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NUANCES DA CULTURA E EXPRESSÕES IDENTITÁRIAS

NA BAHIA

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Universidade do Estado da Bahia - UNEB

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Editora da Universidade do Estado da Bahia - EDUNEB

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Tiago Santos SampaioCarolina Ruiz de Macedo

Organizadores

NUANCES DA CULTURA E EXPRESSÕES IDENTITÁRIAS

NA BAHIALeituras de continuidades e rupturas

EDUNEBSalvador

2015

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© 2015 AutoresDireitos para esta edição cedidos à Editora da Universidade do Estado da Bahia.

Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada, em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma.

Depósito Legal na Biblioteca NacionalImpresso no Brasil em 2015.

Ficha Técnica

Ficha Catalográfica - Sistema de Bibliotecas da UNEB

Editora da Universidade do Estado da Bahia – EDUNEBRua Silveira Martins, 2555 – Cabula

41150-000 – Salvador – BA [email protected]

www.uneb.br

Nuances da cultura e expressões identitárias na Bahia: leituras de continuidades e rupturas / Organizado por Tiago Santos Sampaio, Carolina Ruiz de Macedo. – Salvador: EDUNEB, 2015.

182p.

ISBN 9788578872946

1. Bahia - Cultura. 2. Identidade social - Bahia. 3. Pluralismo cultural. 4. Bahia - Usos e costumes. 5. Bahia - Identidade étnica. I. Sampaio, Tiago Santos. II. Macedo, Carolina Ruiz de.

CDD: 306

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - EDUNEB

Coordenação EditorialRicardo Baroud

Coordenação de Design Sidney Silva

Diagramação George Luís Cruz Silva

REVISãO TExTUALTiago Santos Sampaio

Carolina Ruiz de Macedo

CRIAÇãO DE CAPAAdriano Reis

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APRESENTAÇÃO 7

A NARRATIVA DA BAIANIDADE E A IMAGEM DE ACM: a tessitura político-discursiva do orgulho de ser baiano 13

Tiago Santos Sampaio

AS MULHERES DE SAIA E A INVENÇÃO DOS ÍCONES IDENTITÁRIOS: Trajetórias femininas negras em Salvador 35

Francisco Nunes

NARRATIVAS EM NEGOCIAÇÃO: etnicidade negra e negritude 55

Wagner Vinhas Batista

PERCUSSIVO, PLUGADO E ELETRÔNICO: identidades pulsantes no movimento musical baiano contemporâneo 75

Armando Castro

A BAHIA POR SEU MOSAICO NARRATIVO DOCUMENTAL 97

Carolina Ruiz de Macedo

RÁDIO COMUNITÁRIA E SIGNIFICADOS NA RECEPÇÃO: notas sobre a construção político-identitária no Território do Sisal 117

Vilbégina Monteiro

Sumário

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ENTRE REPRESENTAÇÕES E ESTEREÓTIPOS: o sertão na rota do discurso colonial 139Cláudia Vasconcelos

DISCURSO DE ORIGEM E IDENTIDADE EM LUANDA BEIRA BAHIA DE ADONIAS FILHO 159

Marcos Aurélio dos Santos Souza

SOBRE OS AUTORES 177

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APRESENTAÇÃO

A apresentação de uma coletânea sobre nuances da cultura e expressões identitárias na Bahia implica, de saída, recordar a complexidade desta temática já amplamente discutida, mas sempre recorrente. As dificuldades presentes no entendimento do campo cultural se refazem a todo o momento pela pluralidade dos seus elementos constituintes, suas constantes transformações, mobilidades, deslocamentos, e ainda pelos tensionamentos que perpassam a sua composição como espaço de produção de sentidos tributários de exercícios de poder e hegemonia. Igualmente desafiante torna-se a produção de entendimentos sobre as intricadas relações entre a cultura e identidade, termos contemporaneamente quase sempre interpelados a reboque um do outro, tal como se apresenta nesta coletânea.

Os estudos sobre a cultura evidenciam que embora estas relações tenham sido alvos de inúmeras discussões acadêmicas e proposições artísticas, a fluidez que engloba as ideias de cultura e identidade suscita o cuidado de não fechar a interpretação dos seus significados, mas entendê-los a partir da própria dinâmica em que estão envolvidos. Uma das expressões acadêmicas atuais deste aspecto se evidencia no tratamento dos termos cultura e identidade como noções, e não mais como conceitos acabados.

A perspectiva dialógica presente no campo cultural o constitui como espaço aberto de negociações, por meio do qual a produção de sentidos está comprometida com diversos aspectos advindos

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de campos como o da política, da economia e da esfera midiática. Estes, por sua vez, são também reflexos do caráter dual da cultura, uma vez que esta, ao mesmo tempo, configura e é reconfigurada por estas dimensões de ordem contextual. Assim, as diversas expressões em torno da temática da cultura, das identidades e das relações entre estas e os diversos campos explorados nos artigos presentes nesta coletânea, e em tantas outras discussões contemporâneas, evidenciam a necessidade de atualizar e produzir entendimentos sobre a multiplicidade de elementos que englobam as reflexões sobre o campo cultural.

Esta coletânea reúne artigos que representam diversas possibilidades de reflexão em torno de nuances da cultura e expressões identitárias na Bahia, a partir de uma pluralidade de objetos, olhares e escolhas teóricas que expressam as tentativas de compreensão destas noções também em suas relações com outras narrativas identitárias. A complexidade deste empreendimento se constitui por serem as noções de cultura e identidade atravessadas por diversas outras, igualmente densas, como discursos, narrativas, representações, ambivalências, hegemonias, estratégias etc. O jogo de relações conceituais indica a mobilidade e fluidez própria dos objetos tratados nesta coletânea, bem como dos percursos teórico-metodológicos eleitos para estudá-los.

A diversidade dos objetos aqui explorados é decorrente das diferentes trajetórias das pesquisas que compõem o grupo de pesquisa O Som do Lugar e o Mundo, coordenado pelo Prof. Dr. Milton Araújo Moura, que se reúnem para gerar esta coletânea. De modo geral, as propostas dos artigos funcionam como leituras dos movimentos de continuidades e rupturas próprios das expressões de cultura e identidade, cujas manifestações estão atreladas aos

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constantes tensionamentos na produção de sentidos que intentam firmar a legitimidade representativa dos seus signos a partir dos seus potenciais de emblematicidade, mas também de fissuras.

O texto A narrativa da baianidade e a imagem de ACM: a tessitura político-discursiva do orgulho de ser baiano, de Tiago Sampaio, investiga a associação da imagem de Antônio Carlos Magalhães com a narrativa da baianidade cuja dimensão estratégica foi fundamental para a obtenção de uma visibilidade favorável em um cenário marcado pela intersecção entre os campos político e midiático, portanto pela utilização planejada de recursos simbólicos. O olhar do autor está voltado para os mecanismos de apropriação dos signos emblemáticos da narrativa da baianidade enquanto marca dos discursos enunciados por e sobre o político nas mídias de massa, neste caso, dos discursos presentes no jornal Correio da Bahia durante a campanha de 1990 e à frente do governo da Bahia, entre 1991 e 1994.

O texto Narrativas em negociação: etnicidade negra e negritude, de Wagner Vinhas Batista, trata de duas narrativas com trajetórias significativas para a historicidade recente da comunidade baiana. O autor sugere pensar em termos de narrativas em negociação para enfocar um processo no qual as representações dos baianos e sobre os baianos convergem para movimentos de valorização da nova estética do negro a partir da década de 1960, e na invenção do afro na década de 1970, cujos enunciados possuem fortes repercussões sobre a configuração da noção contemporânea de identidade baiana. A partir daí propõe tratar das narrativas na perspectiva dos seus protagonistas para discutir por que as vozes da negritude no Brasil ocupam espaços inexpressivos nas reflexões produzidas por intelectuais brasileiros e por que estão sendo silenciadas.

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Em As mulheres de saia e a invenção dos ícones identitários: Trajetórias femininas negras em Salvador, Francisco Nunes reflete sobre a construção de ícones identitários, tomando de empréstimo os repertórios culturais e cotidianos de centenas de mulheres negras em Salvador e analisa como ocorreu o processo de transição entre a mercandejação de quitutes e a institucionalização do traje de baiana do acarajé, enquanto elaboração imagética de um dos mais emblemáticos ícones identitários de Salvador, ou seja, a invenção da baiana estilizada.

O texto Percussivo, plugado e eletrônico: identidades pulsantes no movimento musical  baiano contemporâneo, de Armando Castro, analisa o grupo musical Percussivo Mundo Novo, suas propostas, provocações estéticas e sua representatividade no atual movimento percussivo baiano contemporâneo. O autor parte do reconhecimento da percussão como um dos elementos identitários mais emblemáticos do campo cultural na Bahia e analisa o conteúdo presente nos sítios eletrônicos de artistas, grupos e intérpretes relevantes para a compreensão das relações entre percussão, identidade e representação embasado nas contribuições da Sociologia e dos Estudos Culturais.

Em A Bahia por seu mosaico narrativo documental, Carolina Ruiz de Macedo investiga a relação entre o gênero documentário e as representações identitárias na Bahia, entre 1990 e 2008. A autora faz um levantamento da produção fílmica documental baiana desse período e analisa se esta aponta para a introdução de novos elementos no cenário das características que representam a Bahia e o ser baiano, ou se reforça as referências já consolidadas de alegria, sensualidade e religiosidade, entre outras, evidenciadas como elementos-chave da identidade baiana pela narrativa denominada “baianidade”.

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No texto Rádio comunitária e significados na recepção: notas sobre a construção político-identitária no Território do Sisal, Vilbégina Monteiro discute os processos de recepção radiofônica do projeto político-identitário do Território do Sisal por parte da comunidade valentense não vinculada diretamente aos movimentos sociais. Com base nos estudos de recepção latino-americanos, o texto discute os processos de identificação e desidentificação com o projeto identitário, elegendo mediações como a geração, a religiosidade e a proveniência como categorias analíticas sobre os diversos modos de produção de sentidos.

Em Entre representações e estereótipos: o sertão na rota do discurso colonial, Cláudia Vasconcelos reflete sobre a construção da ideia de Sertão no imaginário brasileiro, bem como sobre a imagem do nordestino associada ao homem sertanejo, a partir de uma breve compreensão do cenário nacional entre o fim do século xIx e início do século xx, quando o processo de constituição da identidade nacional está em pauta como uma das principais discussões entre os pensadores brasileiros. Para tanto, o estudo promove um diálogo com alguns autores que, em diferentes épocas, traçaram um pensamento sobre o Brasil e a sua complexa representação, a exemplo de Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Renato Ortiz, Durval Muniz Albuquerque Jr., entre outros.

No texto Discurso de origem e identidade em Luanda Beira Bahia de Adonias Filho, Marcos Aurélio dos Santos Souza discute as noções de origem, fundação, início e gênese a partir da concepção de identidade racial e identidade nacional na obra Luanda Beira Bahia (1962) do escritor baiano Adonias Filho (1915-1990). O artigo visa investigar os paradoxos e incoerências do pensamento nacionalista e identitário, propiciadas pelas viagens, pelos cruzamentos

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inesperados de costumes e culturas dos personagens adonianos e outros elementos de descontinuidade, através de leituras teóricas, sintonizadas com uma revisão contemporânea dos estudos da história, estabelecendo ainda uma comparação com o filme Terra Estrangeira (1995) de Walter Salles.

Tiago Santos Sampaio e Carolina Ruiz de Macedo

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A NARRATIVA DA BAIANIDADE E A IMAGEM DE ACM

a tessitura político-discursiva do orgulho de ser baiano

Tiago Santos Sampaio

Introdução

O espaço de atuação da política contemporânea tem sido progressivamente reconhecido como lugar no qual se articulam instituições, práticas e agentes que produzem sentidos a partir da interseção com lógicas midiáticas massivas. A centralidade social destas demarca-se inclusive pelo potencial em determinar modos de apresentação e de posicionamento dos agentes políticos necessários para garantir uma visibilidade favorável. Nesta conjuntura, Antônio Carlos Magalhães – ACM – tornou-se, ao longo da sua carreira, um político reconhecido por orientar as suas ações no cenário político de modo a não apenas se adaptar a estas transformações, mas de utilizá-las estrategicamente. As diversas possibilidades de atuação conjeturadas por ACM para alcançar seus objetivos resultam, em grande parte, de sua configuração como um político midiático. Isto decorre não apenas de se tratar do proprietário de uma ampla rede comunicacional – a Rede Bahia –, como ainda de alguém que alcançou êxito no sentido de atuar segundo uma percepção própria

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da importância de sintetizar os campos políticos e midiáticos, de maneira a obter projeção regional e nacional e colher os dividendos positivos para a sua trajetória.

Uma das estratégias mais marcantes que situa a figura de ACM como um político bem adaptado ao cenário de convergência entre a política e a mídia, logo em um contexto que reivindica a utilização planejada de recursos simbólicos, se refere à associação entre a sua imagem e a baianidade. Esta é entendida aqui como uma narrativa que agrupa, por meio da formação de uma unidade discursiva, vários elementos culturais e tem o seu funcionamento associado a instituições e estratégias, dentre as quais as de natureza política. A narrativa da baianidade que discutimos está pautada, sobretudo, em sua concepção estereotipada; portanto, naquela em que se articulam traços culturais considerados emblemáticos e que podem ser reconhecidos na mídia e no âmbito político com a reafirmação e utilização estratégica de seus elementos.

Nas eleições de 1990, o discurso político que explorava elementos da narrativa da baianidade foi o principal recurso de marketing utilizado na sua campanha para as eleições do governo da Bahia com o objetivo de consolidar a sua imagem àquela do político que tem amor incondicional pela Bahia e ao seu povo. Um dos jingles da campanha (ACM, meu amor...) reafirmava esta ideia, que se consolidaria após a breve e polêmica administração de Waldir Pires (GOMES, 2001). Esse discurso foi amplamente utilizado por ACM e divulgado pelos veículos de comunicação, sobretudo pela Rede Bahia.

O retorno ao governo do Estado da Bahia, entre 1991 e 1994, se mostrou como um momento de consolidação do poder sustentado, sobretudo, pela cuidadosa gestão da sua imagem associada aos

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símbolos da narrativa da baianidade (DANTAS NETO, 2003). Em primeiro lugar, a baianidade funcionou como o cimento ideológico que conectou ACM ao povo, mantendo a coesão e a coerência da ideia de um político que amava a Bahia mais do que a si próprio e que, por isso, deveria ser visto como um legítimo representante dos interesses baianos. “O apelo midiático completava-se com a ostentação da paixão incondicional pela Bahia e com um espírito de revanche contra os seus inimigos” (DANTAS NETO, 2003, p. 223). A partir dessa concepção, ACM pôde reconstruir sua imagem, que estava ligada até a década de 1980 ao militarismo e ao golpe de 1964 – portanto associada a um autoritarismo autocrático (GOMES, 2001).

É sobre este último período de retomada do governo da Bahia que verteremos o nosso olhar a fim de verificar a associação entre a figura política de ACM e a narrativa da baianidade. Esta se realiza a partir da utilização de seus elementos emblemáticos nos discursos políticos como modo de acentuar uma diferença em relação aos seus opositores e instaurar uma espécie de gramática ao destacar o caráter de normatividade que indica os pré-requisitos políticos necessários àqueles que, porventura, desejem governar a Bahia. Não à toa a figura política tomada como referência para exemplificar tal aspecto era a do próprio ACM. Empreenderemos uma análise discursiva elegendo como corpus enunciados produzidos por e sobre ACM no jornal Correio da Bahia, entendendo-o como um espaço de enunciação privilegiado, já que esta mídia compunha a rede comunicacional criada pelo político.

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Dimensões Político-Ideológicas da Narrativa da Baianidade

A afirmação de que um dos aspectos da narrativa da baianidade diz respeito aos seus mecanismos retóricos não pode desconsiderar que estes se manifestam de formas distintas de acordo com o contexto em que a narrativa é acionada. Para Mariano, o discurso hegemônico, predominante sobre a baianidade a define como uma verdadeira “cosmogonia e proposta ética, que indica valores, princípios, crenças, normas de conduta, postula vocações, habilidades, aponta problemas, arrisca justificativas, soluções, alimenta esperanças” (MARIANO, 2009, p. 23).

Um ponto de vista que amplia a noção da baianidade para pensar a sua relação com a ideologia foi desenvolvida por Pinho (1998) sob o conceito de Ideia de Bahia. Esta se caracteriza por ser uma concepção que tem finalidades pragmáticas e é sedimentada e agenciada por um número determinado de agentes sociais e que se apresenta como uma rede de sentidos amplamente presentes no senso comum, capaz de determinar ou configurar uma forma de autorrepresentação dos baianos. A Ideia de Bahia reúne um repertório de traços em torno das noções de povo, tradição e cultura que são potencializados pelos meios de comunicação e são tratados como naturais e evidentes. Esta Ideia tem uma ligação direta com as estruturas de poder que se organizam de forma sofisticada e persuasiva, uma vez que constrói discursos que têm ampla aceitação popular e capacidade de difusão.

A Ideia de Bahia, segundo esta concepção, compreende

[...] (a) o ‘sentimento de diferença que baianos têm em relação ao resto do país e do mundo; (b) que este ‘sentimento’ é constituído a partir de narrativas

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específicas; (c) que estas narrativas condensam conteúdos particulares; (d) que estes conteúdos são ideológicos, no sentido interpretativista apresentado acima; (e) que esta ideologia é tanto a base para a construção de um consenso político com vistas a dominação, como a base para a reprodução de uma multiplicidade de bens simbólicos, negociados no mercado internacional de cultura (PINHO, 1998, p. 4).

Segundo Pinho, a narrativa que edifica a baianidade está a serviço da formação de um consenso político e é moldada por estes interesses, com a finalidade de dominação e de se constituir como uma argamassa ideológica capaz de escamotear as contradições sociais e raciais. A Ideia de Bahia é composta por diversos elementos de um repertório simbólico que dá sustentabilidade às práticas discursivas que orientam o consumo, a partir de um gosto estético e que define como verdade essencial uma natureza do povo baiano, a partir da ideia de mitos de origem e de uma celebrada diferença cultural baiana (PINHO, 1998).

Como narrativa que, muitas vezes, se apropria de uma concepção essencialista da cultura e que mantém forte relação com a noção de estereótipo, a construção discursiva da baianidade, segundo Pinho (2008), precisa ser repetida e fixada por meio do que denomina como uma pedagogia da baianidade e que se associa ao seu aspecto performativo (BOURDIEU, 2005). O autor questiona a validade dos elementos que compõem esta narrativa como algo natural, pois se assim os fossem não necessitariam ser tão intensamente propagandeados. Assim, o modo como se reitera tão vivamente “o conteúdo construído desse discurso revela quem são seus autores, que não são o ‘povo’, mas que falam em nome deste” (PINHO, 2008, p. 4).

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Haveria, segundo esta concepção, autores que estão legitimados para construir uma narrativa a partir do tratamento de alguns elementos que são escolhidos para fazer parte desta. O arranjo estereotipado criado e divulgado por estes autores através das suas formas de representar e interpretar a cultura constitui, assim, guias da cultura baiana que reiteram que esta é produto do isolamento cultural da primeira metade do século xx, enquanto que esta seria, ao contrário, uma criação deliberada de uma forma de imaginar uma comunidade livre das contradições sociais e por isso adequada para a construção do consenso político. Segundo Bourdieu (1998), os atos de criação linguística, que pretendem ser reconhecidos pelo status de servir como instrumentos normativos, não podem dispensar que as suas enunciações sejam feitas por atores legitimados socialmente e que estas ocorram de acordo com uma lógica ritual que recorde, aos demais, o poder simbólico de enunciar e de construir sentidos legítimos.

Moura (2001) afirma que a organização da baianidade enquanto texto é articulada a partir de contribuições de intérpretes, dentre os quais podemos citar: na música, Caymmi; Caetano e Gil; na literatura, Jorge Amado; e nas artes visuais, Carybé e Verger. Entendemos que a narrativa da baianidade se relaciona com estes intérpretes, sobretudo para a conformação dos elementos estéticos que a compõem, mas está inserida, sobretudo, como parte de uma estratégia do Estado em compor uma imagem da Bahia orientada para o âmbito do turismo e que se torna mais visível através da veiculação da mídia, que tende a acentuar o caráter estereotipado desta narrativa. Para Mariano, uma vez que se trata de uma cidade cuja vocação está bastante voltada para o turismo, não é possível preteri-lo da convivência e da construção permanente de uma

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imagem social. “É preciso sempre estimular a curiosidade sobre a Bahia, o interesse, a simpatia, a atribuição de importância, alimentar o desejo de conhecê-la” (MARIANO, 2009, p. 21).

Desta forma, haveria segundo Teixeira (1996), duas vertentes da baianidade. Uma que organiza os seus elementos para conferir os sentidos sobre o que é ser baiano para o próprio baiano; outra que é organizada para a sua projeção externa, vista como autêntica e que se caracteriza por ser calculada e artificial, tendo como finalidade básica a formação de uma imagem da Bahia para ocupar um espaço no cenário nacional. Esta conformação tem sido ao longo de diversos governos considerada como estratégica no sentido de marcar um lugar de reconhecimento e denotar a importância do Estado em termos culturais.

Também Brandão (1994) destaca a baianidade como um recurso de projeção de imagem que tem finalidades, sobretudo em termos políticos, servindo como uma moeda de troca e uma das formas de se exercer a brasilidade, assim como são o gauchismo, o mineirismo etc. A baianidade funcionaria, segundo esta ótica, como um código em um contexto na qual é utilizada nas esferas da política e do empresariado nacional. Os elementos privilegiados para a composição do repertório a ser utilizado mais uma vez reafirmariam a Bahia a partir de suas imagens consideradas típicas, como o lugar da preguiça, da alegria e da democracia racial.

A narrativa da baianidade se associa, assim, diretamente com o campo político e os critérios que determinam os elementos que a compõem não são de motivação apenas estética, mas decorrentes também da mobilização de forças políticas e da articulação de jogos de poder inseridos em estratégias viabilizadas por instâncias de natureza ideológica e por práticas discursivas. Nesse contexto,

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vemos Antônio Carlos Magalhães como um político que se relaciona diretamente com a narrativa da baianidade e que entendeu a sua dimensão cultural, mas, sobretudo, o seu potencial estratégico, dentre outras possibilidades, em servir como uma gramática para aqueles que pretendem exercer a política na Bahia. Uma das formas, pela qual ACM foi visto aqui, será a de um dos intérpretes da narrativa da baianidade, uma vez que estava incluído no rol dos sujeitos que gozavam de legitimidade para falar sobre a Bahia em termos estéticos e políticos.

ACM e a Narrativa da Baianidade no Correio da Bahia (1991–1994)

O discurso que retoma a narrativa da baianidade no período político enfocado exercia sua força por funcionar como um argumento da crença partilhada. Utilizado desde a eleição de Waldir Pires, o discurso da baianidade se consolida a partir de 1990 como “o cimento ideológico que aspira conectar elite e povo” (DANTAS NETO, 2003, p. 14). Almeida reforça a concepção da baianidade como uma estratégia de simplificação e essencialização. Para o autor,

A construção da imagem de um político precisa de uma palavra força, que exprima em síntese o que ele representa. Da mesma forma que a marca de um produto carece de uma mensagem síntese (um slogan, em inglês) que transmita ao consumidor o significado pretendido dele, um político também precisa apoiar-se em construtos, sob a forma de divisas, que sintetizem para o público o conjunto de idéias propugnadas em sua prática política. Daí surgiu o conceito da baianidade (ALMEIDA, 1999, p. 570).

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Esta concepção acentua o sentido empregado por Pinho (1998) ao se referir à Ideia de Bahia, como uma deliberação em escolher um conjunto de elementos emblemáticos utilizados com a finalidade de sustentação ideológica e para atender a fins políticos e eleitoreiros.

Embora a narrativa da baianidade tenha seus elementos centrais voltados para Salvador e seu entorno, durante a campanha de 1990, foi preciso utilizar tanto os elementos que apontam diretamente para este espaço quanto gerar uma ampliação desta concepção a fim de atingir grande parte do eleitorado de ACM que se concentrava no interior. Tal estratégia, por sinal, se revelou muito adequada, uma vez que ACM não tinha em Salvador a mesma popularidade que conseguiu construir no interior do Estado. A estratégia marca sua eficácia, pois compreende, “o uso de táticas de aproximação do político da realidade cotidiana da população” (NUNES, 2004, p. 365).

Assim, se

[...] apelou para a fé dos baianos numa campanha bem-produzida, extremamente emotiva (ACM, meu amor...) e explorando os símbolos sagrados da baianidade – as fitas, as figas e os santos da Igreja Católica e do candomblé, os vaqueiros de Curaçá e do São Francisco, a gente humilde do Recôncavo, Paraguaçu, as artes e a cultura da Bahia, o hino e a imagem do Senhor do Bonfim (FRANCO, 1992, p. 212).

A utilização da narrativa da baianidade está, portanto, associada, por meio dos construtos discursivos, à uma espécie de história de amor de ACM com a Bahia. ACM, enquanto chefe-soberano, quer dizer, aquele que se confunde com os valores que defende, aproxima-se da baianidade por ter com os signos desta

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uma relação de afeto, que o distingue como político. Este aspecto justifica os seus discursos e aqueles produzidos pelo jornal como a representação não apenas dos trâmites políticos, suas articulações e as relações entre os agentes deste campo, mas como o lugar em que estes aspectos ganham uma interpretação passional.

O discurso de posse de ACM mostra claramente esta observação e sintetiza praticamente todos os elementos utilizados na referência à narrativa da baianidade: “Os baianos jamais me negaram o seu apoio e o calor da sua amizade. Para eles, governarei com a alegria do amigo e o dever do homem público. Não me faltarão, como até aqui jamais me faltaram, as bênçãos do Senhor do Bonfim, sentinela e guia, do alto da Colina Sagrada, a me conceder a ‘graça divina da justiça e da concórdia’, para bem governar a Bahia e o seu povo. [...] E marcharemos juntos para tornar esta terra feliz e esse povo, como ele bem merece, trazer o seu sorriso, retornando ao desenvolvimento que a Bahia teve na década de 70 e no princípio de 80. Vamos para a grande vitória, fazer a redenção da Bahia que hoje caminha para frente e para o alto, com os baianos e o seu governador à frente”.1

A alegria do amigo e o dever do homem público expressam a articulação negociada entre as imagens de afetividade e competência que se revezam de acordo com as circunstâncias políticas e expectativas do público a quem ACM se dirigia. Ao citar, em diversos momentos, o Hino do Senhor do Bonfim, fica evidente a relação intertextual operada na superfície do discurso a fim de fazer com que o discurso funcione como elemento de ligação entre o político e o povo, como associação a uma crença partilhada. Em seguida, o

1 ‘VAMOS juntos reconstruir’. Correio da Bahia, Salvador, ano xII, n. 3691, 16 mar. 1991. Posse, p. 2.

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discurso da redenção é retomado, no qual o lugar ocupado por ACM é do condutor, do guia que conhece o caminho do progresso.

Os discursos enunciados por ocasião da reconstrução de locais que perfazem o patrimônio histórico e cultural da Bahia também são muito pródigos no sentido de observar a relação de ACM como a narrativa da baianidade. Alguns enunciados foram escolhidos para tal demonstração:

a) “Eu sei o que isso representa para tantos que amam a Bahia e quem ama a Bahia ama muito Salvador. [...] Aqui a Bahia vai viver, viver com o seu povo mais humilde participando das iniciativas do governo, e feliz, porque aqui vai ter Filhos de Gandhy, Olodum e tudo o que a Bahia tem de bom. [...] Este é um presente do meu governo à cidade de Salvador. Este é um presente do povo para o povo. Esta é uma data muito alegre no meu coração, este é um ato de fé, coragem e amor. Com fé, coragem e amor nós vamos salvar a Bahia e ajudar, quem sabe, salvar o Brasil”.2

b) “A Lagoa do Abaeté volta ao povo baiano e volta em toda sua plenitude e com toda sua beleza. Hoje o baiano se orgulha de aqui ter nascido, porque a Bahia é mesmo a boa terra”.3

São enunciados que compõem os discursos realizados em decorrência da recuperação do Centro Histórico de Salvador e da Lagoa do Abaeté. Além de serem obras utilizadas com a finalidade

2 O DISCURSO do governador. Correio da Bahia, Salvador, ano xIV, n. 4310, 31 mar. 1993. Poder, p. 3.

3 ABAETÉ será inaugurado sexta. Correio da Bahia, Salvador, ano xIV, n. 4439, 1 set. 1993. Poder, p. 3.

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de enfatizar a atenção que o governo da Bahia conferia a sua cultura, foram amplamente exploradas pela mídia controlada por ACM com o intuito de acentuar a capacidade de realização do político, aumentar a sua visibilidade nacional e competir com a então prefeita de Salvador Lídice da Matta, inimiga política contra a qual também utilizou o argumento do amor à Bahia.

Estas obras também aparecem nos discursos como uma prova de fé, coragem e amor, como um presente para que a Bahia possa vivenciar novamente uma sociabilidade inspirada em uma narrativa da baianidade exaltada a partir dos seus traços típicos e que servia muito bem à política cultural e turística implementada pelo então PFL (Partido da Frente Liberal). É interessante notar nos enunciados concepções acerca da baianidade que remontam tanto à sociabilidade festiva e de resgate da negritude como signo representativo, quanto à vivência bucólica inerente à Bahia como a boa terra da primeira metade do século xx. Ambas articuladas para uma composição acerca da narrativa da baianidade que conferisse sentido para os baianos e que, ao mesmo tempo, funcionasse como parte de um repertório cultural reconhecido fora da Bahia e de importância central em termos de apelo turístico.

Além de promover a visibilidade do seu governo ao investir em obras que se referem ao conjunto de elementos da narrativa da baianidade, a imagem pública de ACM, durante o mandato, esteve fortemente ligada a outros signos considerados representativos da Bahia, como a Igreja do Bonfim, as baianas de acarajé, os terreiros de candomblé, os filhos de Gandhi etc. Segundo os discursos de ACM, a identificação com estes elementos se apresentava como um dos pré-requisitos para qualquer pessoa que almeja governar a Bahia ter legitimidade.

