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    ,j. . - r ~O,\~, Po t>, C'(~,/"-""\-rJ~ ill

    propria c s6 e atestada pelo acontecimentogs-e assume a tor rnade Mernoravel, Demos a isso 0 nome de '~__nia da Hist6ria";podemos agora fazer justica a Hist6ria e a Clio, e exprirnir-noscom maier exatidao: quando essa disposicao mental se torna pre-ponderante, &i.se, nas suas rela~Oes com as outras formas, urnfenorneno cornparavel ao que ocorre nos pr6prios Memordveis,urnu especie de esealonamento em que a Saga, a Legends ou 0Mito 56 se apresentam como formas relativas ao conteiido queessa disposicao mental tern por costume chamar Hist6ria, concre-tizada, conhecida e reconhecida como fidedigna e atestada. Nadisposicao mental e no uso da forma de Memordvel, a forma rela-tiva, ou Gesta, torna-se, pais, urna "fase preliminar", e a palavraGesta perde sua forca original, servindo agora para designar 0que nao e digno de credito, 0 que nao e atestado.Talvez convenha assinalar ainda outro ponto, embora saia-mos do dominic das Formas Simples: quando as Formas artisticasse empenham - por qualquer motivo - em representar urnelernento defic~ao como se fosse uma realidade efetiva e, porconseguinte, de maneira concreta e digna de credito, etas recor-rem amhide aos processos caracteristicos dos Memordveis. I avimos, com referenda a s roupas do Principe Guilherme de Oran-

    ge, tcdos os pormenores efetivos ligados entre si e com 0 ele-mento de ordem superior, numa rela~ao plena de sentido. Vimos(e veremos sempre que 0 acontecimento assumir a forma de Me-moravel ) a alegria anterior ao incidente produzir a oposiciiograca-desgraca, a seriedade anterior ao incidente produzir 0 pres-sentirnento de inforninio, 0 incidente gerar um novo contrastese ocorre numa bela manha:de primavera, ou uma certa harmoniase, pelo contrdrio, acontece numa noite tempestuosa de inverno;e veremos, de cada vez, 0 incidente converter-so no (e pelo)conjunto desses elementos, num fato concreto em que acredita-mos e que se nos grava na mem6ria. Suponhamos agora que,no Memordvel, nao se trate de um aeontecimento; que esteja forade questio um incidente destinado a tornar-se concreto; que setrate, antes, de urn incidente Imaglndrio; neste caso, para tamar 0inddente digno de credito, ele e representado de maneira identicaa que the permite resultar do memoravel; e cercado de indica~oespormenorkadas, analogas e adaptadas entre si , assim como narela~io com 0 pr6prio acontecimento - rela~io plena de sentido.Is50 pede i r tio longe que deixard de sentir-se a dlferenca entrea Forma relativa do Memordvel e a Forma artistica da Novela,algo que acontece freqiientemente na literatura moderna.180

    J 0 LL~S .f.vVDI\S-. \-O~ J 'S ~ . V ' \ P L u 5 . s - ; : : -\:~u~~~uLI'\ix) \~~b.

    OCONTO

    Ia emprego da paIavra Canto para designar uma forma lite-rdria estd - por multo estranho que pareca - bem lirnitado.As palavras Sage (Saga), Ratsel (Adivinha) e Sprichwort (Dita-do) sao encontradas em numerosos dialetos germanicos, ao passoqueMiirchen (Conto) s6 existe em alto-alemao; ate os holandesesque, de modo geral, dio a s formas nomes vizinhos dos alemdes,utilizam nesse case uma outra palavra: sprookje. Os franeesesempregam uma variante particular de narrativa a que chamamconte e mesmo, com maior precisio, conte de fees (conto defadas); e os ingleses tem fairy-tale.OConto s6 adotou verdadeiramente 0 sentido de formaliteraria determinada no momento em que os irrnaos Grimmderam a umacoletsnea de narrativas 0 titulo de Kind e r- and Haus -miircben [Contos para Criancas e Famllias]. Assim fazendo, con-tentaram-se em aplicar as narrativas por eles compiladas umapalavra que ja vinha sendo usada hi muito tempo. Desde 0seculo XVIII que se conheciam, efetivamente, os Feenmiirchen(Contos de Fadas), os Zaube r- u nd Ge is te rm i ir ch en (Contos deMagia e Fantasmagoria), M iirc he n u nJ E rza hlu ng en fU r K in de rund Nicht .k inder (Contos e Narrat ivas para Pequenos e Gran-

    des), Sagen , Ma rch en un J Anekdot en (Hist6rias, Contos e Ane-dotas) . Musaus publica os seus V olk sm a rc he n d er D e ut sc he n[Contos Populares Alemies], Wieland, Goethe, Tieck e Novalisempregama palavra, cada urn deles com seu matiz particular, masde urn modo que concorda, entretanto, no tocante ao essencial.Contudo, foi a coletinea dos irmaos Grimm que reuniu toda essadiversidade num conceito unificado e passou a sert como tal, abase de todas as coletaneas ulteriores do secuIo XIX; finalmente,sublinhe-se ser sempre a maneira dos irmios Grimm que as

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    verdadeiras pesquisas sobre 0 Conto cor('.am sendo realizadas,apesar da diversidade de concepcoes cientfficas.

    Ainda que eu corra 0 risco, evidentemente, de dar uma defi-ni~ao circular, poderia dizer que 0 Conto e uma narrativa damesrna especie das que os irmaos Grimm reuniram em seus Kin-der- un d Hausmdrcben. Desde sua publicacao, os Contos deGrimm tornaram-se 0 criterio de Ienomenos semelhantes, tantona Alemanha como em outros palses, E costume atribuir-se auma producao literdria a qualidade de Conto sempre que elaconcorde mais ou menos (para usar deliberadamente uma expres-sao vaga) com 0 que se pode encontrar nos contos de Grimm.Antes de definir pelo nosso metodo a not;io de Con to, comeca-remos, pois, por urn comentdricde ordem geral sobre 0 contode Grimm.o importante na palavra Miirchel: nio e 0 seu sentido eti-mologico, que se encontra no alto-alemiio mari (Ienda, fabula)ou no gotico mers (conhecido, celebre); tampouco e 0 fato deMiirchen ser urn diminutivo depreciative de Mare [narrativa,tradicao ) e designer, pois, uma hist6ria curta, ate urn simplesboato que se propaga sem que se saiba se e exato ou verldico,o que nos interessa e uma forma que tern nomes diferentes,segundo as linguas, mas em que todos concordam em atribuir acoletanea de Grimm a sua expressao essencial. .

