrário das câmaras, havia conseguido
novos meios para retomar as investidas militares contra Palmares.148 A documentação da
secretaria de governo registra que ele tirou Fernão Carrilho da prisão e o encarregou de
comandar novas expedições contra Palmares em setembro de 1685.149
O Conselho Ultramarino, ao examinar sua carta de agosto, foi desfavorável a
qualquer ajuste de paz: para os conselheiros, não só a experiência mostrava "que esta
prática é um meio engano", como também resultava na diminuição da "reputação" dasautoridades que tratavam com "uns pretos fugidos e cativos".150 A decisão final apoiava-
se num longo parecer do ex-governador de Pernambuco, dom João de Souza, que era
contrário a qualquer acerto com os negros, e que advertia contra a "cavilação" com que
eles simulavam "contemporizar com o novo governador que chega" ou agiam diante da
ameaça de uma guerra.151 Aires de Souza de Castro também participou dos debates e
145 Carta do Rei a Zumbi de 26 de fevereiro de 1685. D. Freitas, República dos Palmares, p. 183.Infelizmente, não consegui localizar o original desse documento.
146 D. Freitas, República dos Palmares, p. 183.147 Carta do governador João da Cunha Soto-Maior ao rei de 8 de agosto de 1685. AHU_ACL_CU_015,
Cx. 13, D. 1329.148 Carta de João da Cunha Soto-Maior ao rei de 7 de novembro de 1685. AHU_ACL_CU_015, Cx. 13, D.
1345.149 Ordem de 6 de setembro de 1685. AUC, CCA, IV, 3ª-I-1-31, fl. 402-403, doc. 7.150 Parecer do Conselho Ultramarino de 7 de fevereiro de 1686. AHU_ACL_CU_015, Cx. 13, D. 1329.151 Parecer de dom João de Souza de 2 de Dezembro de 1685. AHU_ACL_CU_015, Cx. 13, D. 1329.
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defendeu entretanto uma negociação firme, com prazos certos para não haver
protelações, além de julgar "muito acertado" que os negros quisessem "descer para baixo
[sic] e estarem sujeitos às ordens daquele governo [de Pernambuco]".152 Foi voto
vencido.153
O partido da guerra parecia predominar agora também em Lisboa. Na carta de novembro, além da contratação de Carrilho, Souto Maior contou ter
encontrado em Pernambuco "uma carta de uns paulistas que andam nos sertões, escrita a
meu antecessor dom João de Souza, em que lhe pediam umas patentes de capitão mor e
capitães para conquistarem aqueles gentios". Como o pedido não combinava com as
ordens que havia recebido, não o atendera; diante da situação, porém, considerava serem
aqueles homens "os verdadeiros sertanejos" e, como "se acha[vam] com quatrocentos
homens de armas, os roguei para esta conquista dos Palmares mandando-lhe patentes de
conquistadores deles".154 Ao examinar essa proposta, os conselheiros do Ultramarino não
fizeram maiores comentários; apenas lembraram o rei que, em fevereiro, já haviam
recomendado que ele mandasse continuar a guerra contra os Palmares.155
Em agosto de 1686, o governador escreveu mais uma vez para Lisboa, para
contar que Fernão Carrilho atacara os Palmares, matara muita gente e destruíra casas e
mantimentos, motivo pelo qual "já mortos de fome [vieram] alguns pedir misericórdia e
buscar perdão aos seus absurdos". 156 Apesar de tão boas notícias, a documentação
administrativa da secretaria de governo da capitania continua a tratar das operações deguerra, que aos poucos foram envolvendo os paulistas, até a contratação Domingos Jorge
Velho. Como se sabe, o ajuste com ele começou a ser negociado em 1687 e foi aditado
em 1691. Antes de ele seguir para Palmares, no entanto, ele deu cabo das guerras contra
os índios Junduí, no sertão do Açu, interior das capitanias de Pernambuco, Itamaracá,
Paraíba e Rio Grande do Norte - que terminaram com a assinatura de um tratado de paz
152 Parecer de Aires de Souza de Castro de 14 de novembro de 1685. AHU_ACL_CU_015, Cx. 13, D.1329.
153 A consulta final enviada ao rei data de 1 de fevereiro de 1686. AHU_ACL_CU_Consultas dePernambuco, Cod. 265, fl. 41v e segs.
154 Carta de João da Cunha Soto-Maior ao rei de 7 de novembro de 1685. AHU_ACL_CU_015, Cx. 13, D.1345.
155 Consulta do Conselho Ultramarino de 27 de abril de 1686. AHU_ACL_CU_Consultas de Pernambuco,Cod. 265, fl. 44v.
156 Carta do governador de Pernambuco ao rei de 2 de agosto de 1686. AHU_ACL_CU_015, Cx. 14, D.1383.
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entre os índios e o governador da Bahia, em 1692.157 Talvez as autoridades tivessem
aprendido algo ao lidar com os Palmares.
A documentação administrativa não dá mais notícias de qualquer tentativa de
ajustar as pazes com Zumbi ou qualquer potentado palmarino. Outras fontes indicam porém que um acordo chegou a ser cogitado, já que em 1691, o padre Antonio Vieira foi
consultado sobre a sugestão de um religioso italiano de "ir aos Palmares", ao que tudo
indica para propor novamente alguma espécie de acordo com os palmaristas.158 Lá em
Lisboa e cá em Pernambuco, alternavam-se os partidários da guerra ou da paz.
A resposta do famoso jesuíta, contrária qualquer acordo de paz, merece uma
análise mais cuidadosa. Em primeiro lugar, ele considerou que qualquer emissário,
mesmo se fosse um dos "padres naturais de Angola", seria visto como espião dos
governadores e, portanto, não teria condições de negociar. Em segundo lugar, "ainda que
cessassem os assaltos que fazem no povoado dos portugueses", nunca deixariam de
receber os "de sua nação que para eles fugi[ssem]." Por fim, ponderou que
"sendo rebelados e cativos, estão e perseveram em pecado contínuo eatual, de que não podem ser absoltos, nem receber a graça de Deus, semse restituírem ao serviço e obediência de seus senhores, o que de nenhummodo hão de fazer. Só havia um meio eficaz e efetivo paraverdadeiramente se reduzirem, que era concedendo-lhe Sua Majestade etodos os seus senhores, espontânea, liberal e segura liberdade, vivendo
naqueles sítios como os outros índios e gentios livres e que então os padres fossem seus párocos e os doutrinassem como os demais".159
Como se vê, mais de dez anos depois, os ecos do acordo de 1678 ainda se faziam
ouvir. Para enfrentar mocambos fortes como os de Palmares, o jesuíta, fiel ao programa
157 Sobre a guerra dos Junduí e especialmente sobre este acordo de paz vide John Hemming, Red gold. Theconquest of the Brazilian Indians, Londres, Macmillan, 1978, p. 361 e Pedro Puntoni, A guerra dosbárbaros, pp.157-160. Hemming considera que o tratado teria significado a criação de um reinoautônomo; Puntoni discorda, achando que ele deve ser entendido mais como uma capitulação de
obediência. Como no caso de Palmares, o acordo não colocou fim à "guerra dos bárbaros", quecontinuou até 1713.
