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MALANGATANA Vinte e Quatro Poemas ISPA

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MALANGATANA

Vin t e e Qua tro

Poemas

I S P A

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Malangatana ngwenya

Vinte e Quatro Poemas

ISPa/1996

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título: vInte e Quatro PoeMaSautor: Malangatana

© InStItuto SuPerIor de PSICologIa aPlICada-Crlrua JardIM do tabaCo, 44, 1100 lISboa

1ª edIção: fevereIro de 19962ª edIção: noveMbro de 1996tIrageM: 1000 exeMPlareS

CoMPoSIção: InStItuto SuPerIor de PSICologIa aPlICadaIMPreSSão e aCabaMento: guIde-arteS gráfICaS, lda

dePóSIto legal: 97556/96ISbn: 972-96682-3-x

CoM a Colaboração de JúlIo navarro

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Aos meus pais,

minha mulher,

filhos e netos,

e à família Guedes

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Notas sobre a Poesia de MalaNgataNa

A Poesia é expressão daquilo que de mais idiossincrásico existeno indivíduo.

É expressão de uma Subjectividade em movimento, em cons -trução e em desconstrução: em elaboração criativa de si mesma.

Na Poesia o Eu afirma-se como negatividade face ao Outro que aenformá-lo aspira.

Mas a força da negatividade poética é tanto maior quanto maisentrecruzada estiver com a dinâmica da Cultura, com o movi -mento de uma mais alargada Subjectividade na qual o Sujeitoindividual mergulha e se enraíza. Julgo que se pode dizer queassim é, mesmo quando assim parece não ser...

Com Malangatana, assim é e assim parece ser. Há entreMalangatana e a Cultura Originária que é a sua uma tão grandeproximidade que os mitos, as estórias, os objectos imaginários(os sonhos? os pesadelos?...) de um são os mitos, as estórias, osobjectos imaginários da outra.

Trata-se, com Malangatana, de uma Subjectividade que seenraizou no solo originário da Grande Cultura, da Cultura-Mãe,da Cultura que protege contra aflições individuais e pesadelos,ao mesmo tempo que fornece ao Sujeito formas e temas que aopuramente idiossincrásico permitem dar expressão.

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É esta relação tão estreita com o Corpo (a cultura é tambémcorpo que se pensa, corpo que se diz: “com os próprios corposos artistas pintam no fundo de paredes de caniço”), a Alma (acultura é também alma – e com a alma e o corpo se confunde) –é esta relação tão estreita entre o Corpo e a Alma e a CulturaOriginária que faz também a especificidade e ao mesmo tempo aUniversalidade de Malangatana.

Não é sonhos que os seus quadros pintam.

Pelo contrário, quase diria: é dos seus sonhos idiossincrásicosque a pintura o protege.

Protege transformando o material inquietante do sonho emmaterial psicologicamente gerível oferecido pelas raízes culturais.

É, por isso, penso, que a pintura de Malangatana foge a espaçosintersticiais. É que pelos possíveis interstícios poderia vir aomundo das formas como não-forma aquilo precisamente de queas formas pretendem proteger.

O que assim acontece, então, é uma dinâmica da Subjectividadeque só é possível no espaço da Cultura-Mãe.

Foi talvez porque isto intuiu que Eduardo Mondlane desacon -selhou Malangatana quanto a um possível projecto de ir para osEstados Unidos. Foi porque isto afinal Malangatana tambémsentiu que para lá não foi. Nem para esse para lá nem paranenhum outro, onde poderia ter mais pincéis e tintas e telas epapéis (e menos palavras), mas onde correria o risco de perder amatéria originária de que na sua Arte nos fala.

Compreende-se assim também o matalanismo de Malangatana: éaí que reside a matéria-mãe que permite transformar o purocorpo em Cultura, a simples forma em imagem.

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Nessa transformação existe uma infinita autenticidade: talvezseja também essa autenticidade que explique1, ainda queparcialmente, o fascínio da Arte de Malangatana.

Nós, de facto, nos nossos espaços tão carenciados deautenticidade e de enraizamento, nos nossos espaços que já tãopouco que ver têm com o Espaço que é projecção-transformaçãodo Corpo – talvez vejamos na obra de Malangatana aquilojustamente de que tão carenciados estamos...

A permanente fusão (mas não confusão) com a Cultura-MãeOriginária não torna apenas possível a transformação

apaziguadora de materiais psíquicos assustadores. Ela torna aindapossível uma elaboração identitária vigorosa, uma posturaSubjectiva (uma posição da Subjectividade como vertex e comoOlhar) dotada de uma poderosa espinha dorsal.

