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KUEHN, Frank M. C. Anais do XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em

Música (ANPPOM), Uberlândia, MG, 2011. Disponível em: http://unesp.academia.edu/fmc

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Heinrich Schenker e The Art of Performance: uma análise de incongruências

resultantes da sua tradução e uma proposta de resolução

Frank Michael Carlos Kuehn (UNIRIO)

Resumo: Considerando o centenário da primeira redação do esboço de The Art of Performance, este

paper prestigia a pertinência das reflexões de Schenker e reconhece os esforços que tornaram suas

anotações finalmente acessíveis a músicos-intérpretes e pesquisadores. Uma leitura criteriosa da versão

inglesa, no entanto, revela diversos problemas provenientes da tradução de termos distintos para

performance, podendo encobrir a real intenção de seu autor e representar um obstáculo na compreensão

de conceitos fundamentais da prática musical. O objetivo principal, contudo, não é apenas apontar

problemas – que, de forma não muito diferente, emergem também para o leitor de língua portuguesa – e

sim propor uma solução para o impasse.

Palavras-chave: Heinrich Schenker, The art of performance, teoria da interpretação musical, Escola de

Viena; práticas interpretativas.

Heinrich Schenker and The Art of Performance: an analysis of the incongruences resulting

from its translation and a proposal on how to solve these

Abstract: Considering the centennial of the writing of the draft of The Art of Performance, this paper aims

to emphasize the pertinence of Schenker’s reflections and pay homage to the efforts which have rendered

his annotations finally accessible to musician-interpreters and researchers. A careful reading of the

English version, however, reveals several conceptual problems stemming from the translation of discrete

terms for performance, and may mask the real intention of its author and represent an obstacle in the

understanding of basic concepts of musical practice. The main objective, however, is not only pointing to

the problems – which, in a not much different form, also emerge for the Portuguese language reader – but

rather propose a solution to the impasse.

Keywords: Heinrich Schenker, The Art of Performance, theory of musical interpretation, Viennese

School; interpretative practice.

Schenker argues that much of contemporary performance practice is

rooted in the nineteenth-century cult of the virtuoso, which has resulted

in an overemphasis on technical display. To counter this, he proposes

specific ways to reconnect the composer’s intentions and the musician’s

performance (SCHENKER, 2000, citação da contracapa).

1. Apresentação do problema

No mês de julho de 2011, completaram-se exatamente cem anos em que o

teórico, compositor, pianista e musicólogo austríaco Heinrich Schenker (1868-1935)

esboçou um projeto para o qual tinha previsto o título Die Kunst des Vortrags [A arte da

exposição ou apresentação musical]. Originalmente concebido como uma espécie de

compêndio de instruções, princípios e regras gerais redigidos para o músico-intérprete

concertista, em particular para o pianista, o texto nunca chegou a ser editado em vida. É

preciso, portanto, ter sempre em mente que se trata de uma obra inacabada, esboçada

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pelo autor para, um dia, se tornar livro. Depois do falecimento do autor, a tentativa de

publicar os manuscritos e anotações oriundos do espólio passou por diversos reveses até

que, no ano de 2000, a parte mais elaborada do material chegou a ser editada sob o

título The Art of Performance.1

Uma leitura minuciosa de textos teóricos redigidos por Richard Wagner

(1813-1883), Heinrich Schenker, Arnold Schönberg (1874-1951), Rudolf Kolisch

(1896-1978) e Theodor Adorno (1903-1969), contudo, revela que esses autores

costumavam empregar os termos Vortrag (exposição, apresentação), Aufführung

(apresentação no palco, evento artístico), Ausführung (execução), Wiedergabe e

Reproduktion (reprodução, sendo o primeiro o correspondente germânico do segundo,

de raiz latina), Interpretation (interpretação) e Improvisation (improvisação) para

designar os diferentes aspectos da prática musical. No início do século XX, entretanto, o

termo Vortrag, aplicado ao campo de música, caiu em desuso, sendo hoje somente

empregado em sentido de palestra, discurso ou declamação. Dos termos arrolados,

apenas o significado de Aufführung chega próximo a performance, denotando todo tipo

de representação artística no palco. Por conseguinte, a primeira incongruência já emerge

na escolha do título da versão inglesa, pois o termo alemão Vortrag, recorrente na época

de Schenker, só corresponde parcialmente a performance.