158 Trata-se do jesuíta Antônio Maria Bonucci, que pretendia "reduzir [os habitantes de Palmares] aviverem na sujeição da igreja e das leis (...) desse governo". BNL-Res, Correspondência do marquês deMontebelo (1690-93), Coleção Pombalina, cod. 239, fls 109-109v. Apud: L. F. Alencastro, O trato dosviventes p. 343. Para uma análise desta consulta vide Ronaldo Vainfas, "Deus contra Palmares.Representações senhoriais e idéias jesuíticas" in: J. J. Reis e F. S. Gomes (orgs.), Liberdade por um Fio,
pp. 75-79.159 Carta do padre Antônio Vieira a Roque Monteiro Paim de 2 de julho de 1691. João Lúcio de Azevedo
(coord.), Antonio Vieira. Cartas, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1970, vol. 3, p. 639.
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de sua ordem, propunha o eficaz meio de transformá-los em aldeia de "índios e gentios
livres" sob a tutela de missionários. Como bem lembra Ronaldo Vainfas, ao analisar este
parecer de Vieira, tratava-se de dar um "salto da rebelião à missionação" e de transformar
o quilombo em algo próximo do cenário ideal do projeto colonial da Companhia deJesus, que aliava cristianização e liberdade.160 Esse é, no entanto, apenas um lado da
questão.
Vieira foi bem além disso, ao reconhecer ser impraticável a transformação. Não
porque o projeto jesuíta era impossível de ser aplicado aos negros, que só poderiam ser
catequizados se se mantivessem escravos, como afirma Ronaldo Vainfas. A avaliação do
jesuíta é mais contundente e coloca a equação de modo inequívoco. A hipótese de uma
missão implicava o reconhecimento da liberdade daqueles negros e, com ela, a aceitação
de que a fuga e os mocambos haviam sido meios aceitáveis para que fosse obtida, pois
libertava os que haviam nascidos nos mocambos e também os que haviam fugido. A
conclusão de Vieira é bastante clara, neste sentido. Diz ele que a concessão desta
liberdade
"seria a total destruição do Brasil, porque conhecendo os demais negrosque por este meio tinham conseguido o ficar livres, cada cidade, cadavila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros tantos Palmares,fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro
mais que o próprio corpo."
161
Eis os limites do acordo de 1678 e do reduto de Cucaú. Mais que reduzir os
negros levantados que se escondiam nas matas de Pernambuco, seus termos haviam de
certo modo legitimado a fuga e os mocambos como via de acesso à liberdade. Como
resultado, haviam inscrito a possibilidade concreta de muitos Palmares em cada canto
onde houvesse escravos. As ponderações do jesuíta desvendam os limites e os impasses
vividos desde 1678 e indicam os novos rumos dos acontecimentos. O modo de lidar com
os quilombolas e terminar com os mocambos tinham que mudar. Já no final dos anos
1680 estava claro que a guerra era a única alternativa. No início dos anos 1690, a decisão
parecia ser ainda mais cristalina.
160 R. Vainfas, "Deus contra Palmares", p. 78.161 Carta do padre Antônio Vieira a Roque Monteiro Paim de 2 de julho de 1691. J. L. de Azevedo (coord.),
Antonio Vieira. Cartas, vol. 3, p. 639.
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PALAVRAS FINAIS
A partir da segunda metade do século XX, Palmares tornou-se um fenômeno
auto-evidente, cujo sentido parece ser inquestionável: foi o maior quilombo da história
do Brasil, o melhor exemplo de resistência contra a escravidão e seu último líder
constitui um símbolo da luta pela liberdade - para os escravos, para os negros e todos os
oprimidos. Os historiadores tenderam quase sempre a privilegiar seus momentos finais,
quando Zumbi domina a cena, e o enredo da história que narram em tom épico tem
permanecido fechado em si mesmo, quase sem relação com outros acontecimentos do
século XVII. Nos livros sobre Palmares, os temas e as interpretações se repetem como
bordões, apresentados conforme a cronologia. As fontes utilizadas - na maior parte das
vezes impressas - são aquelas que explicitamente falam de Palmares.Ao tomar o papel que registrou as negociações entre Gangazumba e o governo de
Pernambuco em 22 de junho de 1678 e as três cartas que, meses depois, Aires de Souza
de Castro enviou a Gangazumba e a Gangazona, procurei inverter essa tendência e
escapar dos bordões. Adotei o procedimento da leitura vagarosa das fontes, que leva em
conta quem as escreveu, em que momento, dirigindo-se a quem, e presta atenção em cada
palavra. Procurei recuperar a multiplicidade de vozes registrada na documentação
administrativa e pude, assim, iluminar o contexto no qual aqueles quatro textos foram
redigidos. Ao observar sua relação com outros textos produzidos no mesmo período e
com o conjunto de situações relacionadas aos eventos que lhes deram origem, foi
possível descortinar uma outra história dos mocambos que se desenvolveram na capitania
de Pernambuco no século XVII.
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Essa história não foi contada aqui de modo completo, nem pretendeu ser
alternativa às interpretações até agora produzidas pela historiografia. Ao contrário.
Realizada como exercício de análise e interpretação, ela permitiu tirar Palmares do
isolamento e lhe conferir historicidade. Seguir a documentação de perto permitiu colher diferentes avaliações das fugas e dos agrupamentos de fugitivos que se instalaram nas
matas de Pernambuco, separar concepções divergentes entre moradores, autoridades
coloniais e metropolitanas, e detectar variações no tempo. Tais desentendimentos, lá e cá,
talvez tenham sido um dos motivos para a enorme dificuldade em "vencer" os Palmares.
Ao mesmo tempo, a leitura dos documentos revelou ainda não ter sido esse o único tema
a preocupar as autoridades coloniais e metropolitanas ou a exigir ações mais efetivas e
urgentes.