    Os Kinder- lind Hausmdrcben foram publicados em 1812.Possuern vlnculos sobremodo estreitos com uma outra coletanea,publicada alguns anos antes por Arnim e Brentano: D es K na be nWlllzderhorn [A Trompa Maravilhosa], Essa coletanea, da qualos Contos de Grimm nao foram uma continuacac, respeitou ascorrentes dominantes do seculo passado, aquelas correntes vitaisdo Romantismo que foram 0 testemunho da "fome e sede deforcas vivas e de beleza interior da reaIidade popular nacional"que devorava os criadores ardsticos e pensadores da epoca e que,embora tivessem ultrapassado largamente as fronteiras alemis,foram encarnadas e personificadas na Alemanha por Johann Gott-fried Herder. A exemplo de Arnim e Brentano, recolhendo 0lirlsrno e a musica que viviam no povo, Jacob e Wilhelm Grimmernpenharam-se em redigir as narrativas populates nas mUltiplasformas e~ que elas se apresentavam. . .Houve, contudo, uma oposi~o consideravel entre Achim,. ...von Arnim e Jacob Grimm, pois esses di6scuros nio tinham asmesmas concepcoes fundamentais sobre as coisas que orgaruza:.

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    vam ner "bre a poesia em geral A oposi~lio revestiu-se deta l importan~ que devemos considera-Ia mais de perto se preten-dermos exammar essa Forma e lancar as bases de uma definicaodo Conto. Foi a partir de tal cposi~ao.essencial para 0 Roman-tismo, que definimos as relacoes entre lingua e poesia; seme-lhanre definiljao e 0 lugar a que nos conduz, neeessariamentetoda e qualquer oposiljio do mesmo genero da que existia entreGrimm e Arnim. 0 Conto e , precisamente, a Forma que requerurn estudo previo, que introduz um debate de prindpios bdslcossobre a lingua e a poesia, e que propicia, simultaneamente, a con-clusaoe a introdu~o a todas as Formas Simples.

    IINa correspondencia entre Jacob Grimm e Arnim (Achimvon A rnil1 i unJ Jacob und W ilh elm G rim m , Introduciio de Rei-

    nhold Steig). publicada em 1811, patenteiam-se as peripecias deurn duelo de opini6es que devemos apresentar sucintamente eque gravita em tome de dois termos-chaves: p oe si a d a n atu re za~.poesia artistica. Arnim nao via oposicdo entre esses dois con-ceitos; a "distinljao favorita" de Jaccb Grimm inexistia para ele.Escreve Arnim {pag. 110}: "Dada essa minha convlccao, com-preenderds que me recuso a aceitar, de urn modo absolute egenerico, tanto na poesia como na Historia ou na vida, todas asoposifoes que a filosofia atual se compraz em criar e, por conse-guinte, nao vejo oposiljao alguma entre a poesia popular e apoesia erudita .; ." Jacob Grimm respondeu para definir a suaposiljaoem termos precisos: "A poesia e aquilo que passa emestado de pureza e sem alteracoes do coraljao para as palavras;por conseguinte, e algo que brota incessantemente de um impulsonatural e e captado por uma faculdade inata; a poesia popular saido cora~ao do Todo; 0 que entendo por poesia artfstica sai daalma individual. Por isso e que a poesia moderna assinala osseus autores, ao passo que a antiga nao sabe nome algum; elanio e produzida por um, dois ou tres. e a soma do Todo; ja disseque nlio se i explicar como essas coisas foram arranjadas e feitasmas, para mim, nlio e mais misterioso do que as aguas que con-f1uemnum rio para correr juntas. Nao seria capaz de conceber

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    rn existencia de Homero nem que os Nibeltmgeltlied tivessem urnautor" (pag. 116).Assinale-se, a proposito, que Jacob Grimm inclul na poesianatural Oll popular formas a que chamamos Formas artlsticas.Nao e esse, porem, 0 ponto que nos interessa aqui; 0 importante,para nos, e a posicao assumida pelos dois homens em resultadodessa cposicao. .Acrescente-se que, em virtude dela, gerou-se toda uma serle

    de contrastes conceptuais no decorrer desse duelo epistolar.Para Jacob Grimm, a poesia ardstica e uma "elaboracao",a poesia natural "uma cria~io espontanea" (pag. 118), sendo a"poesia nova radicalmente distinta da poesia antiga"; nao sedeve mudar uma vlrgula sequer na "poesia antiga", quando a des-cobrimos; por isso e que toda e qualquer modificaceo, seja qualfor 0 seu intuito, e ruim; por isso e que as traducoes e mesmoas transposicoes em lingua moderna carecem totalmente de valor!Nao se trata de urn i1610go'que adira respeitosamente aos seustextos e a letra dos seus textos; trata-se, sim, de urn pensadorconvencido de que deve recusar toda e qualquer mescla de espe-des de tao diferente natureza.Por outro lado, temos Arnim, que se sente urn tanto visadopessoalmente pela argumentacao de Grimm, pois sabe muito bernque mudou bastantes vlrgulas em D es K nab en W underb orn eefetuou nao poucos aditamentos sem lugar na "poesia antiga".Mas tambern ele esta seguro do que fez: nao existe poesia popu-lar no sentido em que Grimm a entende; s6 existern poetas:"quanto menos urn povo river vivido acontecimentos, mais homo-geneo sera em suas caracterisrlcas e em suas Ideias; todo poetareconhecido como tal e um poeta popular . .. It (pag. 134) _ Osnomes dos autores caem no esquecimento e perdem-se. A tareado poeta consiste, evidentemente, em escrever partindo do povoou em levar ao pavo 0 que escreve: (pag. 135) "Eu conside-raria uma ben~io do Senhor ter a honra de dar ao mundo, gra~asao meu cerebro, urn poema de que 0 povo se apoderasse; masa ele compete decidir e ja me contentarei com 0 que fi z na vidase apenas alguns homens encontrarem nos meus trabalhos algoque haviam pressentido ou procurado, sem poder exprimi-lo. "Grimm e contrdrio a essa opiniio e replica' logo: "Se acre-ditas, como eu, que a religiio e parte de urna revela~o divina eque a lngua tern uma origem igualmente admirdvel, nao sendosimples produto de uma inven~ao humana, entio isso devera

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    bastar parate creias e sintas que a ~ia antiga e suas formas,que a fonte da rima e da ali tera~io, fazem tambem parte de umtodo - ur n todo que nao pode ser obra da oficina ou das medi-tae5 de poetas individuais" (pag. 139). . .Lembro que Seiler falava, em seu Spricbioor terkunde, deuma "visao romantica" que atribuia ao poema popular, ao contopopular etc., uma origem nas profundezas insonddvcis e misterio-sas da alma popular. Essa correspondencia rnostra que se pode-

    ria apliear igualmente bern 0 adjetivo "romjintico" a ideia q~eapresenta 0 poeta, pelo ~ntclrio. co'~o' a ~r~a criad?ra. pOlstal opiniio foi consubstanciada em Arrum, cUJOromannsmo naopadecediscussio. "Poesia artfstica", "poesia natural" e todos osconceitos que dar decorrem sio uma traduciio, em termos roman-ticos, da oposicaoque se manifesta aqui e assinala uma realidademuito mais profunda.