Em contrapartida, o termo performance se disseminou, nas últimas décadas,

em campos bem distintos, da filosofia ao esporte. Também no meio musical, o elemento

performativo está cada vez mais no centro das atenções.2 A enorme difusão, contudo,

também fez com que os termos interpretação e performance fossem empregados de

maneira bastante confusa. Existem, portanto, fortes evidências de que as incongruências

da versão inglesa da “arte da performance” sejam um resultado da tradução

indiscriminada de termos distintos da prática musical por um único termo de grande

abrangência – o de performance. Ainda que a tradução de Irene Schreier Scott seja boa

como um todo, a não distinção de conceitos fundamentais da prática musical vienense

como de interpretação, reprodução e performance pode encobrir a real intenção de seu

autor e representar um obstáculo para a sua compreensão. Daí a sugestão que o título “A

arte da interpretação musical” (The Art of Interpretation) ou “A arte da reprodução

musical” (The Art of Musical Reproduction) teria sido mais apropriado para o projeto de

Schenker.

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A necessidade de uma equação do problema não passou despercebida pelos

autores de um dos primeiros artigos em língua portuguesa que prestigiou a Arte da

Performance no Brasil. Apesar de estar confinado a uma nota de rodapé apenas, vale

reproduzi-la na íntegra:

Optamos por manter no título da obra de Schenker o termo performance, embora estejamos

de fato tratando de interpretação. A opção pelo anglicismo tem como intuito afirmar o

aspecto performático desta atividade. O termo interpretação, apesar de mais abrangente,

não implica necessariamente na execução de uma obra por um instrumentista. Utilizaremos

ambos, interpretação e performance, conforme nos pareça conveniente ao longo do artigo

(BARROS; GERLING, 2007: 142, nota 2).

Todavia, percebe-se também em Barros e Gerling certa inconsistência, pois

uma vez que mantiveram “no título da obra de Schenker o termo performance”, muito

embora esteja “de fato tratando de interpretação”, pode se indagar porque o mantiveram

no título de seu artigo (Análise schenkeriana e performance) – já que o problema foi

prontamente identificado e assinalado. Urge, portanto, persuadi-lo com mais rigor.

Nessa tarefa, entramos primeiro no mérito da questão, para depois apresentar uma

proposta concreta de como resolver o impasse. Durante o desenvolvimento da pesquisa

irei me referir reiteradamente a três trabalhos, cuja leitura é recomendada para

contextualizar o questionamento feito neste paper: um é de BARROS e GERLING

(2007), os outros são de minha autoria (KUEHN, 2010 e 2011, no prelo). Um investiga

a noção de prática musical na tradição clássico-romântica vienense, enquanto o outro

aprofunda a questão, demonstrando como os termos reprodução, interpretação e

performance diferem em sentido e fim. O resultado é uma revisão conceitual do modelo

das práticas interpretativas no Brasil.3 Já o principal objetivo deste paper está na

aplicação criteriosa dos conceitos interpretação, reprodução e performance a tópicos da

Arte da Performance, de Heinrich Schenker. Certo dilema, contudo, devo assumir

porque, por diversos motivos, não foi possível consultar os manuscritos originais de

Schenker. Ainda assim, uma vez evidentes, os problemas da versão inglesa serão

assinalados por meio de interpolações no corpo do texto principal e das citações.

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2. Proposta de como solucionar o problema

Antes de tudo, a premissa fundamental é que o processo reprodutivo da

música – isto é, a reprodução musical propriamente – ocorra por basicamente duas vias:

a) pela interpretação, e b) pela performance. O momento de uma reprodução é, portanto,

também o da performance, assim como literalmente o da interpretação de uma

composição musical (para um maior esclarecimento acerca destes conceitos, vide

KUEHN, 2011, 2012 e 2013).

Como princípios ativos, formam, em conjunto, as três categorias

fundamentais da prática interpretativa. Sendo a da reprodução musical também a mais

abrangente, abarca em si as outras categorias, como ilustra a figura 1:

REPRODUÇÃO

INTERPRETAÇÃO PERFORMANCE

Figura 1: Esquema das três categorias fundamentais da prática interpretativa.

2.1 Schenker e o conceito de reprodução musical

O termo “reprodução musical” (Reproduktion, reproduction e Wiedergabe,

rendition) é atinente à apresentação ou exposição musical (Vortrag) de uma obra com

base em sua partitura, momento em que o músico-intérprete transforma ou “converte”

os sinais gráficos do texto por mimese (ou ação mimética) em som musical.