As pistas oferecidas pelas fontes permitiram também investigar possibilidades
para apreender o ponto de vista daqueles homens e mulheres que, majoritariamente
vindos da África Central e depois de serem escravos em Pernambuco, se reuniram como
fugitivos nos palmares da capitania. Como já haviam sugerido Stephen Palmié e Stuart
Schwartz, é bem provável que tenham se inspirados nos kilombos Imbangala para se
agrupar e continuar longe da escravidão.1 As fontes indicam com clareza, porém, que no
final da década de 1670 não se tratava mais de gente desenraizada e sem linhagem, como
nos kilombos africanos da primeira metade do século XVII. Raymond Kent tinha razãoao constatar que em Palmares estava se formando um estado africano independente.2
É difícil medir a força da destruição empreendida pelas tropas de Fernão Carrilho
- já que contada por textos laudatórios e cartas que relatam aos oficiais metropolitanos os
serviços prestados na capitania de Pernambuco. É possível que Gangazumba tenha
negociado para salvar sua linhagem e seus súditos da destruição completa. Também é
provável que, como muitos sobas centro-africanos fizeram, ele tenha procurado alianças
para solidificar seu poder e fazê-lo reconhecido e respeitado por seus "vizinhos". As duas
possibilidades não são excludentes - e ambas revelam que, nesta outra margem do
1 Vide especialmente Stephen Palmié, "African States in the New World? Remarks on the Tradition of Transatlantic Resistance" in: Thomas Bremer e Ulrich Fleischmann (eds.), Alternative cultures in the
Caribbean. First International Conference of the Society of Caribbean Research, Berlin 1988 Frankfurt,Vervuert, 1993, pp. 55-67; e Stuart B. Schwartz, "Repensando Palmares: resistência escrava na colônia"in: Escravos, roceiros e rebeldes. (trad.) Bauru, Edusc, 2001, pp. 213-255.
2 Raymond K. Kent, "Palmares: An African State in Brazil" Journal of African History, 6: 2 (1965): 174.
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John Thornton3 e procurei encontrar nas fontes, e no contexto social e institucional em
que foram produzidas, pistas para avaliar as condições de diálogo entre aqueles homens
tão diversos e desiguais.
Se em 1678 Gangazumba conseguiu negociar para defender ou estabilizar o reinodos Palmares, Aires de Souza de Castro e muitos conselheiros do Ultramarino viram ali,
além de uma alternativa à guerra, a possibilidade de implementar, mais uma vez, a
política praticada em relação aos índios, obrigando-os a descer e se instalar em aldeias,
sob a tutela de missionários. O padre Antônio Vieira apontou com sagacidade os limites
da aplicação dessa política para os mocambos - e mostrou como ela era inviável para a
continuidade das relações escravistas na América portuguesa.4 A sintaxe política centro-
africana - tanto do ponto de vista das autoridades coloniais quanto de Gangazumba e sua
gente - não pôde ser praticada da mesma forma desse lado do Atlântico.
Por tudo isso, não creio que as questões levantadas por essa tese possam ser
enquadradas como parte do aprendizado da colonização, para retomar a expressão de
Luís Felipe Alencastro. Ainda que em seu livro ele, assim como outros autores, procure
analisar os vários caminhos que os conquistadores ibéricos adotaram "para se assegurar o
controle dos nativos e do excedente econômico das conquistas",5 sua análise acabou
pendendo mais para a lógica da acumulação e da circulação de riquezas no Atlântico
português. É natural para quem está preocupado com os mecanismos do tráfico negreiro.Para a história social, no entanto, além dos mecanismos da exploração e da dominação
que regem o sistema colonial, é necessário prestar atenção nas relações de dominação
que se estabelecem entre os homens, nas sociedades coloniais. Afinal, o domínio da
metrópole sobre suas colônias não foi o único a florescer nos quadros da colonização.
O estudo realizado aqui permite verificar que houve uma experiência política que
se acumulou nas várias margens do Atlântico ocupadas pelos portugueses; de modos
diversos e por caminhos variados, ela cruzou os mares. O acúmulo de experiência não foi
privilégio dos europeus. Os centro-africanos possuíam uma sintaxe política que informou
3 John Thornton, "Early Kongo-Portuguese relations: a new interpretation" History in Africa, 8 (1981):183-204.
4 Carta do padre Antônio Vieira a Roque Monteiro Paim de 2 de julho de 1691. João Lúcio de Azevedo(coord.), Antonio Vieira. Cartas, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1970, vol. 3, p. 636-640.
5 Luís Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul. São Paulo,Companhia das Letras, 2000, p. 11.
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o modo como lidaram com os portugueses e outros europeus que se fizeram presentes na
África e foi aprimorada no contato com eles. Os homens e mulheres vindos de Angola
para o Brasil - e para Pernambuco - trouxeram consigo essa cultura política e a
empregaram no Novo Mundo, para sobreviver como escravos, fugir e viver nos palmares.
No parecer que redigiu sobre uma nova possibilidade de negociação em 1691,
Vieira deixou subentendido que a escolha da política a ser adotada em relação aos
"rebelados e cativos" envolvia também uma questão jurídica importante, que separava a
índios e negros. No caso dos índios, foi possível reconhecer sua liberdade natural e
adotar uma política missioneira em relação a eles. No caso dos escravos negros, a
liberdade só podia ser aquela doada pelo senhor - a alforria. No entanto, as palavras
utilizadas por Aires de Souza de Castro ao redigir o papel que selou o acordo em junho
de 1678, as discussões no Conselho Ultramarino e o lento pronunciamento régio com
relação ao que fazer diante do que se passava em Pernambuco indicam que o tema era
dos mais candentes e ia bem além do contraponto entre liberdade para os índios e a
escravidão para os negros.6 O que o exame das fontes revela é que o debate sobre ambos
- liberdade e escravidão - se colocava tanto em relação a índios quanto a negros e não se
fazia apenas entre letrados, padres e juristas. Dele participaram muitos outros sujeitos,
social e politicamente diferentes, no Kongo, no Ndongo, no Brasil, no Maranhão e emPortugal. As ações e escolhas feitas pelos negros dos Palmares foram parte importante
desse debate, que se desenrolou nas matas de Pernambuco, nas câmaras da capitania, no
governo geral do Brasil, no Conselho Ultramarino e em outros lugares da administração
colonial - para ficar apenas no circuito estudado aqui.
Cucaú parece ter constituído um caminho alternativo de muitas maneiras. Talvez
tenha sido, para muitos dos habitantes de Palmares, uma forma de obter liberdade, terra
para trabalhar e segurança para sobreviver e crescer. Por isso mesmo, o reduto de homens
e mulheres que haviam conquistado a liberdade depois de tantas guerras não só
representava uma ameaça para os senhores de engenho pernambucanos, como gerou
muitas polêmicas em Lisboa. Podia ser, como indicam as observações de Vieira, uma
6 Apenas para citar um exemplo bem engendrado dessa formulação, vide L. F. Alencastro, O trato dos
viventes, pp. 67, 86-88 e 181-187.