    A polemica cessou durante algum tempo. Em 1811, Arnim.vai a Kassel com sua jovem esposa, Bettina, e visita os irmiiosGrimm. Mostram-lhe uma nova coletdnea e ele fica entusias-mado. Comunica a novidade a Brentano, insiste para que apublica.,ao se fa.,a 0 mais depressa posslvel e encarrega-se, ~mseguida,de encaminhar as negoclecoes com 0 editor em Berlim,Depoisda morte de Arnim. Wilhelm Grimm de~ica a ~~tti?a osK in de r- tm d H au sm iirc he n e escreve cstas Iinhas: FOl e1e[Arnim] quem nos instigou. .. a publica-los. .. De todas asnossaseoletaneas, estes contos sao os que mais Ihe agradaram ... "

    Mas a oposi~io mantinha-se intata. Em 1812, reacende-seo debate, a partir do conto, entre poesia antig~ e poesia moderna.Jacob Grimm esta feliz por saber que Arnim prefere os seusKinder - und Hausm i ir chen as transposi~s de Brentano. "Saberque a transposi .,ao de Clemens [von Brentano] nio te satis!azden-me grande prazer .e apenas lamento 0 esforco e. 0 esplritoque ele lhes dedicou; por mais que embeleze e ornamente tudoisso as narrativas simples que reunimos fielmente decerto enver-gonharao as dele" (pig. 219). E deixa-se empolgar: "0 meurespeito pela Cpoca.aumenta dia a dia;. creio _que nao se podeInventd-lae acabarel por tornar-me parcial e nao gostar de. outracoisa. Eis essa nova e pura Inocencia, que ali esla e,,! loda a suaesponlaneiJade. V6s, os poetas modernos, p.or. I l!utto que. vosesforceis nio inventais nenhuma cor nova e limitai-vos a mtstu-, bel li~l "ri-las. que d ire i eul, nem sa e1S s:quer ap. c~-as sem mlstura: . .Arnim nao apreciou grande coisa as mdiretas e retorquiu a18)

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    .4Grimm censurando-o por desconbecer os(P'\tas modernos. Naoquer dizer que Grimm nao os tenha lido mas que nao os enten-de. .E toma Brentan? sob sua protecao, embora reconhe!;3.1heperfeitarnente os defeitos: os contos de Brentano nao sao hist6-rias "vi vidas -?a esfera da infancia e que possarn, portanto, serpass~das. as cnancas sem qualquer preparacao previa; e urn livroque mstrga em pessoas de mais idade a faculdade de inven~aoemostra a todas as maes, se necessario (excetuando-se talvez asmu1~eres muito cult~s), como fazer de uma circuns;incia, ~joi atr~t1vo elas descobriram, 0 divertimento duradouro de uma nar-ranva bastante extensa" (pag. 223). ~_nesse incentivo a inoen- .faa. ~ue Arnim ve 0 s~gnificadodo. cc>nto:-se nio nos instiga a }: conta-Io de novo, se nao nos mostra como voltd-lo a contar em)term_:-satuais,. 0 ~o~to ~_~igoperde todo seu ~~IQr._ .poder de\\ a~ra~ao. Arn.1m msiste vigorosamente neste-ponto: "0 canto'! [ixado acabaria por ser a morte de todo 0 uniuerso do conto": (pag. 223): .0 valor das coisas antigas consistiria, essencial-m_ente, em mcitar e fazer prcgredir as coisas novas. "A poesianao e ~eI~a nem nova, ela nao tem historia aIguma; podemosapenas indicae certas series de rela~oes a partir de suas caracte-rfsti~as .anteriores" (pag. 225). Portanto, 0 poeta moderno dacontlnulda~e, fora d? t~mpo, a obra iniciada pelo poeta antigo.Vemos aqui, pela pnmeira vez, 0 ponto de vista de Arnim defi-nir-se de modo perfeitamente claro, ponto de vista a partir doqual ele ja reunira os rnateriais de D es K nab en W underhorn. Ascoisas .novas existern, sao 0 essencial, e necessario empregar todosos meto.s_para anim.a.las e ?perfei~oa-las - sobretudo por meio. da tra:Ii~ao~ das coisas anngas, do fundo popular. Nao e pora~o~ as corsas antigas que as reunimos, mas apenas com essafinalidade exdusiva.

    E facH perceber que Grimm se sentisse por sua vez visado.Resumindo 0 pensamento de Arnim em sua propria linguagem,escreveu: "Portanto, nao haveria historia da poesia e a distin~oen!re poesia da natureza e poesia de arte seria urn simples gra-cejo. 0que tu dizes desfere um ataque dire to ao que me emais caro, pois todo 0 meu trabalho consiste, sinto-o bern, ema~rende-\' e em mostrar que uma grande poesia epics viveu ereinou na Terra, que foi gradualmente perdida e esquecida peloshomens ou ate, de modo algo diferente, que continuam a alimen-ta~-se d~la" (psg. 234). Segue-se 0 credo poetleo de Grimm,cujos sets pardgrsfos seguintes principiam por um "eu creio. .. "prenhe de austeridade e cuja primeria frase diz: "Assim como..: ~

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    IIIi

    -I III

    foi per~ o Paralso tambem se echaram os jardins da antigapoesia, ainda que cada homem continue Ievando em seu coracaourn pequeno paraisc ... tt (psg. 23).Este debate. repito, e identico as dlstincdes que fazemosentre conceitos; a questao que ocupava, ha rnais de lim seculo,os dois romsntlcos que sao Arnim e Jacob Grimm, continuousendo da mais alta Importancia, pois e a questao da lingtl!zgeme da poesia. Ao definir as formas, procurei descobrir urna nova

    formulacio para essas duas oposi~es e definir, por intermedioda morfologia, n~es que se chamavam entao p oe si a n at ur al epoesia ar li f ido l mas hoje se apresentam como F or ma t S im ple s eFo rma s Ar tl st ic a s, 0 que acercaria 0 problema de uma solu~ao.