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Alguns enunciados de discursos de ACM retirados de contextos situacionais descritos pelo Correio da Bahia expressam este aspecto. Na cerimônia de doação de uma sede para os filhos de Gandhi, ACM diz que “governador que não gosta dos Filhos de Gandhy e não vai ao Terreiro do Gantois não é governador da Bahia”.4 Em um encontro com as baianas de acarajé: “Sempre reconheci o valor das baianas na própria comunidade e como símbolo autêntico da Bahia para os turistas”.5 Em uma visita ao terreiro de candomblé conhecido como Casa Branca: “A minha religião é católica, mas um governador que queira servir bem à Bahia tem que respeitar a religião e a cultura baianas. Esta casa também é uma parte importante da Bahia”.6 “A Casa Branca é um símbolo da cidade e do estado, e é graças a esses símbolos que a Bahia é forte no Brasil e no mundo”.7 E na Lavagem do Bonfim: “acompanhar a fé e a devoção dos baianos é uma obrigação. Tirar lucro disto é um crime. [...] Isto não significa que os políticos não devem participar, pelo contrário, mas não para explorar politicamente”.8

Quando não enunciados diretamente por ACM, os discursos que tratavam de associar a sua imagem à narrativa da baianidade eram produzidos pelo Correio da Bahia com o intuito

4 GOVERNADOR doa sede para o afoxé Filhos de Gandhy. Correio da Bahia, Salvador, ano xIII, n. 3974, 19 fev. 1992. Poder, p. 3.

5 BAIANAS garantem o axé. Correio da Bahia, Salvador, ano xII, n. 3534, 11 set. 1990. Poder, p. 3.

6 ACM faz alerta aos baianos. Correio da Bahia, Salvador, ano xIV, n. 4367, 07 jun. 1993. Poder, p. 3.

7 FESTA reuniu vários políticos. Correio da Bahia, Salvador, ano xIV, n. 4379, 21 jun. 1993. Poder, p. 3.

8 CORTEJO usado como palanque. Correio da Bahia, Salvador, ano xII, n. 3947, 17 jan. 1992. Poder, p. 3.

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de consolidação de uma cenografia9 na qual ACM sempre aparece como um político totalmente integrado à sociabilidade festiva da baianidade, conhecedor dos seus códigos e intérprete dos seus significados. Ainda na campanha de 1990, assim o Correio da Bahia descreve um comício às vésperas da eleição: “No centro da praça, a bateria dos Filhos de Gandhy esperava o candidato ao governo, tocando sobre um palanque. Sempre cercado por muitas pessoas, ele desceu do carro, sob a chuva. O ex-ministro atravessou a praça e foi até onde estavam os Filhos de Gandhy. As pessoas dançavam ao som da bateria. Antonio Carlos Magalhães vestiu o turbante branco do afoxé e também gingou”.10

Outro exemplo pode ser observado numa matéria que descreve a participação de ACM na Lavagem do Bonfim: “Eu estive no dia 1º, depois na primeira sexta-feira e hoje volto porque creio. É uma crença verdadeira que tenho em relação ao Senhor do Bonfim [...]. Sou freqüentador desse banho todos os anos com meu povo’, disse Antonio Carlos, cercado pelas baianas que despejaram em sua cabeça, a água-de-cheiro que trouxeram em potes”.11 Aliás, a Lavagem do Bonfim se apresentava como uma ocasião privilegiada de promoção da sua imagem pública integrada à narrativa da baianidade e como cena de enunciação com a finalidade de corroborar este sentido. Os

9 De acordo com Maingueneau (2008), a cenografia se caracteriza como uma inscrição inserida em um processo por meio do qual se compõe um quadro que instaura uma cronografia e topografia nas quais o discurso se manifesta. A cenografia, que não é imposta pelo gênero, e sim construída na enunciação. Assim, por exemplo, uma consulta médica pode assumir uma cenografia de uma aula, se adotar um tom professoral.

10 FESTA e emoção em Salvador. Correio da Bahia, Salvador, ano xII, n. 3552, 1 out. 1990. Votar, p. 3.

11 ACM vai ao Bonfim e recebe o carinho do povo. Correio da Bahia, Salvador, ano xIV, n. 3454, 14 jan. 1994. Poder, p. 3.

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enunciados abaixo escolhidos servem como forma de observação deste aspecto:

a) O governador Antonio Carlos Magalhães voltou ontem, à Colina Sagrada e, mais uma vez pedir a proteção do Senhor do Bonfim em sua missão à frente dos destinos da Bahia. ACM é devoto do padroeiro dos baianos e, em sua campanha, sempre fez questão de ressaltar isso.12

b) “É aqui que venho buscar a minha saúde e a razão de ser para fazer política. O Senhor do Bonfim é o meu inspirador e o inspirador da Bahia. É graças a ele que tudo se realiza de bom”.13

c) “Toda a população está nas ruas. É o povo vibrando, vestido de branco, rogando ao Senhor do Bonfim que ajude os baianos, a Bahia e o Brasil a vencer os grandes obstáculos que temos pela frente”. O governador afirmou que a Festa do Bonfim é também uma crença, mas, sobretudo, é uma festa de alegria onde todo o misticismo se expressa na homenagem ao Nosso Senhor do Bonfim. [...] ACM ressaltou a reunião de todos os credos durante a festa, o que considerou interessante, exatamente porque sincretismo é a marca da Bahia. “É preciso que se diga a verdade. Tudo na Bahia é maior, o Carnaval da Bahia é o melhor, a Festa do Bonfim é a maior e todas as festas

12 ACM. Correio da Bahia, Salvador, ano xII, n. 3694, 20 mar. 1991. Poder, p. 2.

13 BAIANOS rezam missa no Bonfim pelo aniversário de ACM. Correio da Bahia, Salvador, ano xIII, n. 4139, 5 set. 1992. Poder, p.3.

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crescem a cada dia. Por isso, todos têm orgulho de ser baiano”.14

A relação de ACM com a Igreja do Bonfim aparece no Correio da Bahia reiteradamente como modo de significar um hábito de visitá-la, uma rotina que o legitimava como político eminentemente baiano, como “aquele que sabe interpretar o sentimento de um povo que cultua o misticismo, o benzer-se às sextas-feiras e vestir-se de branco em deferência a Oxalá, uma maneira única de viver no país” (FRANCO, 1992, p. 199). Este sentido se completa quando o próprio ACM descreve a festa, mostra conhecer os seus rituais, exalta o misticismo e o sincretismo como valores típicos da Bahia e enaltece a festa. ACM demonstra intimidade com os signos da baianidade, neste caso, expresso na sua religiosidade e gratidão uma vez que, para ele, o Senhor do Bonfim teria guiado os seus passos e atendido os seus pedidos “Eu pedi, e ele me deu, o amor do povo da Bahia e de Salvador”15. A interpretação conferida às ações dos seus adversários que não visitam a Igreja é utilizada como estratégia de estigmatização da origem do mal: “porque eles não acreditam na força desta Colina. Eles não acreditam em Deus, são todos materialistas”.16

De acordo com Almeida, “conhecedor dos desejos baianos, ACM e seus marqueteiros entregavam-lhes o que desejavam: obras, estradas, Pelourinho, discursos sobre baianidade e um suposto orgulho de ser baiano” (1999, p. 505). Este foi oportunamente trabalhado como ideia que alavancaria a campanha de ACM para

14 UMA FESTA que ganhou o mundo. Correio da Bahia, Salvador, ano xIV, n. 4549, 14 jan. 1994. Poder, p. 3.

15 ACM, Manoel e o povo vão em caminhada ao Bonfim. Correio da Bahia, Salvador, ano xIII, n. 4157, 26 set. 1992. Poder, p. 3.

16 ACM, Manoel e o povo vão em caminhada ao Bonfim. Correio da Bahia, Salvador, ano xIII, n. 4157, 26 set. 1992. Poder, p. 3.

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o Senado e que serviu como uma síntese da imagem da Bahia como terra da felicidade, cujos progressos, adquiridos sob a condução de ACM, deveriam orgulhar os baianos de vivenciarem um momento de relevante crescimento econômico e social. Por isso, ACM enuncia que os dividendos que obtém com a política são decorrentes da felicidade e satisfação do povo e, por esta ótica, este é o maior beneficiado por não mais cometer erros e eleger o melhor para a Bahia. É o que mostra em um dos seus pronunciamentos, em 1992: “Por mais que eu trabalhe, por mais que eu realize, se o povo não estiver feliz, eu não estou feliz. E é por isso a vantagem de um governo sério. Quando vocês votaram em um governo sério, vocês ganharam. A Bahia ganhou”.17

A Bahia reencontra, segundo ACM, “o seu destino de seriedade, de administração competente, de grandeza e é por isso que todos se irmanam, sem credos políticos ou ideológicos, diante de um sistema que exige a união de todos, para torná-la cada vez maior e melhor”.18 Trata-se, portanto, de reafirmar a concepção de uma identidade cultural como narrativa de um povo com uma origem comum que caminha coesa e cujas diferenças são costuradas a fim de se alcançar um futuro glorioso e mítico (HALL, 2003). A figura de ACM no alcance deste objetivo tem um papel de centralidade, uma vez que encarna a imagem do herói, motivado pelo amor a sua terra, determinado a operar uma grande transformação social para salvar o seu povo. Por isso, ao final da sua história à frente do governo da Bahia, não vacila em se colocar nesta posição: “Eu pude fazer a

17 O PRONUNCIAMENTO do governador. Correio da Bahia, Salvador, ano xIII, n. 3994, 16 mar. 1992. Poder, p. 2.

18 ‘CUMPRI o meu dever pela Bahia’. Correio da Bahia, Salvador, ano xV, n. 4612, 31 mar. 1994. Poder, p. 3.

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recuperação moral, política e administrativa do estado que encontrei totalmente destroçado. Moral, política e administrativamente. [...] Aliás, devo dizer que, em cada ato do governo havia fé, coragem e muito amor. É a minha identidade com o meu povo”.19 Esta recuperação do Estado é construída discursivamente como o argumento do orgulho de ser baiano. Segundo ACM, “o povo da Bahia voltou a ser feliz, passou a acreditar em si, a viver com mais independência e enxergar novas perspectivas”.20

Ainda em 1992, ACM dá indícios da sua pretensão a uma futura candidatura para o Senado, mesmo acentuando uma motivação de ordem afetiva e não política: “A política não me levará para altos vôos. O meu vôo é a Bahia. Eu prefiro muito mais ser senador pela Bahia do que outro posto, mais alto que ele seja. A Bahia é o meu ninho, o meu lugar, o meu caminho. É por essa terra que eu vou lutar. Tudo isso que tenho encontrado do meu povo, eu vou retribuir com trabalho”.21 O sentido progressivamente engendrado, desde então, ocorre pela mediação de um discurso de justificação que aponta para uma razão superior: quanto mais elevado politicamente ACM conseguir chegar, melhor poderá empreender a sua luta em favor dos interesses baianos. Ao contrário da saída de Waldir Pires do governo da Bahia, duramente criticada por ACM e interpretada pelo Correio da Bahia como o tiro de misericórdia de um estado de melancolia, o afastamento de ACM foi narrado como

19 A REAFIRMAÇãO do compromisso com a Bahia. Correio da Bahia, Salvador, ano xV, n. 4612, 31 mar. 1994. Poder, p. 5.

20 AGRADECIMENTO ao povo baiano. Correio da Bahia, Salvador, ano xV, n. 4840, 31 dez. 1994. Poder, p. 3.

21 COMPROMISSO com a Bahia. Correio da Bahia, Salvador, ano xIII, n. 4096, 17 jul. 1992. Poder, p. 3.

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um estado festivo de reconhecimento popular e mais um momento de manifestação da baianidade como fator de coesão social. Eis a descrição do jornal em relação a este momento: “A Bahia fez festa, ontem, para se despedir de seu governador mais querido. Antonio Carlos Magalhães deixa o governo do estado depois de três anos que ficarão na memória dos baianos. E vieram todos. Baianas, crianças, blocos afros, afoxés, artistas, autoridades e, é claro, o povo. Desde as 16 h 40, o Campo Grande começou a ficar com cara de ‘Orgulho Baiano”.22

O senso de oportunidade de ACM em conferir aos fatos uma significação que lhe fosse conveniente transparece em sua saída do governo como mais um momento em que se pode manifestar pela Bahia um amor no limite das suas possibilidades. Em sua despedida para assumir a candidatura ao Senado afirma, explorando o tom emotivo e de afetividade que conduz sua trajetória política no período democrático: “hoje, eu posso dizer feliz, muito feliz mesmo, que todos nós temos orgulho de ser baiano. Eu posso dizer que só em minha terra, de minha terra e para minha terra tenho vivido. Incapaz de servi-la quanto devo, prezo-me de amá-la o quanto posso. [...] Meus amigos da Bahia, eu me contenho nesse instante, mas não dou um adeus. E um abraço e um até logo. Eu estarei ao seu lado sempre, onde quer que eu esteja. Você está no meu coração porque eu sei que estou no coração do povo da minha terra”.23

Com a renúncia de ACM em abril de 1994, junto com o seu vice, Paulo Souto, assume interinamente o governo o Presidente

22 A FESTA do povo nas ruas. Correio da Bahia, Salvador, ano xV, n. 4612, 31 mar. 1994. Poder, p. 5.

23 A REAFIRMAÇãO do compromisso com a Bahia. Correio da Bahia, Salvador, ano xV, n. 4612, 31 mar. 1994. Poder, p. 5.

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do Tribunal de Justiça Ruy Trindade e, em seguida, Antônio Imbassahy. ACM pôde continuar dirigindo, indiretamente, os rumos do Estado e construir sua candidatura para o Senado a partir da mesma lógica discursiva que até então tinha dado bons frutos. Agora, ao rogar as bênçãos do Senhor do Bonfim ACM pedia: “Nos abençoe para cumprirmos nossos deveres pela Bahia e que, no governo ou no Senado, sejamos dignos dos baianos numa hora tão importante de nossas vidas, que se confundem com o destino do Brasil”24, mas também não deixava de frisar “Vou fazer tudo pelo Brasil, mas sempre com o pensamento voltado para a Bahia, que é a razão da minha vida”.25 O diferencial, neste contexto situacional, é que a narrativa da baianidade ganha um realce de brasilidade fundamental para a projeção política de ACM no cenário nacional.

Referências

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BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. 2. ed. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1998.

24 TRABALHO de ACM tem reconhecimento. Correio da Bahia, Salvador, ano xV, n. 4766, 3 out. 1994. Votar, p. 3.

25 TRABALHO de ACM tem reconhecimento. Correio da Bahia, Salvador, ano xV, n. 4766, 3 out. 1994. Votar, p. 3.

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FRANCO, Tasso. Waldir x ACM, a disputa na Terra de Todos os Santos. In: GRANDI, Rodolfo; MARINS, Alexandre; FALCãO, Eduardo (Org.). Voto é marketing ... o resto é política: estratégias eleitorais competitivas. São Paulo: Loyola, 1992.

GOMES, João Carlos Teixeira. Memórias das trevas: uma devassa na vida de Antonio Carlos Magalhães. São Paulo: Geração Editorial, 2001.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

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MARIANO, Agnes. A invenção da baianidade. São Paulo: Annablume, 2009.

MOURA, Milton Araújo. Carnaval e baianidade: arestas e curvas na coreografia de identidades do carnaval de Salvador. 2001. 364 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea)

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PINHO, Osmundo. O Discurso da Baianidade Surgiu em Ambiente Político. Jornal A Tarde, Salvador, 6 de set. 2008. Cultural, Caderno 2, p. 4-5.

TEIxEIRA, Cid. Entrevista. Pré-Textos para Discussão (Bahianidade), Salvador, v. 1, n. 1. p. 9-13, 1996.

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AS MULHERES DE SAIA E A INVENÇÃO DOS ÍCONES

IDENTITÁRIOS trajetórias femininas negras em

Salvador - aproximações ao objeto

Francisco Antonio Nunes Neto

[...] a construção da identidade é tanto simbólica quanto social.

Kathryn Woodward

Introdução

Cantada, versada e proseada, a Bahia, mais precisamente Salvador, desde os idos coloniais não passou incólume aos olhos, primeiramente, dos viajantes. Ao longo de sua história, a Bahia continua figurando como tema de um sem-número de representações seja no/do cancioneiro “popular”, nas artes plásticas, na literatura, na dança, no teatro ou no cinema. É possível dizer que há uma quantidade significativa de registros e representações sobre Bahia e baianos (MOURA, 2001) que não cessa de serem, tanto (re)visitados quanto (re)elaborados, (SANTANNA, 2009).

Tomando como referência o conjunto de pesquisas, estudos e formas de representações existentes sobre Bahia e baianos, o

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objetivo da discussão que se pretende efetivar nas páginas seguintes, é problematizar como a baiana estilizada converteu-se em um dos mais emblemáticos ícones identitários, aos nossos dias, largamente utilizado desde em cartões postais até em receptivos de eventos (inter)nacionais das mais diversas ordens, o que nos possibilita dizer sobre uma espécie de movência e pluralidade que o ícone alcança e projeta identidades pelo símbolo que constitui (SILVA, 2000).

Presentes na história dos (a)grupamentos humanos, as mulheres e suas práticas culturais – pelo menos até segunda década do século xx – passaram ao largo da escrita histórica considerada oficial, tanto na perspectiva de sujeito/objeto de investigação, quanto como proponentes de investidas e iniciativas de composição e elaboração dos registros de suas trajetórias, que malogradamente, em diversos aspectos, entraram para as grandes narrativas históricas através da compreensão masculina que até finais do século xIx criou ao seu critério o que deveria ser considerado como sujeito/objeto da escrita histórica oficial.

Obviamente, as mulheres não se mantiveram “caladas, acuadas, castradas... quietas e felizes” (RO RO, 1985). Ao contrário, os repertórios das ações femininas nas diversas sociedades em que estavam inseridas, se não recebiam grafias na chamada “grande história”, por outro lado, fizeram-se registrar cotidianamente nos embates travados entre gêneros no interior de suas práticas sócio-culturais e de sociabilidades. Embora atuantes nas ações dos seus contextos históricos, as mulheres e os repertórios culturais que compunham suas ações cotidianas foram “silenciados”, “sufocados” nos textos/registros históricos positivistas que as limitavam à condição de apêndices e coadjuvantes na/da escrita histórica.

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Na segunda década do século xx, mais precisamente em 1929, na França, o movimento denominado Annales, através da História dos Annales, passou a reivindicar para si a tarefa de (re)significar o “ofício” de historiador inaugurando uma concepção de História enquanto saber interdisciplinar encarregado em efetivar o registro das formas de ser-estar no mundo dos grupos humanos, através de um novo olhar lançado pelos historiadores sobre os repertórios culturais e as inúmeras formas de registros deixadas como fontes de pesquisas históricas, sejam materiais ou imateriais.

Os historiadores da Escola dos Annales francesa passaram a propor o alargamento da compreensão não apenas da história enquanto saber disciplinar, mas de uma história-registro que inaugurasse, inclusive, outras perspectivas quanto aos usos das fontes documentais até então denominadas “oficiais”. Dessa maneira, como escafandristas, os historiadores, enquanto pesquisadores, inauguraram novo trato com os objetos de produção de conhecimento histórico, da mesma forma que introduziram na produção de conhecimentos novas fontes, objetos e problemas (LE GOFF, 1998).

Neste sentido, as discussões que doravante darão sustentação à argumentação que compõe esse texto, visam estabelecer aproximações com o objeto de/da pesquisa de doutoramento sobre a construção de ícones identitários, tomando de empréstimo os repertórios culturais e cotidianos de centenas de mulheres negras em Salvador. Através desses caminhos, o intuito é refletir como ocorreu o processo de transição entre a mercandejação de quitutes e a institucionalização do traje de baiana do acarajé, a elaboração imagética de um dos mais emblemáticos ícones identitários em/de Salvador: a baiana estilizada, ícone identitário da chamada, cultura baiana.

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Contribuições para o estudo das mulheres negras: cercando o objeto...

Embora a historiografia registre a década de 1920, na França, como marco de invenção de uma nova escrita histórica que representou o estabelecimento de outros objetos de pesquisa relativos ao universo feminino, essa produção historiográfica massivamente ganhou maior fôlego a partir da década de 1970 do mesmo século, quando temas como relações entre gêneros, masculinidade, família, criminalidade, religiosidade, etnicidade, infância, sexualidade, dentre outros, passaram a fazer parte da ocupação do ofício dos estudiosos das culturas, naquele contexto entendidos como etnógrafos, historiadores e sociólogos. Para a historiadora Priore (2000, p. 57),

[...] O interesse que a história da mulher recebeu no estrangeiro teve um primeiro reflexo no Brasil ao final dos anos 70. Desde 1978, os pesquisadores da Fundação Carlos Chagas de São Paulo começaram a coletar material para a realização de uma bibliografia concernente a trabalhos, na área de ciências humanas, voltados para o tema ‘mulher’. O papel relevante desta fundação para estudos sobre mulher não parou aí [...] Vários historiadores, debruçados sobre as fontes egressas das instituições de poder – Igreja ou o Estado – varriam os escaninhos da vida social no Brasil colonial e imperial, e também republicano, em busca de práticas que se desviavam da norma no campo dos amores e do imaginário. Surgiram, assim, em artigos, teses ou livros, as histórias das concubinas, das prostitutas, das escravas rebeldes, das freiras, das lésbicas, das defloradas, das mal faladas, das pecadoras, das doidas, das pobres, das escritoras femininas.

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Da mesma maneira, os estudos sobre o universo feminino decorrem das duras investidas e críticas estabelecidas pelos movimentos feministas da década de 1960 “tanto como uma crítica teórica quanto como um movimento social” (HALL, 2005, p. 44). Os novos movimentos sociais da década de 1960, segundo Stuart Hall, em linhas gerais emergiram como fruto das questões sociais relativas ao descentramento dos sujeitos num contexto em que as discussões sobre identidades estavam fortemente relacionadas, sobretudo com ano de 1968, contexto da chamada modernidade tardia, pós-modernidade ou seja qual for a sua denominação. Neste sentido,

• [...] Cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores. Assim, o feminismo apelava às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas, e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política de identidade – uma identidade para cada movimento.

• Ele (o feminismo – grifo meu) questionou a clássica distinção entre o “dentro” e o “fora”, o “privado” e o “público”. O slogan do feminismo era: “o pessoal é político”.

• Ele abriu, portanto, para a contestação política, arenas inteiramente novas de vida social: a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças, etc.

• Ele também enfatizou, como uma questão política e social, o tema da forma como somos formados e produzidos como sujeitos generificados. Isto é, ele politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (como homens/mulheres, mães/pais, filhos/filhas).

• Aquilo que começou como um movimento dirigido à contestação da posição social das

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mulheres expandiu-se para incluir a formação das identidades sexuais e de gênero.

• O feminismo questionou a noção de que os homens e as mulheres eram parte da mesma identidade, a “Humanidade”, substituindo-a pela questão da diferença sexual (HALL, 2005, p. 45-46).

As Mulheres de Saia e a invenção de ícones identitários em Salvador...

A expressão “mulheres de saia” aqui é tomada de empréstimo da cronista Hildegardes Vianna em A Bahia já foi assim (1979). Vianna nos apresenta um cortejo de mulheres que vestidas de saia, em sua maioria, perambulavam por Salvador, umas mercando um sem-número de serviços numa verdadeira via crucis sendo facilmente identificadas nas cenas e cenários cotidianos, apresentando uma cartografia da cidade; outras prestando serviços, na maioria das vezes, nas casas das famílias abastadas. Umas e outras, diariamente trabalhavam para uma clientela variadíssima, fosse nas casas afortunadas ou de médio porte socioeconômico ou nas ruas, em espaços como passeios, feiras e mercados públicos, atendendo a gente de “toda laia”, como enfatiza Vianna.

As “mulheres de saia” eram facilmente localizadas entre as famílias de baixa condição social, sendo elas a maioria negras. Tal alcunha para/por aqueles serviços prestados significava serem enquadradas como possuidoras de uma condição social menos favorecida, prestando serviços considerados “subalternos” e “humilhantes”. Se brancas, umas poucas, eram tachadas como “sem sorte”, mas o mais comum era encontrar naquelas lidas, as mulheres negras.

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Historicamente, umas conseguiram ascender economi-camente através dos serviços ofertados, mas elas representam um número diminuto. Tornaram-se, através de sua carga cênica, ícones identitários, historicamente visualizado/entendido como uma das mais emblemáticas e expressivas representações sobre a Bahia. De acordo com Vianna (1979, p. 148),

[...] As mulheres de saia assim perderam a sua antiga característica, ganhando outra que lhes tem dado entrada em meios elevados, aparecendo como uma nota curiosa. A personalidade mudou e os tempos mudaram. As mulheres de saia de ontem são as baianas de hoje. Salve a baiana!

Neste sentido, para esta pesquisa estamos rastreando os caminhos que conduziram à construção desse ícone cultural configurado na imagem das baianas estilizadas tal qual ainda hoje encontradas e apresentadas nos diversos meios de comunicação, na música, no teatro, no cinema e no cancioneiro como elemento de identidade e identificação. Portanto, estamos mapeando e catalogando o contexto da história de Salvador em que se instituiu o traje arquetípico do ser-representar Bahia, aqui também entendido como síntese imagética ainda hoje divulgada em outros lugares, pois

[...] a baiana, que tem graça como ninguém, enfeita sua roupa como poucas mulheres. Uma baiana de roupa lisa, “roupa sura” (para usar o termo regional) é coisa rara. Quando ela senta e as anáguas duras de goma emergem de sob as dobras da saia de seda ou chitão, quanta lindeza se vê! [...] É o tecido enfeitado que dá um tom principesco às vestes da baiana (VIANNA, 1979, p. 159).

As diversas formas de atuação feminina no comércio (in)formal daquele contexto histórico em Salvador estavam diretamente

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relacionadas à autonomia que as mulheres africanas haviam conquistado em muitas cidades do Continente, sendo responsáveis por uma articulada rede de mercados que interligava todo o território iorubá e de cujas descendentes aqui chegaram através da diáspora africana. Neste sentido, uma importante análise sobre as mulheres de tabuleiro na Bahia é feita por Pierre Verger em Fluxo e Refluxo: do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX ao comparar a rede africana das feiras com as que ocorrem nas Américas, Verger afirma que nas décadas primeiras do século xx, havia mulheres negras, escravas de ganho, que atuavam tanto nas feiras livres ao longo do dia como também em espaços públicos à noite, com seus turbantes, camisas rendadas, saias coloridas de algodão, sobrepostas por pano-da-Costa. Ainda, havia as que circulavam com seus tabueiros à cabeça, cobertos com um pano:

[...] Vai e se instala num canto da feira local, ou numa calçada, no ponto que lhe pertence de costume; ela senta num banquinho, põe ordem no tabuleiro e vende, aos apreciadores da comida africana, os acaçás, acarajés... Em alguns pontos da cidade, à noite, na luz vacilante dos lampiões, um grupo de baianas vende suas comidas ou pequenos objetos de perfumaria, recriando do outro lado do Atlântico a “feira noturna” dos vilarejos iorubás (VERGER, 1987, p. 87).

O etnógrafo, utiliza-se de notas encontradas em jornais baianos sobre as fugas e sumiços das escravas de ganho e seus tabuleiros postos nos mercados, feiras e ruas da cidade onde mercavam variados tipos de iguarias, desde frutas a comidas. Segundo Luis da Câmara Cascudo, em A Cozinha Africana no Brasil (1967), as mulheres negras colaboraram para a expansão da culinária africana no país. A sua presença na cozinha era indispensável e regular, o que não ocorria em outros locais, onde havia até quem condenasse a colaboração

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negra na cozinha, dada a carga pejorativa que conciliava em torno das mulheres negras a condição de incivilizadas e feiticeiras. Sendo assim, no processo de reordenamento dos espaços urbanos em Salvador, sobretudo na passagem do século xIx às décadas primeiras do século xx religião e culinária passam a compor as cenas e cenários dos espaços citadinos e ao invés das ganhadeiras (quituteiras), as baianas do acarajé parecem ter passado a fazer parte do cotidiano da cidade também como “elemento decorativo”, como se lê em Encantos Tradicionais da Bahia (1942) de Edgard de Cerqueira Falcão. Segundo observou,

[...] as baianas usam ainda hoje o seu traje tradicional, que trouxeram da África sudanesa, e cuja linha árabe lhes é característica. Vestem-se por um modelo inconfundível. O torso é o turbante muçulmano; o chalé substitui o albornoz; e, não se ocultam os véus, como odaliscas, pelo menos teem o gosto e a variedade de sua indumentária típica. Não apenas de suas roupas de cores vivas, como de sua arte de levar á cabeça o tabuleiro (tabuleiro da bahiana) e de fazer cantar nas calçadas as chinelas, como castanholas mantendo (grifo meu) a tradição dum comércio ambulante , discreto e familiar, que data de trezentos anos. Não perdem a fidelidade aos seus hábitos, ao seu negócio humilde às suas velhas ruas, herdada de geração a geração através de todos os períodos da história local (FALCãO, 1942, p. 30).

O traje da baiana tal qual entendemos e vemos cotidianamente, relaciona-se com a intervenção dos poderes locais determinando a forma de vestir das antigas quituteiras que ascenderam à condição de baianas estilizadas, sendo incorporadas como elementos decorativos do cenário urbano. Tal iniciativa insere-se num contexto da história da Cidade em que o reordenamento dos espaços públicos também

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se confundia com a vontade de normatização e moralização das práticas culturais, orquestradas através de iniciativas que visavam civilizar os costumes via esquemas de padronização de condutas (ELIAS, 1994).

As leituras realizadas nos jornais A Bahia, Diários da Bahia, Diário de Notícia, Estado da Bahia, Correio da Bahia, Diário da Tarde e A Tarde permite-nos constatar que existe uma farta quantidade de registros relativos às atividades de trabalho das ganhadeiras (quituteiras). Da mesma maneira, sobre o início da institucionalização e a estilização do traje de trabalho das baianas do acarajé. Naqueles periódicos, é possível observar como os poderes públicos locais tratavam das questões relativas à presença feminina no comércio de iguarias e quitutes. Para a municipalidade, a forma não “padronizada” como se vestiam as quituteiras no exercício da atividade de trabalho, contrariava os princípios estéticos e os ideais de civilitude tão caros e desejados quanto buscados através dos códigos de postura. No Jornal da Bahia, há uma matéria cujo título remete-nos às estratégias e indícios da construção do que estamos discutindo sobre a construção do elemento-ícone de identidade cultural. Na matéria intitulada “Fiscalização exigirá das baianas do acarajé o uso de trajes típicos”, lê-se

[...] o sr. João Pires, Diretor da Fiscalização Municipal, informou que reiniciou entendimentos com o departamento de Turismo de Salvador, no sentido de obrigar às vendedoras de acarajé o uso de indumentárias típicas, bem como o de cestas coletoras para o asseio da cidade. Frisou ainda o Diretor que o uso das vestes dão àquele tipo de comércio um caráter folclórico, além de outras vantagens para as próprias

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vendedoras, bem como para o aspecto turístico da cidade.26

Através da leitura dos periódicos, identificamos nos códigos de postura da municipalidade soteropolitana a construção de uma cartografia, na qual, as baianas devidamente estilizadas/padronizadas “poderiam” comercializar (SUPERINTENDÊNCIA DE TURISMO DE SALVADOR; SECRETARIA DE FINANÇAS DA PREFEITURA, 1964). Relativo ao processo de construção da padronização, encontramos no jornal da Bahia de janeiro de 1965 a seguinte matéria: “Baiana do acarajé só de saia rodada, torso e balangandãs”. Mais uma vez, notamos o que nos parece serem importantes pistas para esta discussão aqui proposta, qual seja, verifcar como o traje se converteu em ícone identitário da “cultura baiana”. Somado às exigências do uso da indumentária e dos locais fixos para a comercialização, acrescente-se que a obtenção da licença para a vendagem era concedida apenas às mulheres negras iniciadas nas seitas de matrizes sacro-africanas e que ainda fossem registradas na Federação das Baianas, órgão vinculado à Superintendência de Turismo de Salvador.