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esperança para os escravos. Como um sobado ou como uma aldeia, foi aceito e
reconhecido pelas autoridades coloniais em Pernambuco e em Lisboa.
Sua existência e sua derrota, assim como a continuidade das guerras contra
Zumbi, levaram a alterações da política senhorial em relação ao controle das fugas a partir do século XVIII: ao regulamentar o cargo de capitão-do-mato e colocá-lo sob
alçada das câmaras, as autoridades visavam impedir a todo o custo a formação de novos
reinos como Palmares.7 É na relação conflituosa e tensa entre diferentes perspectivas
políticas que podemos encontrar a resposta para a inexistência de mocambos tão
longevos e extensos nos dois séculos seguintes - e não em relações sistêmicas que
acabam por transformar a história num jogo lógico, em que a ação dos homens cede lugar
a forças abstratas e genéricas.8
O percurso realizado pela tese permitiu ainda realizar um diálogo com a literatura
sobre a experiência dos africanos nas Américas, como escravos e como fugitivos. Não
vou retomar aqui o que já foi dito. Acrescento apenas algumas observações finais - agora
em relação a um hábito historiográfico que eu e meus colegas temos reiterado ao tratar
das fugas de escravos e das comunidades a que elas deram origem.
Stuart Schwartz já havia observado que no termo quilombo estaria codificada
uma história não escrita, que permitiria compreender melhor Palmares e também a
história subseqüente da resistência escrava no Brasil.9 Explorei várias dimensões dahipótese levantada por ele e Stephen Palmié sobre os nexos entre a instituição dos
Imbangala e a forma da organização dos mocambos em Palmares. Apoiada pelas
contribuições de Igor Kopytoff, observei que o kilombo não era uma instituição separada
da sintaxe política centro-africana. Como vimos, ele serviu aos Imbangala como
instrumento de coesão, ao reunir gente desenraizada e sem ancestrais comuns em uma
formação militar específica de grande importância na sintaxe das guerras angolanas. E se
transformou ao longo do século XVII: os Imbangala não só se aliaram aos portugueses, e
7 Avanço, assim, mais um argumento às teses que desenvolvi em artigo anterior. Cf. Silvia Hunold Lara,"Do singular ao plural: Palmares, capitães-do-mato e o governo dos escravos" in João José Reis e Fláviodos Santos Gomes (orgs.), Liberdade por um Fio. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp. 91-92.
8 A pergunta sobre a inexistência de outros Palmares na história do Brasil foi feita por Rafael de Bivar Marquese, "A dinâmica da escravidão no Brasil. Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII eXVIII". Novos Estudos Cebrap, 74 (2006): 107-123.
9 Stuart B. Schwartz, "Repensando Palmares", p. 249.
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aos reis e sobas centro-africanos, como também se uniram a forças políticas baseadas nas
linhagens, como no caso de Njinga, e o kilombo muitas vezes passou a designar a capital
de estados fortes, como no caso de Matamba e Kasanje.
Assim, se o kilombo pôde servir de modelo político e militar para os escravoscentro-africanos que fugiam para as matas de Pernambuco, com todas as adaptações e
diferenças, como lembrou Stuart Schwartz, os estados apoiados nas linhagens também
fizeram parte dessa história. Ambos, de certo modo, faziam parte dos mecanismos de
expansão das fronteiras na África. Por isso, mais que a presença de uma única instituição,
creio ter sido uma forma de articular kilombo e estados linhageiros - ou uma cultura
política centro-africana - que informou e se fez presente em vários momentos e aspectos
da história de Palmares.
Em segundo lugar, não se pode desconsiderar a cronologia e o modo como as
informações foram registradas. Schwartz notou que foi apenas a partir de 1691 que a
palavra quilombo aparece na documentação referente a Palmares, e que o termo se
generalizou no século XVIII, ao designar qualquer comunidade de escravos fugitivos. De
fato. Mas é preciso observar que a palavra quilombo aparece em bem poucos, todos eles
relativos à contratação de Domingos Jorge Velho para "conquistar, destruir e extinguir
totalmente os negros levantados dos Palmares". O termo foi empregado na primeira
versão desse contrato, assinado em 1687, e em documentos posteriores ligados a suaimplementação, em 1691 e 1692.10 Ele foi usado também em um requerimento escrito
por Domingos Jorge Velho, depois de novembro de 1695, em que ele pedia ao rei que
fossem distribuídas as terras prometidas pela destruição dos Palmares.11 Foi nesse
contexto, aliás, que ele ponderou que, mesmo depois de Zumbi ter sido morto, "azinha se
formar[ia] outro civil novo, neste Barriga ou em qualquer outra paragem tão apta como
10 Capítulos e condições que concede o senhor governador João da Cunha Souto Maior ao coronelDomingos Jorge Velho, em e de março de 1687; Ratificação dos capítulos pelo marquês de Montebelo,em 3 de dezembro de 1691; Alvará de confirmação de 9 de Abril de 1693. Os documentos estão
publicados por Ernesto Ennes, As guerras nos Palmares: subsídios para a sua história. São Paulo, Cia.Ed. Nacional, 1938, pp. 84-87 (doc.28) e 238-241 (doc. 34). É provável que Schwartz tenha consideradoa data da ratificação do contrato pelo marquês de Montebelo para datar o aparecimento da palavraquilombo na documentação.
11 Requerimento do mestre de campo Domingos Jorge Velho ao rei, [posterior a 20 de novembro de 1695].E. Ennes, As guerras nos Palmares, pp. 316-344 (doc. 54).
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esta," e que sem os paulistas ali instalados "pode haver outra vez Angola janga, Angola
pequena, como eles [os negros o] chamavam" - expressão que se tornou tão afamada.