    Essa correspondencia chega entio a uma observacao deverasestranha que nos reconduz ao conto. Arnim responde a Grimm,defende 0 seu poeta e ate, de certa rnaneira, inverte a situacao:ao recolherem os contos, os irmios Grimm fizeram, nem maisnem menos, obra de poetas: "a Unica coisa que alegra 0 eruditoe a ultima de quantas ele pode esperar da Historia: 0 verdadeiroouvinte do poeta, 0 seu contemporaneo sem erudicao, nada maisentende a Dio ser essa atualiza~io de urn princlpio geral. Naodesejaria magoar-te, mas nao posso evitar fazer-te esta observa-~o: jamais acreditarei, mesmo que tu pr6prio 0 creias, que osKindermdrcben [Contos Infantis] foram transcritos tal qual osrecebestes; a tendencia para constituir e continuar uma obra emais forte no homem que todos os seus projetos e simplesmenteimpassive! de erradicar. Deus cria e 0 homem, criado a suairnagem, trabalha para continuar-lhe a obra. 0 fio jamais sequebra; e . neeessariamente, uma outra textura que transpa-rece .. ." (pig. 248).

    Desta vez, Arnim atingira 0 alvo em cheio, pois JacobGrimm era fil610godemasiado serlo e homem demasiado sinceropara nao perceber 0que havia de verdade nisso, mesmo que,em Ultimaanalise, essa verdade nao the fcrisse a verdadeira inten-~ao nem as convic~oes mais intimas. \ Eis sua resposta - e aminha Ultima cita~iiodessa Correspcndencla: "Eis-nos chegadosa fidelidade.v.Uma fidelidade matemdtica e absolutamente impos-sfvel e nao existe nem mesmo na hist6ria mais verdadelra emais rigorosa; mas isso carece de importdncia, pois sentimos que\,_ a Jidelidade e coisa verdadeira e nio ilusio; ela op5e-se, portanto,II in/idelidaJe. Nao podes escrever uma narrativa perfeitamentefiel e conforme, assim como nao podes quebrar um ovo sem que187

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    . .uma parte da clara adira a casca; e a conv'iencia inevitavel detodo 0 labor humano e e a [aeon que muda~_...nstanternente. Paramirn , a verdadeira fidelidade, nessa imagern, seria nao quebrar agema do ovo. Se duvidas da fidelidade dos nossos Contos naopedes duvidar dessa outra fidelidade, pois ela existe. 'Q~antoa outra e irnposslvel fidelidade, nos proprios e outros que no-losnarrararn outrora, com palavras em grande parte diferentes, nempor isso fomos menos fieis: nada de fundamental foi acrescen.tado ou mudado" (pag. 255). ,

    Sublinhemos e conservemos na memoria que Jacob Grimmpercebeu no Conto urn "fundo" que pode manter-se perfeita-mente identico a si mesmo, .a!_equando ___!!arrado por outraspalavras. Antes de apreender esse' "fUndo" como a Forma Sim-',pIes do Conto e de definir a disposicao mental nele subenten-dida, facamos uma panordmica para averiguar onde sera aindapossivel encontrar 0 "Conte de Grimm" no universo ocidental .

    IIIDediquei-me numa outra obra a expor, em sua totalidade

    a hist6ria do conto na literatura ocidental; como se trata aquida Forma, podemos contentar-nos com urn simples extrato. Seainda e muito cedo para pensar em escrever a hlstoria das outrasFormas Simples, 0 Conto oferece-nos, entretanto, dados suficien-t~s ~~ra que possamos observar uma parte, pelo rnenos, de suahistoria. Mas 0 motivo fundamental dessa historia esta no encon-tro do Conto com uma forma artfstlca. 0 que nos devolve,por outro caminho, a nossa oposi~o Linguagem-Poesia, FormaSimples-Forma Artfst ica.A partir do seculo XIV~ aparece na Europa uma forma de

    narrativa curta a que - s e da usualmente 0 nome de Novela e quee uma Forma artlstica. Segundo parece, teria sua origem naToscana e, de qualquer modo, todo 0 desenvolvimento c ia Novelafoi decidi.do pela maneira como se apresentou pela primeira vezem Bocaccio. Deu-se-lhe entio 0 nome de nouela toscana. : gescrita na lingua propria de cada pats 0 verndculo: e com exce--d I I ' "~a? e a guns ~xempo s de novelas escritas em latim, pode-se;:~ 'em heSltatao que 0 latim era l lngua exclusiva dos h um a- ... ~ .- - - - : 1

    Prn1~'POis, a novela passou a ser . produzida em duas varie-dades:-~~t.uletaneas ou isolada. As coletineas de novelas tem,em geral, urna forma herdada do Decameron, sua grande precur-sora. As narrativas estio todas ligadas entre si por urn quadroque assinala, entre outras coisas, onde, em que ocasiao e porquem essas novelas sio ccntadas. Nao seria necessario acrescen-tar que ta l forma de narrativa-moldura e anterior a novelatoscana.Coletineas e novelas isoladas propagaram-se por todos os

    palses do ocidente literdrio a partir da Toscana; sofreram certasmodifica~ e resultaram aqui e al i em outras formas artfsticas,embora mantivessem caracterfsticas nitidamente reconhedveis.S em e nt ra r em pormenores, eu diria que a novela toseana pro- :'~cura, de modo geral, contar urn fato ou urn incidente irnpressio-nante de maneira tal que se tenha a imp re ss ii o dum aconteci-mento efetivo e, mais exatamente, a impressio de que esse inci-dente e mais importante do que as personagens que 0 vivem.

    Na histdria da novela toscana, encontramos diferente~ reali-za~oesdesde os comecos do seculo XVI. Devemos sublinhar que,no conjunto da forma, esse tipo de realizaciio esta intimamenteligado ao primeiro exemplo de novela toscana que foi 0 Deca-meron, de Bocaccio. Em 1550, Giovanni Francesco Straparolapublica em Veneza urna coletanea, Piaceuoli Notti, que se man-tem rigorosamente fiel ao seu modelo no tocante a moldura. Aireencontramos as damas e os cavalheiros reunidos por circuns-randas particulares e que fazern literalmente passar 0tempo con-tando histdrias uns aos outros. Mas existe uma diferenca emrela~o a narrativa-moldura toscana, pois uma parte das narrati-vas enquadradas nio pode ser considerada novelesca no sentidoqueacabamos de definir; sio, antes, narrativas do tipo que conhe-cernosatraves dos contos de Grimm. narrativas que de maneiranenhuma nos dao a irnpressiio de urn acontecimento efetivo. De-paramO-nos,inclusive, com uma quantidade 'd e temas-que iremos ,~'reeneontrar depois nos K in de r- u nd Ha usm ar ch en ou em com pl- 'la~es mais recentes, como De r gestie/elte Kater [0 Gato deBetas], D ie d an kb ar en Tiere [Os Animais Agradecidos], DerMeisterdieb [0 Mestre-Ladrao] etc.o fensmeno permanece isolado e a novda prossegue em seucaminho. M as da-se uma repeti~o nos comecos do secuIo XVII.Em 1634-1636 vem a lume uma narrativa-moldura p6stuma, daautoria de Giambattista Basile, intitulada C unto de IiCunti; oi189