Ou seja, torna possível uma dinâmica da Subjectividade que doOutro – nomeadamente do Outro colonial – se diferencia parano seu próprio solo experiencial se afirmar.

Ora isto é também o que nos Poemas se encontra.

E uma vez centrada em si – quer dizer ainda e mais uma vez naCultura na qual se enraíza – a Subjectividade do poeta pode até

identificar-se a outra posição menos diferenciada, nummovimento a partir do qual sai mais conhecedora (e o conhe -cimento é transformador até do ser Subjectivo), mais humana, emais poderosa. Como se vê no “Canção de um Velho”:

Oh, sinhor, oh, sinhor

oh, patrão, oh, patrão

mim quer descansar

minha ombro dói muito

meus mãos dói muito

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1 ... este vício das explicações!...

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Eu é velho, oh sinhor

não aguenta machila

minha corpo dói

deixa eu descansar

depois há-de andar

Mas essa identificação é móvel, porque assenta numa identidadeculturalmente ancorada e pessoalmente definida: ela permite quepor fim uma realidade se desvende, como num clímax queirrompe, explosivo, e que nada faria esperar:

“Um ano andar e andar

machila não pesa, pesa mulungu”.

Pareceria um lamento, este poema, mas, por outro lado, é maisdo que um lamento, é outra coisa. Ou melhor: é um lamento enão é um lamento. Uma Subjectividade, a do poeta,internamente autonomizada e diferenciada, identifica-se a umaoutra subjectividade até dela dar a natureza, o movimento, aconsistência: o lamento. Em “Canção de um Velho”, de facto, oVelho faz-se presente, a partir de um Olhar que consegue ser pormomentos o seu. Mas se essa identificação do Poeta ao Velho

permite a revelação do sentir e do viver do Velho, com eles nãose confunde.

Nem com eles se confunde, nem a partir deles sente oimperativo de elaborar uma diferenciação pela violência. Nãoquer isto dizer que a violência não possa ser o último meio pelaqual uma Subjectividade se diferencie, afirmando-se pelanegação radical desse Outro que a quer afogar.

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Mas o Poeta Malangatana tem outros recursos: o poetaMalangatana objectiva a violência mantendo-a fora do seuespaço subjectivo. Identificando-se ao Velho não se identifica à

sua outra face que é o sinhor patrão. E se assim faz é porque arelação com a Cultura-Mãe lhe permite fazê-lo.

Já uma posição identificatória numa complexa e mais distanciadado objecto do Olhar é a que se encontra, por exemplo, nopoema No Polana ou no poema Bar do Penguim.

A autonomia face ao objecto colonial é nestes poemas ainda maisevidente, e a distanciação crítica mas nunca violenta do lado de

dentro, passa também por uma ironia – que não por umsarcasmo – cuja pulsação se vê no próprio ritmo das palavras:

Tanto senhor

tanto cliente

tanta bandeja

que serve o senhor cliente

Tanta bebida

tanta sanduíche

tanto tabaco

tudo do senhor cliente

e, por fim, numa espécie de clímax do próprio poema, pontuadopor uma violência do lado de fora

Tanto pedido

tanto sinal à madrugada

tanta promessa

que é p’ra o senhor cliente

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Um tal Olhar, mais uma vez, é possível porque a Culturaoriginária lhe serve de campo de referência, Cultura outra,portanto, que não a do “senhor cliente”.

Mas note-se: poderia haver aqui, neste como noutros poemas,violência ligada ao sarcasmo. Violência e sarcasmo acerca do Velho

que implora, ou da empregada que “sorri” para o senhor “cliente”.

Violência e sarcasmo acerca desse Outro a quem o lamento ou osorriso se dirigem, violência e sarcasmo acerca do Outro que selamenta ou sorri.

Não há nada disso. A violência e o sarcasmo não habitam asubjectividade do poeta nem do pintor. Estão, do lado de fora, e

não porque o artista aí os coloque por um movimento de evacuação

Projectiva de conteúdos internos. Estão do lado de fora porque jáestão do lado de fora, independentemente de qualquer activaçãoprojectiva. O olhar do poeta revela-os, não os constrói.

É claro que o sarcasmo é possível, é claro que até pode existiruma estética do sarcasmo. Mas também é verdade que osarcasmo corresponde a uma insuficiente diferenciação entre osujeito e o mundo, uma insuficiente autonomia do sujeito, e porisso mesmo a uma insuficiente objectalidade do Mundo. Elecorresponde a uma mais primária postura do Subjectivo.