No século XIX, a produção (compositiva) e a reprodução (interpretativa)

passaram a constituir dois eventos espacial e temporalmente distintos. Uma vez

afastados seus principais atores, a prática musical adquiriu uma dimensão histórica que

antes não existia. Paralelamente, as novas técnicas de composição, o surgimento do

virtuose, o advento do mercado editorial e finalmente também o da gravação

fonográfica tornaram a prática reprodutiva da música uma tarefa muito mais complexa,

levando uma série de compositores e teóricos a discutir como o seu repertório deveria

ser reproduzido corretamente. É nesse contexto que Schenker emprega o termo

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“reprodução” (HS: 3, 4), e tudo indica que a variante alemã do termo (Wiedergabe) por

ora tenha sido traduzida também por rendition (HS: 3, 4, 77). Devido à situação da

época que Schenker formula a sua crítica ao papel que a prática interpretativa estava

ocupando no meio musical de seu tempo, “em flagrante contraste com as verdadeiras

origens”. Ao reivindicar uma “reprodução verdadeira”, Schenker se opunha a tendências

exibicionistas da sua época que estavam exagerando em modo e medida de suas

performances (HS: 4, 81-82).4 Nesse sentido, Schenker também expressa certa

preocupação com as correntes positivista e pragmática de seu tempo, ocasião em que

formula sua crítica não apenas a Czerny como também a “Strauss, Reger, Mahler etc.”

(HS: 42, 73).

É logo na abertura do primeiro capítulo de a Arte da Performance, que

Schenker – conhecido por suas posições radicais – expõe uma questão controvertida que

afasta a noção tradicional, calcada na prática especificamente interpretativa, das

concepções contemporâneas, calcadas na dimensão performativa da prática musical

como evento artístico e social. Uma vez colocada no contexto, reparemos então na

inconsistência da versão inglesa quando, na verdade, dever-se-ia ler “reprodução” no

lugar de “performance”:

Basicamente, a composição não precisa da performance para existir. A leitura silenciosa de

uma partitura já é suficiente para provar a sua existência; basta o som surgir de forma

apenas imaginada na mente. A realização mecânica de uma obra de arte musical pode,

desse modo, ser considerada supérflua (HS: 3).5

Particularmente interessante é que Arnold Schönberg parece dialogar

literalmente com o seu conterrâneo (e desafeto) Heinrich Schenker, ao questionar: “Is

performance necessary? (not the author, but the audience only needs it)”

(SCHÖNBERG apud KOLISCH, 1983: 9). Também nesse caso certamente teria sido

mais apropriado empregar o termo “reprodução” (reproduction, Wiedergabe ou

rendition) no lugar de performance. Noutra referência, Schönberg nos fornece a

resposta para a sua indagação: “A interpretação é necessária para dar conta da lacuna

entre a idéia do autor e o ouvido contemporâneo” (SCHÖNBERG, 1984: 328).6 Nota-se

aqui um dos raros momentos em que Schönberg emprega de maneira inequívoca o

termo “interpretação”, o qual, por diversos motivos, evita em seus ensaios.

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Sendo assim, a “obra de arte” – isto é, a partitura de uma determinada

composição musical – constitui para Schenker uma espécie de entidade ontológica

inviolável que, sagrada, “nunca deve ser sacrificada em favor da sala, do público, ou dos

dedos” (HS: 3).7 É nesse contexto que Schenker formula também as suas críticas ao

virtuose, a quem considera, no fundo de suas intenções, um artista “degenerado” (HS:

83-84) – um vocábulo na época de Schenker muito empregado em sentido difamatório,

como em campanhas de propaganda política da ala ultranacionalista.8 Especificamente

nesse ponto, Schenker não estava em boa companhia. Schenker também não acalenta

uma visão muito encorajadora para os praticantes vindouros desta arte (destaque para a

tradução certeira do termo “reprodução”): “Para cada obra de arte [musical] existe

apenas uma única reprodução verdadeira – própria e peculiar” (HS: 77).9 Destarte,

coloca-se para o músico-intérprete a priori uma questão intrigante que não é tão fácil de

se responder quanto possa parecer à primeira vista: o quê exatamente “reproduzir”,

tendo como base um determinado texto musical, e o porquê da sua reprodução.