Nessa perspectiva, as diversas fontes e referências que dão sustentabilidade à esta pesquisa visam possibilitar uma melhor compreensão sobre como as baianas estilizadas que comercializam nos tabuleiros passaram à condição de ícones identitário, sendo assimilados como elemento-imagem-ícone-síntese da cultura e identidade na/da Bahia, embora não o único. Da mesma forma, as questões levantadas pelos Estudos Culturais nos possibilitam problematizar como alguns elementos tornam-se significativos nos processos de identificação e construção de identidades.

26 FISCALIZAÇãO exigirá das baianas do acarajé o uso de trajes típicos. Jornal da Bahia, Salvador, 9 ago. 1964.

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Roger Chartier, em A História Cultural: entre práticas e representações, coloca no centro da discussão o conceito de representação através do qual as práticas culturais são analisadas tanto como “uma coisa ausente” quanto como “exibição de uma presença”. O historiador articula o conceito em três “modalidades” que possibilita-o captar os sentidos das culturas:

1º o trabalho de delimitação e classificação das múltiplas configurações intelectuais, “através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos”;2º as “práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição”;3º as “formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns representantes (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade” (CHARTIER, 1990, p. 154).

Nos processos de identificação e elaboração de identidades, os ícones configuram-se de diversas maneiras, significando e simbolizando para diversos sujeitos no interior das dinâmicas culturais onde encontram-se inseridos/as, como elementos através dos quais os indivíduos em sua coletividade, vêem-se representados (ESCÓSSIA; KASTRUP, 2005) posicionando-se como sujeitos e identificando-se com uma extensa cadeia simbólica (WOODWARD, 2000). Ou ainda, como entende Hall (2005), as identidades em seus processos de identificação vão sem elaboradas ao longo das trajetórias existenciais humanas nas dinâmicas de sociabilidade. Logo, sociedade-indivíduos ou indivíduos-sociedade tecem em suas tramas cotidianas modos de existência experimentados através de um eterno devir (GUATTARI, 1998), fincados em tradições que

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são (re)inventadas ao longo da história (HOBSBAWM; RANGER, 1997).

O que é que a baiana tem, afinal?

Não menos complicado é dialogar com Dorival Caymmi sobre o tema respondendo tal indagação. Não menos fácil ainda é dizer como a baiana insurgiu e firmou-se no universo onírico masculino em detrimento ao não ser baiana, para além do fetiche, do dengo e da lascívia. O contexto histórico que tornou possível as baianas serem tomadas como tema e/ou inspiração remete-nos ao século xIx quando as negras baianas se notabilizaram não como oposição, mas como possuidoras de uma condição de ser-estar no mundo diferente das mulheres de outras regiões brasileiras. Essa forma de enunciação existencial dialoga necessariamente com a função social e cotidiana que as mulheres negras desempenharam nas cenas e cenários urbanos de Salvador desde o tempo em que ainda eram escravas de ganho. Na Bahia, pós 1850 e 1888, uma leva de mulheres negras transferiu-se para o Rio de Janeiro, então Capital Nacional, levando consigo um conjunto de práticas culturais que ajudou a configurar na Baía de Guanabara outras imagens e representações sobre Bahia e baianos, sendo incorporadas na vida carioca como personagens nas festas “populares” como o carnaval e também no Teatro de Revista.

E como decorrência das atuações diárias de milhares de mulheres negras nas cenas e cenários da Cidade, por exemplo, da atuação marcante na movimentação da economia (in)formal, se notabilizaram, sobretudo, pelo importante trabalho que faziam e por disputarem com os homens os lugares e espaços entendidos como

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de ocupação masculina: a rua. Estar na rua, nos espaços públicos e ruidosos conferiu às negras baianas espécie de notabilização, embora saibamos que a Bahia não tenha sido a única região do País que recebeu até, pelo menos 1860, milhares de levas de escravos (TAVARES, 2001).

Dentre as coleções dos acervos do Museu Histórico Nacional há um conjunto de seis estatuetas de madeira sendo que cinco pertencentes à Coleção Miguel Calmon e uma à Coleção Djalma da Fonseca Hermes. As estatuetas foram analisadas por Gerardo de Carvalho nos Anais desta instituição. Segundo observou

[...] das figuras femininas, cinco nos mostram negras vendendo a sua mercadoria, enquanto uma única nos apresenta uma negra com traje domingueiro que se popularizou como traje de negra baiana, ou simplesmente, traje de baianas. As cinco primeiras apresentam indumentária bastante simples, constituído numa modesta bata ou vestido amarrado à cintura, de gola larga às vezes enfeitada caindo sob um dos ombros. À cabeça trazem um torço sobre o qual usam uma rodilha que atenua o peso da mercadoria levada na gamela, de madeira ou de barro (CARVALHO, 1949, p. 74).

No conjunto de estatuetas acima mencionado, cinco baianas retratam o cotidiano de trabalho ambulante das mulheres negras que nas lidas diárias sustentavam a si e aos seus através dos ofícios de ganho que naquele contexto era passado entre gerações. De tudo mercavam nas gamelas e tabuleiros: desde frutas a peixes e mariscos; uma estátua, porém, retrata a baiana que se popularizou conhecida como “domingueira” ou vestida com um traje “domingueiro” aquele reservado e destinado aos eventos sociais, como as missas. Segundo ainda observou Carvalho (1949, p. 74) sobre as vestes das baianas,

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“representa um artifício de propaganda para seu pequeno negócio já que também nas festas tradicionais da Bahia e especialmente nos Candomblés elas comparecem vestidas da mesma maneira”, e completa o analista que tais indumentárias eram utilizadas como “propaganda” do País. Ainda, como parte importante da composição da indumentária a imprescindível penca de balangandãs formava o arquétipo baiana em toda sua carga cênica. Bastante ruidosos, os balangandãs, segundo Garcia (2004, p. 109).

[...] eram amuletos dos mais variados, pendurados numa penca comum e levados geralmente à cintura: bolas de louça, figas, saquinhos de couro (contendo ‘suratas’ do alcorão, sangue de carneiro, ervas e outros preparados), dentes de animais, medalhinhas de santos católicos, crucifixos, ex-votos (como os olhos de Santa Luzia) e frutas tropicais, como por exemplo a romã, a uva, o caju e ainda miniaturas de animais como o carneiro (animal votivo de xangô).

É bastante curiosa como a forma de ser-estar das baianas tenha sido convertida em inspiração para elaborações de diversas formas de representações sobre a Bahia. Em certo sentido, parece ter havido o desejo de querer sê-las à medida que tal figura congregava uma série de significados ao mesmo tempo: da mulher independente, da rua, do trabalho, da luta, da lascívia, do desacato, do fetiche, do encantamento, sendo objeto de desejo, inclusive entre as mulheres não negras indistintamente à classe social que pertencessem, como a Princesa Isabel que durante sua viagem de núpcias pela Europa fora convidada a participar de um bal-masqué, nele tendo comparecido trajada de preta-baiana. O que poderia ter conduzido a Princesa Isabel à escolha de tal traje? O que tal indumentária significava no imaginário masculino e feminino naquele contexto?

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No Teatro de Revista produzido não apenas no Brasil no contexto de finais do século xIx e primeira metade do século seguinte, não foram raras as montagens e números nos quais estrelas-intérpretes do porte de Ana Manarezzi (grega), Pepa Ruiz (espanhola), Carmen Miranda (portuguesa), Araci Cortes (brasileira) e Otília Amorim (brasileira) representavam serem baianas, embora caiba dizer que a baiana estilizada por Dorival Caymmi para Carmen Miranda em nada se assemelha às demais apresentadas pelas artistas em questão. Algumas dessas mulheres estrangeiras e brancas como Pepa Ruiz chegaram a pintar o corpo de preto para interpretar a mulher negra baiana em 1892 na revista Tim-tim por Tim-tim de Souza Bastos. Ainda, segundo Garcia (2004, p. 111),

[...] Carmen Miranda não tinha nenhum vínculo mais forte com a tradição baiana, além da proximidade com o samba. Seus laços identitários eram com a cidade espetáculo, com o mundo de entretenimento, estes sim os principais responsáveis pela re-invenção da indumentária. A baiana imaginada – menos regional e mais cosmopolita – era resultante de um filtro que, interposto inconscientemente por Carmen, a levou a enfatizar ou emitir certos aspectos típicos do traje e acrescentar outros a partir de suas referências.

Isto posto, embora importante para o estudo sobre identidades e processos de identificação, aqui não nos interessa a baiana estilizada apresentada ao mundo por Carmen Miranda, mas sim a baiana estilizada ainda vista em cada esquina e ruas da Cidade do Salvador através das quais podemos pensar como se converteram em símbolos-ícones identitários sobre Bahia e baianos. É a partir delas que a pesquisa em questão estabelece espécie de etnocartografia sobre sua conversão em ícones da cultura na/da Bahia. Mas, o resultado disso tudo, só nos próximos capítulos dessa história!

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Referências

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ESCÓSSIA, Liliana da; KASTRUP, Virgínia. O conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo-sociedade. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 10, n. 2, p. 295-304, maio/ago. 2005.

FALCãO, Edgard de Cerqueira. Encantos tradicionais da Bahia. São Paulo: Martins, 1942.

GARCIA, Tânia da Costa. O “it verde e amarelo” de Carmen Miranda (1930-1946). São Paulo: Annablume, 2004.

GUATTARI, Félix. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análises. Campinas, SP: Papirus, 1998.

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HOBSBAWM, Eric J.; RANGER Terence. A invenção das tradições. Trad. Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 271-316.

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LE GOFF, Jacques. História nova: novos objetos, novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998.

MOURA, Milton Araújo. Carnaval e baianidade: arestas e curvas na coreografia de identidades do carnaval de Salvador. 2001. 364 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001.

PRIORE, Mary Del Murray Del. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2000.

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SUPERINTENDÊNCIA DE TURISMO DE SALVADOR; SECRETARIA DE FINANÇAS DA PREFEITURA, 1964. No acordo assinado entre a Superintendência de Turismo de Salvador e a Secretaria de Finanças da Prefeitura, foi estabelecido que as baianas só poderiam negociar nos seguintes lugares: 1a zona: Praça da Sé; 2a zona: Ladeira da Praça; 3a zona: Baixa dos Sapateiros; 4a zona: Praça Cairu; 5a zona: Vendedoras avulsas do centro da cidade; 6a zona: vendedoras avulsas dos bairros comerciais e 7a zona: vendedoras avulsas dos bairros.

SANTANNA, Marilda. As donas do canto: o sucesso das estrelas-intérpretes no carnaval de Salvador. Salvador: Edufba, 2009.

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TAVARES, Luiz Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo: Ed. UNESP; Salvador: Edufba, 2001.

VIANNA, Hildegardes. A Bahia já foi assim. 2. ed. São Paulo: GRD, 1979.

VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos xVII a xIx. São Paulo: Corrupio, 1987.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

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NARRATIVAS EM NEGOCIAÇÃO etnicidade negra e negritude

Wagner Vinhas Batista

Introdução

Tratar de temas caros às Ciências Sociais, em especial dos que versam sobre os interesses nacionais, implica situar o leitor com as mais promissoras interpretações de Brasil, assim como evidenciar os debates que estiveram na base do desenvolvimento de nossa ciência. Contudo, essa conduta tem deixado de fora as interpretações que vigoram à margem da geopolítica do conhecimento, onde predomina a teoria social europeia e a sociologia norte-americana de mesma orientação.27 Na literatura científica brasileira, encontramos pouca ou quase nenhuma referência à contribuição do intelectual negro para o desenvolvimento da ciência no Brasil. Isso faz com que deixemos de lado um número considerável de revisões da literatura científica produzida em nosso país. Para Figueiredo e Pinho (2002) e Figueiredo e Grosfoguel (2007), podemos falar de uma “política do esquecimento” que consiste no mecanismo pelo qual apagamos da memória das novas gerações a contribuição acadêmica de autores negros. Essa formulação faz sentido quando partilhamos

27 Para Bourdieu e Wacquant (1989), o que torna isso possível é o poder de universalizar particularismos associados a uma tradição histórico-singular.

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com Bourdieu (1983) a existência de relações de poder no campo intelectual28 e quando a relacionamos com o que Anderson (1989) descreve como o trabalho de selecionar as narrativas de nação. O caso envolvendo Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos – entre os anos 1950 e 1960 – pode ser situado como um destes embates ocorridos no Brasil.29 O motivo da disputa envolvia as diferenças de visão sobre a formação do pensamento social brasileiro – a proposta de F. Fernandes de um saber científico universal e a crítica de G. Ramos a qualquer ciência que não fosse autóctone –, ao tempo que mantinham suas discussões sobre as interpretações de Brasil.

No jogo pela legitimação do sentido cultural da nação, existe um trabalho contínuo de (re)criar narrativas; em termos sociológicos, as narrativas organizam feixes de representação da experiência social que, por sua vez, mediam os processos de formação das identidades destacáveis. Entre as narrativas, com a comunidade nacional, há um número significativo de representações de Bahia e dos baianos que, muitas vezes, contrasta com outras representações do território nacional. São pelo menos tantas trajetórias quanto são as narrativas. Nessa genealogia dos repertórios de representação com a nação, está inserido um jogo entre grupos distintos em que ocorre negociação entre representações concorrentes da organização social. A cidade de Salvador é exemplar na demonstração do processo de negociação

28 Um sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores) é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social (BOURDIEU, 1983, p. 122).

29 Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos participaram da institucionalização da sociologia brasileira, a partir da criação da Escola Livre de Sociologia e Política, em 1933, e da criação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934.

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de narrativas. É neste sentido que podemos considerar a asserção de um perfil – o texto identitário,30 do qual fala Moura (2001) – como uma negociação de posições com outras unidades discretas. Sem incorrer no erro de dizer que são exclusivas, podemos inferir que a moderna identidade baiana está ancorada sobre duas narrativas de relações significativas: a etnicidade negra e a negritude.

Genealogia das Representações da Experiência Social em torno da Cultura Negra

Sabemos que as referências de cunho étnico da população negra de Salvador foram forjadas a partir da década de 1930.31 Elas estão presentes nas etnografias de Donald Pierson (Estados Unidos), Edison Carneiro (Brasil), Ruth Landes (Estados Unidos), Roger Bastide (França), entre outros. Também não será novidade dizer que as etnografias desses intelectuais seguem uma linha de continuidade dos trabalhos de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Oliveira Viana, etc. Neste sentido, podemos dizer que as interpretações da maneira de pensar, agir e sentir dessas populações negras enfatizam aspectos primordiais do modo de vida africano e atribuem aos grupos uma essência que transparece por meio de práticas, rituais e signos associados à herança com o continente. A dinâmica social da cidade de Salvador ajuda a pensar em que medida a noção de filiação étnica pode ser aplicada em contextos onde existe um forte apelo

30 Asserção direta de um perfil numa dinâmica de identificação (MOURA, 2001).

31 As representações de Bahia e dos baianos persiste desde os primeiros relatos de viajantes, clérigos e magistrados: as imagens suscitadas pela Bahia de Todos os Santos estão presentes em relatos de Gabriel Soares de Souza, Frei Vicente de Salvador, Pero de Magalhães Gandavo, Antônio Vieira e Gregório de Matos (VINHAS, 2010).

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racial32. Em Salvador, a atribuição étnica – africana – a esses grupos é acompanhada por certas características fenotípicas implícitas no conceito de raça. O fato de a categoria – raça – não fazer mais parte dos instrumentos de análise de nossa ciência não significa que seja imperceptível aos indivíduos cotidianamente. Salvador é uma cidade que proporciona a reflexão da medida que a noção de etnicidade possui como força explicativa, em uma configuração que acentua as diferenças por ideais de raça, inclusive quando estabelece o critério de filiação a uma classe social. Podemos aferir que a composição das classes sociais não está imune à abordagem étnica, haja vista ser possível categorizar como étnico qualquer grupo que se reconheça e seja reconhecido como diferente. Neste sentido, as classes sociais podem ser consideradas étnicas à medida que seus membros expressam referências históricas em comum, acentuam certas características culturais e estabelecem fronteiras com demais grupos.

A filiação pela etnicidade ocorre por meio da associação exclusiva com certas características consideradas étnicas. Essa forma de associação com a cultura negra, na Bahia, ocorre em termos de “pureza”, “autenticidade” e “fidelidade” com as heranças africanas: culto religioso, comidas típicas, músicas e danças associadas com o continente africano, ou mesmo, as vestimentas e as indumentárias consideradas simplesmente negras. Parece certo chamar essa adesão à cultura negra, em Salvador, de “etnicidade negra”, entendendo, dessa maneira, uma filiação no sentido de pertencer a um grupo de etnia negra com a tarefa de organizar fronteiras culturais, sociais e “raciais”. Parafraseando Weber (1982, p. 367- 368), podemos dizer

32 Vale lembrar que a etnicidade ocupa o lugar antes destinado ao conceito de raça e retira do cenário científico a discussão baseada na diferença biológica; por outro lado, evidencia a diferença cultural como critério de definição de grupo.

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que as associações exclusivas são meios fortes para a manutenção dos laços com a comunidade:

Para manter sua posição neste círculo, o membro tinha que provar repetidamente que era dotado dessas qualidades, que estavam sendo, constante e continuamente, estimuladas nele [...] Segundo toda experiência, não há meio mais forte de alimentar traços do que a necessidade de manter sua posição no círculo de associados.

Na década de 1930, enquanto os etnógrafos procediam com a caracterização da população negra em Salvador, um grupo de jovens, na Europa, elaborava uma crítica ao pensamento ocidental e lutava contra o poder de o Ocidente decidir pela inferiorização de populações negras dispersas no mundo. Mesmo que não fosse por aspectos biológicos, estava em evidência a superioridade das culturas de herança europeia. Entre os jovens estudantes, no continente europeu, estavam Aimé Césaire (Martinica), Léon Damas (Guiana) e Leopoldo Sedar Senghor (África), entre outros. O movimento por eles deflagrado ficou conhecido como Movimento da Negritude.33 O ponto crucial para entender a ação dos estudantes na Europa é a tentativa de reverter – nos países que sofreram

33 Negritude é uma palavra polissêmica e, portanto, de sentidos diversos: a) o fato de se pertencer à raça negra; b) a própria raça enquanto coletividade; c) a consciência e a reivindicação do homem negro civilizado; d) a característica de um estilo artístico ou literário; e) o “ser-no-mundo-do-negro”; e f) o “conjunto de valores da civilização africana”. A palavra negritude foi mais amplamente usada para se referir à tomada de consciência de uma situação de dominação e de discriminação e à consequente reação em busca de uma identidade negra. Também se refere a um movimento pontual na trajetória da construção de uma identidade, passando a ser conhecido no mundo como um movimento que pretendia reverter o sentido da palavra negro, dando-lhe um valor positivo. Historicamente, pode ser considerado um movimento amplo de tomada de consciência de uma situação de dominação e/ou discriminação em solo americano, quase que simultânea à chegada dos primeiros escravos oriundos da África. (VINHAS, 2010, p. 44).

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migração compulsória de africanos para o trabalho escravo - às formas pejorativas em relação à cultura negra. Podemos dizer que o movimento englobava narrativas emergentes sobre a diáspora e atribuía aos povos espalhados, pelos diversos continentes, uma experiência comum, não apenas em termos de herança africana, mas, principalmente, em relação às situações contemporâneas de submissão nas ex-colônias. É interessante expor o que Gilroy (2001, p. 11) tem a dizer sobre a diáspora:

No espírito do que pode ser chamado de história “heterológica”, gostaria que considerássemos o caráter cultural e as dimensões políticas de uma narrativa emergente sobre a diáspora que possa relacionar, senão combinar e unificar, as experiências modernas das comunidades e interesses negros em várias partes do mundo.

Retomando o caso brasileiro, em paralelo e em oposição à noção de etnicidade, emerge em outros estados do Brasil, em especial São Paulo e Rio de Janeiro, uma moderna estética do negro. Inspirados na poesia de Luiz Gama, autores como Lino Guedes e Solano Trindade, escrevem, na década de 1920, sobre o “eu” negro e não apenas narrativas sobre o negro. Nas décadas de 1950 e 1960, Eduardo de Oliveira e Oswaldo de Camargo retomam o estilo de seus predecessores, nomeando-o de literatura negra. É crucial destacar a importância que a Frente Negra Brasileira desempenhou na difusão da imagem do “novo negro” e no esclarecimento da opinião pública das manifestações de preconceito contra a população negra. Na cidade do Rio de Janeiro, surge o Teatro Experimental do Negro, o TEN. Para Ramos (1957), o TEN foi recebido com desconfiança pelos prógonos da ciência oficial por representar uma mudança radical nos estudos sobre os negros. “O TEN foi,

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no Brasil, o primeiro a denunciar a alienação da antropologia e da sociologia nacional, focalizando a gente de cor à luz do pitoresco ou do histórico puramente, como se tratasse de elementos estáticos ou mumificados” (RAMOS, 1957, p. 162). Segundo o autor, o TEN representou uma reação em três objetivos:

1) formular categorias, métodos e processos científicos destinados ao tratamento do problema racial no Brasil; 2) reeducar os brancos brasileiros, libertando-os de critérios exógenos de comportamento; 3) descomplexificar os negros e mulatos, adestrando-os em estilos superiores de comportamento, de modo que possam tirar vantagens das franquias democráticas, em funcionamento no país (RAMOS, 1957, p. 163).

Nessa conjuntura, dois outros termos – negridade e negrícia – mostrariam visíveis afinidades semânticas com a noção de negritude, figurando, embora com menor frequência do que esta última, em textos e momentos diversos. Dessa forma, a expressão “negridade” aparece no Manifesto à Gente Negra Brasileira, em 1931. A sua utilização precisou superar o valor depreciativo do termo “negro”, frequentemente usado como insulto, e mal recebido por aqueles a quem se referia, os quais preferiam expressões como “preto” ou “homens de cor”. A expressão “negrícia” aparece em O Novo Cruz e Sousa, prefácio de Tristão de Athayde à obra Gestas Líricas da Negritude, de Eduardo de Oliveira (1967). Em 1972, aparece no título de um dos contos de O Carro do Êxito, de Oswaldo de Camargo. Negrícia remete ao sentimento íntimo e natural de pertencer a um grupo, sem que essa atitude suponha um esforço ou uma construção conceitual. A expressão foi aplicada e utilizada para se referir ao grupo emergente de negros que ascendia socialmente, sem representar, por isso, uma compreensão mais apurada do

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sentido de ser negro, em uma sociedade que discrimina as pessoas pela cor de sua pele. Negridade e negrícia estão relacionados com um ser profundamente dividido entre o mundo dos brancos e o mundo dos negros: a afirmação no lugar da negação, no plano intelectual, sentimental e espiritual.

A filiação pela negritude ocorre através da associação não exclusiva com características étnicas e com estilos globalmente difundidos. Essa forma de associação, em Salvador, ocorre em termos de deslocamentos ou descentrações das identidades individuais ou coletivas, no sentido conferido por Stuart Hall. Para Hall (2001), o que está ocorrendo na modernidade se refere à tensão entre o global e o local na transformação das identidades; prolifera no mundo moderno uma variedade de estilos globalmente veiculados pela mídia e pelos sistemas de comunicação.

À medida que as culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do bombardeamento e da infiltração cultural (HALL, 2001, p. 74).

Narrativas em Negociação

Tratamos das narrativas em negociação em um trabalho anterior (VINHAS, 2010). No estudo, destacamos as negociações de sentido entre as narrativas em torno da cultura negra. Narrativas de cunho essencialista e de perspectiva diaspórica:

As narrativas em negociação se referem aos enunciados articulados historicamente por meio de objetivos híbridos e pela emergência de prioridades com outros membros da comunidade: sobreposições

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e deslocamentos de significados concorrentes das estratégias de representação e legitimidade cultural (VINHAS, 2010, p. 7).

Para falar das negociações de sentido em uma dinâmica de identificação ou em estratégias de representação ou mesmo de legitimação cultural, partimos da ideia de que a escrita do texto sobre a identidade baiana envolve sucessivas transformações nas estruturas da narrativa, o que implica, por outro lado, descontínuas trajetórias nas representações da experiência social. Por isso, buscamos demonstrar que a legitimação da cultura negra não está restrita à discussão sobre uma possível “hegemonia” branca, mas, pelas negociações de sentido concorrentes nas estratégias de representação ou aquisição de poder, no interior das chamadas comunidades negras. As polaridades negativas entre as narrativas – associação exclusiva e não exclusiva – são anuladas durante a interação entre os segmentos negros, em Salvador: em nenhum dos casos há uma historicidade inerente, radical, que emita sinais corretos da comunidade (BHABHA, 2005). Isso ficou mais claro à medida que encontramos evidências de que as manifestações culturais – mais do que os discursos carregados de verdade libertadora – tiveram influência na gradativa associação das representações de experiência social, em torno da cultura negra, na cidade. Como lembra Bhabha (2005), a estrutura da interação pela negociação embasa os movimentos que tentam articular os elementos antagônicos e opostos, colocando-os antes de qualquer pronunciamento de verdade, seja como historicidade radical seja como pura oposição. Neste sentido, a invenção do afro pode ser entendida como um dos acontecimentos mais marcantes na transformação das narrativas da comunidade baiana, cujos contornos foram delineados pelo

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surgimento de enunciados alinhados com as narrativas emergentes sobre a diáspora. A ênfase na emergência de uma estética moderna da negritude permitiu que olhássemos a estrutura da interação pela negociação como um alinhamento de elementos da herança africana – associação exclusiva – e de estilos internacionalizados em torno da cultura negra – associação não exclusiva.

A narrativa é uma descrição do desenvolvimento de ações, mudanças e diferenças encadeadas cronologicamente e, às vezes, descontínuas (TODOROV, 1980). Os dois princípios da narrativa são a sucessão e a transformação respectivamente. O primeiro consiste na relação de ações isoladas com o seu conjunto; o segundo se refere à mudança de um termo no seu contrário ou contraditório. Pode-se dizer que as narrativas são ações isoladas, sucedidas em unidades descontínuas de tempo que implicam, por outro lado, transformações no curso do seu desenvolvimento.

Uma narrativa ideal começa por uma situação estável que uma força qualquer vem perturbar. Disso resulta um estado de desequilíbrio; pela ação de uma força dirigida em sentido inverso, o equilíbrio é restabelecido; o segundo equilíbrio é semelhante ao primeiro, mas os dois nunca são idênticos (TODOROV, 1980, p. 138).

A natureza da transformação consistiria na negação de um estado anterior: a mudança de um termo no seu contrário ou contraditório. Concordamos com o autor que a mudança pode ocorrer pela representação mediada por contrários. Contudo, o que parece ser crucial não é pensarmos em termos de negação de um estado, mas de sua negociação. A tentativa de negar (no sentido dialético) cria novas contradições particulares em cada sociedade. Nesse jogo em que as contradições são produzidas, surgem objetivos híbridos de luta, resultante do que não pode ser simplesmente

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apagado ou negado, mas, sim, negociado. O contraditório ou até mesmo o antagônico não revelam outra verdade que não seja as suas representações mediadas pelos seus contrários: teoria-prática, centro-periferia, intelectual-ativista. A negociação surge com as “novas” temporalidades introduzidas pela repetição e com as “novas” experiências incorporadas às existentes. É na sobreposição e no deslocamento da diferença que os interesses da comunidade podem ser negociados. Trata-se de um processo de interação simbólica que desloca a lógica binária, produtora de formas fixas de identificação: branco/negro, civilizado/bárbaro, moderno/tradicional.

Para finalizar, examinamos um pouco mais de perto a força da negociação nos processos de representação e de identificação. Iniciamos com a premissa de que existem diversas estratégias de representação no interior das pretensões concorrentes da comunidade e que essas são corroboradas pelas histórias das diferenças culturais. As sobreposições e os deslocamentos na estrutura da experiência com a comunidade fazem com que as experiências intersubjetivas, os interesses comunitários e o valor cultural sejam negociados. Algumas estratégias de representação e aquisição de poder na comunidade nem sempre são colaborativas e dialógicas, e podem até mesmo ser profundamente antagônicas, conflituosas e incomensuráveis (BHABHA, 2005). Se partirmos da ideia de que toda enunciação cultural é atravessada pela différance34 – deslocamento da significação – da escrita, podemos dizer que o conteúdo da narrativa se refere a uma significação culturalmente

34 A différance na escrita desafia o elo entre significado e significante saussuriano: o signo por ser desprovido de conteúdo só existe enquanto diferença que estabelece com outros signos contíguos. Trata-se da lógica de suplementaridade em que um terceiro elemento introduzido produz o sentido da presença em oposição ao suplemento que difere. A escrita pela différance participa de um jogo que ao mesmo tempo estabelece e transgride seus próprios termos. Por isso, não existe possibilidade de determinação do sentido de um texto (VINHAS, 2010, p. 110-111).

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produzida e, portanto, que a diferencia de outras narrativas e significações. É dessa maneira que, sob a organização social, escrevem-se as condições históricas e culturais de sua enunciação. Por outro lado, pode-se afirmar que o domínio do conteúdo é perturbado pelo significante, ou seja, o deslizamento da significação não conduz a certo reconhecimento geral e formal da função do conteúdo. As significações sociais estão sendo constituídas no ato da enunciação e estão minando a divisão do sentido cultural e social. A enunciação não reflete um objeto unitário ou homogêneo, pelo contrário, o enunciado só passa a fazer sentido quando construído com outros enunciados que se encontrem em tensão histórica e cultural, por outros objetivos. É dessa forma que podemos falar da ligação entre o intelectual e o objeto de sua crítica: as muitas formas de escrita obscurecem a nítida distinção entre intelectual e praticante. Observa-se que as partes articulam o conjunto de regras, e essa articulação, com os elementos antagônicos e opostos, vai além do que exige cada situação social. É neste sentido que podemos apontar para as “novas” significações atribuídas aos signos negros na Bahia e no Brasil. Em Salvador, as (re)significações da presença negra na cidade podem ser lidas como um processo no qual os grupos de mudança cultural são, eles mesmos, portadores de uma identidade híbrida. É dessa forma que as reivindicações hierárquicas de originalidade – que persistem em certas narrativas sobre a cultura negra – nos parecem insustentáveis ou, pelo menos, insubsistentes para uma parcela significativa da população de Salvador.