Em toda a documentação administrativa produzida até então, para o caso de
Pernambuco e de outras capitanias do Brasil, os povoados formados pelos fugitivosforam chamados mocambos - e também de aldeias, cidades, cercas e palmares. As
palavras não aparecem ou desaparecem, nem mudam de significado à toa. Em São Tomé
no início do século XVI, por exemplo, o termo era usado para nomear aquele que
incentivava as fugas e os ataques às fazendas; ali, aos poucos, a designação passou a
referenciar motins e revoltas de escravos em geral.12 No Brasil, mesmo depois de 1687
ou 1691, mocambo continuou a ser a palavra mais usada, até as primeiras décadas do
século XVIII, quando quilombo passou a ter uma definição legal: qualquer agrupamento
de mais de quatro ou cinco negros refugiados nos matos, com ranchos e pilões. 13 Essa
definição foi elaborada ao mesmo tempo em que o ofício de capitão-do-mato foi
regulamentado e seu provimento atribuído às câmaras municipais.14 Isso não significa
que o significado da palavra quilombo tenha permanecido estático. Ele variou bastante -
e não só no Brasil. Jan Vansina observa que, embora tenha sido descrito por gente que
viveu entre os Imbangala entre 1601-1603, o termo quilombo só apareceu na
documentação portuguesa referente a Angola a partir de 1617-22, quando os
governadores começaram a fazer alianças com o Imbangala. Nessas fontes a palavra foimuitas vezes empregada como sinônimo de "povoação" e "bando de jagas".15
Há, sem dúvida, uma história dessas palavras e de seus significados sociais e
políticos que ainda está por ser feita - e que apenas começa pela etimologia. Essas
observações levam a uma outra questão correlata, que diz respeito à historiografia. Do
mesmo modo que um enredo narrativo sobre Palmares se fixou, também o termo
quilombo se transformou em um conceito com características universais e abstratas - e
tomou conta da descrição da história dos mocambos que se formaram no Brasil - e
especialmente nos palmares de Pernambuco. Qualificado com um (ou vários)
12 Catarina Madeira Santos, "A formação das estruturas fundiárias e a territorialização das tensões sociais:São Tomé, primeira metade do século XVI" Stvdia, 54/55 (1996): 81.
13 S. H. Lara, "Do singular ao plural", pp. 91-92.14 S. H. Lara, "Do singular ao plural", pp. 93-98.15 Jan Vansina, "Quilombos on São Tomé, or in search of original sources" History in Africa, 23 (1996):
453-454.
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quilombo(s), Palmares acabou por perder sua historicidade: tornou-se exemplo de um
mesmo fenômeno observável em várias regiões e períodos, produzido por escravos de
diferentes procedências, em contextos demográficos, sociais e políticos os mais diversos.
Sebastião da Rocha Pita e Domingos Loreto Couto, os primeiros historiadores aose referirem a Palmares, em livros que foram publicados em 1730 e 1757, não utilizam a
palavra quilombo.16 Quando os mocambos formados por negros levantados que viviam
nos palmares de Pernambuco se tornaram um quilombo? Em que circunstâncias isso
aconteceu? Eis uma outra história que está por ser feita. O fato de Domingos Jorge Velho
ter usado a palavra para designá-los, em um contexto específico, não constitui credencial
suficiente para que ela possa dar conta de toda a história de Palmares.
Raphael Bluteau, em seu Vocabulário não registrou a palavra quilombo, mas
indicou que "no Brasil chamam às aldeias de uns negros repartidos em choupanas,
mocambos, donde tomou este sítio o nome". E acrescentou: "são no sertão do Brasil uns
negros levantados, a que chamam Negros dos Palmares, [que] deram este nome às
aldeias que eles habitam".17 Ou seja: no início do século XVIII, os negros dos palmares
(dos Palmares?) construíam e habitavam mocambos.
A força política da linhagem governante dos Palmares e de seus mocambos não
foi reconhecida apenas pelas autoridades coloniais, em 1678. Ela continua a ser
reafirmada até hoje - por todos nós. Afinal, os nomes africanos de seus principaistitulares e suas relações de parentesco atravessaram os séculos e são por eles - e não
pelos nomes cristãos que algum dia, como escravos, tiveram - que sabemos de sua
existência. Isso não confere um sentido especial para querer conhecer aqueles homens e
mulheres e sua história em seus próprios termos?
16 Sebastião da Rocha Pita, História da América Portuguesa [1730], São Paulo, EDUSP/Itatiaia, 1976, pp.213-219; e Domingos Loreto Couto, Desagravos do Brasil e górias de Pernambuco [1757] ABN , 25(1904): 187-194.
17 Raphael Bluteau, Vocabulário portuguez e latino. Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesus,1712. (Ed. fac-simile, CD-Rom, Rio de Janeiro, UERJ, s.d.), verbete "mocambo".
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ANEXOS
Anexo 1 - Papel que escreveu ao principal dos negros dos Palmares sobre as pazes
que determinavam fazer, em 22 de junho de 1687.1
Aires de Souza Castro [sic], governador da capitania de Pernambuco e das mais
anexas por Sua Alteza, etc. Em nome do príncipe de Portugal, meu e vosso senhor, vos
remeto a vós Gangazumba2
o bem da liberdade, e perdão de viverdes há tantos anos fora
da nossa obediência. E por mandardes todos nossos [sic] filhos e família a lançar a meus
pés a pedir perdão da obediência a que até agora faltastes, vos concedo o que por este
papel vos prometo, no que não haverá a menor dúvida, tendo por mui firme que também
da vossa parte vós não faltareis ao que vossos filhos me vieram pedir e segurar. E como
vós nisto tudo sois os mais interessados, parece que permitiu Deus dar-vos esta Luz para
ser meio da vossa salvação, e terdes entre nós tantos interesses como vos concedo, e as
mais utilidades que os vossos filhos experimentaram e vós de de [sic] hoje em diante
achareis da mesma maneira, advertindo-vos que se com efeito não derdes cumprimento
ao que me mandais oferecer no tempo assinalado deste papel que vos hei de mandar
fazer a guerra pelas tropas que [fl.334v] já tenho juntas, de maneira que nenhum de vós
outros há de escapar, nem ter quartel, porque bem viram vossos filhos o poder que o
Príncipe meu senhor mandou nesta ocasião em minha companhia para vos ir acabar, e
derrotar de todo.
Vossos filhos e família me prometeram em vosso nome que todos os negros
desses Palmares e os mais potentados deles vinham nesta Paz, e que vós os obrigareis a
fazê-la no caso que algum não quisesse, e que prometíeis entregar todos os negros que
destas capitanias haviam fugido para esses Palmares.
1 Disposições dos governadores de Pernambuco, vol. 1 (1648-1696), fls. 334-334v, n. 6. AUC, ColeçãoConde dos Arcos, VI - 3ª - I - 1 - 31. O título do documento é o que consta do índice desse códice. Na
transcrição desse e dos demais documentos dos anexos atualizei a grafia das palavras, incluindo os
nomes próprios, desdobrei as abreviaturas e suprimi algumas vírgulas, para facilitar a leitura.2 Ganazumbà, no original. No caso de Gangazumba e no de Zumbi, adoto os nomes mais próximos dos
fixados pela bibliografia. Como já observei, está em andamento um estudo mais detalhado sobre a
variação no registro dos nomes palmarinos na documentação administrativa e na própria historiografia.