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    escrita ern clialeto napolitano e passou r.is a ser conhecidacomo Pentameron. 0 autor ainda seguiu \.Ie perto 0 modelo doDecameron, A unica diferenca e que 0 quadro nao nos da airnpressao de urn acontecimento efetivo, mas entra mais no generodo conro de Grimm e todas as narrativas enquadradas fazemigualmente parte desse genero. Tudo se passa como se Basile, .que parodia Bocacdo em sua narrativa-moldura e, ao mesmo tem-po, esforca-se por anotar 0 maior m ime ro p os sl ve l de expressdespopulares e descrever 0 maximo de costumes populares do seutempo, opusesse deliberadamente essa especie narrativa a novelatoscana, calda em desuso; semelhante impressao e tao nftida quealgumas ohras escritas no s ec u lo X IX a respeito do Conto naohesitam em afirmar que Cunto de li Cunt i foi a primeira cole-tanea de contos. Acrescente-se que tambem vamos encontrarem Basile algumas narrativas que conhecemos arraves dos Con-tos de Grimm, como: Ascbenbriidel [Cinderela], D i e s ie be n R a -be n [Os Sere Corvos], Domrbscben [A Bela Adormecida].

    Para os irmios Grimm, como e1es proprios nos dizem noterceiro volume de Kinder- lind Hausmdrcben, "as verdadeirascoletdneas de contos comecaram no final do seculo XVII comCharles Perrault". Sal ta-se, pois, por cima de La Fontaine, que'em sua Histoire de Psyche nos deu uma nova conigura~ao deurna narrativa da Antiguidade, comparavel aos Kinder-und Haas-miirchel:, para se chegar aos Centes de ma mere l' Oye, de Char--r-les Perrgult. Antes da ~publica~ao dessas narrativas em prosa,Perrau lt ji' escrevera, entre 1691 e 1694 , tres historias em verso:Griselidis [Gris(Hida], .P.eaud'Alle (Pele de Asnol e Les TroisSoubaits ridicules [Os Tres DesejosRiafU10s1~-No' tocante asua forma exter ior , essas tres narrativas asseme1havam-se aos cele-bres Comes de La Fontaine. Estes, porem, eram principalmenteum a transposicao versificada de nove1as da escola toscana, aopasso que ern P ea u d ' An e encontramos 0 genero dos Contos de

    . Grimm. Ern 1697, os Centes de ma mere l'Oye [Contos da MaePata] sao puhlicados com 0 titulo de H isto ires o u C om es a uTempsPasse avec des Moralites. Essa pequena coletdnea ja D ioe , na rea l idade, uma narratlva-moldura, mas continua ainda trans-

    . parecendo-o reflexo de uma moldura; Perrault apresenta os seuscontos comose tivessem sido contadospcr u m a velha'ama-aseu-fi~o..t g_.qual. os teria, por slui"vez; voltado"a~on~ar. : o e q u a I q i i e r ..mOdo, os Contes a u T em ps P asse eiltram'na ca tegor ia dos Kin-der- und Hausmarchen, de Grimm, e at reencontramos a hist6ria190

    de RotkiirJen_ [C~peuzinho Vermelho'I, Dornrbscben [A B elaAdormeddal e Fra il Ho l le [A Fada-MaJ.Pouco depois da publica~ao dos Contos de Perrault, narrati-

    vas do mesmo genera inundaram a Franca e 0 res to da Europa.Podemos dizer sem temor que 0 genero vai dominartoda a lite-ratura do comeco do seculo XVIII e substituir, par urn lado, agrande narrativa do s ec u lo XV II , 0 romance, e, por outro lado,tudo 0 que ainda restava c ia novela toscana . . A quantidade dessasnarrativas e incalculevel e, entre 1704 e 1708, a narrativa orien-tal ve io juntar-se - lhes com a primeira tradu~ao das Mil e UmaNoites por Galland, embora toda a literature setecentista estejasalpicada de narrativas desse tipo. Basta percorrer as ohras deWieland para fazer uma id ei a, soh esse prisma, da importj lncia ediversidade da influencia exercida pelo genero.

    Foi justamente Wieland quem nos forneceu uma imagemexata d a maneira como 0 s ec u lo XV I II concebia tal genero, emvirtude das numerosas observacoes que ele the dedicou: 0 Conto- Wieland tambememprega a palavra - e um a forma de arteem que se reiinem e podem ser satisfeitas ern conjunto duas ten-dencias opostas da natureza humana, que sao a tendencia para 0maraviIhoso e 0 amor ao verdadeiro e ao natural. Sendo ambasas tendencies inatas na humanidade, encontramos por toda a par teos contos, alguns deles muito antigos. Entretanto, nessa Formaartfstica, 0 que importa e leva- los a uma jus ta re la~ao redproca;se esta faltar , 0 conto perde em atrativo e valor. Quante aoestabelecimento da rela~iio reclproca, 6 quesrao de gosto, c ques-tio do artista. Wieland exprime-o em termos incisivos: "As pro-dU9)es desta especie devem ser ohras de gosto ou nao valemnada. Os contos da velha ama, contados em linguagem de arna,podem propagar-se pela tradi~o oral; nao precisam ser Im -presses",

    Chegamos ate ao Romantismo. Seria desnecessdrio lembrarque, para Novalis, esse genero tern urn sentido diferente e maiselevado que para Wieland; mas, por diferentes que sejam as suasconcexOes, e por muito profundo que seja 0 sentido do poetae d a -.poesia em 'Novalia, 0 conto continua sendo para 'ela umaForma a r t f s f i c a e - " o - contador -dc' historias'-autentico-e - u r n ' - p io : -feta do futU ro":------ .