Os Estudos Negros e o Intelectual Negro

O que queremos destacar com a trajetória destas narrativas é a genealogia do sentido cultural da comunidade baiana. Desde a

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década de 1960, as narrativas em destaque influenciam a forma de o baiano se representar e ser representado. É a partir desta década que também surgem reflexões sobre processos identitários em outras partes do mundo. Conforme observou Moura (2005), os autores dos Estudos Culturais costumam situar a reflexão contemporânea sobre identidade no choque cultural produzido pela afirmação e consolidação, nos países hegemônicos, de intelectuais oriundos de países colonizados. Podemos destacar o jamaicano Stuart Hall, na Inglaterra e o indiano Homi Bhabha, nos Estados Unidos. Paul Gilroy, mesmo sendo britânico e residindo no país, coloca-se nesse campo de reflexão e assume a posição de intelectual negro que fala a partir de um desses centros de produção científica. No caso brasileiro, a consolidação e afirmação não chegaram a ser efetivadas. Com exceção de alguns casos particulares, como do geógrafo Milton Santos, que teve os livros reeditados após a sua morte, prevalece um silêncio quanto à contribuição desses autores para as Ciências Sociais, no país. Entre os intelectuais silenciados estão Manoel Querino, André Rebouças, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Joel Rufino e tantos outros. Para Figueiredo e Pinho (2002, p. 191), na história da intelectualidade brasileira predomina os cânones do pensamento social sob a orientação de modelos estrangeiros:

[...] o poder de universalização de categorias históricas como categorias universais, parte da estratégia de definição de um modelo de conceituação ou recorte da realidade como um modo de dominação, pode ser entendido como um dos efeitos da colonialidade do poder que se expressa internamente ao campo das Ciências Sociais brasileiras, entendido como um campo social e historicamente determinado.

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Na literatura científica brasileira, pouco se discute sobre a importância dos estudos negros ou afro-brasileiros no desenvolvimento das Ciências Sociais, mesmo que eles estejam em interlocução direta com a produção dos africanistas, dos chamados intelectuais diaspóricos ou dos estudos da etnicidade negra e da negritude. Em parte, pode-se afirmar que isso ocorre pelo pouco interesse que a academia tem demonstrado em discutir as contribuições dos chamados intelectuais negros e pela preferência por obras tributárias da tradição sociológica europeia e a sua vertente norte-americana. Segundo Figueiredo e Pinho (2002), o campo intelectual brasileiro possuiria marcas do dilema brasileiro, o que implica continuidade colonial em termos de uma colonialidade de Poder/Saber. O que parece estar em questão é a persistência dos intelectuais negros em participar das interpretações de Brasil, bem assim como o campo intelectual brasileiro tem se posicionado diante das crescentes reivindicações daqueles que estão perifericamente situados. Nesse sentido, parece ser importante proceder com a historização e a contextualização das categorias que embasam as (re)interpretações de Brasil, tomadas, muitas vezes, como noções endógenas, sem o tratamento adequado por parte do campo intelectual brasileiro. É crucial avaliar a eficácia de partir de categorias nativas, em invés de modelos estrangeiros inadequados, para entender a dinâmica social brasileira. Por isso, tratamos a transformação das narrativas em termos de um processo negociativo.

Na historiografia do campo intelectual brasileiro, as abordagens envolvendo a negociação não são raras nas Ciências Sociais e podem ser observadas no conceito de miscigenação formulado por Gilberto Freyre, na discussão sobre a cordialidade promovida

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por Sergio Buarque de Holanda e, mais recentemente, na temática da legitimação do samba como musica nacional desenvolvida por autores como Hermano Viana. Mais explicitamente, Reis (1989), alisando documentos do período colonial, observa que o senhor e o escravo constantemente negociavam seus interesses conflitantes. No caso de Salvador, as relações de representação da comunidade baiana, com as referências de narrativa sobre etnicidade negra e negritude, parecem partir dos processos de negociação entre intelectuais, ativistas, representações governamentais e mediadores culturais. Em vez do confronto direto, a presença da estética negra é negociada junto a outros interesses. Isso implica olhar as trajetórias da narrativa além das oposições binárias dos trabalhos que tomam a legitimação das representações de nação como objeto de pesquisa.

A interpretação de certos contextos tidos como universais não parece atender as frequentes transformações no campo de nossa pesquisa. Por isso, parece ser mais promissor buscar fugir das ideias totalizantes, embasadas em teorias englobantes, e traçar um caminho em prol das categorias analíticas forjadas na relação com os nossos objetos de estudo. É neste sentido que se torna crucial dar maior visibilidade às diferentes interpretações de Brasil e proceder com estudos mais rigorosos da força explicativa das categorias analíticas, nos contextos em que podem ser submetidos. A experiência tem demonstrado que as teorias possuem uma força explicativa relativa fora dos contextos em que foram forjadas. Muitas vezes, são usadas para submeter o campo às propostas teóricas e deixam escapar as incongruências e as dissonâncias relativas a cada configuração em particular. Colocar os conceitos, em termos de categorias analíticas, tem uma vantagem indiscutível: diminui o peso do uso de teoria em campos de análise que não sejam aqueles nos quais foram

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investigados. Isso implica que as categorias podem ser usadas como meio de acesso a certas situações de campo, mas não podem explicar as situações históricas e particulares como se fossem universais. Dessa forma, podemos fazer uso não só de conceitos formulados por nossa ciência, em outros contextos, submetendo-os aos nossos campos de análise, mas, igualmente, tomá-los como empréstimo de outras áreas de conhecimento para o mesmo objetivo. Essa orientação metodológica não se trata de algo novo nas ciências sociais, mas uma prática que tem ganhado corpo nas últimas décadas, bem como tem demonstrado resultados relevantes para as pesquisas em andamento. Nesse sentido, os Estudos Culturais podem ser citados como uma das correntes teóricas que faz uso de categorias antropológicas, sociológicas e políticas, assim como as de outras áreas, como linguística, filosofia, literatura, e as submetem às situações empíricas estudadas.

Dessa forma, podemos falar como perda, para o campo intelectual brasileiro, a exclusão de uma série de interpretações de nação e de revisões da literatura científica, terminando por resultar na persistente colonialidade do Poder/Saber. Essa forma de proceder tem sido responsável pelo sentimento de inadequação do intelectual nacional e, em particular, do intelectual negro. Em parte, o desajustamento do intelectual negro, dentro do campo intelectual brasileiro, refere-se à posição periférica do país na ordem mundial. Em termos econômicos, sociais e culturais, o negro está situado no ponto extremo da estrutura social brasileira. No entanto, será importante rever esses posicionamentos, em face às rápidas mudanças que estão ocorrendo em várias partes do mundo: a “nova” configuração econômica dos países emergentes, a intensificação das relações inter-étnicas na cartografia centro-periferia e,

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especialmente, a contribuição daquilo que, em outras partes do mundo, convencionou-se chamar de intelectuais diaspóricos.

Considerações Finais

Procuramos desenvolver, no presente trabalho, a reflexão sobre a necessidade de averiguar, com mais acuidade, as categorias produzidas fora da geopolítica do conhecimento, abandonando a visão de colonialidade do Poder/Saber, imposta pela perspectiva centro/periferia das produções de conhecimento. Para isso, buscamos dar voz às narrativas que contribuíram enormemente para a construção da noção contemporânea da identidade baiana, na Bahia e, em particular, na cidade de Salvador. Queremos ressaltar a perda, para o campo das ciências sociais no Brasil, de um debate mais sério sobre a produção dos estudos negros e, em particular, sobre as categorias forjadas por intelectuais sistematicamente silenciados, na insistente relação de colonialidade. Abordamos as narrativas em negociação no diálogo com as tradições europeias e norte-americanas, bem como nos estudos de intelectuais negros no Brasil, buscando evidenciar a participação destes autores, no debate mais amplo dos estudos negros na nação.

Referências

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PERCUSSIVO, PLUGADO E ELETRÔNICO

identidades pulsantes no movimento musical baiano contemporâneo

Armando Alexandre Castro

O fim da falaainda não é o

início do silêncio.Walter Smetak

Quem se atreve a me dizerdo que é feito o samba?

Quem se atreve a me dizer?Marcelo Camelo

Introdução

A década de 1980, em especial, representa o início de um conjunto de transformações socioeconômicas e culturais no Estado, tais como os primeiros anos de atividade do Complexo Petroquímico de Camaçari; da criação do Centro Administrativo da Bahia; da implantação de shoppings centers; ampliação, na capital, da oferta de acesso ao ensino superior; da aparição e fortalecimento de grandes

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organismos empresariais carnavalescos, chamados blocos de trio (MIGUEZ DE OLIVEIRA, 2002); do surgimento e fortalecimento dos blocos afro e ampliação de suas atividades, de encontros musicais inusitados até então, como o concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia com o Afoxé Filhos de Gandhi; do surgimento da axé music, de Carlinhos Brown e seu Vai quem Vem - grupo que se desdobraria em sua proposta musical, de base eminentemente percussiva, Timbalada.

Moura (2001) sinaliza parte destas transformações enquanto modernização da cidade de Salvador, assinalando a força relacional deste enquanto experiência social comunitária que se estende aos novos modelos de convivência urbana contemporânea. Para Miguez de Oliveira (2002), a década de 1980 consolida o mercado de bens simbólico-culturais no Brasil, iniciado nas duas décadas anteriores e, no caso Bahia, duas dinâmicas se consolidam, prioritariamente, na formatação e legitimação da axé music: os blocos afro (estética e temáticas) e os blocos de trio alinhados à lógica mercantil.

A percussão, neste contexto, merece considerável destaque. Extrapolando os circuitos musicais e dos blocos afro, alinhava e reforça as relações identitárias e representacionais acerca, dentre outros aspectos, da marca Bahia no contexto nacional e internacional.

Reconhecendo a percussão com um dos elementos identitários mais emblemáticos do campo cultural na Bahia, o artigo analisa o grupo musical Percussivo Mundo Novo, suas propostas, provocações estéticas, e sua representatividade no atual movimento percussivo baiano contemporâneo. Como referencial teórico, autores dos estudos culturais, priorizando Stuart Hall e Homi Bhabha. Quanto à metodologia de construção do artigo, destaque para a pesquisa bibliográfica acerca dos temas percussão, identidade

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e representação, além de visitas aos sítios eletrônicos de artistas, grupos e intérpretes relevantes para a compreensão do fenômeno objeto desta investigação.

A percussão e a música baiana

A expressão “música baiana” é frequentemente compreendida a partir de alguns poucos elementos e intérpretes, e, em diversas situações, como sinônimo de axé music e pagode, fato que oculta as diversidades do campo e, não obstante, dos próprios estilos mencionados. Parte considerável das análises musicológicas e das críticas advindas de jornalistas da área cultural, principalmente, aponta para o suposto caráter homogêneo e massivo destes, corroborando, assim, para a não revelação de outros atores e fatores instauradores de multiplicidades de sentidos, sons, timbres e formas também existentes no Estado.

Neste sentido, vale direcionar as lentes para uma música baiana contemporânea que apresenta considerável diversidade no campo da estética, das formas organizacionais, dos modelos de protagonismos, lideranças e performances artísticas, ainda que parcela considerável da sociedade não a perceba, insistindo em discursos homogeneizantes acerca deste segmento da produção cultural e artística.

Pouco foi divulgado, por exemplo, que no campo da música de concerto, quatro compositores baianos foram contemplados no Prêmio Funarte de Composição Clássica, e integraram a 19ª Bienal de Música Brasileira Contemporânea. Das 384 obras inscritas, 59 foram selecionadas, e, dentre elas, as obras baianas na categoria composição para orquestra sinfônica foram “Geometrias flutuantes”

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(Wellington Gomes), e “A Tempestade - uma tragédia ao mar” (Danilo Freitas Valadão); categoria composição para Orquestra de Câmara, obra “Concertino” (Marco Antonio Ramos Feitosa); composição para conjuntos de 4 a 10 instrumentos, “Demônios tristes” (Juliano Santana Serravalle).

A música eletrônica, por sua vez, tem apresentado inúmeros DJs ao público e cenário local, fato que acaba por oportunizar elementos para a redução das assimetrias de informação entre os pares locais, aumentando a profissionalização e a diversidade musical com o aporte de elementos sonoros e estéticos distintos.

Não obstante, com irradiações mais evidenciadas a partir de sua capital, em gêneros como axé music, pagode, forró, reggae, arrocha e o pop sertanejo romântico de grupos como Seu Maxixe, Kiko e Jeane, Cacau e Caetano, Kina Rodrigues, entre outros, a produção musical baiana dialoga, frequentemente, com o circuito midiático nacional.

A diversidade da música baiana popular contemporânea pode ser compreendida, não raro, como um reflexo direto do surgimento e ascensão da música baiana massiva de carnaval a partir da década de 1970, vinculada aos blocos de trio e de “empolgação”, que tanto acentuaram a mercantilização e profissionalização dos festejos carnavalescos soteropolitanos (MOURA, 2001; MIGUEZ DE OLIVEIRA, 2002; CASTRO, 2011).

Por outro lado, esta profissionalização compreende o fortalecimento do mercado de eventos musicais no Estado, potencializando o acesso a artistas de outras territorialidades, inclusive estéticas. Por outro lado, a aceitação e legitimação de artistas do universo da axé music e do pagode no campo nacional,

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potencializou a circulação destes músicos e técnicos por outras plagas.

Sendo assim, músicos, artistas, compositores, intérpretes e demais profissionais do campo musical baiano, a partir de inúmeras experiências exitosas, vêm inovando e ampliando a diversidade da produção local a partir de experimentações rítmicas e melódicas, e de discursos que sinalizam reflexão crítica, profissionalização e criatividade.

Breve histórico do movimento percussivo baiano contemporâneo

Numa breve revisão histórica da percussão nos movimentos musicais e culturais na Bahia, é possível encontrar registros de escolas de samba, bandas percussivas independentes, blocos afro, indígena, e, mais recentemente, dos grupos e intérpretes vinculados à axé music e ao pagode. Entretanto, vale salientar, que uma compreensão equivocada e, consideravelmente disseminada, é a relação entre percussão e etnicidade, em que o afro-brasileiro seria o único responsável pela valorização dos elementos percussivos na canção e musicalidades atuais, e a esta dinâmica, historicamente, tivesse restringido suas iniciativas musicais, conforme Silva (2003, p. 163).

O africano justapôs ou superpôs as suas formas culturais às que provinham da Europa. Na música, nas danças, na culinária, na casa e no arruado dos bairros populares. Mas também se apropriou, sem em quase nada modificá-las, de algumas dessas formas européias. Dou o exemplo das antigas orquestras de escravos, libertos e seus descendentes que tocavam, no interior do Brasil, obras de Haydn, da Escola de

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Mannheim e de Mozart, e compunham como se estivessem na Alemanha ou na Áustria. Como fez, entre tantos outros, José Joaquim Emérico Lobo de Mesquita.

Historicamente, há de se considerar que parte da origem das provocações e inquietações sobre arte e música contemporânea na Bahia, a partir de instrumentos percussivos, acontece nas décadas de 1960 e 1970, a partir do protagonismo de músicos, professores e pensadores estrangeiros residentes na Bahia, como Smetak.35

Smetak dedicou-se à pesquisa musical a partir da criação de novos instrumentos musicais, num trânsito estético intenso entre música e artes plásticas, entre o tonalismo ocidental e o microtonalismo presente nas culturas orientais. A partir de instrumentos musicais tradicionais, como cabaça, berimbau, caixas de ressonância de diversas formas e tamanhos, e de materiais como tubos plásticos, arames, folhas de compensado, entre outros, Smetak produziu uma organologia e musicalidade à frente de seu tempo, dialogando tradição e modernidade.

[...] a obra de Smetak pode ser vista sob dois aspectos distintos. Ao mesmo tempo em que ele utiliza materiais locais como as cabaças na produção dos instrumentos, do ponto de vista musical suas composições nada têm de “nativas”. Isto é, do ponto de vista da visualidade, dos instrumentos enquanto objetos de arte, a Bahia está presente em sua obra,

35 Anton Walter Smetak, músico suíço que viveu no Brasil a partir de 1937. Violoncelista, compositor, escritor, escultor e construtor de instrumentos musicais, Smetak lecionou na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia até o ano de sua morte (1984), influenciou músicos brasileiros como Tom Zé, Hermeto Pascoal, Gilberto Gil, Caetano Veloso e, entre outros, Marco Antônio Guimarães, um dos fundadores do grupo mineiro UAKTI. Mais informações: <http://www.waltersmetak.com>.

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que possui referências à “cultura popular”. Do ponto de vista musical não – embora ele afirme o contrário. Deste modo, a produção que Smetak via como uma “obra de arte total” termina sendo entendida dentro de uma dualidade – entre os instrumentos como objetos plásticos, e a música, os sons que produzem (DE PAOLI, 2011, p.13).

Nesta direção, o atual movimento percussivo baiano contemporâneo também abriga experimentações e hibridismos resultantes do encontro constante e dinâmico entre o antigo e o novo, entre a tradição e a modernidade. A intensa agenda de shows dos grupos musicais massivos locais, aliado ao acesso, por parte destes músicos, às novas tecnologias, possibilitou a compreensão e conhecimento acerca de diversos conceitos, propostas e movimentos musicais nacionais e estrangeiros.

Ambientada entre ritmos e instrumentos musicais tradicionais, recursos oportunizados pelas novas tecnologias, música eletrônica, o novo movimento musical percussivo baiano contemporâneo abriga contrastes e paradoxos: a partir de ritmos e instrumentos tradicionais, é dinâmico em propostas e interações estéticas que desembocam em experimentalismos e novas identidades, como a relação com o mundo da música eletrônica, por exemplo; por outro lado, resultado da criatividade de músicos profissionais experientes, sobrevive anônimo, e, não raro, ausente de parcela considerável do público e mídia massiva.

A diversidade de iniciativas no campo percussivo baiano não se resume, nem se reduz aos grupos mencionados neste trabalho, compreendendo, ainda, a aceitação da necessidade de se repensar o modelo de desenvolvimento para uma cidade como Salvador, a partir de valores mais integrativos, tolerantes, e compreensíveis à

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própria diversidade, “[...] onde o homem se empenha em tipos nitidamente diferentes, embora verdadeiramente integrativos, de atividades substantivas” (RAMOS, 1989, p. 140).

O que se pode compreender e denominar como movimento percussivo baiano contemporâneo são aquelas iniciativas surgidas, de forma tímida, na década de 1990, a partir de grupos locais como Agbeokuta,36 e, mais incisivamente, a partir de grupos recentes como AfroSudaka, Sanbone Pagode Orquestra, Sambatrônica,37 Peu Meurray, Percussivo Mundo Novo e Orquestra Rumpilezz, entre outros, que procuram mesclar e fundir conteúdos musicais estabelecidos e legitimados, originando novos modelos estético-musicais a partir do diálogo da base percussiva. Assim, as experimentações produzidas pelos músicos adentram e agregam elementos do jazz, do pop rock, da salsa, merengue, hip-hop, samba, pontos de candomblé, música eletrônica, entre outros.

Um dos precursores do movimento é o grupo AfroSudaka, criado pelo percussionista, produtor e compositor Ramiro Musotto.38 Argentino, radicado no Brasil desde a década de 1980, trabalhou com Marisa Monte, Skank, Marina Lima, Daniela Mercury, Os Paralamas

36 O grupo Afro-Jazz Agbeokuta foi formado em 1990, a partir de experiências musicais propostas pelo trompetista e percussionista paulistano Cícero Antônio, que, à época, residia na Bahia, e procurou dialogar com músicos de três bairros populares de Salvador: Engenho Velho de Brotas, Engenho Velho da Federação e Brotas.

37 O Sambatrônica é um grupo formado em 2004, que promove o encontro do samba com o rock e o funk, entre outros. Seu primeiro CD, Movimento Sensual Antiatômico, foi lançado em 2006, e o DVD, intitulado Samabatrônica, em 2007. Em 2006, teve o show Ciberdelia da Pedra Lascada indicado ao prêmio Troféu Caymmi de 2006, nas categorias Melhor Banda e Melhor Produção.

38 Faleceu em 2009, com 45 anos. Mais informações: <http://www.myspace.com/ramiromusotto>.

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do Sucesso, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Lulu Santos, Zeca Baleiro, Adriana Calcanhotto, Titãs, Fernanda Abreu, Sérgio Mendes, Zélia Duncan, Gal Costa, e, entre suas principais influências musicais, encontram-se as batidas e pontos do candomblé afro-baiano. Em suas diversas incursões profissionais, Musotto inseriu o berimbau em diversos registros discográficos.

As experimentações musicais desenvolvidas por Ramiro Musotto reiteram a busca por novas identidades para o campo percussivo, a partir de sua considerável trajetória profissional, mas, principalmente, pela intencionalidade da transformação, da reconfiguração da percussão como elemento relevante no campo dos registros fonográficos e apresentações musicais, superando, consideravelmente, a percussão como apenas um elemento de acompanhamento rítmico e secundário. Com Musotto, é possível perceber a relevância do berimbau, por exemplo, em diversos arranjos musicais de artistas como Daniela Mercury e Skank.

Tentar ver o outro de uma maneira diferente. De uma maneira ampla e objetiva que impeça que os conflitos apareçam: a eletrônica e étnica. O tecno e o regional. O primeiro mundo com o terceiro: civilização e barbárie. Brasil e Argentina: Sudaka. Acho incríveis os cuidados que temos que ter pra misturar ritmos e músicas de diferentes lugares para que depois tudo soe harmonioso. É como um símbolo do que se passa no mundo hoje, não temos cuidado em entender nem em como nos misturar e o mundo está cheio de racismo, xenofobia e incompreensão.39

Para Musotto, a mestiçagem, a mistura, o encontro e o diálogo entre culturas e musicalidades distintas aparecem como propostas

39 Diário do Nordeste (2008, p. 2).

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para o desenvolvimento e mudança estética, criando e recriando novas possibilidades identitárias no campo musical.

[...] As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação [...] É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas (WOODWARD, 2000, p.12).

Neste sentido, segundo Woodward (2000), Musotto e suas novas proposições identitárias, agregando transformação e novas identidades para a música brasileira e baiana, são resultantes de fluxos constantes, dinâmicos e legítimos, pois são arregimentados dentro do próprio campo por práticas e iniciativas específicas de um músico renomado, sensível, crítico e experiente. Logo, suas iniciativas no campo da percussão fomentaram comportamentos isomórficos em seus pares, provocando inquietações criativas entre muitos produtores e arranjadores musicais baianos, como Letieres Leite, Hugo San, Peu Meurray e Mikael Mutti, entre outros.

Identidades e representações: o grupo Percussivo Mundo Novo

O grupo musical Percussivo Mundo Novo40 representa a “percussão digital”, e surgiu da ideia de combinar percussão com as novas tecnologias digitais, realçando novas formas de produção musical. O idealizador do grupo é o multi-instrumentista,

40 Para mais informações: <www.myspace.com/pmnspace ou www.pmnmusic.net>.

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compositor, arranjador, diretor e produtor musical baiano Mikael Mutti,41 a partir do conhecimento adquirido em mais de duas décadas de atividade profissional. Em seu currículo, a direção musical de artistas como Carlinhos Brown, Leila Pinheiro, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Timbalada, Cláudia Leitte, e experiências internacionais com o Scorpions, Sergio Mendes e o guitarrista Carlos Santana.

O sítio eletrônico do grupo realça os objetivos do PMN, a partir dos dizeres: “A televisão da nossa casa mudou... O nosso telefone celular mudou... Os computadores mudaram... A forma de fazer música está mudando!!!” Acerca das propostas experimentais envolvendo música eletrônica, percussão e novas tecnologias, ressaltam em seu sítio eletrônico:

O objetivo não é simplesmente reproduzir os sons da percussão tradicional e sim utilizar estes dispositivos tecnológicos para oferecer flexibilidade e criatividade na composição e no desempenho dos ritmos brasileiros. Em 2010, O PMN participou de interessantes projetos de intercâmbio com artistas internacionais que visitam a Bahia. O “encontros percussivos” é um projeto que se iniciou com a apresentação no Pelourinho, em Salvador, do PMN com a Orquestra de Stell Drums da Flórida Memorial University. Este projeto assumiu grandes proporções no carnaval da Bahia com o trio elétrico “Encontros Percussivos”, convidando os artistas Earthrise Soundsystem e Davi Vieira (Nova Iorque), do DJ Static Revenger (Los Angeles), e do DJ Daniel Venezuela, de Caracas (PMN, 2011).

A partir do texto acima, pode-se perceber que a proposta do PMN é a de construir uma identidade fluida, dinâmica, baseada na

41 Disponível em: <www.myspace.com/mikaelmutti>.

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experimentação sonora a partir de instrumentos e objetos diversos, mas, também, a partir do encontro, do diálogo como possibilidade de interação, produção e apreciação estética dinâmica, corrente e, invariavelmente, mutável.

A relevância da música baiana ligada ao carnaval potencializou sua participação no campo musical, como se pode perceber abaixo:

Comecei com bandinha, comecei a tocar com banda de carnaval, despretensiosamente. Eu sou formado em contabilidade, e no meio do caminho, ainda não sabia que eu era músico. Quando eu me vi músico, aos 19 anos, eu estava no segundo ano de faculdade. Aí terminei o curso, só para ter o diploma, mas tocando. Comecei a trabalhar na WR. Rangel foi quem primeiro me deu crédito de arranjador, coisa que eu tive que estudar sozinho também (GAMA, 2011, p. 3).

Acerca de sua relação de pertencimento e identidade com a música baiana popular e contemporânea, afirma Mutti: “Não sou pianista. O caminho musical que apareceu na minha frente me levou a isso [...]. Tenho orgulho de dizer sou baiano, fui criado na rua, sou músico de rua mesmo. Não tem percussionista de rua? Eu sou pianista de rua” (GAMA, 2011, p. 1). Mikael Mutti pode ser compreendido como mais um relevante e renomado profissional da música baiana contemporânea – fenômeno impulsionado pela ascensão nas últimas décadas da axé music e de um modelo de carnaval com características de espetáculo e grande festival, como assinala Moura (2001).

O Percussivo Mundo Novo alia a criação de instrumentos de percussão utilizando materiais recicláveis às novas possibilidades de execução da música eletrônica, a partir, por exemplo, de controle remoto de vídeo-game conectado a um computador;

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guitarras do guitar hero; além da conexão de sensores eletrônicos a instrumentos percussivos criados com metal e PVC. A ampla experiência de Mutti no campo da produção musical oportuniza a utilização das novas interfaces musicais eletrônicas na reprodução de sons de instrumentos percussivos tradicionais como berimbaus, djembes, timbaus, atabaques e pandeiros, além de instrumentos e melódicos.

Dentre os instrumentos criados e adaptados pelo próprio Mikael Mutti, destaque para um ipad – repleto de programas de edição de áudio – acoplado ao corpo de uma guitarra baiana. Entretanto, o som produzido é de instrumentos percussivos, possibilitando, por exemplo, tocar pandeiro com apenas dois dedos; outro instrumento é o Tumbão, espécie de timbau de duas peles, que pode ser tocado na posição horizontal; o Submarino é uma adaptação produzida a partir do repique e do surdo em apenas um instrumento; a Nau é um grande surdo com duas afinações, e que vem acoplado a um carrinho de mão.

Identidades, representações e o movimento percussivo baiano contemporâneo

Pulsante, porém desconhecida do grande público. Paradoxo de um mercado ainda dependente dos meios de comunicação ou produto segmentado com disseminação prevista e oportunizada apenas pela rede mundial de computadores? Neste sentido, pode-se aplicar ao fenômeno dinâmico da percussão baiana contemporânea, o conceito de sociologia das ausências (SANTOS, 2009). É um conhecimento insurgente, que procura mostrar que o que não existe é produzido como não existente, como alternativa descartável, invisível à realidade hegemônica do mundo. Compreender as

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ausências, suas lógicas e tensões permite a reinvenção do espaço e o acolhimento das diversidades, abrindo possibilidades de transformação das monoculturas dos saberes em ecologias dos saberes.

Para Ramos (1989), o modelo multidimensional expande a noção de recursos e de produção, considerando atividades remuneradas e não remuneradas, produção econômica e produções de outra natureza. O pressuposto basilar do modelo proposto por este autor supõe que para alcançar a sua atualização pessoal, o indivíduo deve procurar se libertar da dependência do mercado – este último, enquanto detentor de emprego. O discurso dos músicos Ramiro Musotto e Mikael Mutti parece sinalizar nesta direção, em que a realização pessoal e profissional contemplam projetos musicais paralelos, provocativos, experimentais, evocando liberdade de criação e novas inscrições identitárias e estéticas no campo musical.

Não se registram nos discursos destes músicos, propostas musicais fixas, enquadradas em rótulos meramente comerciais, permanentes e previsíveis. Aliás, pode-se afirmar que a imprevisibilidade é uma proposta conceitual e estética que alcança novas realidades que logo podem (e devem) ser transformadas, reconfiguradas e apresentadas. A estabilidade profissional proporcionou, nestes casos, a não fixidez dos rótulos e compromissos mercantis, assim como a atualização pessoal a partir de critérios integrativos e da racionalidade substantiva (RAMOS, 1989).

De acordo com este autor, atualmente prevalece a racionalidade instrumental, como produto resultante de modelo de sociedade centrado no mercado, em que os seres humanos estariam sendo orientados e teleguiados pelas estratégias e interesses dos meios de comunicação e da publicidade, que interferem no poder

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de discernimento, reproduzindo e reforçando, frequentemente, as regras do modo de produção capitalista, enquanto a racionalidade substantiva é aquela caracterizada pela utilização de critérios como o senso ético, o entendimento, diálogo, autorrealização, satisfação, felicidade. Em outras palavras, o mercado é apenas mais um componente no jogo, mas não o principal para estes músicos.

Para a racionalidade instrumental, os elementos valorizados contemplam a busca pelo individualismo, pelo sucesso mercadológico, realçando o fato de que o indivíduo se tornou “uma criatura que se comporta” (RAMOS, 1989, p. 51).

No campo das identidades e representações, o atual movimento percussivo baiano contemporâneo, aqui brevemente apresentado a partir do Percussivo Mundo Novo, Mikael Mutti, assim como Ramiro Musotto poderiam ser compreendidos como sujeitos pós-modernos, pois não advogam nem requerem inscrições e registros fixos, invariáveis e permanentes. A identidade para estes músicos é uma espécie de “celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente” (HALL, 2005, p. 13). A permanência e fixidez estética soaria como fantasia e ilusão, pois não se aplica como objetivos destes músicos e seus empreendimentos artísticos.

Neste sentido, o hibridismo intenso como proposta conceitual e sistemática destes grupos potencializaria a crise do reconhecimento, como afirma Bhabha (1998, p. 165):

O hibridismo não tem uma tal perspectiva de profundidade ou verdade para oferecer: não é um terceiro termo que resolve a tensão entre duas culturas, ou as duas cenas do livro, em um jogo

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dialético de “reconhecimento”. O deslocamento de símbolo a signo cria uma crise para qualquer conceito de autoridade baseado em um sistema de reconhecimento.