2.2 Schenker e a interpretação musical

É atinente a interpretação (Interpretation, interpretation). Ao decodificar os

sinais gráficos do texto, o intérprete transforma ideias musicais de maneira mais fiel em

som. “Interpretar” significa, portanto, trazer à luz não apenas o que está escrito, como

também o que está nas entrelinhas. Sua tarefa está em desvelar sentido e conteúdo da

obra a ser reproduzida. Por conseguinte, “interpretar” está diretamente ligado à tarefa de

compreensão, processo em que o músico-intérprete experimenta tanto uma imersão

contemplativa no texto da obra quanto um processo cognitivo que transforma todos

esses elementos em som musical.

Para a tradição vienense, toda interpretação envolve inexoravelmente uma

análise criteriosa de todos os elementos da notação musical, constituindo o texto uma

espécie de imagem da obra. Schenker particularmente chama atenção para o “modo de

notação musical” (o título do segundo capítulo, Mode of notation and performance ou,

melhor, Modo de notação e sua interpretação), recomendando ao intérprete sempre

quando possível recorrer ao manuscrito original do compositor, pois os traçados da sua

ortografia guardam detalhes que passariam despercebidos numa edição impressa

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mecanicamente (HS: 86). Reparemos, na citação a seguir, também na tradução certeira

do termo “interpretação”:

O erro fatal na interpretação de uma obra musical está na visão geral que se tem do sentido

atribuido ao modo da notação de um compositor [...] o fato de que a nossa notação

dificilmente represente mais do que meramente neumas deve fazer com que o intérprete

procure o sentido por trás dos símbolos [...] o modo de notação do compositor não fornece

as indicações para a sua interpretação, representando, em sentido mais profundo, os efeitos

que este enseja obter [...] Uma interpretação literal impediria, portanto, que tal efeito possa

ter lugar (HS: 5).10

Também o termo Rahmenanschlag – literalmente traduzido por framed

touch – pertence à categoria da interpretação. Diferentemente de BARROS e GERLING

(2007: 145-147),11 entretanto, que o traduziram por “emolduração”, proponho empregar

o binômio “toque diferenciado”, pois tudo indica que se trate aqui de um artifício para o

músico-intérprete equacionar seus problemas técnicos e sublinhar as peculiaridades

estruturais da composição a ser reproduzida. Definido de forma elementar, o “toque

diferenciado” está no realçamento das principais notas da linha melódica, em detrimento

das notas de menor importância (como as repetidas ou de curta duração, as de

embelezamento ou de ornamento), atreladas a outro conceito schenkeriano, a

“diminuição” (diminution). Em suma, o “toque diferenciado” tem por objetivo

proporcionar coerência e unidade à reprodução, razão porque também está associado à

faculdade de “síntese” (HS: xxvi, 20, 45, 87, 90).

2.3 Schenker e a dimensão performativa da prática musical

Os elementos performativos da prática musical são atinentes à representação

no palco, ao hic et nunc da prática musical, à gestualidade e à destreza técnica do

intérprete com relação ao instrumento. Nesse sentido, Schenker costuma empregar o

termo “dissimulação” (dissembling) (HS: 77). A dimensão performativa, portanto,

abrange, em Schenker, as técnicas de como executar, tocar ou “dizer” algo

gestualmente, tarefa em que recorre reiteradamente à retórica (HS: 46, 47, 70) e a

alegorias, como a da prática musical com um orador e seu discurso (HS: 87) e a do

intérprete com a linguagem tanto verbal quanto musical (HS: 46).

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Embora o termo performance seja bastante antigo – o Houaiss (Objetiva,

2001) data o primeiro registro do termo no século XVI! – a sua denotação de evento

artístico só se disseminou em grande escala apenas na segunda metade do século XX.

Na verdade, é mister considerar que a questão performativa da prática musical não

existia na época de Schenker da forma como ela se coloca hoje em dia, estando em

Schenker limitada a tópicos de técnica e de gestualidade da execução ao vivo de uma

obra. Seu objetivo é oferecer não apenas suporte técnico e sim tratar de demandas tanto

gerais quanto específicas de uma peça que se enseja reproduzir. Com efeito, o fim do

elemento performativo não está em si mesmo e sim nos diversos meios e artifícios

corporais e gestuais que permitem ao intérprete sublinhar certos detalhes estruturais da

obra com mais eficiência em termos técnicos e com maior fidelidade e em termos de

expressão, dinâmica, estilo e forma (HS: 17).