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Também me pediram para morarem, e fazerem suas aldeias, o sítio a que chamam
Cucaú3, e por vos fazer a vontade, vos concedo a dita paragem, e delas vos faço mercê,
ficando vós outros moradores nela com vossa liberdade para podereis plantar os vossos
frutos, e terdes os mesmos lucros que têm os mais vassalos de S. A. que Deus guardesem vos obrigarem por força a nenhum trabalho particular, salvo se for para o serviço do
dito senhor.
Todos vós outros os que fostes nascidos nesses Palmares vos concedo alforria, e
ainda alguns filhos, e mulheres que cá estavam cativos para irem para o Reino vo-los hei
de tornar a mandar restituir, e a vossa mulher, e filhos, e porque o negro Amaro que lá se
acha terá receio de vir por ser cativo nosso, lhe dou a mesma alforria, sem embargo de
ser mais culpado de todos, e ao outro que chamam João Mulato concedo o mesmo, e
quando alguns se não queiram submeter a esta obediência me avisareis logo pelos
enviados que vos mando para lhe mandar fazer a guerra como acima vos tenho
declarado, e para que vos vejais a estimação que nós fazemos da gente preta que obra
debaixo da nossa obediência, vos mando esses dois, um sargento-maior e outro capitão
de infantaria, soldados mui honrados e mui antigos, porque como vos sabem a língua,
melhor vos explicarão as vossas conveniências, e a firmeza de todo este papel, com que
não tenho mais que vos dizer. E vos fico esperando para vos fazer as honras que fiz a
vossos filhos, e espero na Graça de Deus, e na sua divina Misericórdia que a vós, e a
todos há de tocar dela, para que também venhais lograr esta dita. E na vossa cidade se
vos hão de dar padres para vos ensinarem a doutrina cristã para viveres e morreres pela fé
de Cristo que é só o verdadeiro Deus. Ele vos guarde muitos anos. Recife de
Pernambuco, 22 de junho de 1687.
Anexo 2 - Carta de Aires de Souza de Castro a Gangazumba sobre a vinda dosnegros dos Palmares, de 24 de julho de 1678.
4
Gangazumba. Recebi vossa carta em companhia de vossos capitães, e soldados
que tudo estimei muito por ver que Deus é tanto vosso amigo, que no cabo de viverdes
tantos anos arredado da Luz da fé vos dá este caminho para vossa salvação, e para
3 Cucahû, no original.4 Disposições dos governadores de Pernambuco, vol. 1 (1648-1696), fls. 336v, n. 13. AUC, Coleção
Conde dos Arcos, VI - 3ª - I - 1 - 31. O título do documento é o que consta do índice do códice.
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Anexo 3 - Carta de Aires de Souza de Castro a Gangazumba sobre a sua chegada a
Cucaú, de 12 de novembro de 1678.6
Gangazumba amigo. Sempre estive firme na vossa palavra, e com a vossa vinda
se acabou de justificar melhor, nem era possível que [d]isto tivesse dúvida, pois acheis
em mim tanta vontade de vos fazer mercê. E tantas conveniências quantas [?] havias de
lograr na nossa companhia, e toda a vossa gente como vós poderá [...] [a todos?] aqueles
que têm vindo a esta casa, e assim vos dou as boas vindas de terdes já chegado. E [...] o
gosto com que o esperava, pois vos tinha há tantos [fl. 337v] dias farinha e gente no
Cucaú para vos agasalharem. E só fiquei sentido de não achardes vosso filho vivo, mas
sabei que teve uma morte, de todos os brancos invejada, de que podeis ter muita
consolação porque morreu como filho da igreja. Com que podemos crer que está no céu,
já lá tendes padres convosco para vos ensinar a doutrina, a vós, e a toda a vossa gente, e
vos dizerem missa, e tudo o mais que for necessário. Eu hei de ser vosso procurador, já
que vós quisestes no meu tempo conhecer como éreis obrigado ao príncipe de Portugal,
meu, e vosso senhor que só debaixo dessa obediência vos poderá Deus ajudar. E vos
guarde como desejo. Recife, 12 de novembro d 1678. Aires de Souza de Castro.
Anexo 4 - Carta de Aires de Souza de Castro a Gangazona sobre a sua vinda, de 12
de novembro de 1678.7
Gangasona8
amigo. Uma carta vossa tive os tempos atrás, e hoje me veio outra de
Antonio Pinto em que me diz que já vindes posto em marcha com muita parte da vossa
gente, e que a mais que fica há de vir com aviso vosso em companhia [?] do Zambim,
segurando-me que nenhuma há de ficar, assim o fio da vossa palavra, e tenho muita fé
nela, e quis Deus abrir-vos os olhos da cegueira em que vivia para virdes viver em nossa
companhia com tanta conveniência, e descanso e conhecer a luz da fé que é o caminho da
salvação o mais importante, e assim vos confirmo a palavra que vos dou em nome do
Príncipe de Portugal, meu e vosso senhor, para que vivendo vós debaixo da sua
obediência logreis os mesmos privilégios que logram os mais vassalos seus como
6 Disposições dos governadores de Pernambuco, vol. 1 (1648-1696), fls. 337-337v, n. 15. AUC, Coleção
Conde dos Arcos, VI - 3ª - I - 1 - 31. O título do documento é o que consta do índice do códice.7 Disposições dos governadores de Pernambuco, vol. 1 (1648-1696), fls. 337v, n. 16. AUC, Coleção
Conde dos Arcos, VI - 3ª - I - 1 - 31. O título do documento é o que consta do índice do códice.8 Ganasona, no original.
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[as]segurei a vosso irmão pelas condições que em um papel lhe mandei declarar, e os
vossos parentes, e mais gente que já nesta casa, e terra estiveram vo-lo terão assegurado,
pois viram o [...] com que foram tratados. E o mesmo haveis vós de experimentar, pois
vossa mulher e filhos e alguns que estavam para ir para o Reino, não quis mandar só por vo-los entregar, e vos agradecer a vontade com que vindes no tempo do meu governo dar
esta obediência. Deus vos guarde muitos anos. Recife, 12 de novembro de 1678. Aires de
Souza de Castro.