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    . . IVApos esta breve p an or am ic a, p de -s e a seguinte questio: 0Conto sera uma Forma Simples?Ternos, por urn lado, uma forma a eujo respeito se afirmouque e la s e e sf orc a por narrar urn fato ou urn incidente impressio-nante, de tal modo que se julgue estar na presence de um aconte-cimento real e ser esse incidente mais importante, aparentemente,do que as personagens que 0vivem.Vemos, por outro lado, no decurso da hist6ria Iiteraria, umanova forma impor-se diante da primeira, timidamente no comeco,depois com firmeza erescente. Embora comecasse por ligar-se aprimeira, a segunda forma, entretanto, manifests desde 0 initiouma tendencia diversa. Em primeiro lugar, para falarmos em ter-rnos negatives, ela nao se empenha mais em narrar urn incidenteimpressionante, pois salta de incidente em inddente para descre-

    ver todo um acontecimento que nao se encerra em si mesmo demaneira determinada, 0 que s6 ocorre no remate final ou des-fecho da narrativa; em segundo Ingar, tampouco se empenha maisem representar tal acontecimento de modo a dar-nos a impresssode urn acontecimento real, preferindo trabalhar constantementeno plano do maravilhoso.A primeira forma chamamos Nouela e c la s si f ic amo- la entreas formas artisticas; a segunda demos 0 nome de Conto e afir-mamos ser uma Forma Simples. Ou, para usar a terminologiade Jacob Grimm, diremos que a primeira forma e poesia artlstica,"elaboracao", e a segunda e poesia da Natureza, "cria~ao espon-tanea" ~ claro que nao se pode verifiear a dlferenca na maneiracomo ambas as Formas se nos apresentam na situa~ao hist6rico--Iiteraria que 0 Ocidente conhece desde 0 seculo XVI. Tal comooConto . a Novela tambem esta ligada aos nomes de autores:Bocaceio, Sachetti ou Bandello, para a Novela; Straparola, Basile,Perrault, Madame d'Aulnoy, Wieland, para 0 Conto.Tampouco se pode dizer que a diferenca assente no fato hemestahelecido de que os contos circulam no povo antes de passarc ia tradi~o popular a literatura, ao passo que as. novelas teriamsido llvremente imaginadas por seus autores. Com efeito, sabe-mos que noventa por cento das novelas de Bocaccio, para dtar

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    apenas urn autor, ja se encontravam em outras obras literdrias:sabemos, alem disso, que ele nao as l~u,' em sua maier parte,no s originais indianos, arabes ou latinos, mas ouviu-as contadasde viva voz e conheceu-as por "ouvir dizer". .P ode -s e, c on tu d o, nao compartilhar da opiniao de Weiland,quando afirma que tanto a Novela como 0Conto sao formas artls-

    ticas literanas - a p rim ei ra , e xp re ss ao de uma unica tendenciahumana, a que busca 0 verdadeiro e 0 natural; e 0 segundo, urnamilgama de duas t en d en ci as h um an as , aquela que busca 0 verda-deiro e 0 natural e a que corresponde ao anseio de maravilhoso;c on ti nu a- se , p oi s, afirmando que existe uma diferenca formalbasica e fica por estabelecer a natureza dessa diferenca, a partird a pr6pria forma eindependentemente das circunstancias hist6-rico-Iiterdrias.S e se observer 0 dominie da novela, em seu conjunto, per-ceber-se-a urna infinita variedade de fatos das mais diversas espe-cies, ligados entre si pelo modo como sao apresentados. Ver--se-a, a le m d is so , que cutros fates, por pouco que respondam as

    exigencies da novela, por pouco que possuam certo ca rd t er impr es -sionante, podem ser representados dessa maneira para se tradu-zirem em novela. Bocacdo ia buscar fatos e incidentes de talespede a uma tradi~ao literdria mais antiga, mas sabemos que. tambem e p o ss f ve l e sc olh e -I os livremente; a Forma "Novela"pode ser aplicada a uma parcela do universo e de cada vez essaparcela far-se-a representar como novela. Iremos ainda mais Ion-ge: a nossa liberdade de escolha e tao grande que p od em o s, p elaforea da imagina~ao, produzir uma c on st ru ca o l it er dr ia que con-substancie, sob e ss a f or ma , de maneira autonoma e fora de todoe qualquer quadro, semeIhante parcela do universo.S e examinarmos em seu todo 0 dominio do Conto, a f encon-traremos tambem uma infinidade de fatos das mais diversas espe-cies, todos eIes Iigados, ao que parece, por certa maneira derepresentar as coisas. Mas desde que se procure aplicar igual-mente essa.orma .ao .universo, .sente-se que e impossfvelr nioe que os fatos tenham de ser forcosamente maravilhosos no Con-to, ao passo que nio 0 sio no universo; trata-se, antes, de queos fatos ta l como os encontramos no Conto, s6 podem ser conce-bidos n~ Conto. Numa palavra: pode aplicar-se 0universo 80contoe nio 0conto ao utUverso.Se analisarmos 8 atividade da novela, vemo-la exercer-se nouniverse, dar-lhe sua configura~io, fixar uma parte desse uni-

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    r .abertamente 0 universo e 0 absolve, 0 universo c on se rv e, p el oconrrario, apesar dessa t ransforrnacao, sua mobilldade, sua gene-ralidade e - o- que lhe da a caracteristica de se r novo de cadavez - sua plllralidade.Esta proposicao e nao so aplic2vel ao Conte e a Novelamas a todas as Formas Simples e a todas as Formas artlsticas;e, a tal respeito, poderfamos remeter 0 leiter para as observacoesque memos sobre as relacoes entre 0 Caso e a Forma artlstica.Comecemos pela linguagem: na Forma artistica, ela esfor-ca-se a ta l ponto por ser solida, peculiar e Unica, que e impos-sfvel imagina-la, por fim, a nao ser como linguagem propria detim Indivfduo bafejado pelo dom excelente de poder alcancar,numa obra definitivamente fechada, a coesao suprema - aindaque apenas "aqui e assim"; acresee que tal linguagem propriaconfere a essa obra fechada 0 cunho solido, peculiar e unico da. personalidade do seu autor. Por outras palavras, a Forma artis-tiea s6 pode, enfim, encontrar a sua realiza~ao definitiva mediantea a~o de urn poeta, entendendo-se 0 "poeta", evidentemente,nao como a forca criadora mas como a forca realizadora.Na Forma Simples, pelo contrario, a linguagem permaneceflulda, aberta, dotada de mobilidade e de eapacidade de reno-va~io constante. Costuma-se dizer que qualquer urn pode con-tar um conto, uma saga ou uma legenda "com as suas propriaspalavras". Os limites dessas "proprias palavras" podem, nocaso presente, ser extremamente apertados, como se viu no casoda Locueio e do Ditado, assim como na Adivinha. A formaperderia iguaImente sua validade na Legenda, na Saga e noConto se a modificassemos eu deixdssemos de lado aquilo a quechamamos "gesto verbal". Entretanto, a ideia de contar com"suas proprias palavras" contem uma certa verdade: nao se trata,de qualquer modo, das palavras de urn individuo em'que a forma

    se reaIizaria, nem de urn indivlduo que serla a for~a executorse darla a forma uma realiza~o Impar, conferindo-lhe seu cunhopessoal; a verdadeira for~a de execucao e aqui a linguagem, naqual a fonna recebe realiza~oes sucessivas e sempre renovadas.Forma artlst ica ou Forma Simples, poder-se-d sempre falar de"palavrapr6prlas"; nas Formas artfstlcas,' todavia, trata-se daspa la v ra s p r op ri a s do po e/ a, que sao a execu~ao unica e definitivada forma, ao passo que, na Forma Simples, trata-se das palavrasp ro pr ia s d a f or m a, que de cada vez e da mesma maneira se daa si mesma uma nova execu~ao.