A partir desta compreensão, a reivindicação de reconhecimento perpassa e contempla as distintas iniciativas do campo musical baiano contemporâneo que defendem outras e novas formas estéticas possíveis. Em outras palavras, movimentos musicais emancipatórios ajustados por critérios menos utilitaristas e mais substantivos, numa política de descentralização, de desconcentração, (re)construção e autorrealização.

Para Hall (2005, p. 87), a diversidade de propostas presentes se justifica a partir da globalização “[...] e seu efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas”. Tal pensamento é aplicável ao próprio campo da música baiana contemporânea, e ao campo percussivo, aqui objetificado.

Para Bauman (2005), a globalização representa a redução do próprio Estado no cotidiano da nação, da sociedade, e da própria identidade nacional, transferindo para o mercado, parte de suas responsabilidades e atividades. De acordo com Bauman (2005, p. 34), o Estado não tem mais “poder ou o desejo de manter uma união sólida e inabalável com a nação”, e adverte sobre os riscos da ambiguidade instalada na busca da identidade: numa perspectiva abarca segurança, funcionalidade, fixidez conceitual, identificação e imutabilidade; em outra, “[...] o flutuar sem apoio num espaço pouco definido... torna-se a longo prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade” (BAUMAN, 2005, p. 35).

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Neste sentido, as identidades pulsantes no campo da música percussiva baiana contemporânea estão sob a égide daquilo que é transitório, mutável, do novo que se renova, sendo estes discursos os seus próprios critérios de identificação, segmentação e consumo. O transitório pode conter o tradicional, o eletrônico, elementos rítmicos do samba e ijexá, mas, também, batidas tecno, e o esgotamento das possibilidades não se constitui como preocupação ou assunto neste campo criativo, dinâmico e interativo.

Considerações Finais

O movimento percussivo baiano contemporâneo pode ser compreendido como dinâmica representativa a partir (res)significação dos modos de utilização e apropriação dos instrumentos percussivos, além de ampliar as possibilidades da produção musical e de novos registros sonoros. O protagonismo de músicos experientes e renomados no cenário musical corroborou com a maior aceitação destas novas propostas estéticas. Entretanto, há muito o que se conquistar no campo da divulgação e disseminação destas iniciativas, ainda restritas ao mundo eletrônico, e, aparentemente, com poucas chances de grande visibilidade midiática e de configuração de produtos comerciais.

Então, respeitando a intensidade do movimento objeto deste breve estudo, cabem algumas perguntas:

a) Por qual motivo, parcela considerável das rádios e demais empresas de comunicação, permissionárias e detentoras de concessão pública, insistem em não oportunizar a apreciação de tais obras e artistas?

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b) Sendo a música um relevante agente estético na configuração da imagem e marca Bahia no campo da representação social, por qual motivo os órgãos de turismo e cultura não investem na divulgação destes artistas e produtos, ampliando, inclusive, o discurso da criatividade e diversidade cultural baiana?

c) A música baiana é um fator potencial para o deslocamento turístico, e, neste sentido, o que justificaria o não aproveitamento desta produção musical diversa e suas relações identitárias com a capital como discursividade propagandística?; A permanência das imagens, performances e percussão dos blocos afro tradicionais nas propagandas oficias pode – e deve – continuar, mas, se é possível diversificar contemplando outros atores representativos, por que não?

d) Compreendendo a diversidade cultural no mesmo plano dos direitos econômicos e sociais, remetendo a uma conceituação de cultura consideravelmente ampla (MOURA, 2010), o que justificaria, ainda, ausências e discursos reducionistas sobre tal fenômeno como produção cultural? Desconhecimento? Preconceito?

e) Sendo a identidade no campo musical um elemento indispensável para o reconhecimento de propostas musicais, é possível afirmar que, semelhante ao ocorrido com a produção e inventividade de Walter Smetak em décadas anteriores, o grande público tem dificuldades para compreender e interagir com proposições estéticas calcadas na contínua transitoriedade?

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f) O transitório e o hibridismo, como discurso identitário, seria um fator limitante para a ascensão comercial e midiática destes grupos?

g) A criatividade de grupos como o Percussivo Mundo Novo é fruto da “condição enervante e produtora de ansiedade” (BAUMAN, 2005, p. 35) ou estratégia empresarial? Se for esta última, há cultura artística nas sociedades soteropolitana, baiana e nacional para compreender e apreciar suas propostas, uma vez que não costumam emplacar obras de refrão fácil e previsível nas rádios comerciais?

Dúvidas que o tempo e os atores sociais se encarregarão de responder à parte, pode-se afirmar que a experiência, sensibilidade e atitude de músicos como Mikael Mutti, entre outros, estão sendo referenciais relevantes nas inúmeras experimentações estéticas constituintes de uma música baiana contemporânea, muito impulsionada e redimensionada por movimentos musicais massivos como o axé music e o pagode. Estes, por sua vez, também agregam suas diversidades, identidades e representações.

Referências 

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BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

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DE PAOLI, Paula Silveira. Entre música e artes plásticas: as experiências de Walter Smetak na Bahia de Todos os Santos. Disponível em: <http://www.docomomobahia.org/linabobardi_50/18.pdf>. Acesso em: 3 jun. 2011.

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GAMA, Saulo. Conversas com Mikael Mutti. Disponível em: <http://www.pianistasdesalvador.com.br/arq_saulo/conversascommikael.pdf>. Acesso em: 25 maio 2011.

MIGUEZ DE OLIVEIRA, Paulo César. A organização da cultura na “Cidade da Bahia”. 2002. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2002.

MOURA, Milton Araújo. Carnaval e baianidade: arestas e curvas na coreografia de identidades do carnaval de Salvador. 2001. 364 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporânea) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001.

PMN. PERCUSSIVO MUNDO NOVO. 2 jun. 2011. Disponível em: <http://www.pmnmusic.net/001-br.html>.

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A BAHIA POR SEU MOSAICO NARRATIVO DOCUMENTAL

Carolina Ruiz de Macedo

A importância do texto audiovisual documental como produto e produtor de cultura e como importante local de construção narrativa é cada dia mais inegável. A produção tem crescido, e o documentário se afirmado como gênero fértil, criativo e envolvente. Além de ser mais um elemento constitutivo do discurso artístico-cultural, tem grande força simbólica por ser visto como representação de um mundo histórico real.

Enquanto recorte da realidade e ponto de vista comprometido com perspectivas de mundo distintas, o documentário se apresenta a partir da potencialidade de exploração de vários traços da cultura de um povo e das suas possibilidades técnicas, constantemente ampliadas de modo a favorecer novas formas de expressão.

Inevitavelmente relacionados, documentário e representação social, essa simbiose propiciou o surgimento da proposta de pesquisa da qual esse trabalho objetiva apresentar uma síntese dos resultados, qual seja a de analisar a produção audiovisual baiana de gênero documentário das duas últimas décadas recentes que fale sobre a Bahia, confrontando-os com os principais elementos da narrativa da baianidade no intuito de verificar em que medida os filmes documentários contribuem para a introdução de novos subsídios

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para pensar e compreender a realidade social e identidade cultural baiana ou colaboram para a reafirmação dos elementos já instituídos da baianidade, advindos do discurso homogeneizante42.

Diversidade, Identidade e Baianidade

A compreensão sobre a noção de diversidade cultural mostra-se profícua dada a sua dimensão teórica que nos auxilia a pensar sobre as identidades e suas formas de representação como decorrentes de processos plurais, paradoxais e processuais. Em termos práticos, Bernard (2005) sugere uma redefinição do conceito de diversidade cultural a fim de alcançar um entendimento do conceito que ultrapasse o simples reconhecimento acadêmico, a utilização para fins de marketing e/ou da defesa retórica e engajada, propondo, dessa maneira, que este seja entendido através dos termos diverso, cultural, dinâmica, resposta e projeto.

Diferentemente da impressão de obviedade e similaridade que os termos podem criar, para o autor, o “diverso” da “diversidade” incide não na multiplicidade ou variedade, mas sim no diferente, oposto. No que tange o contexto da identidade baiana, a luta que caracteriza o diverso está expressa pelas várias formas culturais existentes no território baiano, que diferem em muito nas suas maneiras de lidar com o natural, mas, sobretudo, pela tensão presente no âmbito da representação dessas culturas. Ou seja, a dinâmica de constituição de narrativas que organizem com sentido as peculiaridades dessas localidades tem se fortalecido.

42 Pesquisa realizada durante o mestrado no Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade, UFBA, sob orientação do professor Milton Araújo Moura, defendida em 2010.

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Assim, pensar a diversidade cultural materializada nas representações fílmicas sobre a identidade baiana traz à tona uma questão central para nossa análise, a tensão que acompanha a luta pelo status de centralidade e legitimidade entre as representações já reconhecidas como tais e aquelas que ocupam a margem. Trata-se, portanto, do conflito entre as representações consolidadas da baianidade como um trade mark, que propicia um reconhecimento turístico para fora dos seus limites territoriais, centrado na ideia de tipicidade e uma outra identidade, cuja nomenclatura não resiste ao rótulo baianidade, justamente por ser composta de outras referências culturais, além daquelas que apontam para Salvador e seu Recôncavo. Deste modo, essa “luta” identitária, nos últimos anos, tem se intensificado através do fenômeno de crescente elaboração de produtos culturais – o que inclui a produção audiovisual – por parte de localidades interioranas, que, com algumas exceções, não tinham antes oportunidade de autorrepresentação ou força suficiente nessas representações para formatar uma sólida narrativa identitária própria a ponto de se inscreverem nessa narrativa mais ampla, que caracteriza o Estado.

O jogo de oposições entre estas representações expressa relações intricadas e complexas de poder, por meio das quais se reafirmam os lugares do centro e das margens pelos discursos de delimitação espacial e cultural, estando a alteridade demarcada inclusive como forma de estabelecer a diferença. Em diversas representações, os traços culturais que comumente estão à margem ocupam o papel de centralidade justamente para a legitimação daqueles que geralmente figuram no centro. Faz parte desta complexidade ainda uma delimitação da diferença que não precisa emergir explicitamente, aliás nem sempre as dicotomias são operadas ou evidenciadas.

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É importante frisarmos que o que chamamos de identidade baiana compreende todo o arcabouço de elaborações identitárias sobre a Bahia, possuindo uma significação mais ampla, enquanto o que chamamos de baianidade ou narrativa da baianidade, diz respeito a uma formulação específica sobre a Bahia, forjada a partir de elementos de Salvador e do Recôncavo e que nas últimas décadas tem sido hegemônica na representação do Estado interna e externamente.

Os anos de 1990 a 2008 foram o recorte temporal da pesquisa por se centrarem num período em que um novo discurso sobre as identidades vem sendo forjado, valorizando a diversidade, bem como por se configurarem como epicentro do barateamento e diminuição dos equipamentos videográficos tendo, em contrapartida, a crescente qualidade de imagem. Esses fatores contribuíram para um maior acesso à realização de filmes que, enquanto exclusivamente realizados em película, era privilégio de poucos.

O corpus constituiu-se da crescente filmografia documental baiana, incluindo as produções estatais, compreendidas pelos filmes realizados pelo Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (IRDEB); as realizadas no âmbito acadêmico, abrangendo as produções dos cursos de Comunicação Social das universidades baianas (TCCs e demais produções regulares) – uma vez que se considera que estas podem abrigar a gestação de novos rumos para a produção audiovisual, além de serem um universo rico, e estarem fomentando novos realizadores, com olhares, origens, interesses e formações diversificadas –; projetos governamentais de incentivo à produção audiovisual, como o DocTV e o Revelando os Brasis; e também as produções particulares, sejam as que têm auxílio de ONGs e projetos sociais, sejam as de realizadores

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independentes. Além disso, o levantamento não se restringiu aos filmes apresentados em festivais, buscando-os também em acervos como os dos sites Curtagora e Porta Curtas e o da Diretoria de Imagem e Som da Fundação Cultural do Estado da Bahia (DIMAS). Foram considerados os filmes de longa, média e curta metragens, realizados tanto em película como nos demais suportes disponíveis pelos aparatos tecnológico, tais como VHS, mini DV, DV, etc. Tal perspectiva permitiu a apreensão da pluralidade de produtos fruto da “democratização” pelo qual passou o domínio da linguagem audiovisual, graças justamente à popularização do digital.

A perspectiva metodológica de análise proposta foi de cotejamento temático a partir da construção de uma categorização dos documentários e do levantamento de imagens-chave sobre a Bahia.

A noção de imagem-chave foi convertida em conceito teórico-metodológico, funcionando como recurso analítico para identificar no repertório simbólico da baianidade seus traços mais marcantes e condensando-os em expressões por meio das quais procedemos uma série de relações.

Segundo Ludes (2005, p. 77), o entendimento das imagens-chave é muito próximo ao conceito das palavras-chave. Assim como estas são palavras que se estendem por um contexto maior, imagens chave seriam alguns elementos audiovisuais que falam mais que outros, “[...] que são como chaves para um largo conjunto de significados, e também atraem a atenção e instigam a memória visual”.

Foram analisadas as temáticas dos filmes que retratam a Bahia, ou seja, o que chamamos de documentário de autorrepresentação baiana, em um universo composto por 376 documentários.

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A sistematização dos dados coletados em campo e o seu entrecruzamento conduziram à elaboração de uma tipologia que agrupou os documentários por assuntos centrais tais como: Artes em Geral; Resgate Histórico; Arte popular; Biografia; Comportamento; Cotidiano; Educação; Esporte; Festa e/ou folguedo popular; Meio ambiente; Patrimônio arquitetônico; Questão étnica; Questões políticas; Questões socioeconômicas; Questões socioeconômicas e políticas; Referenciais culturais; Religiosidade; Saúde. A classificação por categorias segue um critério que não encerra a possibilidade de enquadrá-lo em outra categoria, dado que a exploração de alguns temas evidencia que estes atravessam outras categorias.

Os traços emblemáticos que compõem a identidade baiana, entendida aqui como uma síntese destes, se convertem metodologicamente em imagens-chave que delimitam um quadro de referências estereotipadas e centradas na noção de tipicidade. Deste modo, as imagens-chave representam aqueles traços já instituídos pela narrativa da baianidade presentes nas representações midiáticas e em diversos discursos sociais. Assim, estabelecemos os seguintes temas como imagens-chave: Alegria; Carnaval; Festividade; Familiaridade; Jeito baiano; Sensualidade; Religiosidade; Etnicidade; Tradição; Proximidade com a natureza; e Culinária.

Documentário e baianidade

Os filmes, classificados por categoria, ficaram numérica e percentualmente distribuídos conforme Tabela 1.

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Tabela 1 – Produção dos documentários baianos (1990 a 2008) classificados por categoria dos filmes pesquisados

CATEGORIA QUANTIDADE %Arte popular 12 2,8Artes em geral 13 3,0Biografia 51 11,8Comportamento 27 6,3Cotidiano 19 4,4Educação 4 0,9Esporte 4 0,9

Festa e/ou folguedo popular 31 7,2Meio ambiente 31 7,2

Patrimônio arquitetônico 6 1,4

Questão étnica 15 3,5Questões políticas 10 2,3

Questões socioeconômicas 37 8,6

Questões socioeconômicas e/ou políticas 18 4,2

Referenciais culturais 37 8,6Religiosidade 33 7,6Resgate histórico 78 18,1Saúde 6 1,4

TOTAL 432 100Não Identificados 143 24,9

TOTAL 575  Fonte: Elaborado pelo Autor.

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Nesse artigo apresentamos uma análise dos elementos de identidade cultural presentes nos filmes agrupados nas categorias com percentuais quantitativos acima de 7,5%. A pluralidade de referências culturais que compõe a identidade baiana emerge de distintos modos nas representações fílmicas, como veremos através do breve panorama composto pelas cinco maiores categorias de análise (destaque em azul).

Os filmes classificados na categoria Biografia narram a história da vida de uma pessoa ou de várias pessoas; dedicam-se a retomar trajetórias pessoais, muitas vezes com ênfase na carreira ou no trabalho de algum indivíduo específico. É uma das categorias que agrupa mais títulos. Nos últimos anos, é crescente o interesse pela produção, leitura e estudo de biografias nas mais diversas áreas do conhecimento. A despeito da perspectiva positivista, preponderante por longo tempo, de descrever os grandes feitos dos grandes personagens, a biografia emerge na atualidade procurando focar indivíduos e suas trajetórias como parte de processos mais amplos, fornecendo acesso a características sociais impalpáveis, tendência também seguida pelo universo dos documentários abarcados nessa categoria.

Na categoria Biografia, apresenta-se um painel de várias personalidades relevantes da Bahia ou cujas histórias de vida funcionam em parte como representações de temas importantes para a composição da cultura e história do Estado. Grande parte destas personalidades se relaciona diretamente com as referências culturais ligadas à narrativa da baianidade como a capoeira, a música, a negritude – tanto em relação aos seus aspectos de representação estética, quanto no que diz respeito ao movimento negro, enquanto projeto político.

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A sinopse de A Bahia de Sérgio Rabinovitz, por exemplo, afirma que “a arquitetura colonial, a religiosidade das festas de largo, o êxtase do carnaval, a violência das rinhas de galo, e o colorido da feira de São Joaquim, são algumas das suas principais fontes de inspiração”. De forma semelhante afirma a sinopse do documentário O Velho Capoeirista: mestre João Pequeno de Pastinha: “Panorama sobre a capoeira e seu significado para a cultura popular baiana, por meio da trajetória de Mestre João Pequeno”. Citamos como exemplos representativos ainda os documentários José Silveira – vida e obra; Hansen Bahia e Batatinha – o samba oculto da Bahia. Uma vez ligados à negritude enquanto expressão estética, os temas se relacionam à imagem-chave da etnicidade como um discurso de exaltação a exemplo de Abdias Nascimento: memória negra, Mario Gusmão – anjo negro da Bahia e Mário Gusmão – primeiro ato.

Os temas ligados à baianidade são abordados a partir da relação que mantém com estas personalidades, ora como matéria-prima para suas criações artísticas, ora a partir das releituras dos elementos culturais operadas por estas pessoas nas suas obras de naturezas diversas. Algumas personalidades retratadas, como Jorge Amado, estão diretamente conectadas à narrativa da baianidade não só por serem divulgadoras da cultura local, mas, sobretudo, pelo papel que ocupam como intérpretes da baianidade, isto é, atores legitimados no sentido de operar a (de)codificação dos signos que compõem a sua narrativa (MOURA, 2001).

Há uma variedade temática que se expressa pela possibilidade de exploração de traços ligados à capoeira, festas de largo, literatura, música, artes plásticas, cinema e, nesse sentido, também devemos considerar uma pluralidade nas abordagens associadas à imagem-chave da tradição, mas ainda ao contemporâneo. Também de

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forma a evidenciar a potencialidade em relação à diversidade de temas, são comuns os documentários que tratam de personalidades representativas de outras regiões, como a da Chapada Diamantina e da Região Cacaueira. Tal aspecto aponta para as possibilidades de autorrepresentação de outros lugares dissociados da baianidade e, portanto, situados em outras espacialidades.

A categoria Questões Socioeconômicas apresenta três subtemas gerais. Um destes aborda o ciclo de produção de bens de consumo e suas implicações sociais e econômicas e os municípios e suas potencialidades econômico-produtivas, o que se evidencia nos documentários A Chuva que Vem do Chão; A Força de Um Grito; Campo Alegre – a promessa do Sertão; Monte Branco e Pirão Baiano. Outro subtema corresponde aos problemas sociais em municípios de todo o Estado, tais como desigualdades sociais, prostituição, discriminação homossexual, deficiência e trabalho infantil. É o caso, por exemplo, de A Casa de Dete; A Criança e o Trabalho; A Cidade de Plástico; Bombadeira; A Rua: o bicho da cara preta e outros. Há ainda o subtema sobre aspectos como a adoção e trabalho de instituições sociais, como APAE e AESOS, a exemplo de Um Mundo Ideal e Sons no Silêncio!. Apesar de abarcar um grande número de filmes, essa categoria não traz de forma evidente elementos emblemáticos da narrativa da baianidade, nem o delineamento de uma outra narrativa sobre a Bahia. No entanto, aponta para a abordagem de temas ligados a outras localidades baianas, fora do eixo capital-recôncavo, e para a inclinação/vocação de denúncia social do documentário.

Referenciais Culturais é outra grande categoria, abrangendo 31 filmes que retratam a Bahia. Por referenciais culturais entendemos temas que buscam apresentar o sistema de signos e símbolos

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vinculado aos objetos, aos lugares e às formas de fazer atribuídos pelas diferentes comunidades que as diferenciam e identificam.

Esta categoria apresenta um mosaico das relevantes referências responsáveis pela constituição das identidades culturais dos locais retratados. A cultura é representada a partir das suas expressões cotidianas, das festas e folguedos, das músicas e danças, da culinária, do teatro, das belezas naturais, da arquitetura etc. Percebe-se ampla variedade no que diz respeito à exploração de temáticas com vertentes ora ligadas à baianidade ora às identidades regionais, ambas associadas às suas práticas culturais correlatas.

Enquanto vinculada à baianidade, as referências culturais apresentadas se relacionam a diversas imagens-chave, sobretudo enfatizando a tradição, mas ainda a etnicidade, a familiaridade, a festividade, a alegria e a religiosidade. Um dos aspectos referentes à abordagem da imagem-chave da tradição está atrelado a locais específicos representativos da baianidade como Itapuã e o Centro Histórico. Segundo Mariano (2009), diversos desses lugares têm espaço cativo nas várias formas de representação discursiva da baianidade, sobretudo aqueles relacionados à Bahia tradicional, bucólica, como é o caso de Itapuã, e à etnicidade, como exaltação da negritude, como o Centro Histórico, a Liberdade e o Curuzu. Em Pelô 450, essa abordagem é explicitada pela sinopse: “a história da cidade de Salvador a partir de um de seus maiores símbolos: Pelourinho”.

A associação com a baianidade também se evidencia com a exploração de temáticas relacionadas à religiosidade, destacadamente a partir da ênfase no sincretismo cuja síntese opera a aproximação entre as referências católicas e as dos cultos de matriz africana.

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O sincretismo, como mistura de traços culturais – portanto, em sua acepção mais ampla além daquela ligada exclusivamente à religiosidade –, também aparece nos temas sobre as migrações como mostra das contribuições de outros povos para a constituição da cultura local.

Os temas que se deslocam da narrativa da baianidade e representam outros locais e referências culturais também são diversos. Destacam-se aí os documentários que retratam as regiões do Sisal, do Cacau e de Canudos. Há em algumas sinopses a preocupação em apresentar outras manifestações culturais e, concomitantemente, se desvincular de alguns estereótipos sobre a imagem do Sertão, por exemplo. No entanto, a inevitabilidade de certa estereotipia nas representações das identidades aparece como um aspecto que não deixa de evidenciar a exposição dos traços culturais como particularidades, logo, trazendo à tona imagens estereotipadas para corroborar imagens já consolidadas ou ainda em sua potencial dimensão estratégica (JAMESON, 1994).

Tanto os temas que trazem as referências culturais vinculadas à baianidade quanto aqueles ligados às identidades regionais, que não perfazem a narrativa da baianidade, estão investidos de estratégias semelhantes de manutenção da concepção essencialista e de reafirmação dos seus elementos vistos como emblemáticos. Uma destas se refere à construção discursiva que avulta a ideia de uma comunidade com passado e origens comuns e que caminha rumo a um futuro promissor, tal como lembra Anderson (1989), e é evidenciada na sinopse do documentário Bahia, Corpo e Alma: “Mostra as belezas, o povo, a história, a arte, a espiritualidade. Uma Bahia onde se celebra a vida e conquista-se o futuro. Um povo de passado marcante e futuro generoso”. As referências culturais

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comuns, nesse caso, compõem uma das decorrências do processo de constituição identitária, qual seja a diluição das diferenças em função de um projeto homogeneizante que permite aos sujeitos situarem-se socialmente a partir do reconhecimento destas referências.

Como um desdobramento dos referenciais culturais, a categoria Religiosidade se configura como um núcleo temático muito produtivo para discutir questões relacionadas à identidade, uma vez que a Bahia tem na religiosidade um nicho de elementos simbólicos emblemáticos da baianidade. O viés histórico com que são comumente tratadas essas religiões e práticas religiosas reforça mais uma vez o aspecto da tradição, das raízes.

Temos abarcadas pela religiosidade baiana – e dialogando com ela – diversas outras imagens-chave da baianidade, tais como o sincretismo, a exaltação da negritude e da herança cultural africana, a sensualidade do corpo expressa na dança e no ritmo percussivo dos tambores, o misticismo e a proximidade com a natureza, todas elas características tributárias da religiosidade africana, traços de uma religiosidade intimamente relacionada à etnicidade. Orixás da Bahia enfatiza: “Em cores vivas e fascinantes ritmos, transporta o espectador para a riqueza natural e a energia espiritual da Bahia”.43 Já Acará, marca a relação entre a culinária e a religiosidade, abordando a ritualização do preparo e comercialização do acarajé.

A miscigenação novamente marca terreno simbólico através da figura do caboclo, símbolo relevante da fusão de raças e consagrado como entidade do candomblé. A fusão entre o índio, o negro e a influência europeia é explorada para a explicação da composição tanto das práticas religiosas católicas quanto do candomblé.

43 Grifo nosso.

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A familiaridade, característica do jeito baiano, se manifesta dentro da religiosidade pela boa convivência entre o sagrado e o profano, também representada pela imagem do caboclo, além da convivência que acentua a proximidade entre os membros da religião. Essa característica é notória em diversos vídeos que retratam festas religiosas católicas que se misturam com manifestações profanas e que convivem dentro da mesma festa, como a festa da Boa Morte, realizada em Cachoeira e retratada por três documentários.

O catolicismo e o candomblé aparecem nos documentários como religiões predominantes na Bahia, representadas nos documentários através de diversas expressões, como festas, peregrinações, templos e ritos. Podemos ter dimensão dessa proporcionalidade representativa também em termos quantitativos: treze filmes retratam manifestações religiosas católicas, quatorze retratam os signos e ritos do candomblé e três se ocupam da abordagem do sincretismo entre catolicismo e candomblé. Apenas um filme fala de uma religião diferente; Islã e Fé em Salvador retrata o muçulmanismo, porém já o indicando como algo estranho, afastado do que é comum, como indica a sinopse: “mostra como é ser mulçumano na terra dos Orixás”, reafirmando a centralidade do candomblé na cultura baiana.

Outro elemento bastante representado é a fé do sertanejo, predominantemente católica, o que se configura como um distanciamento da ideia de baianidade e um afastamento do seu centro de referências. Aproxima-se do interior, do sertão e, consequentemente, da representação do nordestino, como em Penitentes do Médio São Francisco; Imagens Cruzadas e Romeiros do Bom Jesus.

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Gilberto Freyre, que colaborou em muito para cunhar as representações de Nordeste e do sertanejo vigentes, contribuiu também para elaboração de um afastamento simbólico entre a identidade do “baiano” e a do “nordestino”. Em Casa Grande & Senzala, identificamos uma possível explicação sobre a diferença comportamental entre o nordestino/sertanejo e o baiano sugerida

pelo autor.

Contrastando-se o comportamento de populações negróides como a baiana – alegre, expansiva, sociável e loquaz – com outras menos influenciadas pelo sangue negro e mais pelo indígena – a piauiense, a paraibana ou mesmo a pernambucana – tem-se a impressão de povos diversos. Populações tristonhas, caladas, sonsas e até sorumbáticas, as do extremo Nordeste, principalmente nos sertões; sem a alegria comunicativa dos baianos; sem aquela sua petulância às vezes irritante. Mas também sem a sua graça, a sua espontaneidade, a sua cortesia, o seu riso bom e contagioso (FREYRE, 1995, p. 288).

Outro aspecto importante a ser frisado é que os vídeos mostram essas manifestações distribuídas por várias cidades do estado, mostrando que o candomblé está presente no interior e que o catolicismo, de formas diferenciadas e fundindo-se com diversos outros referenciais, está espalhado por todo o estado.

Por Resgate Histórico, entendemos um mergulho no tempo. Essa categoria abrangeu as narrativas que objetivam relatar fatos, mostrar lugares, valorizar pessoas e ideias, deixando, assim, o registro através do tempo. Os filmes classificados como Resgate Histórico reconstroem a trajetória histórica de instituições, manifestações culturais e localidades através documentos, objetos, fotografias e

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depoimentos, demonstrando que cada estágio do desenvolvimento humano é resultado de conquistas anteriores.

A categoria apresenta razoável uniformidade em relação à abordagem. Parte considerável dos documentários, segundo a sinopse, pretende realizar uma retomada dos aspectos históricos dos temas retratados. Neste sentido, são enfocados lugares relevantes, fatos significativos, atores sociais importantes que participaram dos fatos ou que têm legitimidade para rememorar algum período histórico. A variedade dos temas é considerável, uma vez que os vídeos retomam a história de lugares como o Centro Histórico, a Baixa dos Sapateiros e a Feira de São Joaquim. Além disso, retrata algumas das representações escolhidas como fontes de resgate histórico: músicas, cinema, rádio, teatro, lendas, costumes, a arte de fazer saveiros etc.

Algumas imagens-chave se relacionam aos temas que tratam da baianidade, sobretudo, ao serem reafirmados os aspectos voltados para a tradição, a etnicidade e a religiosidade. Assim, o resgate histórico também está a serviço da pretensão de busca das origens, como expressão das raízes culturais, tal como parte do processo de constituição identitária reivindica. Dessa forma, vemos o jeito baiano explorado na sinopse de A Capoeiragem na Bahia, quando esta diz abordar “a questão controvertida das origens históricas da capoeira, sua imbricação africana-ameríndia-ibérica, sua relação com o Candomblé e as tradições desta dança/luta que se tornou um símbolo da manifestação corporal expressa no viço da ginga baiana”.44

Embora sejam reafirmados os traços que compõem a baianidade, também temos a presença de documentários que tratam de outros lugares e suas respectivas identidades culturais como a

44 Grifos nossos.

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Chapada e a história do seu coronelismo, além de outros aspectos como o extrativismo mineral e seus impactos socioambientais e outras cidades do interior baiano como Itabuna e Ibicaraí. Aspecto exemplificado com os documentários Canudos, uma História Sem Fim; Chapada Velha; Deu no Rádio; Vozes da Cidade; Além da História e O Outro Lado da Chapada.

Considerações Finais

Como acervo de representações das diversas manifestações culturais e outros aspectos da sociedade baiana, o documentário produzido na Bahia no período analisado também funcionou, dentre outras possibilidades, como instrumento de ratificação da concepção de baianidade, por produzir discursos que incluíam uma repetição reiterada da emblematicidade que delineia os elementos representativos desta identidade cultural como uma narrativa hegemônica sobre o Estado.