Também a respiração (HS: 6, 68, 82), os movimentos biomecânicos de

mãos e braços (HS: 17, 81), o dedilhado (HS: 14, 34, 77), a gestualidade (vide o

regente) (HS: 5, 8-9, 25), as técnicas de pedal para o pianista (HS: 10-13) e de staccato

e de legato para todos os instrumentistas (HS: 21, 25) fazem parte da grande categoria

do elemento performativo da música. Outrossim, também a compostura física e mental

ou “espiritual” do músico recebe atenção e de modo algum deve ser subestimada (HS:

34, 41). Todos esses elementos – a rigor, todos extramusicais – representam os meios

para que a “dissimulação” de “efeitos” possa ter efetivamente lugar. A dimensão

performativa, na verdade, está, em Schenker, nos artifícios, através dos quais o modo de

notação é realizado. Schenker afirma: “É nisto que reside o verdadeiro segredo da arte

da performance: encontrar os modos peculiares de dissimulação por meio dos quais –

através do efeito - o modo de notação é realizado” (HS: 6).12 Destaque também aqui

para a tradução certeira do termo performance.

Por tudo isso, “dissimular” não significa “encobrir”, como entendem

BARROS e GERLING (: 146-147),13 e sim, por extensão de sentido, “representar” ou

“atuar” junto ao instrumento. Ao “dizer” algo musicalmente de uma determinada (e não

de outra) forma, “dissimular” remete a técnicas de representação musical,

assemelhando-se o intérprete, mesmo que apenas gestualmente, a um mímico ou “ator”.

O objetivo está em tornar os diversos eventos intramusicais mais claros (ou “visíveis”).

Ao integrar também diversos recursos extramusicais em sua reprodução, o intérprete os

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emprega para sublinhar certos elementos intramusicais para o ouvinte-espectador. Não

existindo um meio de anotá-los de maneira inequívoca, a realização do elemento

performativo depende fundamentalmente da experiência, do conhecimento, da

competência e da destreza técnica do intérprete que, nesse caso, também atua em prol de

melhorar o seu (des)empenho.

3. Considerações finais

Os argumentos e exemplos apresentados confirmam a tese de que o

emprego do termo performance necessita de mais ponderação quando for aplicado a

termos distintos da prática musical no contexto da tradição musical vienense.

Representando a dimensão performativa na tradição vienense um aspecto bastante

sublimado, predomina, em sua prática, o elemento interpretativo. Todavia, o fato de que

o elemento performativo esteja subordinado a critérios de interpretação não quer dizer

que também não tenha importância ou que seja um elemento menos produtivo para o

intérprete, o pesquisador ou o crítico musical. Em suma, vista como um todo, a prática

interpretativa designa um processo artístico multiforme e polissêmico, cuja abrangência

conceitual aumenta sensivelmente quando se lhe atribuem a reprodução e a performance

como elementos ativos.

Embora a grande maioria dos exemplos musicais escalonados por Schenker

trate da “arte de interpretar”, estranha que justamente o elemento interpretativo tenha

quase desaparecido do vocabulário da versão inglesa. Por essa razão, uma nota que

justificasse a opção ou que alertasse o leitor desprevenido do problema certamente teria

sido apropriado.

4. Referências bibliográficas

BARROS, Guilherme S. de; GERLING, Cristina C. Análise schenkeriana e

performance. In: Opus. Goiânia, v.13, n.2, p.141-160, dezembro de 2007. Disponível

em: <www.anppom.com.br/opus/opus13/209/09-Barros-Gerling.pdf>, acesso abr.

2011.

ESSER, Heribert. Editor’s note. In: SCHENKER, Heinrich. The Art of Performance.

Tradução de Irene Schreier Scott. Editado por Heribert Esser. Oxford: Oxford

University Press, 2000, p.xi-xxi.

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KOLISCH, Rudolf. Rudolf Kolisch. Zur Theorie der Aufführung. Ein Gespräch mit

Berthold Türcke. In: METZGER, H.-K.; RIEHM, R. (eds.). Musik-Konzepte, n.º 29,

30. Munique: Edition Text + Kritik, 1983.

KUEHN, Frank M. C. Interpretação – reprodução musical – teoria da performance:

reunindo-se os elementos para uma revisão conceitual do modelo recorrente das

práticas interpretativas. No prelo (junho 2011).