Anexo 5 - Cópia do papel que levaram os negros dos Palmares.9
Cópia do papel que levaram os negros dos Palmares
Aires de Souza de Castro Governador da Capitania de Pernambuco e das mais anexas por
S. A. que Deus guarde.
Em nome do Príncipe de Portugal meu e vosso senhor vos remeto a vós
Gangazumba10
o bem da liberdade e perdão de [ileg - carimbo do AHU] há tantos anos
fora da nossa obediência, e por mandardes todos vossos filhos e família a lançar a meus
pés e pedir perdão da obediência a que até agora faltastes vos concedo o que por este
papel vos prometo, no que não haverá a menor dúvida, tendo por mui firme que também
da vossa parte vós não faltareis ao que vossos filhos me vieram pedir, e segurar, e como
vos nisto tudo sois os mais interessados, parece que permitiu Deus dar-vos esta luz para
ser meio da vossa salvação, e terdes entre nós tantos interesses como vos concedo, e as
mais utilidades que vossos filhos experimentaram e vós de hoje em diante achareis da
mesma maneira, advertindo-vos que se com efeito não derdes comprimento ao que me
mandais oferecer no tempo assinalado deste papel que vos hei de mandar fazer a guerra
pelas tropas que já tenho juntas, de maneira que nenhum de vós outros há de escapar nem
ter quartel porque bem viram vossos filhos o poder que o Príncipe meu Senhor mandou
nesta ocasião em minha companhia para vos ir acabar de derrotar de todo.
Vossos filhos e família me prometeram em vosso nome que todos os negros
desses palmares, e os mais potentados deles vinham nesta paz, e que vós os obrigaríeis
9 Documento anexo à carta do governador Aires de Souza de Castro de 22 de junho de 1678
AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116.10 Gana zumba, no original.
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no caso que algum não quisesse fazê-la, e que prometíeis entregar todos os negros que
destas capitanias haviam fugido para esses Palmares.
Também me pediram para morarem e fazerem suas aldeias o sítio a que chamam
Cucaú
11
, e por vos fazer a vontade vos concedo a dita paragem e dela vos faço mercêficando vós outros moradores nela com vossa liberdade para poderdes plantar os vossos
frutos e terdes os mesmos lucros que têm os mais vassalos de S. A. que Deus guarde sem
vos obrigarem por força a nenhum trabalho particular salvo se for para o serviço do dito
senhor.
Todos vós outros os que fostes nascidos nesses palmares vos concedo alforria, e
ainda alguns filhos e mulheres que cá estavam cativos para irem para o Reino vo-los hei
de tornar a mandar [verso] restituir, e a vossa mulher e filhos, e porque o negro Amaro
que lá se acha terá receio por ser cativo nosso de vir, lhe dou a mesma alforria sem
embargo de ser mais culpado que todos, e ao outro a que chamam João Mulato concedo o
mesmo, e quando alguns se não queiram submeter a esta obediência, me avisareis logo
pelos enviados que vos mando para lhe mandar fazer a guerra como acima vos tenho
declarado. E para que vós vejais a estimação que nós fazemos da gente preta que obra
debaixo da nossa obediência vos mando esses dois um sargento maior e outro capitão de
infantaria soldados mui honrados e mui antigos porque como vos sabem a língua melhor
vos explicarão as vossas conveniências, E a firmeza de todo este papel, com que não
tenho mais que vos dizer, e vos fico esperando para vos fazer as honras que fiz a vossos
filhos, os quais ganharam tanto nesta vinda que cá vieram fazer que já vão batizados pela
graça de Deus e espero em sua divina misericórdia que a vós e a todos há de tocar dela
para que também venhais lograr esta dita, e na vossa cidade se vos hão de dar padres para
vos ensinarem a doutrina cristã para viverdes e morrer pela fé de Cristo que é só o
verdadeiro Deus. Ele vos guarde muitos anos Recife de Pernambuco. 22 de junho de
1678.
E por estes enviados me mandareis dentro de trinta dias a resolução do conteúdo
em todo neste papel. E se estais por ele e vos dou outros trinta para lhe dar cumprimento
e execução como neste se contém.
Aires de Souza de Castro.
11 Cucau, no original.
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Anexo 6 - Quadro comparativo dos documentos transcritos nos anexos 1 e 5.
Anexo 1
AUC, CA, VI - 3ª - I - 1 - 31, fls. 334-334v
Anexo 5
AHU_ACL_CU_015, Cx. 11, D. 1116
Aires de Souza Castro, governador da capitania
de Pernambuco e das mais anexas por Sua
Alteza, etc.
Em nome do príncipe de Portugal, meu
e vosso senhor, vos remeto a vós Gangazumba
o bem da liberdade, e perdão de viverdes há
tantos anos fora da nossa obediência. E por
mandardes todos nossos filhos e família a
lançar a meus pés a pedir perdão da obediência
a que até agora faltastes, vos concedo o que por
este papel vos prometo, no que não haverá a
menor dúvida, tendo por mui firme que
também da vossa parte vós não faltareis ao que
vossos filhos me vieram pedir e segurar. E
como vós nisto tudo sois os mais interessados,
parece que permitiu Deus dar-vos esta luz para
ser meio da vossa salvação, e terdes entre nós
tantos interesses como vos concedo, e as mais
utilidades que os vossos filhos experimentaram
e vós de de hoje em diante achareis da mesmamaneira, advertindo-vos que se com efeito não
derdes cumprimento ao que me mandais
oferecer no tempo assinalado deste papel que
vos hei de mandar fazer a guerra pelas tropas
que já tenho juntas, de maneira que nenhum de
vós outros há de escapar , nem ter quartel,
porque bem viram vossos filhos o poder que o
Príncipe meu senhor mandou nesta ocasião em
minha companhia para vos ir acabar , e derrotar
de todo.
Vossos filhos e família me prometeram
em vosso nome que todos os negros dessesPalmares e os mais apotentados deles vinham
nesta Paz, e que vós os obrigaríeis a fazê-la no
caso que algum não quisesse, e que prometíeis
entregar todos os negros que destas capitanias
haviam fugido para esses Palmares.
Também me pediram para morarem, e
fazerem suas aldeias, o sítio a que chamam
Cópia do papel que levaram os negros dos
Palmares
Aires de Souza de Castro Governador da
Capitania de Pernambuco e das mais anexas
por S. A. que Deus guarde.
Em nome do Príncipe de Portugal meu
e vosso senhor vos remeto a vós Gangazumba
o bem da liberdade e perdão de [viverdes] há
tantos anos fora da nossa obediência, e por
mandardes todos vossos filhos e família a
lançar a meus pés e pedir perdão da obediência
a que até agora faltastes vos concedo o que por
este papel vos prometo, no que não haverá a
menor dúvida, tendo por mui firme que
também da vossa parte vós não faltareis ao que
vossos filhos me vieram pedir, e segurar, e
como vos nisto tudo sois os mais interessados,
parece que permitiu Deus dar-vos esta luz para
ser meio da vossa salvação, e terdes entre nós
tantos interesses como vos concedo, e as mais
utilidades que vossos filhos experimentaram e
vós de hoje em diante achareis da mesmamaneira, advertindo-vos que se com efeito não
derdes comprimento ao que me mandais
oferecer no tempo assinalado deste papel que
vos hei de mandar fazer a guerra pelas tropas
que já tenho juntas, de maneira que nenhum de
vós outros há de escapar nem ter quartel
porque bem viram vossos filhos o poder que o
Príncipe meu Senhor mandou nesta ocasião em
minha companhia para vos ir acabar de
derrotar de todo.