Através de uma discussão sobre as identidades pautada na perspectiva dos Estudos Culturais, cuja interpretação acerca da constituição identitária a enfatiza como um processo marcado pela pluralidade, mobilidade e hibridismo, além da sua íntima relação com os jogos de poder que definem uma produção discursiva ligada a instituições como o Estado, afirmamos que a baianidade se configura como narrativa hegemônica por produzir a ideia de centro e deslocar as outras identidades sobre a Bahia na produção e atrelamento de sentidos como o regional, o exótico e o diferente com relação a estas.

Alguns aspectos presentes nos documentários são recorrentes, aparecendo de forma mais explícita através dos temas

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ou em diversas formas de abordá-los. Um destes aspectos se refere à tradição, como uma espécie de reverência aos signos ligados ao passado e a idealização da Bahia como a Terra mãe e como lugar de origem. A partir desta abordagem, outros sentidos correlatos tendem a ganhar destaque, como aqueles que corroboram o sentido de um jeito baiano, ou seja, a personalidade do povo, incluindo aí as imagens ligadas à alegria, à festividade, à malemolência etc. Diversas imagens-chave ganham força justamente em virtude de sua reafirmação de acordo com a consolidação de um discurso sustentado pelo ideal de essência e raiz. Uma das estratégias discursivas presentes aí perpassa o reforço do tom normativo que utiliza os traços da baianidade segundo os seus significados mais recorrentes. Neste sentido, as imagens-chave também correspondem às expectativas sociais criadas em torno das imagens que deveriam compor o repertório simbólico das identidades já vistas como consolidadas. As categorias por meio das quais esta dimensão se torna mais perceptível se refere àquelas que tratam de temas mais ligados às manifestações culturais, festivas, religiosas, folclóricas etc.

Percebemos, no entanto, que o conjunto dos documentários apresentados expressam muito mais a variedade temática, uma vez que não são produzidos apenas em Salvador ou fazem referências somente a temas ligados, direta ou indiretamente, à baianidade. Diversas categorias se apresentam não necessariamente como uma negação projetada da baianidade, mas como materialização das possibilidades de exploração temática. Mesclam-se, assim, características reconhecidas como associadas ao contemporâneo e outras reconhecidas na sua ligação com a tradição, como decorrência dos processos plurais e híbridos por que passam os processos de constituição das identidades culturais.

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Durante o processo de análise, verificamos que os traços que remetem à baianidade nos documentários podem ser visualizados mais imediatamente do que aqueles não o fazem. Atribuímos a isto o fato de a baianidade ter se constituído como narrativa hegemônica e, portanto, já ter os seus signos ordenados e relativamente consolidados. Tal característica nos ajudou a compreender a baianidade como uma narrativa identitária central e que marca sua diferença em relação às outras identidades sobre a Bahia. Assim, a classificação das outras identidades baianas em outras categorias se deve à herança teórica que define as identidades pelo jogo da oposição e da diferença. Concepção que, embora recorrente, ainda tem feito fortuna teórica e metodológica na análise dos processos identitários.

Deste modo, a exploração de outros temas evidencia a variedade de abordagens, mas não necessariamente se constitui como um projeto político com a finalidade de negar a baianidade enquanto narrativa hegemônica. Em alguns casos, as manifestações identitárias retratadas fazem parte de outras narrativas sobre a Bahia, deslocadas da baianidade, como aquelas que se referem ao sertão, por exemplo, mas não se constituem de maneira a emergir como uma identidade central sobre a Bahia, também no sentido de compor uma referência homogênea para o reconhecimento do Estado por aqueles sujeitos que o veem de fora. Em parte considerável, os documentários realizam uma abordagem que enfoca as outras identidades baianas, ressaltando o seu suposto caráter de peculiaridade, engendrando-as como narrativas que estão à margem; e mais uma vez, pela diferença que demarcam, tendem a ratificar a legitimidade da baianidade tal como esta se organiza simbolicamente. A própria existência de outros temas já contribui, no entanto, para a formação e discussão

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de outros elementos além daqueles que se referem à baianidade, o que nos permite reconhecer o conjunto dos documentários como uma das contribuições no sentido de promover a visibilidade de outras representações sobre a imagem de Bahia.

Referências

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RÁDIO COMUNITÁRIA E SIGNIFICADOS NA RECEPÇÃO

notas sobre a construção político-identitária no Território do Sisal

Vilbégina Monteiro dos Santos

Este texto é fruto de uma pesquisa que buscou compreender os processos de identificação e desidentificação com o projeto político-identitário de “Fibra e Resistência” desencadeados pela comunidade local não diretamente envolvida com os movimentos sociais, através da recepção da rádio comunitária Valente FM, em Valente, município do Território do Sisal. A análise da recepção de uma emissora comunitária, especificamente da Valente FM, é significativa no contexto desse trabalho, pois a comunicação comunitária se converte em elemento estratégico na difusão, conhecimento e mobilização dos sujeitos não diretamente envolvidos no projeto político-identitário forjado para essa localidade.

A pesquisa de recepção, enquanto desenvolvimento de uma nova vertente nos estudos da comunicação, especialmente na América Latina, desponta com propostas que avançam na compreensão da relação entre comunicação e cultura. A comunicação é vista como um processo dialógico, onde há o reconhecimento do sujeito e de suas percepções como elementos significativos dentro do processo comunicativo. Sendo assim, os estudos mais recentes de recepção

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representam gradativamente uma entrada no cotidiano e no contexto sociocultural dos receptores, destacando os modos como eles usam e se relacionam com os meios de comunicação e sua programação. Para esses estudos, as questões micro e macro se inter-relacionam de modo integrado, ressaltando o valor de se compreenderem as diferentes influências culturais, de classe e contextualizações históricas no fenômeno comunicativo.

Ao lançar luzes na atividade do receptor, ganham relevo, portanto, a experiência e os aspectos relativos à produção de sentido e à luta pela hegemonia, pois é na esfera de circulação de discursos e sentidos que se produzem as representações sociais que vão fixar os sentidos e servir de modelo para a construção de identidades. É nessa perspectiva que no encontro entre a Comunicação e os Estudos Culturais identifica-se uma forte inclinação em refletir sobre o papel dos meios de comunicação na constituição das identidades. Na dinâmica de reelaboração de identidades, os movimentos sociais reivindicaram sua participação a partir de uma nova maneira de se relacionar com e se apropriar dos meios de comunicação.

Ao propor o deslocamento dos “meios às mediações”, Martín-Barbero (2006) enfatizará o que denomina de “uso social dos meios”, e irá revisar o processo da comunicação desde a recepção, verificando as resistências, formas de apropriação e usos. Para tanto, necessita-se contemplar o estudo das instituições, organizações e sujeitos das diversas temporalidades sociais e multiplicidades de matrizes culturais, logo, investigar o processo comunicativo a partir das articulações entre as práticas de comunicação e os movimentos sociais.

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O aspecto cultural aparece como campo estratégico de luta pela hegemonia. Assim sendo, Martín-Barbero considera a comunicação como espaço estratégico desde o qual devem ser pensadas as sociedades, recolocando as relações entre comunicação e cultura, evidenciando a natureza negociada da comunicação e redimensionando o papel do receptor como sujeito ativo no processo de recepção. Esta se configura como o espaço relacional “[...] dos conflitos que articulam a cultura, das mestiçagens que a tecem, das anacronias que a sustentam e, por último, do modo em que trabalha a hegemonia e as resistências que mobiliza” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 240).

Através das mediações podem ser compreendidas as relações receptor/produtor. Para Martín-Barbero (2006, p. 233), as mediações são os lugares de onde “[...] provêm as constrições que delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultural da televisão”. Assim, a mediação é todo um conjunto de fatores que estrutura e (re)organiza a percepção e apropriação da realidade, por parte do receptor.

Para fins específicos desse trabalho consideramos as mediações “por excelência”, ou seja, aquelas suscitadas pelo próprio objeto de estudo, a saber: mediação geracional, religiosidade e proveniência (urbano e rural). Aqui, as mediações “por excelência” estão associadas aos três lugares de mediações propostas por Martín-Barbero (2006), a saber: cotidianidade, heterogeneidade de temporalidades e competência cultural.

Nesse sentido, estes lugares funcionam como categorias que podem contemplar diversas mediações a depender das interpelações realizadas nos objetos de estudo. Assim sendo, a geração emerge aqui como uma expressão das diferentes relações que os receptores

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da Valente FM estabelecem com o tempo na produção de sentidos e leituras de mundo; a proveniência se manifesta como traço da cotidianidade, funcionando como expressão da tensão entre o urbano e o rural, enquanto espaços de um cotidiano vivido; a religiosidade constitui a principal manifestação da vivência cultural adquirida no cotidiano, compondo o lugar de mediação da competência cultural. Também é importante demarcar aqui que entendemos religiosidade como uma mediação sociocultural dos mais diferentes vieses religiosos, não se confundindo com uma religião específica, mas se configurando como uma referência coletiva de produção de sentidos no imaginário popular, muito embora, no caso em estudo, o imaginário coletivo da região do sisal teve na tradição judaico-cristã, notadamente na Igreja Católica, sua principal influência.

O projeto político-identitário do sisal: novos discursos

O Território do Sisal, mais conhecido como região sisaleira, está localizado no semiárido baiano e historicamente concentra alguns dos piores índices de desenvolvimento social e econômico do país. Composto por 20 municípios,45 a renda média per capta é de meio salário mínimo mensal (BAHIA, 2002). Além das atividades de exploração do sisal, que enfrentou um período de decadência após os anos 1970, e das pedreiras, a base econômica é a pecuária extensiva e a agricultura familiar de subsistência, sujeita a longos períodos de seca que ciclicamente atingem a região, agravando os problemas sociais. Estes problemas são ainda aprofundados pela falta de acesso da população aos serviços básicos como saúde, educação

45 São eles: Araci, Barrocas, Biritinga, Candeal, Cansanção, Conceição do Coité, Ichu, Itiúba, Lamarão, Monte Santo, Nordestina, Queimadas, Quijingue, Retirolândia, Santa Luz, São Domingos, Serrinha, Teofilândia, Tucano e Valente.

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e a inexistência de políticas adequadas à realidade do semiárido (RAMOS; NASCIMENTO, 2001).

Recentemente, porém, a região tem sido apontada como um locus diferenciado de participação social, atribuída a uma ampla organização e mobilização dos movimentos sociais. A emergência dessa sociedade civil foi possibilitada pelo trabalho das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que, na década de 1970, sob o fundamento político-religioso da Teologia da Libertação, iniciou uma estratégia pedagógica de conscientização social alicerçada na matriz discursiva da religiosidade profética. Essa matriz discursiva, inspirada na tradição contestadora do Antigo Testamento, coloca-se como princípio primordial de um projeto histórico transformador do ser humano e da sociedade, sendo o fundamento ético das condutas e da crítica social, incentivando o compromisso com os outros e renovando a esperança numa utopia intra-histórica. A religiosidade profética tenta romper com as bases da religiosidade de providência, entendida como uma maneira de viver a religião, que, por sua vez, se apresenta como uma realidade simbólica e material, englobando a totalidade da existência individual e social (GAIGER, 1995).

As ações desenvolvidas pela sociedade civil local visam à implantação de um processo de desenvolvimento do meio rural, com foco na Agricultura Familiar, viabilizando a fixação do homem no campo e sua melhor condição de vida. Esse processo é materializado no Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Sisal (PTDRS) que, com base na perspectiva de Convivência com o Semiárido, traçam um conjunto de programas e projetos que aprofundam o conhecimento sobre o clima da região, podendo os pequenos agricultores, dessa forma, minimizar os efeitos negativos que diminuem as suas potencialidades, particularmente no uso do

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solo. O PTDRS está estruturado em seis eixos prioritários: Agricultura Familiar, Saúde, Educação, Meio Ambiente, Infraestrutura e Comunicação.

A comunicação figura entre os eixos prioritários como elemento estratégico na implementação desse projeto. A sociedade civil organizada desse território compreendeu que, num cenário comunicacional de presença intensa das mídias no tecido social, a configuração da política contemporânea é perpassada pelos processos midiáticos. A midiatização é pensada não apenas como um espaço de visibilidade, mas como um processo essencial e qualitativo, que transforma a sociedade e o seu funcionamento, modificando a maneira das pessoas e a sociedade se relacionarem, e produzindo transformações da identidade de um povo. A sociedade civil compreendeu também que o êxito do projeto estava vinculado à necessidade da comunidade local em romper com as bases de opressão e expropriação que constituíram a região. Estas bases foram consolidadas no imaginário de vitimização, que historicamente foi alimentado por práticas e discursos que incessantemente repetem os estereótipos de povo sofrido, resignado e castigado pelas secas.

Sendo assim, a comunicação comunitária é o espaço encontrado pelos atores dessa sociedade civil na difusão de uma produção discursiva que positiva os estigmas imputados à região e reafirma um compromisso com um projeto de emancipação, numa tentativa de instaurar novas bases identitárias para a comunidade do sisal. Nessa produção discursiva a experiência das lutas dos movimentos sociais e a cultura rural são eleitas como elementos de pertença comunitária, adotando a ideia de povo lutador e resistente como emblemas de uma identidade estratégica, que, numa alusão ao sisal, será denominada de “Fibra e Resistência”.

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O projeto identitário não está livre de contradições e precisa ser constantemente legitimado e reafirmado pelos atores que o representam e o utilizam estrategicamente. Através da comunicação é materializada a circulação dos investimentos simbólicos e políticos recebidos pelos elementos que irão constituir a emblematicidade da narrativa identitária de “Fibra e Resistência” conferindo a esta o status de relevante referência cultural.

Nesse sentido, a rádio comunitária Valente FM, especificamente o programa jornalístico Rádio Comunidade, a partir da sua produção simbólica inserida no cotidiano da comunidade, e consi- derando as complexidades e contradições envolvidas no fazer comunicacional comunitário, contribui na potencialização das energias que propiciam a mobilização social e os processos de desindentificação e identificação com esse projeto.

O programa Rádio Comunidade é exibido de segunda à sexta, ao meio dia, e possui grande prestígio local. A despeito das dificuldades financeiras ou técnicas em publicizar seu jornal diário, há um esforço da equipe de jornalismo em privilegiar as notícias locais, destinando o espaço restante do programa a notícias clipadas, logo nacional ou regional. A agenda temática local do programa privilegia atividades do movimento social, do poder público, economia, educação, saúde e cultura, mas, sobretudo os temas ligados ao campo. Estes se afirmam como valor-notícia do programa. Segundo os produtores do programa,Algumas temáticas a gente faz essa insistência na mídia local e regional, mas porque é importante, como a agricultura familiar. A gente tá tentando trazer pra não esquecer que existe um público ao redor do centro aqui da sede do município, a gente sempre tenta tá com grande foco com relação a isso.46

46 Entrevista concedida à autora em abril de 2009.

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As tensões entre rural e urbano aparecem e o programa assume um posicionamento de convencer a população a conciliar esta distinção. Ainda segundo os produtores do programa quando questionados sobre a diferenças entre públicos da zona rural e urbana:Há uma diferença porque a população da sede não se reconhece como vivente na região rural. [...] Tão ali a problemática da caatinga e tantas outras questões que envolvem a sede, que influenciam muito na vida aqui dentro da sede, mas eles querem tomar um outro ritmo da coisas, outros interesses inclusive em relação as pautas. Se você falasse hoje só sobre agricultura familiar e tudo mais, a recepção não seria muito boa aqui na sede e sim na zona rural, o contrário também. [...] você tem que atender infelizmente a dois públicos distintos, que tentam se distinguir, mas que não são distintos.

Podemos inferir, portanto, que o Rádio Comunidade realiza uma tematização pedagógica47 com seu ouvinte através de estratégia de crítica e de convencimento. Através de um fluxo de textos sobre temas relacionados a ruralidade cria um movimento de circulação das materialidades significantes. As críticas estão interligadas com a estratégia de convencimento que objetiva mostrar o reconhecimento do sujeito do campo, a importância da atividade rural para a cidade. Esses elementos que são visibilizados pela produção do programa são os que constituem a identidade de “Fibra e Resistência”.

47 Utilizo aqui categorias proposta por Dias (2007), que apresenta três tipos de tematização: pedagógica, organizacional e de ação política, como recurso de análise para entender a tematização de acontecimentos em mídias radicais, de organização e informativas.

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Ressemantizações do projeto político-identitário de “Fibra e Resistência” na recepção

O projeto político-identitário de “Fibra e Resistência” se materializa para a população local, não diretamente ligada aos movimentos sociais, na programação da Valente FM a partir do conteúdo noticioso, especificamente do Rádio Comunidade. Trechos desse conteúdo noticioso foram exibidos para três grupos focais gerando, a partir deles, as discussões acerca dos elementos constitutivos da identidade de “Fibra e Resistência”. Os grupos foram divididos na seguinte classificação etária: Grupo Jovens 1 (até 20 anos), Grupo Jovens 2 (de 21 a 40 anos) e Grupo Adultos (mais de 41 anos). Apesar das discussões terem sido suscitadas pela audiência de trechos das edições do programa Rádio Comunidade, na elaboração das falas são acionadas memórias do programa anteriormente escutado, bem como outras referências socioculturais que não aquelas estritamente presentes nos programas, o que aponta para as mediações como processos de construção de sentidos decorrentes de diversos repertórios presentes nos contextos em que se encontram os receptores.

O resultado das discussões foi agrupado em três categorias que, de maneira geral, traduzem questões constitutivas da identidade de “Fibra e Resistência”, a saber: o sisal como símbolo representativo do lugar, a convivência com o semiárido e a migração. Os debates tiveram a religiosidade, a proveniência e a geração como categorias mediadoras na negociação e atribuição de sentidos.

O projeto identitário utiliza o sisal como elemento simbólico representativo da região. O sisal aparece como um poderoso elemento de identificação econômica, social e política, que é facilmente

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reconhecível, já que como principal atividade tem a capacidade de incorporar-se na vida cotidiana. Para muitos dos participantes dos grupos focais, a imagem do sisal é um referencial, um marco da região. O sisal suscita lembranças de uma economia rentável e de prestígio reconhecido por outras regiões, como apontado no grupo focal Adultos:

Basílio: Aqui ficou com a fama “região do sisal”. Eu trabalhei por 4 anos com o sisal lá pro lado de Irecê e lá o pessoal fica até admirado com a produção do sisal daqui. Acho que tá recuperando o sisal, mas o preço tá caindo. (Grupo Focal Adulto)

O grupo Jovens 2 também evidencia a importância econômica do cultivo da planta, como também aponta a cultura do sisal como um forte traço constitutivo da história do lugar:

Naldeci: É como ta falando aí na rádio, né? Que na verdade o sisal é a principal fonte da economia, a fonte de renda, aí, fica conhecida mesmo como região do sisal.

João César: Esse nome é de marca [região do sisal], nem só na região sisaleira, porque tem a gente, tem Riachão, até Araci aonde é forte o sisal. Então, pela própria história que o sisal deu partida e alavancou o processo da região, ninguém muda não: é região do sisal mesmo. (Grupo Focal Jovens 2)

As opiniões expressas no grupo Jovens 1, especialmente pelos jovens que são da zona rural, confirmam que o sisal é valorizado por ser produto exportável e exclusivo da região:

Ravena: é como ele disse, é uma cultura diferente porque com o sisal a gente fabrica muitas coisas, transporta pra outros países como falou

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na rádio e, como ele disse também, o sisal não dá em outros lugares, só aqui, e que Valente é especial por isso. Alberto: é uma cultura diferente das outras porque o sisal só dá na região sisaleira. Ele não sobrevive em outro tipo de lugar, só aqui tem. Eu acho que é por isso que o sisal é importante para cá. (Grupo Focal Jovens 1)

Alguns membros desse grupo, oriundos da sede da cidade, por sua vez, não reconhecem o sisal como uma marca distintiva da região, considerando-o muito mais ligado a uma atividade produtiva do campo do que um símbolo da identidade regional.

Daiane: Eu não acho nada de importante no sisal, não conheço o sisal.

Fábio: O sisal tá mais ligado à roça. O plantio do sisal tá mais ligado ao pessoal da roça. A gente aqui da sede não tem nada a ver com o sisal. (Grupo Focal Jovens 1)

Essa negação do sisal enquanto símbolo representativo da região não decorre apenas da ausência de percepção da capacidade produtiva do sisal, mas, sobretudo, de uma estratégia valorativa de ampliar a dicotomia entre o rural e o urbano, associando ao primeiro características que corroboram um juízo de valor pejorativo. Este aspecto é motivado em parte pelas expectativas geradas em relação ao espaço urbano, enquanto oposição ao rural e ratificado pelos meios de comunicação de massa através do que Lopes denomina de efeito-demonstração e socialização antecipada do estilo de vida citadino como representação de um modo de vida ligado à ideia do moderno.

A discussão em torno da convivência com o semiárido se converte em um tema que atravessa todos os grupos com um aspecto de consonância, qual seja a dificuldade que o clima impõe

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para a sobrevivência no local. Esta, entretanto, apresenta nuances diferentes de acordo com cada geração em relação à dicotomia estabelecida entre o discurso mítico-fatalista, de teor determinista; e o discurso de exaltação das possibilidades de convivência, atrelado à ênfase desenvolvimentista presentes nas enunciações do projeto político-identitário.

O grupo Adultos produziu falas que expressam um tom fortemente conformista que conota, inclusive, uma atitude de respeito às forças da natureza e o reconhecimento desta como fator determinante sobre os destinos da população. Neste grupo a referência à religiosidade aparece de modo explícito na menção à natureza, enquanto expressão dos desígnios divinos. Esta emerge como uma representação do homem do campo em relação à providência e sua relação com a resignação, sentimento profundamente ligado à fé cristã, marcadamente uma referência de grande penetrabilidade e capilaridade local, enquanto um dos filtros de entendimento dos fenômenos acerca da sociabilidade.

João: Antigamente era melhor, não tinha esse solão que tem aqui hoje, porque tinha o vento, a chuva, tinha o inverno e hoje tem um invernozinho. Hoje passa 1 ano, 2 e 3 sem ter quando é tempo de trovoada.

Antonia: A região tem esse problema. Mas sempre tem uma garoazinha, a gente faz o plantio, aí melhorava um pouco porque Deus é quem sabe a hora da chuva [...] A região da gente produz algumas coisas, quando Deus abençoa dá para sobreviver.

José: Porque quando chega o tempo seco, aí fica olhando de cara pra cima esperando Deus mandar a chuva, mas enquanto tá parado tem uma certa dificuldade porque não tem outro produto.

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Basílio: A região da gente tem isso. Só Deus mesmo que pode dar uma melhoria pra melhorar. Agora, tem político que poderia nos olhar, olhar a necessidade do povo, mas ainda não acontece isso. (Grupo Focal Adultos)

Para os participantes desse grupo o sagrado é expresso na imagem de Deus benfeitor que protege, alivia e garante uma recompensa pelos sofrimentos da existência humana. As falas demonstram uma dependência do homem frente à natureza, que espera uma intervenção divina concreta em contrapartida à sua fé e devoção. Apesar dos discursos religiosos proféticos da sociedade civil local, essa geração acredita que o destino seja obra de Deus.

O grupo Jovens 2 expressa algumas contradições que se evidenciam nas interpretações sobre a convivência com o semiárido capaz de conjugar em uma mesma fala um sentido mais progressista e outro associado ao determinismo imposto pela força da natureza. Esta aparece inclusive como possibilidade de aprendizagem em relação ao aproveitamento dos recursos que são oferecidos, o que reforça que a convivência com o semiárido é uma necessidade que se impõe para se viver melhor. A dificuldade imposta pelo clima pode significar um estímulo para a resistência e para a criação das melhores estratégias de sobrevivência. Embora estes sentidos sejam fortemente reforçados pelos discursos dos movimentos sociais, a interpretação fatalista ainda se sobrepõe nesta geração em relação à convivência com o semiárido.

Raimundo: A gente tem que aprender a conviver com ele, né? Aproveitar melhor o que ele oferece. Porque nos períodos chuvosos a gente tem que se preparar, porque a gente sabe que a seca no Nordeste é grande, né? O Nordeste nasceu pra sofrer.

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Naldeci: É porque na verdade como nós moramos no semiárido, é como fala aí na rádio, tem que aprender a conviver, né? Tem que tá sempre buscando melhorias e que também ajude todas as famílias.

João César: Na verdade eles já estão acostumados. As famílias reclamam no período da plantação, porque já não é como antigamente. Planta hoje, mas não sabe quanto tempo vai durar pra colher. (Grupo Focal Jovens 2)

O sofrimento aparece para esta geração como realidade inexorável que dá coerência a uma visão fatalista da existência e à atitude de resignação. O fatalismo subjacente a essa religiosidade de providência é permeado por uma aceitação hesitante, já que a religiosidade também assume um papel de encorajamento, através do discurso profético, que empresta legitimidade na luta pela terra a partir do instante em que esta se integra ao plano divino da criação, como apregoado pela Teologia da Libertação.

O grupo Jovens 1, devido a pouca vivência ou ligação mais orgânica com o ambiente rural no que diz respeito à identificação com este, entende de modo mais limitado as questões em torno da convivência com o semiárido. Acentuam de modo preponderante a dificuldade em cultivar o sisal, devido ao clima e a escassez de recursos, sobretudo hídricos. Há, por outro lado, o reconhecimento que o clima favorece o cultivo de uma plantação muito peculiar da região como o próprio sisal, mandacaru etc., o que acaba por ratificar a ideia da plantação como aspecto que edifica a ideia de especificidade da região.

Fábio: Só podem plantar sisal porque é o único que dá pra plantar no clima daqui.

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Alberto: mas pode plantar outras coisas também: Cacto, mandacaru esses assim. Outros tipos de plantação não pode porque não sobrevive à seca.

Wesley: Eu acho que o sisal ajuda a região nesse sentido, porque se não fosse ele não teria o que plantar e dá condição para as pessoas viverem aqui.

Joseane: Eu acho que o sisal mais atrapalha do que ajuda. É porque assim... tem umas coisas que precisam do solo e outras da chuva. Talvez se não fosse o sisal poderia ver outras coisas que ajudassem mais. (Grupo Focal Jovens 1)

A migração é um fator que ganha um destaque considerável nas falas justamente por ser um fenômeno recorrente na região e por atingir grande parte das famílias do local. Para diversas pessoas dos três grupos a possibilidade de crescimento profissional só pode se materializar com a migração, uma vez que a região apresenta poucas oportunidades, sendo o trabalho no campo um condicionamento já esperado para aqueles que permanecem no local.

O grupo Adultos enfatiza a dicotomia representada pelo aspecto geracional como um dos fatores que explicam a migração. Esta é vista, sobretudo, como a decorrência de um processo de encerramento das possibilidades da região em oferecer melhores condições de vida e trabalho a curto e longo prazo, uma vez que condicionantes como a implantação de políticas públicas significativas de incentivo à produção e a dificuldade imposta pelo clima emergem como traços definidores do local. Isto evidencia o teor determinista reforçado pela interpretação mítico-fatalista da providência.

A ligação com o campo enquanto espaço de trabalho se justifica para esse grupo, mas perde o sentido na interpretação

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deste em relação aos mais jovens. Isto porque a possibilidade de crescimento geralmente está associada à saída da zona rural. A incompatibilidade dos jovens em trabalhar neste espaço aparece como uma escolha que se justifica diante da possibilidade de sair do local e encontrar um trabalho que ofereça maiores chances de crescimento. A permanência no local por parte dos sujeitos deste grupo acaba sendo, portanto, uma determinação natural, uma vez que já estão acostumados com o trabalho, com o clima e há um costume, inclusive, no conhecimento dos limites que o próprio lugar impõe.

Basílio: A região do sisal, aqui é a região do sisal, mas o pessoal aqui vai querer trabalhar pra não ganhar nada? Não vai! O pessoal mais novo não quer mexer no motor, cortar palha, ninguém vai querer não, os jovens querem coisa melhor, tem que lutar pelo que faz, tem que lutar, se não der, seja o que Deus quiser.

Antonia: Nós que é criado na roça não fica aqui. A gente mais jovem, mais novo, não vai, né? Muitas vezes não vai nem fazer uma hora na roça porque não gosta. Muitas vezes vai ajudar os pais, trabalhar com outras coisas então, tem coisa melhor.

José: O melhor é sair mesmo, estudar fora. Tem muitos que tem aquela opinião que vai ficar ali e vai movimentar, vai investir uma coisa com outro ali. Mas a maioria aqui quer sair mesmo, é o único futuro que tem. Você sabe que qualquer trabalho que eles ganhem um pouquinho aí fora tá bom. (Grupo Focal Adultos)

Para o grupo Jovens 2, a dificuldade em permanecer na região também se evidencia pela escassez de possibilidade de empregos que signifiquem ganhos em relação à qualidade de vida e crescimento profissional. Esta preocupação expressa uma visão do mercado

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de trabalho que não está mais estritamente ligada ao campo, mas ainda a outras esferas como o comércio e a indústria. A saída para os grandes centros urbanos continua sendo uma escolha que pode viabilizar os anseios deste grupo, que já se dissocia mais das pretensões de trabalho do grupo Adultos, enquanto manutenção de uma referência de trabalho ligada apenas ao campo. Cidades do sul do país aparecem como um dado considerável, uma vez que estão ligadas ao delineamento de uma nova conjuntura de trabalho rural que passa a utilizar técnicas mais aprimoradas para atender a uma maior qualidade de produção. Ao mesmo tempo aparecem como chance de inserção em um espaço urbano que atenda aos anseios de consumo de bens materiais e simbólicos e, portanto, de maior reconhecimento social (LOPES, 1988, 2005).

Naldeci: Olha aqui em Valente mesmo pra opção pra emprego é difícil mesmo. Lá no bairro muita gente tá indo pra Santa Catarina, os meninos mais novos, tem menino que estudou de 5° a 8º série e agora foi porque aqui não tem.

Raimundo: Muita gente indo pra Santa Catarina, muita gente mesmo. Porque lá tem emprego tanto para quem estudou quanto para quem não estudou. O pessoal falou que lá as condições são bem boas mesmo, é tudo moderno, mesmo na roça.

Aline: a vizinha disse que os filhos dela tão trabalhando nas roça de lá, mas não é pra produzi nada não, é pra deixar tudo bonito pros turistas que vão para ver. E aqui eles não quer trabalhar na roça, porque o trabalho aqui é pesado. (Grupo Focal Jovens 2)

A busca por trabalho ou a oportunidade de encontrar trabalho, bem como, a migração anterior de membros da família aparecem como motivos que assinalam as causas estruturais da

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migração. A falta de oportunidade de ganhar a vida no meio rural combinada com a possibilidade de oferta dessas oportunidades na cidade suscitam a permanência de um fluxo migratório mais motivado pelas expectativas geradas pelo efeito-demonstração do que propriamente justificada pela precariedade da vida rural. Para Lopes (1988, p. 75),

É certo, pois, dentro desse contexto migratório, apontar para a importância do efeito-demonstração, seja através da difusão da mitologia sobre o urbano seja na divulgação dos componentes materiais e não materiais desse modo de vida, comparativamente de padrão “superior”.