    verso, Iiga-Ia de modo tal que a parte sr~cebe da fonna suarepresentacao f inal e absoluta. Ora, se falarmos da atividade doconto, veremos que ele trata de comport primeiro, sua propriafisionomia, antes de se dispor a refletir 0 universo nela. .Tudo isto pode ser resumido da seguinte maneira: A Novela .e 0Conto sao igualrr.ente Formas; entretanto, as leis formativasda novela sao tais que ela pode dar uma fisionomia coerente atodo 0 incidente narrado, seja real au inventado, porque tern

    como caracterlstica especffica ser impressionante; as leis de for-ma~o do conto sao tais que, sempre que ele e transportado parao universe, este transforma-se de acordo com u m princip io queso re ge esta Form a e so e d et er m in an te p ar a e la .

    o que dizemos aqui a respeito do Conto e da NoveIa pode .ser generalizado; com efeito, trata-se da pr6pria difereI19l queexiste entre Forma Simples e Forma Ardstica, e e tambem adiferenca que Jacob Grimm queria assinalar. Quando se abordao universo com uma forma para nele intervir, para Ihe dar deter-minada configuracao, para tornar coerente uma parcela d e s s e uni-verso cuja unidade elementar e assinalada por uma caracterlsticacomum, Grimm fala de elaboracdo; quando, pelo contrdrio, sefaz entrar 0universo numa forma estabelecida de acordo comum principle que rege e determine exclusivamente essa forma esO e determinante para ela, Grimm fala de cr ia~ao espontanea.Estamos de acordo com ele quanta a no~io de uma dlferencaradical nas leis de forma~io; nao acreditamos, porem, que a pri-meira forma pertenca ao presente e a segunda ao passado. Seassim fosse, s O podedamos observar uma delas e teriamos delimitar-nos a recolher vestfgios da outra. Foi essa, alias, a con-clusio a que 0 pr6prio Grimm chegou. De nossa parte, entre-tanto, pensamos que as 'duas formas estio sempre ativas emtodo Iug~r e que uma das tareEasprimordiais da critica e obser-va-las, quer em suas diferencas como em suas rela~ mutuas.

    Se levarmos urn pouco mais adiante 0 exame d a dire~otomada pelo Conto e a Novela, verificaremos 0seguinte: 0 impor-tante para a Novela, que encerra uma parcela do universo, einculcar em todas as coisas, nesse terreno fechado e coeso, umaconfigttta~o s al id a , p e cu l ia ~ e unica; no Conto, que enrenta

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    o que acabamos de mostrar a prop6r da linguagem podeser estendido a tudo 0 que se encontre em ambas as formas: per -sonagens Iugares; incidentes. Basta dizer, sem entrar em porme-nores, q~e todos' esses elementos conservam na Forma Simplesseu caniter fluido, generico, sempre renovado; comp~re-s~ ~princes a de conto com um a princesa de novela e sennr-se-a ~e-diatamente a diferenca,Ernpregamos amiude a palavra attlalizaftzo, que se aplica porigual a ambas as formas. De faro, e admissfvel que a mesmaparcela do universo seja encerrada por um outro poeta numa for-ma artistica, Simplesmente, ve-se que tal obra fechada se empe-nha de novo em ser solida, peculiar e unica, enquanto que aatualizacao de uma Forma Simples se apoia sempre na mobili-dade, generalidade e pluralidade da propria forma.Co m este ultimo ponte, somos levados a situa~o histdrico--Iiterarla provocada pelo aparecimento do Conto na literatura oci-dental, situa~io essa que se pode assim descrever: uma corpo-ra~o de poetas e escritores especializados hi muitos seculos emFormas artlsticas cre ser seu dever e estar ao alcance de suaspossibilidades atualizar uma Forma Simples, tal como atualiza

    suas Formas artfsticas; uma serie de novelistas procura tratar 0Conto como uma novela , "encer rd-lo" da mesma maneira, incutir--lhe uma conf iguracao salida, peculiar e unica. Haveria todo umestudo a fazer e da mais alta importancia para a teoria literiria,sobre 0que pode ocorrer em geraI e 0que ocorre em particularsempre que determinada Forma Simples se encontra com umaForma artistica; mas esse estudo, que verificaria 0 que pode r e s u l -tar de tais cruzamentos, nao pode ser levado a cabo neste volume.Podemos apenas dizer aqui que, em tal caso, a Forma Simplesrejeita semelhante especie de a c asa la r nen to , opde- s e a que a mo-delem nesse sentido e pretende manter-se ela pr6pria. Repugna--lh e d e tal modo esse encontro, quer ser tao decididamente e1 apropria que, apesar de todas as transformacdes e todas as reorga-'niza~Oes. os esplritos hicidos e capazes de discernir. as fo~as,como Herder ou Grimm, descobrem a natureza hlbnda e d is pa rdessas misturas, apreendem a Forma Simples como tal e acabampor destrincar as diferentes "vozes do povo", a "poesia da natu-reza" ou a "poesia artistica".

    Comisto, chegamos a Ultimaparte da polemica entre JacobGrimm e Arnim. Sempre que uma Forma Simples e atualizada,ela avanca numa dir~io que pode leva-Ia ate a fixa~ao defini-

    t iva qUr observe, finalmente, ~a Forma artlstica; sempre queenvereda por esse caminho, ganha em s ol id ez , p ec ul ia ri da de e u ni -cidade, mas perde, por conseguinte, grande parte da su a mobili-dade, generalidade e pluralidade. Ji virnos isso quando mencio-namos as rela~ees existentes entre 0 Mito e os mites .. E esse 0ponto visado por Arnim quando critica Grimm: "Jamais acredi-tarei que os Kindermiircben foram transcrltos tal qual os rece-bestes". A nossa maneira, a coisa expressa-se assim: toda e qual-quer 'atualiza~io se devia da f inal idade que a Forma Simplesse esforca por alcancar. Grimm respondeu entao: "Eis-nos che-gados a fidelidade" e usa a metafora do ovo que se quebra emdois; transposto para a nossa t erm in o lo g ia , i ss o s ig n if lc a: nao sepoupa a atualiza~ao, mas esta deve ser tal que remeta sempre, 0mais diretamente possfvel , a Forma Simples qu a Forma Simplese se oriente 0 menos possfvel para a solidez, peculiaridade e aunicidade da Forma artfstica.