Vossos filhos e família me prometeram
em vosso nome que todos os negros desses palmares, e os mais apotentados deles vinham
nesta paz, e que vós os obrigaríeis no caso que
algum não quisesse fazê-la, e que prometíeis
entregar todos os negros que destas capitanias
haviam fugido para esses Palmares
Também me pediram para morarem e
fazerem suas aldeias o sítio a que chamam
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Cucaú, e por vos fazer a vontade, vos concedo
a dita paragem, e delas vos faço mercê, ficando
vós outros moradores nela com vossa liberdade
para podereis plantar os vossos frutos, e terdes
os mesmos lucros que têm os mais vassalos de
S. A. que Deus guarde sem vos obrigarem por força a nenhum trabalho particular, salvo se for
para o serviço do dito senhor.
Todos vós outros os que fostes
nascidos nesses Palmares vos concedo alforria,
e ainda alguns filhos, e mulheres que cá
estavam cativos para irem para o Reino vo-los
hei de tornar a mandar restituir, e a vossa
mulher , e filhos, e porque o negro Amaro que
lá se acha terá receio de vir por ser cativo
nosso, lhe dou a mesma alforria, sem embargo
de ser mais culpado de todos, e ao outro que
chamam João Mulato concedo o mesmo, equando alguns se não queiram submeter a esta
obediência me avisareis logo pelos enviados
que vos mando para lhe mandar fazer a guerra
como acima vos tenho declarado, e para que
vos vejais a estimação que nós fazemos da
gente preta que obra debaixo da nossa
obediência, vos mando esses dois, um
sargento-maior e outro capitão de infantaria,
soldados mui honrados e mui antigos, porque
como vos sabem a língua, melhor vos
explicarão as vossas conveniências, e a firmeza
de todo este papel, com que não tenho maisque vos dizer. E vos fico esperando para vos
fazer as honras que fiz a vossos filhos, e espero
na Graça de Deus, e na sua divina Misericórdia
que a vós, e a todos há de tocar dela, para que
também venhais lograr esta dita. E na vossa
cidade se vos hão de dar padres para vos
ensinarem a doutrina cristã para viveres e
morreres pela fé de Cristo que é só o
verdadeiro Deus. Ele vos guarde muitos anos.
Recife de Pernambuco, 22 de junho de 1687.
Cucau, e por vos fazer a vontade vos concedo a
dita paragem e dela vos faço mercê ficando vós
outros moradores nela com vossa liberdade
para poderdes plantar os vossos frutos e terdes
os mesmos lucros que têm os mais vassalos de
S. A. que Deus guarde sem vos obrigarem por força a nenhum trabalho particular salvo se for
para o serviço do dito senhor.
Todos vós outros os que fostes
nascidos nesses palmares vos concedo alforria,
e ainda alguns filhos e mulheres que cá
estavam cativos para irem para o Reino vo-los
hei de tornar a mandar restituir, e a vossa
mulher e filhos, e porque o negro Amaro que lá
se acha terá receio por ser cativo nosso de vir,
lhe dou a mesma alforria sem embargo de ser
mais culpado que todos, e ao outro a que
chamam João Mulato concedo o mesmo, equando alguns se não queiram submeter a esta
obediência, me avisareis logo pelos enviados
que vos mando para lhe mandar fazer a guerra
como acima vos tenho declarado. E para que
vós vejais a estimação que nós fazemos da
gente preta que obra debaixo da nossa
obediência vos mando esses dois um sargento
maior e outro capitão de infantaria soldados
mui honrados e mui antigos porque como vos
sabem a língua melhor vos explicarão as
vossas conveniências, e a firmeza de todo este
papel, com que não tenho mais que vos dizer, evos fico esperando para vos fazer as honras que
fiz a vossos filhos, os quais ganharam tanto
nesta vinda que cá vieram fazer que já vão
batizados pela graça de Deus e espero em
sua divina misericórdia que a vós e a todos há
de tocar dela para que também venhais lograr
esta dita, e na vossa cidade se vos hão de dar
padres para vos ensinarem a doutrina cristã
para viverdes e morrer pela fé de Cristo que é
só o verdadeiro Deus. Ele vos guarde muitos
anos Recife de Pernambuco. 22 de junho de
1678.
E por estes enviados me mandareis
dentro de trinta dias a resolução do
conteúdo em todo neste papel. E se estais
por ele e vos dou outros trinta para lhe dar
cumprimento e execução como neste se
contém.
Aires de Souza de Castro.
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Avulsos
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Ordens RégiasDiversos I, III,
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Cx. 236 n. 51.Miscelanea - Coleção de curiosidades históricas e literárias ... dos séc. XVII eXVIII.Miscelanea - Papéis vários relativos a navegações, tráfico de escravos, etc. Cod8555 (microf. 5849)
Miscelanea Contas, apontamentos históricos, notícias várias... letras do XVII eXVIII 220fl. Cod. 427 (microf.F2864)Miscelânea Histórica dos séculos XVII e XVIII. Cod 11628 (microf. F5539)Miscelanea Papéis vários. Documentos históricos, peças literárias. Letra do sécXVII. Cod. 7647 -Relação verdadeira da guerra que se fez aos negros levantados do Palmar em 1694. Cod.11358 n. 37, fls. 75-101 Textos literários do século XVII. Cod 12932 (microf. FR 954)Coleção Pombalina
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Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Seção de Manuscritos (BNRJ-Ms)
"Descripção com notícias importantes do interior de Pernambuco como rio de SãoFrancisco, Porto Calvo, Palmares, cabo de Santo Agostinho, as distânciasde huns lugares aos outros etcetera, das partes mais férteis; costumes dosPalmares (negros) e modo como vivem seu regimen, dos damnos querecebem os portugueses d'eles: enfim o estado em que foram achados osPalmares, sobre a partida de Pero de Almeida contra os ditos, e adescripção do que se fez para a ruína, em que vierão a cair os Palmares".
Cartas de doação, de foral, diplomas, representações, e relações sobrealgumas minas, a conjuração mineira, Pernambuco, Bahia, Paraíba, Rio deJaneiro e Minas Gerais, invasão holandesa, entre outros, 1534-1792.BNRJ-Ms, 7, 3, 001, fls, 73-113, doc. 6.
Pareceres do Conselho Ultramarino referentes à administração da capitania dePernambuco, 1673-1696. (antigo Cod. II, 33, 4, 32; atual 22, 2, 68)
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