O grupo Jovens 1 aparece como uma ilustração dos posicionamentos, sobretudo do grupo Adultos. Chama a atenção, à primeira vista, uma não identificação com o espaço rural, não apenas como lugar inviável para o trabalho, mas ainda para o lazer e para vivenciar uma sociabilidade inserida nos padrões modernos representativos de um estilo citadino. Nesse sentido, a identificação com a cidade aparece com a exaltação ou indicação de seus signos representativos, mesmo que estes não façam parte significativamente da realidade urbana das cidades do interior, como é o caso dos grandes índices de poluição, típica das metrópoles. Neste caso, é interessante observar a interferência das mídias massivas na construção da ideia de urbanidade em oposição à ruralidade, notadamente a partir das representações da vida urbana especialmente em produtos como a telenovela e filmes.

Alberto: Eu gosto da zona rural, mas se fosse pra escolher eu prefiro a cidade. A roça é bom mesmo para passear, par trabalhar no campo não.

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Wesley: pois eu gosto para trabalhar [da zona rural], é mais tranquilo, a gente não respira essa fumaça.

Joseane: mesmo com o ar mais poluído a cidade é muito melhor, tem mais pessoas, mais coisas para fazer, onde estudar e essas coisas todas. (Grupo Focal Jovens 1)

Considerações Finais

As análises realizadas nesse trabalho revelaram que a produção de sentidos identitários por parte da comunidade local pesquisada encontra na mediação geração seu aspecto mais estruturante. A proveniência tem uma interferência bem particular na atribuição de sentidos aos emblemas identitários do projeto por parte da geração mais jovem, enquanto a religiosidade representa um condicionante mais presente nas elaborações da geração Adultos e Jovens 2. A percepção do Sisal como símbolo representativo da região se mostrou divergente no grupo Jovens 1. Se para os jovens da zona rural, há uma identificação com o sisal, os jovens da zona urbana se esforçam para demonstrar uma relação de estranhamento com este símbolo. É interessante notar que os movimentos de identificação e estranhamento realizados nesse grupo estruturam-se sobre a geração e a proveniência, que, aqui, demonstraram-se mediações indissociáveis, uma vez que nos demais grupos a proveniência não se configurou como influência que diferencia a percepção dos participantes. A demarcação das relações de identificação no grupo Jovens 1 adota como estratégia a exaltação de signos representativos das diferenças em relação, sobretudo, à proveniência.

Se para os grupos Adultos e Jovens 2 a convivência com o semiárido deve ser analisada pela associação da mediação geração

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com a religiosidade, o grupo Jovens 1 tem na proveniência uma mediação mais presente. O que podemos afirmar é que há por parte dessa geração, de uma maneira geral, mais acentuada nos jovens da zona urbana, uma reprodução dos discursos hegemônicos que estigmatiza as características de regiões de clima seco, amplamente divulgados nos meios de comunicação. A religiosidade não aparece, pelo menos explicitamente, como um fator que repercute na visão desses sujeitos em relação ao semiárido. Muito embora, nas falas realizadas pelos sujeitos oriundos das comunidades rurais, o tom empregado, ao explicitar as plantações adequadas ao clima seco, no que poderíamos chamar de frágil compreensão de convivência com o semiárido, é o de possibilidade única, de destino, de resignação, uma espécie de luta perdida. Talvez aqui encontremos vestígios do discurso religioso de providência transmitido pelo contato com gerações mais velhas e seus modos de compreender o lugar, uma vez que esse discurso circula de forma a atravessar diversas mediações e tem um peso relevante como fonte de produção de sentidos na região.

As expectativas de saída do local estão, assim, presentes em todas as gerações representadas nos grupos focais, com ênfases distintas. A inevitabilidade da migração quando se pretende vivenciar um estilo de vida considerado superior ou edificar uma formação educativa e profissional que possibilite experimentar melhores oportunidades de vida é um aspecto que pode ser verificado em todos os grupos. No entanto, a interpretação do fator mítico-fatalista ganha nuances de maior determinismo no grupo Adultos e Jovens 2. Já o grupo Jovens 1 se sente atraído de forma mais intensa pela migração, pois esta representa uma possibilidade de vivenciar o ethos urbano, fortemente ligado a esta geração.

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Referências

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RAMOS, Alba; NASCIMENTO, Antônio D. Características culturais: resgatando a infância - a trajetória do PETI na Bahia. Salvador: MOC; OIT; UNICEF, 2001.

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ENTRE REPRESENTAÇÕES E ESTEREÓTIPOS

o Sertão na rota do discurso Colonial

Cláudia Pereira Vasconcelos

A Identidade Nacional: Brasil ou Brasis?

Quem somos nós, povo brasileiro? O que nos constitui? O que faz o brasil Brasil? Brasileiro é assim mesmo?... Essas e outras são perguntas que cotidianamente inquietam grande parte dos intelectuais brasileiros, ainda nos dias de hoje, mas que começam a ser formuladas, de forma mais sistemática, no início do século xx.

Aceitar a multiplicidade e a diversidade de vozes e presenças no Brasil nunca foi fácil para as elites do país. Os sentimentos ambivalentes de fascínio e repulsa, preconceito e aceitação, envolvimento e distanciamento e a dificuldade de reconhecimento do “outro” em si mesmo compõem a história da construção da identidade nacional.

Em seu estudo sobre a Cultura Brasileira e Identidade Nacional, Ortiz (1994) traça historicamente o processo de construção da identidade nacional, retomando as diferentes formas como a mesma foi pensada a partir do fim do século xIx. É nesse período que as teorias ligadas principalmente à raça e ao meio emergem com vigor,

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visando explicar o descompasso do Brasil em relação a outros países do mundo, principalmente em relação à Europa.

Ortiz inicia sua análise partindo de três pensadores dessa época: Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, considerados precursores das Ciências Sociais no Brasil. Estes autores foram influenciados pelas teorias evolucionistas, elaboradas na Europa no século xIx, buscando, para além de uma lógica ligada a uma história natural evolutiva da humanidade, explicar o Brasil através dos argumentos epistemológicos do meio e da raça.

A partir do paradigma naturalista, a importância do meio combinado às características da raça justificava, categoricamente, os porquês do comportamento do brasileiro. A exemplo disso, via-se o negro do litoral sendo mais malemolente, o homem do Sertão mais sisudo e ríspido, a mulata sensual... E assim foi-se criando um Brasil de tipos e construindo no discurso sobre a identidade nacional o contorno de alguns estereótipos.

Homi Bhabha, no capítulo A Outra Questão: o Estereótipo, a Discriminação e o Discurso do Colonialismo, do livro O local da cultura (1998), discute a questão da alteridade a partir da construção do estereótipo no discurso colonial. Essa construção ideológica, que aparece como uma das principais estratégias do poder discriminatório, oscila de forma ambivalente entre uma ideia de representação fixa do “outro”, como um já conhecido, e uma ideia que precisa ser permanentemente repetida para ser apreendida por contextos em constante mutação. A fim de marcar a diferença cultural de forma hierárquica, o discurso colonial depende paradoxalmente do conceito de fixidez, ao mesmo tempo em que revela uma necessidade ansiosa de repetição na construção da alteridade.

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É a repetibilidade e a visibilidade em excesso de algum traço/marca de um determinado povo ou sujeito colonial que dá validade à construção do estereótipo e produz um efeito de verdade em uma ideia estabelecida sobre o outro; desta forma, articula-se uma série de modos de diferenciação, prioritariamente raciais e sexuais, para embasar as práticas discursivas da hierarquização cultural. Segundo Bhabha (1998, p. 11):

O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução.

Deste modo, são prioritariamente as noções de clima e raça que vão dar singularidade ao país e explicar o seu atraso e a sua lenta mobilidade em relação ao mundo. Tendo em vista que o calor dos trópicos é um fator dificultador para adaptação do elemento europeu à terra, e que o mestiço, “indolente”, é um dado concreto, tornava-se evidente que o Brasil era um grande Sertão. A própria obra de Euclides da Cunha, Os Sertões, revela que a unidade nacional não existia de fato e que o país vivia concomitantemente tempos históricos e sociais considerados por ele como distintos. A partir daí, o que se manifesta é um quadro pessimista sobre a possibilidade de construção da nacionalidade e, consequentemente, o avanço do progresso e da modernização do país.

Uma das possibilidades apontadas como ideal para tal progresso é a implementação de uma política de branqueamento da sociedade brasileira, na tentativa de, processualmente, ir minando as características negativas do nosso povo; além disso, cogitava-se

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uma estratégia de integrar os Sertões, para finalmente construir um Estado Nacional forte.

Tendo em vista que a ideia de Nação corresponde, segundo Moura (2005), a um conjunto de referências identitárias que confere sentido à convivência tensa dos diferentes sob um mesmo denominador comum, as principais perguntas que poderiam ser colocadas, neste momento, são as seguintes: Quais as estratégias utilizadas pelas elites brasileiras no processo de construção de sua unidade nacional, visando a concretizar um Brasil ideal, moderno e independente? Como conviver com os migrantes nortistas maltrapilhos que foram parar justamente na capital do Brasil, o Rio de Janeiro, e num dos maiores centros urbanos do país, São Paulo, denunciando que a febre de modernização do país não passava de uma aspiração?

Provavelmente, o caminho possível para alguns intelectuais e políticos da época resolverem esse conflito tenha sido o de inventar uma divisão regional que viabilizasse uma distinção entre um Brasil “ideal” – moderno, rico, industrial, formado por uma grande parcela de imigrantes europeus – e um Brasil “real” – atrasado, pobre, rural, escurecido por uma população mestiça de índios e negros. Neste momento, é a ênfase na diferença entre esses Brasis, ou melhor, é a escolha de uma região para representar o nacional que indicará a resolução para o grande drama da unidade nacional.

Segundo Albuquerque Jr. (2001), a grande diferença entre o Norte e o Sul do país sempre foi pauta de discussão entre muitos intelectuais da época e mais uma vez os paradigmas naturalistas seriam responsáveis para explicar o descompasso no ritmo do desenvolvimento interno do Brasil. Para Euclides da Cunha, o regime meteorológico é a principal causa da diferença entre o

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Norte e o Sul: “[...] e volvendo ao Sul, no território que do Norte de Minas para o sudoeste, deparam-se condições incomparavelmente superiores” (CUNHA, 1973, p. 248). Para Nina Rodrigues (1982), havia um risco de esfacelamento da nacionalidade, pois no Sul estava presente uma civilização branca, moderna, considerada por ele superior, enquanto que no Norte havia uma predominância mestiça e negra que atravancaria o processo de desenvolvimento do país. Desta forma, restava ao Norte subordinar-se às influências modernizadoras do Sul.

Sendo o calor inadequado para o desenvolvimento de uma civilização, sendo os mestiços e negros uma “sub-raça” incapaz de realizá-lo e estando essa região muito distante dos polos modernizadores do Brasil, estaria o Norte condenado à decadência?

Em resposta a esse aforismo, o Movimento Regionalista do Norte/Nordeste surge de forma intensa, nos anos vinte, arregimentado, principalmente, por Gilberto Freyre. Intelectuais, políticos e artistas da região articulam-se e, de diversas formas (nas artes, nas produções literárias, jornalísticas...), encontram um jeito de dizer quem são e para que veio o Movimento. Institui-se, nesse momento, o que hoje conhecemos como Nordeste, até então chamado de região Norte. Deste modo:

Uma nova consciência do espaço surge, principalmente, entre intelectuais que se sentem cada vez mais distantes do centro de decisão, do poder, seja no campo político, seja no da cultura e da economia. Uma distância tanto geográfica, quanto em termos de capacidade de intervenção. (ALBUQUERQUE JR, 2001, p. 50).

O Movimento Regionalista é um dos principais responsáveis pela construção simbólica do que Freyre chamou de nordestinidade,

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associada aos elementos de uma cultura sertaneja. O que pretendo apontar neste momento da démarche da reflexão é que a construção da ideia de Nordeste é apenas um dos caminhos pelos quais o Nordeste e o Sertão, ou o nordestino e o sertanejo, aparecem até os dias de hoje no imaginário nacional como imagens indissociáveis e como figuras que, geralmente de forma estereotipadas, estão ligadas à ruralidade, à ideia de uma tradição que parece claramente negar tudo o que se refere à modernidade.

O Movimento Regionalista do Nordeste como Construtor do Texto da Nordestinidade / Sertanidade

O sertanejo é, antes de tudo, um forte.Não tem o raquitismo exaustivo dos

mestiços neurastênicos do litoral.Euclides da Cunha

Como vimos, é no momento efervescente de construção discursiva sobre a unidade nacional que afloram diversos discursos regionalistas na tentativa de transformar os costumes, as manifestações culturais e as práticas sociais de cada região em ícones e imagens que representem o nacional. Nesse contexto, os estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco são os que mais se apresentam como centros propositores de sentido, em nível nacional. Parece que, para os políticos e intelectuais baianos, sua terra, que se construíra como território singular, não precisava

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entrar nessa disputa identitária, devido ao seu legado histórico-cultural assegurado, por ser o berço ou mesmo a mãe do Brasil.48

No século xIx, com o apogeu do café na região Sul do país, aliado à opção dos dirigentes do Brasil de seguir um modelo civilizador europeu, a nova elite desta região sente a necessidade de criar sentidos de brasilidade, assegurando para além do poder econômico a legitimidade histórica e cultural para se afirmar como centro nacional e ser reconhecida pelos demais brasileiros como tal. Para isso, vai-se criando, através de uma forma discursiva incisiva, uma idealização da região Sul/Sudeste como o lugar da prosperidade, da novidade e do pleno desenvolvimento, espaço povoado por intelectuais e artistas extraordinários que consagram a região como novo polo cultural do país, a exemplo dos Modernistas.

Para compor essa ideia, é concebida uma imagem altamente pejorativa do Norte/Nordeste, antigo centro de poder econômico e político do país, fundamentada principalmente nas teorias de cunho científico e disseminada pelos meios de comunicação da época, que supostamente comprovariam a inferioridade da região Nordeste e dos seus habitantes, visto como espaço primitivo e atrasado.

Por volta dos anos 1920, surge uma série de reportagens promovidas pelo jornal O Estado de São Paulo intituladas Impressões do nordeste e Impressões de São Paulo, com a clara estratégia de demonstrar a superioridade paulista, a exemplo do texto de Lourenço Filho, No Reino da Insânia, escrito em 1920 e citado por Albuquerque Jr. (2001, p. 43):

48 Para uma discussão sobre o lugar que a Bahia ocupa no processo de construção do texto da Brasilidade, bem como sobre a relação identitária entre Bahia e Nordeste ver Vasconcelos (2011).

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[...] Incontestavelmente, o Sul do Brasil, a região que vai da Bahia até o Rio Grande49, apresenta um tal aspecto de progresso em sua vida material, que forma um contraste doloroso com o abandono em que se encontra o Norte, com seus desertos, sua ignorância, sua falta de higiene, sua pobreza, seu servilismo.

E a inferioridade “natural” do Norte/Nordeste, presente no trecho seguinte, escrito também em 1920, pelo mesmo jornalista citado do O Estado de São Paulo, em viagem a Juazeiro do Norte, no Ceará:

Um recuo no tempo para os olhos de um filho do Sul, a vida parece desandar, girar ao inverso, vinte anos menos em cada dia de viagem... Povo, hábitos, manifestações estéticas e religiosas, idéias e preconceitos, tudo soa no vazio do eco, com as vozes indefiníveis de alongado pretérito (LOURENÇO FILHO apud ALBUQUERQUE JR, 2001, p. 60).

Na contramão desse tipo de discurso, surgia o Movimento Regionalista Tradicionalista Modernista do Nordeste, liderado por importantes intelectuais, a exemplo de Gilberto Freyre, que combatiam as ideias pejorativas veiculadas sobre a região, ao enunciarem, de forma contundente, o significado e a importância daquela região como berço do Brasil. Nesse cenário de organização de imagens opostas do Nordeste e do nordestino/sertanejo é que a grande obra de Euclides da Cunha, Os Sertões, pôde servir de base para ambos os argumentos, tão díspares entre si.

É principalmente através do Manifesto Regionalista de 1926, escrito por Freyre (1967) e apresentado no I Congresso Brasileiro de Regionalismo na cidade do Recife, que essa região, que já

49 Como podemos ver, muitas vezes a Bahia foi considerada como região Sul.

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possui capital simbólico suficiente para afirmar o seu potencial e sua brasilidade, se apresenta com vigor para uma luta pela sua legitimidade em representar o nacional.

O argumento principal do Movimento é que, com o acelerado processo de industrialização e a febre de modernização que contaminava os dirigentes do país, o Brasil estava perdendo a sua originalidade, deixando de valorizar a culinária, as festas, a arquitetura, a mestiçagem, enfim, os elementos que verdadeiramente compõem a cultura brasileira, para copiar a cultura do estrangeiro ao adotar padrões e gostos vindos de outras terras, havendo assim um risco de estrangeiramento da cultura nacional, como diz Freyre (1967, p. 23) no trecho seguinte:

Procuramos defender êsses valores e essas tradições, isto sim, do perigo de serem de todo abandonados, tal o furor neófilo de dirigentes que, entre nós, passam por adiantados e “progressistas” pelo fato de imitarem cega e desbragadamente a novidade estrangeira.

Os estados mais representativos do Sul/Sudeste, Rio de Janeiro e São Paulo, são considerados por Freyre (1967, p. 34) os responsáveis por esse processo de descaracterização da identidade nacional. Deste modo, o autor continua:

[...] De modo particular, nos Estados ou nas Províncias, o que o Rio ou São Paulo consagram como “elegante” e como “moderno”: inclusive esse carnavalesco Papai Noel que, esmagando com suas botas de andar em trenó e pisar em neve, as velhas lapinhas brasileiras... Está dando uma nota de ridículo aos nossos natais de família, também enfeitados agora com arvorezinhas estrangeiras mandadas vir da Europa ou dos Estados Unidos pelos burgueses mais cheios de requififes e de dinheiro.

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É interessante perceber a luta simbólica presente nas passagens citadas. Por trás desse convincente e interessante discurso de defesa da brasilidade, está presente um certo tom acusatório direcionado aos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo que, para se afirmarem como polos modernizadores do país, constroem um discurso discriminatório e violento em relação aos moradores do antigo Norte. Em resposta a esse lugar de “vencido”, percebe-se que a fala do representante do Nordeste, filho da velha aristocracia do açúcar, vem recheada por um tipo de sentimento de perda do lugar de poder, porém de desafio ao afirmar a importância histórica e a legitimidade cultural do Nordeste.

Desta forma, o Manifesto enfatiza o que há de “bom” e de característico no Brasil – diga-se de passagem, no Nordeste, que é o espaço que melhor representa a cultura brasileira. A culinária típica, as danças, as músicas, as brincadeiras populares, a arquitetura, tanto a colonial (igrejas ornadas e ruas estreitas) quanto a inventada pelo povo, a exemplo dos mocambos que tanto representam o clima e a criatividade do nosso povo, também as artes e a literatura que valorizam o povo da terra, os trabalhadores e mestiços.

Bourdieu (2005), discutindo a noção de região, chama a atenção para o fato de que uma das principais estratégias utilizadas pelos movimentos regionalistas para afirmar a sua singularidade/diferença em relação ao outro que os desqualifica é justamente assumir alguns dos estigmas que os identificaram de forma pejorativa, transformando-os em imagens positivas.

Ao analisar as táticas utilizadas pelos regionalistas do Nordeste para reivindicar a sua identidade e brasilidade, nota-se que estes partiram justamente dos estigmas e estereótipos apresentados pelos sulistas como elementos negativos daquela região, para

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instituir uma ideia positiva da autenticidade em relação à identidade nacional. A esse tipo de reivindicação identitária, Bourdieu chama de revolução simbólica, visto que o sujeito/povo se apropria dos distintivos simbólicos associados à sua imagem para reverter o lugar a que foram submetidos, em função dos seus interesses.

Um exemplo disso é que tanto os intelectuais do Sul/Sudeste quanto os intelectuais do Norte/Nordeste apresentam essa região como um espaço ligado ao passado e ao mundo rural. O primeiro, evidentemente, de forma pejorativa, como o lugar de representação do atraso, da ignorância, da violência, do barbarismo e da miséria; o segundo, como o lugar da cultura tradicional, fonte da brasilidade mais pura que referencia os saberes oriundos das raízes do nosso povo, lugar distante das influências estrangeiras, mas também lugar pobre, onde a seca assola o cotidiano de um povo sofrido e que precisa muito de investimentos vindos das demais regiões do país, especialmente do Sul/Sudeste.

Os regionalistas do Nordeste utilizam a ideia de que a verdadeira brasilidade se encontra presente ali naquela região e naquele povo. Torna-se importante esclarecer que esta concepção não é alimentada apenas pelos moradores da região, mas elaborada e divulgada também por diversos intelectuais do Sul/Sudeste que discutem o Brasil.

É a partir da construção de mais uma dicotomia, Litoral x Sertão, que esses pensadores buscam explicar a singularidade do país, quando afirmam o Sertão como lugar onde se desenvolveria o mais típico da identidade nacional, tendo como principais argumentos a mistura das raças fundadoras do Brasil, o índio e o branco, e a distância das influências dos emigrantes estrangeiros que desnacionalizavam a nossa cultura. Essas ideias estão presentes nos discursos do Marechal

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Rondon, de Vicente Licínio Cardoso, em Eurico Alves Boaventura e no próprio discurso ambivalente de Euclides da Cunha, entre outros pensadores de tendências naturalistas e românticas que sugerem chamar de copistas e superficiais as elites política e intelectual da região Sul/Sudeste.

Partindo da ideia de que a região Nordeste e seu povo seriam o cerne da nacionalidade, os regionalistas começam, então, a se preocupar em definir a identidade do nordestino, com base em fundamentações científicas e nos costumes da população local.

A Invenção do “Cabra da Peste”

Eita! Sertão do Nordeste, terra de caba da pesteSó sertanejo arresiste, anos de seca e verão

Toda dureza do chão, faz também duroo homem que vive no sertão.

Cabra da Peste / Luiz Gonzaga

O sertanejo é um tipo representado na literatura, na música, nas artes plásticas e no cinema, enfim, em diversas gramáticas de representação da nacionalidade brasileira. Quem seria e como foi inventada essa figura que se encontra tão presente no imaginário dos próprios moradores da região, como também e muito fortemente no imaginário dos outros brasileiros?

É em outra obra do historiador Albuquerque Jr., Nordestino, uma invenção do falo (2003), que encontramos algumas respostas e outras tantas perguntas sobre tais questões. A seguir, apresento uma discussão/síntese baseada nessa obra. Segundo o autor, é no discurso das elites regionais inventoras da ideia de Nordeste, que

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esse tipo regional foi-se configurando a partir dos anos vinte e adquirindo popularidade no final dos anos trinta, quando aparecem os primeiros cordéis e xilogravuras em que a figura do nordestino é representada.

A primeira questão apontada nessa obra é que, não por acaso, esse sujeito é representado pela figura masculina. Visto que:

O Nordeste, que um dia foi o Brasil, o Brasil da Casa Grande e da Senzala, o Brasil da nobreza e da quase nobreza portuguesa, o Brasil das capitanias hereditárias e das sesmarias, dos engenhos de açúcar e das roças, do gado e do algodão, tornou-se periferia desse mesmo Brasil, mas que já não é mais o mesmo [...] (FAVERO; SANTOS, 2000, p. 27).

Sentindo-se abandonado no porão da Casa Grande, como insistente lugar do atraso, em contraponto a um Brasil moderno, do café e da indústria que nascia no Sul, seria necessária a emergência de um homem com H maiúsculo, forte, capaz de recuperar a potência e o poderio desse saudoso lugar. Desta forma, o homem que melhor representaria o Nordeste, segundo o Movimento Regionalista, seria o sertanejo, aquele homem rude, embrutecido pela natureza, descrito tão bem por Euclides da Cunha como um herói, guerreiro e resistente, capaz de enfrentar todo tipo de dificuldade, principalmente a seca que assola a região, e de sobreviver a estas.

O tipo nordestino vai se definindo como um tipo tradicional, voltado para a preservação de um passado regional que estaria desaparecendo... [...] se situa na contramão do mundo moderno, rejeita as suas superficialidades, sua vida delicada e histérica. Um homem de costumes conservadores, rústicos, ásperos, masculinos; um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise; um ser viril, capaz de retirar a

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sua região da situação de passividade e subserviência em que se encontrava (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 162).

Dentre uma série de tipos regionais que aparecem representados nas artes (especialmente na literatura) e no discurso regionalista do Nordeste, a exemplo do sertanejo, do brejeiro, do vaqueiro, do jagunço, do coronel, do beato, do cangaceiro, do retirante, do matuto, do caboclo e do senhor de engenho, o que será eleito como “[...] protótipo para a construção do nordestino será o sertanejo” (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 206). Possivelmente por este tipo ser o mais bem definido por Euclides da Cunha; por ser o que melhor se contrapõe à imagem do homem urbano, mas também por esta figura se encontrar relacionada ao principal mote de captação de recursos da região: a seca.

Para legitimar a constituição desse tipo regional, a elite tradicional do Nordeste utiliza as mais variadas linhas e matrizes teóricas presentes nos meios letrados da época. Visando definir a identidade do habitante da região, recorre-se a uma miscelânea de fundamentações, tanto de cunho naturalista como pautada nos conceitos antropológicos e históricos, com o objetivo de explicitar os valores e hábitos daquela região que dera origem ao Brasil. Desta forma, partem de uma concepção eugenista, de base evolucionista, em que o homem é determinado por sua constituição biológica.

Nessa discussão, uma das teses de Euclides da Cunha a respeito das sub-raças regionais – a mistura das três raças formadoras do povo brasileiro teria sofrido variações nos diferentes territórios –, é bastante utilizada no sentido de comprovar que o Nordeste praticamente não recebeu a transfusão de sangue estrangeiro exótico, sendo, portanto, o único povo a preservar os traços da mestiçagem que deu origem ao Brasil.

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Para os intelectuais do Movimento Regionalista, o Sertão seria povoado por brancos e índios, sendo que esse mestiço foi visto como elemento mais autêntico, que conservou os traços das raças fundadoras do Brasil, conforme afirma Euclides da Cunha (1973, p. 257, 264):

Há um notável traço de originalidade na gênese da população sertaneja... [...] toda essa população perdida num recanto dos sertões, lá permaneceu até agora, reproduzindo-se livres de elementos estranhos, realizando a máxima intensidade de cruzamento uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido, completo.

Outro elemento que associou o Nordeste à imagem do Sertão deveu-se principalmente ao fato, já citado, de que o homem do Sertão se caracteriza pela sua relação com a natureza bruta. Aqui é importante perceber como, mais uma vez, o discurso da seca é utilizado na composição das imagens nordestinas pela sua tradicional elite, na tentativa de comover o Sul e o governo federal para investimentos na decadente região.

Ao lado das teorias raciais, são os estudos de base biogeográfica – em que o homem é produto do processo de adaptação ao meio em que vive – que darão o fundamento para a construção da imagem desse homem forte, viril e resistente, de caráter particular; um cabra50 da peste marcado pela capacidade heroica de sobreviver à seca e à aspereza do ambiente.

50 Como pudemos ver na música (epígrafe) de Luiz Gonzaga – Cabra da Peste - em quase toda região Nordeste, ou no chamado sertão nordestino, é muito comum chamar o homem de cabra ou caba. Esta referência viria a ser relacionada com o animal que mais se adapta e resiste à seca no Nordeste, a cabra.

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Todos esses fundamentos de base científica serão rapidamente disseminados e popularizados principalmente através da música (do rádio), da literatura de cordel (nas feiras) e por toda uma produção cultural de cunho popular, sendo muitas vezes enfatizados de forma cômica ou até mesmo reformulados e atualizados para o contexto em que são apresentados. Um exemplo disso é que o perfil do sertanejo cabra da peste, acima traçado, pode ser encontrado facilmente em inúmeras cantorias, repentes e cordéis, criações que têm como personagem principal o próprio Lampião – o Rei do Cangaço - ou os herdeiros da sua valentia, como podemos ver no trecho do cordel de Sérgio Bahialista (2006):

A mulher de 106 anos que deu um chute na bunda de Lampião

Por onde ele passavaParecia um furacãoRasgava todo limiteFazia a revoluçãoBuscando sua justiçaEste cabra é Lampião

Neste cordel, citei apenas a passagem em que o autor descreve a fama da valentia de Lampião, porém, este livreto conta a história de uma mulher sertaneja que, aos 106 anos de idade, é tão corajosa que teve a audácia de enfrentar o cangaceiro mais temido do Nordeste e, com sua valentia, termina por botar o próprio Lampião pra correr da sua região. O que aparece de mais evidente neste tipo de livreto é que o simples fato de estas pessoas terem nascido no Sertão as faz corajosas e destemidas, até mesmo quando se trata de uma

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personagem de idade avançada e do sexo feminino, considerado pelo senso comum como frágil.

É, por fim, esse sertanejo visto como um herói nato que seria, especialmente para os regionalistas, a expressão autêntica da identidade nacional e apenas os que não o conheciam de perto é que seriam capazes de acusá-lo de incapaz, de preguiçoso e de inábil.

Considerações Finais

A ideia de Sertão tem estado presente no acervo de referências sobre o Brasil desde os tempos coloniais. De diversas formas e através de diferentes leituras, este item se configura como essencial para a construção de uma identidade nacional, aparecendo de forma ambígua e conflituosa nos discursos dos intelectuais e de outros agentes que tomam parte nesse processo.

Como criações culturais, as imagens de Sertão vieram se transformando com o tempo. Por ser esta uma noção abrangente e complexa, foi tomada de acordo com os interesses e as conveniências das diferentes elites políticas e intelectuais do Brasil. Estas, a partir do século xx, envolveram-se numa dramática disputa pela hegemonia no quadro das representações do nacional, polarizada entre o novo centro político e econômico do país, a região Sul/Sudeste, e o antigo centro, o Norte/Nordeste. A partir de então, a Sertanidade vai-se fixando no imaginário brasileiro através de estereótipos calcados nas ideias de atraso, de pobreza e de incivilização, especialmente pelo fato de que as elites, tanto de um polo quanto do outro, descrevem o Sertão como um espaço ligado ao passado e ao mundo rural. O primeiro polo, por defender a modernização como única via de progresso, o enxerga de forma pejorativa, como o lugar da ignorância,

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do atraso, do barbarismo e da miséria; o segundo, por defender a tradição como forma de manutenção do poder, eleva-o como o lugar da cultura tradicional, distante das influências estrangeiras e, por isso mesmo, fonte da brasilidade mais pura, mas também como lugar pobre e seco que necessita de atenção e investimento federal.