Aqui não há nada disso, e se não há nada disso aqui, a razão ésempre a mesma: o existir em Malangatana de uma dialéctica daSubjectividade mergulhada nas suas próprias raízes culturaisoriginárias como, outro-eu, e que por isso segura, sustém e fazascender a posições desenvolvimentais mais amplas os seuspróprios movimentos.

E é essa segurança subjectiva que torna possível a objectalidade

do olhar do pintor e do poeta. Quer dizer que em nenhum

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momento esse olhar se deixa contaminar por aquilo quepoeticamente também revela como coisa-do-lado-de-fora: oracismo, a intolerância, a brutalidade e mesmo a estupidez dacoisa colonial.

Fazer disso matéria de poesia é obra que só homens comoMalangatana são capazes de fazer. E por isso essa poesia tempara além do mais o condão de nos fazer ver quanto é falsa essaespécie a asserção fácil de que “o colonialismo nunca existiu”.

Se a poesia de Malangatana torna possível ver o real do lado defora é também porque assenta numa subjectividade vigorosa, ese origina de um espaço único, que não é real nem imaginário,antes é um entre cá-e-lá, um entre isso que aí, se vê e aquilo

cuja âncora está no mundo dos sonhos.

Malangatana, pintor e poeta, sabe, sente, toca – e diz aimportância sem fim desse mundo dos sonhos:

Quando sonham aos quatro anos

procuram contar sempre a história

dizendo que viram durante a noite

unia coisa assim

...........................

...........................

...........................

As crianças nunca mentem

dizem verdades sem saberem que é verdade

Que sejam sonhos bons ou que sejam sonhos maus, essa outra

cena e a relação que entre ela e a factualidade do mundo searquitecta, são lugares de residência daquilo que fez do mundo

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mundo e não mera superfície, daquilo que faz do mundo espaçovolumétrico capaz de acolher o Tempo, o Espaço e aTransformação, de ser também local de pro-jecção deSubjectividade no seu, próprio devir e na sua própriapermanente criação-construção.

Coisas estas que o Mestre Malangatana, na poesia como napintura como na escultura, a par e passo nos recorda e nosensina.

Frederico Pereira

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Glossário

buya vemcapulana panocompound (inglês) dormitórios para trabalhadorescruzu azuli cruz azul – marca de leite condensadofamba vaihalenu aquijamu compota (de jam – inglês)kahlula depressakandu cesto de objectos de curandeirokokwana avókoyi massa de farinhakulungwana ulularmachamba hortamachope membro da tribo Chopemagaíça trabalhador regressado das minas da áfrica do Sulmaningui muitomezenos sinfoniasmulungu brancondoro amuletopennies moeda corrente na áfrica do Sul, na épocapolana o mais caro hotel de lourenço Marquessaguate gorjetasalani adeusshillings moeda corrente na áfrica do Sul, na épocasuka vai-te embora, fora daquixibalu trabalho forçadoxicudu escudoxikuembu espírito/deusxikwembu deus/espíritoxirhungulu amuleto de anca – serve para a cerimónia da resolução

da zanga entre duas pessoas, que para isso se atam emsimultâneo e de costas

zampungana serviçal de trabalhos sanitários

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Índice

notas sobre a poesia de Malangatana 7vinte e Quatro Poemas de Malangatana 5o desejo no auge (desenho) 19Canção de um velho 21lagoas (1) 22bacanal de Marinheiros americanos, Portugueses e Sul africanos (desenho) 23lagoas (2) 25Suicídio (1) 26Suicídio (2) 27no Polana 28uma Cabeça Contra umas Pedras bicudas (1) 29uma Cabeça Contra umas Pedras bicudas (2) 30Mulher 21a Mamã Preocupada 32a Mulher Sedutora (desenho) 33olhos de Serpente 35noite ruidosa 36amo-te (desenho) 37amor verde (1) 39amor verde (2) 40Quando as Crianças Sonham 41xicuembu 42a Coruja 43Zampungana 44a Pá do Zampungana (desenho) 45Machope da rua 46a velha do Mercado Clandestino 48bar luso (desenho) 49exposição 51áfrica grita ao lindo hlongo 52lamento de um Pai 53lugar desconhecido ao abdias (1) 54lugar desconhecido ao abdias (2) 55estivadores (1) 56estivadores de lourenço Marques (desenho) 57estivadores (2) 59Magaíça 60bar do Penguim (desenho) 61bar do Penguim 63Sonho de um negrito 64glossário 65

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