KUEHN, Frank M. C. Reprodução, interpretação ou performance? Acerca da noção de

prática musical na tradição clássico-romântica vienense. In: PRIMEIRO SIMPÓSIO

BRASILEIRO DE PÓS-GRADUANDOS EM MÚSICA (SIMPOM), Rio de Janeiro,

2010. Anais. Pesquisa em música: novas conquistas e novos rumos. Rio de Janeiro:

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), p.747-757. O paper

também está disponível em: <www.unirio.br/simpom/textos/SIMPOM-Anais-2010-

FrankKuehn.pdf>, acesso abril 2011.

SCHENKER, Heinrich. The Art of Performance. Tradução de Irene Schreier Scott.

Editado por Heribert Esser. Oxford: Oxford University Press, 2000.

SCHÖNBERG, Arnold. Style and Idea. Berkeley: University of California Press, 1984.

SCHREIER SCOTT, Irene. Translator’s introduction. In: SCHENKER, Heinrich. The

Art of Performance. Tradução de Irene Schreier Scott. Editado por Heribert Esser.

Oxford: Oxford University Press, 2000, p.vii-ix.

5. Notas

1 Mais informações sobre o histórico do material e os procedimentos editoriais nas notas

introdutórias da tradutora (SCHREIER SCOTT, 2000) e do editor (ESSER, 2000).

Observações: 1) nas referências bibliográficas da The Art of Performance (SCHENKER, 2000),

também designada apenas de “Arte da Performance”, será usada a sigla “HS”; 2) salvo

indicação em contrário, a tradução das citações para o português, assim como as interpolações

no corpo de texto são de minha autoria.

2 Sendo assim, realmente tudo na vida pode ser encarado sob certa ótica da (ou de uma)

performance.

3 Diferenciemos entre o termo “práticas interpretativas”, no plural, e “prática interpretativa”, no

singular. O primeiro designa a disciplina acadêmica de mesmo nome, enquanto o segundo se

refere à prática musical propriamente.

4 “I claim performances have always taken a shape that has nothing to do with a true

reproduction. Because what ought to be known in order to perform a sonata by Beethoven is not

known, the musical world found it easy to assign a role to reproduction in music that is in

appalling contrast to its real origins” (HS: 4).

5 “Basically, a composition does not require a performance in order to exist. Just an imagined

sound appears real in the mind, the reading of a score is sufficient to prove the existence of the

composition. The mechanical realization of the work of art can thus be considered superfluous”

(HS: 3).

6 “Interpretation is necessary, to bridge the gap between the author’s idea and the contemporary

ear” (SCHÖNBERG, 1984: 328).

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7 “[…] the instrument that is being played; properties of the hall, the room, the audience; the

mood of the performer [leia-se intérprete], technique etc. […] In other words: those properties

must not given priority. Yet how casually will many an artist sacrifice the work of art – which

never should be sacrified! – to the hall, the audience, to his fingers!” (HS: 3).

8 Escreveu Schenker: “The profession of virtuoso, based on a lie, prevailed and attained the

recognition of artistic justification” (HS: 83).

9 “Each work of art has only one true rendition [leia-se reprodução] – its own, particular one”

(HS: 77).

10 “The most fateful error in the performance [leia-se interpretação] of a musical work is the

general view on the meaning of a composer’s mode of notation [...] the mere fact that our

notation hardly represents more than neumes should lead the performer [leia-se intérprete] to

search for the meaning behind the symbols [...] the autor’s mode of notation does not indicate

his directions for the performance [leia-se interpretação] but, in a far more profound sense,

represents the effect he wishes to attain [...] A literal interpretation robs one of the very means

leading to that effect” (HS: 5).

11 É correto que o vocábulo germânico Rahmen signifique “moldura”. Anschlag, porém, nesse

caso não se refere a “afixar a moldura”, como entendem BARROS e GERLING (: 146), e sim a

“toque” (touch), associado ao modo com que o intérprete se expressa gestual, mímica e

biomecanicamente ao instrumento.

12 “Herein lies the true secret of the art of performance: to find those peculiar ways of

dissembling through which – via the detour of the effect – the mode of notation is realized”

(HS: 6). Destaque para a tradução certeira do termo performance.

13 Schenker sublinha que o músico-intérprete deve ser sempre sincero consigo mesmo e estar em

busca da verdade, contexto em que condena a tendência ao virtuosismo de seu tempo (HS: 34 e

84).