Nesse contexto de perda do poder central para o Sudeste, as elites do antigo Norte, visando a recobrar as atenções do país, constroem o texto identitário da nordestinidade a partir da apropriação e materialização dos elementos e das imagens que compõem o Sertão. Esse texto organizou-se em torno dos discursos regionalistas, impressos especialmente por Gilberto Freyre, que criou um sentido de localização geográfica para o Sertão, passando este a figurar praticamente como sinônimo de Nordeste. Dessa forma, o seu habitante – o nordestino – foi-se constituindo como ocupante e representante legítimo do Sertão – o sertanejo –, afirmando-se como uma espécie de “reserva de brasilidade”.

Todas essas construções identitárias, fundadas nos anos 1920 e difundidas por diversos mecanismos e camadas sociais, influenciaram e ainda influenciam artistas letrados e iletrados e pensadores da cultura, no que toca aos elementos da cultura nordestina. Poderíamos citar inúmeros exemplos de como essas ideias estão fortemente expressas nas formas de dizer e de ver quem são os nordestinos: na música de Luiz Gonzaga, na literatura de João Cabral de Melo Neto, no cinema de Glauber Rocha, no teatro de Ariano Suassuna, nas artes plásticas de Cícero Dias, na poesia de Patativa do Assaré e principalmente na arte popular, a exemplo do artesanato da região, do cordel e do repente, entre outras formas de expressão que defendem uma noção de nordestinidade e de sertanidade como valor positivo.

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Apesar de afirmar a grande dimensão que o discurso regionalista ganhou no âmbito nacional e de enfatizar a capacidade de invenção da realidade do Movimento Regionalista do Nordeste, não é preciso ir muito longe para descobrir que, nesse período em que o Brasil opta por um modelo de desenvolvimento urbano-industrial, é à pujante região Sul/Sudeste que caberia “puxar o trem descarrilhado de uma nação tropical e mestiça”51. Como vimos, isso se deve ao fato de que, tanto o Sul quanto o Norte, de formas diferentes, afirmavam essa região como espaço ligado ao rural, ao Sertão.

Referências

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2001.

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Nordestino, uma invenção do falo: uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920-1940). Maceió: Catavento, 2003.

BAHIALISTA, Sérgio. A mulher de 106 anos que deu um chute na bunda de Lampião. Salvador: edição do autor, 2006.

BHABHA, K. Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 1998.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro. Ed. Bertrand Brasil, 2005.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Cultrix; MEC, 1973.

51 Trecho retirado de uma matéria do jornal O Estado de São Paulo, 04/02/1927, intitulada “O banditismo no nordeste” (ALBUQUERQUE JR, 2001, p. 62).

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FAVERO, Celso Antônio; SANTOS, Stella Rodrigues dos. Semi-árido: fome, esperança, vida digna. Salvador: UNEB, 2000.

FREYRE, Gilberto. O Manifesto Regionalista de 1926. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1967.

MOURA, Milton. Identidades. In: RUBIM, Antônio Albino C. (Org.). Cultura e atualidade. Salvador: Edufba, 2005.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.

RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília, DF: Ed. UnB, 1982.

VASCONCELOS, Cláudia P. Ser-tão baiano: o lugar da sertanidade na configuração da identidade baiana. Salvador: Edufba, 2011.

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DISCURSO DE ORIGEM E IDENTIDADE EM LUANDA BEIRA BAHIA,

DE ADONIAS FILHO

Marcos Aurélio dos Santos Souza

I had no nation now but the imagination.Derek Walcot, Omeros.

A história da chegada dos europeus nas Américas, no final do século xV e durante os séculos xVI e xVII, consagrou a produção de um discurso da presença a partir do qual a colonização se justificava como uma espécie de direito imperativo de subjugar e governar povos e lugares, um direito destinado apenas a alguns homens e às suas respectivas nações. Respaldado historicamente em experiências anteriores de dominação colonial na Ásia e na África, tal discurso funcionava a partir de um aparato social, religioso e simbólico, estabelecido nas chamadas terras do além-mar, que produziu a ideia de uma origem unívoca e inexorável do poder político, econômico e religioso das nações europeias sobre a história dos povos colonizados.

Estabelecendo formas ilustrativas, metafóricas, gestuais e simbólicas, que se configuram diante de um indivíduo e de uma coletividade – que o deseja e o produz –, o discurso da presença se manifesta como crível de um momento transcendente. Um sermão, a leitura de um documento real, um discurso de posse em tom solene,

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uma determinada configuração dos astros, descrita por astrônomos, uma atitude do capitão da missão colonial, registrada por escrivães, compõem um primeiro cenário de atuação discursiva.

Nesses termos, a presença é entendida como percepção de forças que projetam o ser (o indivíduo, a comunidade ou a própria humanidade) aos sentidos da verdade e do bem, o que numa reinscrição moderna equivaleriam também aos princípios mais elevados do sentimento nacional.

A presença como força discursiva da origem e de seu significado transcendente, como defino aqui, investe-se daquele sentido matricial de imanência e de “identidade a si”, sobre o qual se refere Derrida, em Gramatologia (1973). Entendida assim como centro, fundamento e organização de uma estrutura (do pensamento, da sociedade) ela forja um sentido unívoco da fundação colonial e do seu desejo permanente de domínio.

Estar presente, nesse sentido, é “ser presente”, como impregnando de si os espaços e as coisas. A presença é um desejo exigente de continuidade da própria presença, pela autoridade e verdade que ela revela. O que Derrida chama mais especificamente

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de metafísica da presença,52 substância plena e imóvel. Ou aquilo que aparece como objeto no trabalho do “historiador clássico” e que Foucault denomina “pesquisa da origem”. Tal “pesquisa da origem” se esforça para recolher:

[...] a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira (FOUCAULT, 2006, p. 17).

Numa perspectiva histórica e cultural, a presença estabelece aquilo definido por Walter Benjamin, e adaptado ao nosso propósito, como continuum da história, uma percepção homogênea de que os acontecimentos se constituem, em um nexo causal, a partir do legado dos “vencedores”. Nessa percepção, ainda, conforme

52 A ideia de “metafísica da presença” em Derrida assume aquele sentido também utilizado e interpretado por Evando Nascimento (2004, p. 21), ou seja, “privilégio da presença como valor supremo, em prejuízo de qualquer diferimento, repetição ou diferença em todos os sentidos do termo”. A ideia é utilizada por Derrida, em obras, a exemplo de Gramatologia, A Farmácia de Platão e Escritura e Diferença, relacionando geralmente a constituição de um discurso da origem, assinalado pelo sentido de uma presença plena inaugural e permanente de uma voz (logocentrismo) e de sua capacidade de produzir o conhecimento verdadeiro e absoluto. A ideia de metafísica também está relacionada ao pensamento ocidental que concebe o mundo estruturado em binarismos irredutíveis (presente/ausente, verdade/mentira, bem/mal, matéria/espírito etc.) como forma de analisar suas realidades humana e natural, e se encontra reforçada numa tradição filosófica que vai do idealismo, constituído na obra de Platão, até às ideias imanentistas de pensadores como Kant, Hegel e Schelling.

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Benjamin (1994, p. 225): “[...] os que no momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes”.

A presença, além de estabelecer esse nexo, transforma-o também num “monumento da cultura”. Mas, como não poderia deixar de lembrar Benjamin, todo monumento da cultura é também um monumento de barbárie. A presença se desfaz assim aos olhos desse crítico da história, que vivenciou a situação desconfortável de judeu alemão durante o chamado o Reich de Hitler, como uma catástrofe diante do anjo pintado por Paul Klee, acumulando ruína sobre ruína e “as dispersando aos nossos pés” (BENJAMIN, 1994, p. 225).

É necessário, a princípio, perceber a constituição desse discurso da presença como “desejo, exigente, potente e sistemático em estabelecer um significado” (DERRIDA, 1973, p. 60), para suscitar, em seguida, sua instabilidade (e sua ruína) algumas vezes mascarada pelo desejo de sua força estrutural. Pois, não existe estrutura sem hierarquia e nem hierarquia sem um conflito real ou potencial entre os elementos nela envolvidos.

A história de um jovem, nascido no litoral de Ilhéus, em Luanda Beira Bahia, de Adonias Filho, encena não apenas o desejo da presença fundacional, como também a instabilidade desse desejo, ante o multiculturalismo, as viagens e os deslocamentos culturais. Luanda Beira Bahia é uma épica do sujeito, conduzido por forças da origem racial e nacional. Seu personagem central, Caúla, é praticamente “arrastado” misteriosamente a uma viagem pelas costas brasileira e africana: Luanda, Beira, Bahia, “graças” ao seu sangue branco e português. Esse personagem, no começo de sua saga, mora com sua mãe, numa casa à sombra de uma árvore

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centenária, a jindiba, cujas raízes fixadas em solo brasileiro e baiano remontam à época dos escravos e dos índios.

A jindiba se apresenta como testemunha de uma história individual (a de Caúla) e coletiva (das primeiras relações culturais entre indígenas, negros e europeus) e da altura de sua antiguidade consegue vislumbrar o mar e as terras além de seu horizonte. Ela sabe do passado e do futuro dos habitantes daquela terra e sua presença se configura como metáfora da fundação de um lugar fronteiriço de outros, resvaladiço em outros, todos eles exercendo sobre os destinos dos indivíduos forças de determinação e de deriva.

O pai de Caúla, João Joanes, o Sardento, partiu deixando mulher e filho, como tantos outros marinheiros e pescadores daquele lugar, levado instintivamente, na perspectiva de uma história dos vencedores, pelo atavismo do seu sangue português. O mar exercia sobre ele e seus conterrâneos a mesma atração que exercera sobre os antigos colonizadores, inquietos e corajosos, quando se lançavam em suas caravelas em busca de novas terras:

O mar levava os homens para muito longe. Voltavam alguns, quando voltavam, e outros desapareciam, como se morressem. [...] Aqueles navios, porém, levavam os homens sem que ninguém os prendesse. Tinham que ir e iam como enfeitiçados. O resto do sangue português, talvez, cedo fervendo nas areias do Pontal e dentro nas canoas, pescadores depois nas jangadas e em pequenos barcos, marinheiros finalmente que rodavam todos os oceanos. O Sardento, agora, era um deles (AGUIAR FILHO, 1997, p. 17).

A previsão temerosa da mãe de que seu filho seguisse o mesmo desígnio fundacional do pai é concretizada. Descendente de indígena cuja sina era, segundo o narrador, permanecer e morrer

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em sua terra, como seus antepassados, ela testemunhou a partida de Caúla em uma tortuosa viagem, incitada segundo o narrador pela imagem do Sardento:

O mar alto, Pé-de-Vento, o saveiro. E Caúla, porque viu aquilo de uma vez pensou no pai, aquele marinheiro, o Sardento. Não era difícil entender porque deixara tudo, a mãe e ele próprio, para sumir nos infinitos do mar. Devia ter sentido o que ele agora sentia. Vontade de tomar o leme, o saveiro no sem fim das águas, noite e dia viajar até dar com a Bahia ou Lisboa, os portos do mundo. Navegar a vida inteira, rodando a terra, vendo as nações e raças (p. 32).53

A Bahia (Salvador) e a África aparecem como lugares de dispersão da identidade paterna, desse sangue original branco e europeu que não se fixa e não pertence a um lugar determinado, embora tenha uma posição social, fixa e determinada. Apesar das distâncias geográficas que separam Salvador e Luanda, esses lugares aparecem também como presenças de um discurso do essencialismo africano, cuja figura da professora negra de Caúla, Maria da Hora, tem sua representação comovente e rasurada, ao apresentar trêmula o mapa do continente africano, numa aula de geografia.

A concepção desse continente na obra de Adonias Filho, assim, aproxima-se dos recorrentes epítetos colados às representações da África no imaginário ocidental, como aqueles listados por Marcos Cézar Botelho de Souza no seu estudo sobre a poética pós-colonial em Derek Walcott: “Última fronteira, Continente Negro, terra de infiéis, Hot Zone, terra de King Kong, ‘mundo criança envolto na negrura da noite’ (segundo Hegel), coração das trevas, terra-mãe, barbárie” (SOUZA, 2002, p. 1).

53 As referências à obra Adonias Filho, que doravante será assinalada apenas com o número das páginas, foram retiradas de Aguiar Filho (1997).

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Nesse processo de invenção ocidental da África, há uma percepção redutora da diversidade física e humana do continente africano, que passa a ser compreendido como unidade política natural e “selvagem”. As descrições da propalada e obscura selva africana vão representar uma espécie de cadinho dos medos do próprio homem branco, na relação com suas narrativas míticas de origem e de desenvolvimento das diferentes sociedades humanas. Em uma passagem do romance, o Sardento fala para sua filha Iuta, que reside em Luanda: “O paraíso foi na África. Não se esqueça Iuta, de que Adão e Eva viveram aqui” (p. 115).

Após ter saído de Ilhéus a bordo de um velho pesqueiro, na esteira fundacional e enigmática do seu pai, Caúla segue para Salvador, cidade em cujas ladeiras e ruas passa a viver como flanêur, sob o fascínio dos casarões antigos, do mercado e do porto com suas grandes embarcações. A imagem e a história de seu pai perseguem-no como uma sina e após uma desilusão amorosa ele resolve embarcar numa viagem a bordo de um navio que conduzia às cidades africanas de Luanda e Beira, e assim: “como João Joanes, seria um cigano do mar. Viajando, viajando, esquecia-se o mal e o bem” (p. 129).

Em Luanda, Caúla encontra Iuta e, sem saber de sua relação consanguínea com aquela moça africana e vice-versa, fruto da relação amorosa do seu pai com a angolana Corina Mulele, ele se apaixona por ela, e vice-versa. Unidos, literalmente, pelo sangue do pai, o sangue do branco português, desejado como referência de identidade e leitmotiv da origem e do percurso de suas próprias histórias, Caúla e Iuta viajam juntos ao Brasil, ela grávida do próprio irmão e ele feliz em poder retornar ao seu lugar de nascimento, à

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sombra da jindiba centenária, agora com uma mulher esperando filho seu.

A demanda de Caúla pelo sangue original paterno, torna-se no lugar natal do retorno, contudo, uma demanda da não continuidade fundacional, pois ali também sua história é elidida por um desfecho trágico através das mãos assassinas do seu próprio pai. Sardento, ao retornar a Ilhéus, depara-se com a visão de seus dois filhos vivendo como marido e mulher. Surpreendido e ensandecido por esse fato, ele saca de um revólver e mata os dois filhos, em seguida dá um tiro na própria cabeça: “o poço, completamente fechado, atirara para matar” (p. 172).

A contranarrativa do continuum da História é apresenta na obra de Adonias através de uma origem sob suspeita, cindida em sua possibilidade de continuação, concluída com uma demanda gorada e trágica de seus personagens principais, Caúla e Iuta, herdeiros do português João Joanes. Deslocamento, inversão e dispersão do discurso da origem colonial, do seu desejo centrado e regular, definido na história oficial como justificativa à pretensa superioridade europeia, são efetivados nessa obra.

A figura de um pai branco, cuja força, aparentemente unívoca e fixa, a mesma de 500 anos atrás, encontra-se, paradoxalmente na imensidão, no distanciamento e na dispersão do mundo, perdida em fragmentos entretempos e entrelugares, produzindo através do encalço errante da demanda de seus filhos, uma leitura reveladora da produção imaginária de geografias rasuradas que permitem compreender as relações culturais na contemporaneidade, construídas a partir de posturas descentradas, de personagens errantes.

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O filme Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles, explorou uma imagem semelhante à da narrativa de Adonias Filho, Luanda Beira Bahia, se constitui. A história de Paco, jovem estudante universitário (personagem do ator Fernando Alves Pinto), que mora na cidade São Paulo com sua mãe Maria Azguirre (personagem de Laura Cardoso), vivenciando ambos a crise econômica e o fracasso do Plano Collor, atualiza a figura mítica no cinema brasileiro dos anos 90.

Descontente com sua vida no Brasil, a mãe de Paco resolve colocar em execução seu plano de voltar com o seu filho à terra de seu pai, San Sebastian, na Espanha, entretanto, tem dificuldades, trabalhando como costureira, para conseguir dinheiro e realizar tal intento. Sem nutrir o mesmo desejo, Paco tenta a carreira de ator teatral, mas não é bem sucedido num teste. A mãe que enxerga no filho a figura de seu próprio pai, tenta dissuadi-lo a comprar as passagens à prestação, e termina morrendo de um ataque cardíaco ao assistir na televisão o anúncio do confisco da poupança, pela então ministra da economia, Zélia Cardoso.

A narrativa se desenrola com o encontro casual de Paco com um traficante de diamantes, Igor, personagem de Luís Melo, que se apresenta como um dono de uma loja de antiquários e paga a passagem do jovem para a Europa, sob a condição de que ele entregue um violino a um suposto comprador em Portugal; de lá o jovem poderia seguir para a Espanha. Antes, porém, Igor faz um

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discurso54 eloquente e apologético da colonização europeia, dentro de sua loja, uma espécie de depósito de antiquários (ou mercadoria de contrabando?), dentro dos quais sorrateiramente ele enviava diamantes traficados para a Europa – inclusive dentro de santos de madeira, o que remete a formas em que habitantes da colônia burlavam as leis coloniais, escondendo pedras preciosas dentro de santos e evitando o confisco da metrópole portuguesa nos século xVI e xVII.

Em seu discurso dirigido para Paco, a quem ele sempre lembra seu sobrenome espanhol, de origem basca, Eizaguirre, Igor descreve aqueles objetos como vestígios da colonização, louvando aquela época como uma “puta aventura”, uma “aventura dos Aguirres” e depreciando a modernidade, como uma época de “janotas incultos”. Ao evocar esse sobrenome, Igor constrói uma relação com a história de Lope de Aguirre, conquistador espanhol do século xVI, que foi tido como louco e se rebelou contra a monarquia espanhola e cuja viagem pela Amazônia, numa busca insana pelo Eldorado, fora tratada ficcionalmente pelo filme Aguirre, a Cólera dos Deuses, do cineasta alemão Werner Herzog, em 1972.

54 Esta é a fala de Igor: “Está vendo essa cadeira Paco? Isto não é uma cadeira. Esta não é uma mesa. São vestígios, isso, vestígios de uma puta aventura! A maior aventura de todos os tempos, a dos conquistadores, dos Aguirres, Ex-Aguirre! A aventura da navegação, da descoberta, da colonização, da imigração... todas as provas estão aqui, todas! É claro que não as grandes provas, porque o ouro já foi há muito tempo e o diamante está acabando... Essas são as pequenas provas, o dia-a-dia, o suor de gente comum. Você entende isso, Paco? E você acha que as pessoas querem se lembrar disso? Porque a memória, Paco, foi se embora junto com o ouro e os visionários, com os santos barrocos, com Aleijadinho. Estamos a viver o império da mediocridade, meu amigo, dos engarrafamentos em shopping centers, dessa falsa modernidade de janotas incultos. De leitores de Sidney Sheldon. É o fim do mundo, Paco! É o fim do mundo!” (TERRA ESTRANGEIRA, 1995).

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O filme de Walter Sales com codireção de Daniela Thomas e o romance de Adonias Filho são constituídos de imagens da colonização portuguesa e da colonização espanhola, de lugares paternos, revisados e rasurados na história de jovens que seguem uma viagem, sem saber exatamente se vão chegar e como vão chegar a um destino. Traídos, mortos ou feridos por uma ilusão, na rota inversa dos descobrimentos e no rastro trôpego de seus pais fundadores, espanhol e português, esses personagens representam o ideal gorado de pátria, na perspectiva fundacional de uma origem colonizadora e patriarcal, reeditada na construção do nacionalismo das ex-colônias de grandes impérios ocidentais, cujas histórias monumentais inspiradas numa semelhança do filho com um pai fundador é sempre atordoada por outras imagens obscuras, violentas e descontínuas.

As viagens desses personagens que relacionam a imigração e o contrabando ilegal contemporâneos com as incursões coloniais marítimas do século xVI, produzem percepções geográficas e históricas diversas e complexas como aquelas configuradas nos espaços da cidade moderna de Lisboa, em Terra Estrangeira, uma cidade tão cosmopolita com a presença de imigrantes da ex-colônia, quanto segregacionista com brasileiros e angolanos, constituindo guetos com suas identidades subalternas e intersticiais – como a representada pela personagem de Fernanda Torres, Alex, em Terra Estrangeira, que declara: “Quanto mais o tempo passa, mais eu me sinto estrangeira... cada vez mais eu tenho consciência do meu sotaque, de que a minha voz é uma ofensa para os ouvidos deles [...] quando eu penso em voltar para o Brasil, me dá uma frio na espinha...” (p. 172).

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Ou como a Bahia no romance de Adonias Filho que, como sugere o título ambivalente do romance Luanda Beira Bahia, corrido sem vírgulas entre os nomes dessas três localidades, é e não é as cidades portuárias de Beira, em Moçambique, e Luanda, em Angola. A una e diversa Luanda Beira Bahia é o lugar onde homens com sangue africano saem da selva escura e retornam a ela, “assombrados com a vista do mar” (p. 135), para admirar os grandes navios (que não ostentam mais tombadilhos negreiros do século xVI, mas cargueiros modernos), mas também é onde homens com esse “sangue africano”, “preferem o mar” (p. 19) disseminando-se no mundo, como os brancos europeus.

O sangue não vinga como ideal de origem ou de fundação nacional nos lugares esquivos e esquizos dessas histórias, nem na Lisboa, onde Paco se relaciona, conturbada e amorosamente, com a garçonete conterrânea Alex, que vende sua própria identidade e seu passaporte, a fim de obter um pouco mais de dinheiro para sobreviver; nem nos descaminhos de Caúla, Iuta e João Joanes, traçados simbolicamente pela mão errante da professora negra de Caúla sobre o mapa, apontando tanto para África, quanto para os “vazios pintados de azul” (p. 25); nem na perspectiva de outro personagem negro Pé-de-vento, que em vez de enterrar os corpos desses três personagens no quintal da casa de Caúla, onde se fixava a jindiba centenária, prefere lançá-los ao mar num féretro feito dessa árvore com o desejo de colocar um velame, deixá-los partir numa outra deriva, “com velame aberto, fariam novamente a viagem por Luanda, Beira, Bahia” (p. 173).

A sugestão do encontro amoroso como resolução de um conflito de identificação, ou seja, uma junção de sangues que resultaria no ideal do casamento, garantindo a herança familiar

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ou uma síntese nacional, não funciona no encontro fortuito dos brasileiros Paco e Alex, em Portugal, nem no acidental enleio de Caúla e Iuta, em Angola. Esses encontros mostram a face de um sujeito nacional dividido, rasurando aquela face legitimadora de um romantismo e de uma retórica erótica do século xIx, criadora de arquétipos fundacionais das nações latino-americanas, estruturador de vários “romances patrióticos”, como observou Doris Sommer, em seu livro Ficções de Fundação (2004).

Segundo Sommer (2004, p. 11), o desejo da nacionalidade, como o de ser ou querer ser argentino, americana ou brasileiro, assemelha-se à paixão e ao desejo pelo outro, aquele outro situado em um lugar exótico, fixo, mas promissor. Ela demonstra através de uma crítica cultural e feminista, que todo um “cânone latino-americano fala diretamente ao investimento passional que temos no nacionalismo”. Assim, “os romances românticos caminham de mãos dadas com a história patriótica na América Latina” (SOMMER, 2004, p. 21). Tal cânone buscava estimular imaginações comunitárias, através de romances produzidos por setores da classe média e alta, e por europeus transplantados, cujos sonhos os tornavam americanos.

A eles pertencia o espaço para realizar os desejos de um velho mundo corrupto e cínico, o espaço em que ‘romances domésticos’ e o ‘romance’ ético político podiam se unir […] ao se identificar com heróis e heroínas, os leitores seriam motivados a imaginar um diálogo entre setores da nação, a realizar casamentos convenientes, ou pelo menos, seriam tocados por tal ideal fantasmagórico. Apesar de diversificadas, as conciliações românticas parecem fundamentadas na natureza humana interpretadas de formas diversas durante esse período otimista, mas sempre supostamente racionais e construtivas. A paixão erótica era menos o excesso socialmente

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corrosivo que estava sujeito à disciplina em alguns romances modelo da Europa, e mais a oportunidade (retórica ou outra) que interligava círculos de leitores heterodoxos: regiões, interesses econômicos, raças e religiões rivais. Também na Europa, o amor e a produtividade se encontram no lar burguês, em que, pela primeira vez, na história da família, esperava-se que o amor e o casamento coincidissem. Mas a América era o espaço ideal imaginário, da Europa para o projeto burguês de coordenar o sentido e a sensibilidade, coordenar a produtividade e a paixão (SOMMER, 2004, p. 30).

As histórias de Luanda Beira Bahia e Terra Estrangeira também partem de enlaces amorosos, marcados por atos de bravuras, pela decisão masculina e desejosa, mas esses atos funcionam na direção inversa de uma nacionalidade a se criar ou a se recuperar, através da perspectiva fatídica de um retorno ao lugar de origem paterna: do “retorno” de Paco à Espanha e a San Sebastian, terra de seu avô, tendo como companhia Alex (salva dos traficantes de diamantes) e o de Caúla com Iuta (salva da brutalidade de seu ex-noivo, o africano Nizuá) ao Brasil e a Ilhéus, terra do seu pai: “Um brasileiro como seu pai, ele já sabia” (p. 150).

Casa não precisava, ele e Iuta, porque lá estava no Pontal, esperando-os, a própria casa onde nascera. Apresentaria a mulher à jindiba, a velha árvore, sua amiga, parte da casa tão gente quanto Pé-de-Vento. Todas as coisas ficaram como a mãe a deixara, a mesa, e a cama, o armário e o cabide, mesmo o retrato de João Joanes, o pai, na parede. O Sardento na moldura, mais que um retrato, homem de carne e osso (p. 163).

O retrato do pai é o espelho embaçado em que Caúla tenta vislumbrar uma imagem estável, constituída inicialmente a partir de uma perspectiva racial (branco) e, em seguida, de um pertencimento

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nacional (brasileiro). O pertencimento nacional redimensiona a figura do pai cuja identificação lhe impulsionou a uma dispersão por Luanda Beira Bahia, a uma fixidez representada pela jindiba, fixa no seu quintal, nas raízes profundas daquela árvore, fincadas no solo de Ilhéus, e nas coisas da sua casa, que “ficaram como a mãe deixara” (idem), além do próprio retrato do Sardento incólume, pendurado na parede, e enfim exposto diante dos olhos de reconhecimento e de terror de seus filhos.

A persistente procura simbólica pelo patriarca branco em Luanda Beira Bahia, resultando na morte de seus protagonistas, promove uma rasura na história romântica do século xIx, em que casais apaixonados constituirão uma herança representativa de uma fundação e de um desejo de nacionalidade. No caso do Brasil, uma herança mestiça garantidora da permanência do sangue dos descobridores, em detrimento do apagamento “natural” dos caracteres raciais e culturais do colonizado.

Diferente do heroísmo sobrevivente dos romances de Alencar, de Peri e Ceci, representando a união entre o índio civilizado pelo branco, e pela branca, a autêntica filha de portugueses no romance o Guarani, ou do resultado nacional, esperançoso e doloroso do mestiço Moacir, carregado nos braços de seu pai o português Martim, após a morte de Iracema, as uniões desses casais não chegam a um termo fundador: nem no nascimento do filho de Caúla e Iuta, fruto de um impedimento moral, nem na sua chegada a um lugar original, objeto de desejo também de Paco e Alex, no fim de Terra Estrangeira, ao atravessarem a fronteira de Portugal em direção a Espanha e San Sebastian.

O fim desses heróis expõe a impossibilidade daquele desejo utópico de retorno a uma presença, baseado na construção de um

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lugar determinado pela história. Esse lugar da história tenta apagar a diferença cultural e os movimentos dispersivos da imigração e das relações culturais contemporâneas, a partir da afirmação de uma origem, ou de uma síntese racial, redentora e superior.

Referências

AGUIAR FILHO, Adonias. Luanda Beira Bahia. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

BENJAMIM, W. Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006.

NASCIMENTO, Evando. Derrida. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

SOMMER, Dóris. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Tradução de Gláucia Renate Gonçalves e Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.

SOUZA, Marcos Cezar Botelho de. Estratégias da poética pós-colonial: Derek Walcott por uma épica menor. 2002. Dissertação (Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2002.

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TERRA ESTRANGEIRA. Direção de Walter Salles e Daniela Thomas. Rio de Janeiro: Rio Filme distribuidora, 1995. DVD (100 min.).

WALCOTT, Derek. Omeros. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1998.

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SOBRE OS AUTORES

Armando Alexandre CastroDoutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz e Universidade Federal da Bahia (UESC/UFBA). Especialista em História Social e Educação pela Universidade Católica de Salvador (UCSAL). Docente do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CECULT/UFRB). Integra o grupo de pesquisa O Som do Lugar e o Mundo.

Carolina Ruiz de MacedoMestre em Cultura e Sociedade pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Jornalismo & Mídia pela Faculdade do Sul (FACSUL). Graduada em Comunicação Social (Rádio e TV) pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Docente do Curso de Comunicação Social (Rádio e TV) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) onde leciona na área de imagem. Integra o grupo de pesquisa O Som do Lugar e o Mundo.

Cláudia Pereira VasconcelosMestre em Cultura e Sociedade pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Arte-Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC). Graduada em História pela Universidade

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do Estado da Bahia (UNEB). Docente do curso de História da Universidade do Estado da Bahia (UNEB – Campus IV).

Francisco Antonio Nunes NetoDoutor em Cultura e Sociedade pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em História Social (UFBA). Especialista em Desigualdades Raciais e Educação (UFBA/CEAO). Integra os grupos de pesquisa O Som do Lugar e o Mundo e do NEAB (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros).

Marcos Aurélio dos Santos SouzaDoutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feria de Santana (UEFS). Especialista em Literatura Brasileira pela Universidade do Sudoeste da Bahia (UESB). Graduado em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Professor Adjunto de Literatura da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Tiago Santos Sampaio Mestre em Cultura e Sociedade pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Graduado em Comunicação Social (Rádio e TV) pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Docente do Curso de Comunicação Social (Rádio e TV) da UNEB, lecionando na área de teorias da comunicação. Integra o grupo de pesquisa O Som do Lugar e o Mundo.

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Vilbégina Monteiro dos SantosMestre em Cultura e Sociedade pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Docente do Curso de Comunicação Social (Rádio e TV) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Wagner Vinhas BatistaDoutorando em Estudos Étnicos e Africanos e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduado em Ciências Sociais (UFAL). Integra o grupo de pesquisa O Som do Lugar e o Mundo.

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Formato: 150 mm x 210 mmFonte: Minion Pro

Papel miolo: Pólen Rustic 80 g/m2

Papel capa: Cartão Supremo 250 g/m2

Impressão: Julho/2015

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