    Por isso e que Jacob Grimm deixou de ocupar-se do conto,tal como se apresentava na literatura, e foi diretamente ao pavo.Seria necesssrio urn estudo especial para estabelecer ate que pontoas Kind e r- u nd Hau sm i ir ch en sao "fieis" e em que medida foraminfluenciados pelos fenomenos literdrios do seculo XVIII. 0que e cerro, seja qual .for a configuracio finalmente adotadapelos K in de r- u nd H au sm d rc ben , e que Jacob G r imm d es co br iuo verdadeiro canto com o F orm a Sim ples.

    VI .Dissemos que 0 universo transforma-se no Conto de acordocom um prindpio que somente rege e determina essa Forma.Chamamos a tal principio a "disposicao mental". presente em

    todas as Formas Simples. Procederemos agora de maneira iden-tica para tentar definir a disposi~io mental propria do Conto.OConto tem esta 'peculiaridade: durante 0 periodo em queo vimos opor-se a Novela ou coexistir com ela, s~ter_den.aI:.rativ~,_moraloi-S!!b@h~~9~C;Q!!L~rta p!,edil~.o~ Nao e-necessi{rioentiat em-detaihes e sera bastante recordar que Per-raMIt deu ,a~ seu livro 0 titulo. de Conte~_.d.u t e m p s pizsse'avec'J e;Mor :a ~ it li .[~~~..~.do ~PaSs.li!do~~~_M~!al i~a~es,de--f:ito; ...'cada lim dO'S-seuscontos rematava com uma "maranh hist6ria"

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    em verso e, na Introducac, ele proprio dir "Em todos eles avirtude e recompensada e 0 vicio punido. Tendem todos It mos-trar a vantagern que existe em serrnos honestos, pacientes, refle-tidos, trabalhadores, obedientes, e 0 mal que recai sobre todos ..os que nao 0 sao... Por muito frivolas e estranhas que estasfahulas sejam em suas aventuras, e cerro que estimulam nascriancas 0 dese]o de se assemelharem aos que elas veem tornar-sefelizes.e, 20 mesmo tempo, 0 temor de que the ocorram os infor-ninios com que os perversos foram punidos por suas maldades ...Sao estas as sementes que se lancam, que no comeco apenasproduzem movimentos de alegria e de tristeza mas nao tardaraomulto a frutificar em inclinacoes para 0 Bern" ..

    Para comecar, deparamo-nos al com uma contradi~o: se ashisrorias sao frfvolas, como poderio semear 0 hom grao na almada juvenrudej" Se sao estranhas ou exoticas, como poderao ser-vir de prova a uma regra de vida solidamente estabelecida? Estaclaro que, Dum exame mais atentc, observa-se que certas perso-nagens se tornam feUzes; mas, quanto a ver ique a virtu de epremiada e 0 vicio punido, tenho minhas diividas. ExaminemosDey Gestiejelte Kater [0 Gato de Botas] , Quem nos diz queo filho do moleiro e decente, refletido, paciente ou trabalhador?E obediente, de fate, pois faz tudo 0 que 0 gato the ordena.Eo gato? Do corneco ao fim, ele mente, engana tada a gente eohriga as pessoas a mentirem, pela persuasao ou pela ameaca;e acaba devorando urn bruxo que niio the fizera mal algum ournuito pouco. E a Bela Adcrmecida, sera assim tao virtuosa?E esse principe que sem mais nem menos rouba urn beijo a jovemadormecida? Quante ao Chapeuzinho Vermelho e ao PequenoPolegar, tampouco os considero herois imaculadcs da virtude.Reconheca-se, por outro lado, que a malkia do gate ou a frlvo-lidade do prlncipe nao dao qualquer ideia de imoralidade.

    As personagens e as aventuras do Conto nao nos propiciam,pois, a impressio de serem verdadeiramente morals; mas e Ine-gavel que DOSproporcionam certa satisfac;ao. Por que? Porquesatisfazem, ao mesmo tempo. 0 nosso pendor para 0 maravilhosoe 0nosso amor ao natural e ao verdadeiro mas, sobre tudo , po r-que as coisas se pass am ness as hist6rias como gostariamos queacontecessem no universo, como deveriam acontecer ...,-- - ~ - - . - . .- . . . . . . . - ... .-Em Der Gestiejelte Kater hi urn filho de moleiro; ba doisirmios que recebem do moleiro uma heranca preciosa: a burroe 0moinho; ao passe que 0 moco recebeu apenas um ohjeto sem198

    rvalor: 0 gate. Este estado de coisas, estes dados inidais, naosao imorais em si mesmos; criarn, entretanto, um sentimento deinjustica - injustice que deve ser reparada. E s s a satisfa~o nossera dada ao longo da narrativa e da seguinte maneira: e justa-mente 0 gate, a heranca sem valor, que se torna 0 veiculo dareparacao e a feliddade do moco desfavorecido acaba por suplan-tar ados dois irmaos, quando no comeco lhes era inferior. Nso 'se trata, e claro, de urna etica no sentido filos6fico do termo;em nenhum momenta nos e dito quem e virtuoso e quem nao e.o que e virtuoso e 0 que nia e ; nem mesmo no s e dito seo moleiro, que tratou os dois irrnaos mais velhos com maiorgenerosidade que 0 cacula, e homem ruim ou nao; no conto, osdois irmjios nao sao piores que 0 terceiro; tudo 0 que 0 contos ign if i ca , s imp le smen t e, e que 0 nosso sentimento de justica foiperturbado por urn estado de coisas ou par incidentes, e queuma o ut ra serle de incidentes e urn acontecimento de naturezapeculiar satisfizeram em seguida esse sentimento, voltando tudoao equilfbrio, De urn 'modo mais brutal, a mesma situadio foitratada em Aschenbrodel [A Cinderela], onde uma pobre meninatern de arrostar a perversidade de uma madrasta e de suas duasfilhas; mas, uma vez mais, 0 conto insiste menos sobre a verda-deira ruindade da familia do que sobre a injustica; e a satisfa~aoque se sente no final decorre menos do fato de a jovem recehera recompensa que merece por seu trabalho, sua paciencia e suaobediencia do que do fato de 0 acontecimento nos dar a que espe-ramos e exigimos de urn universo justo.

    A ldeia de que tudo deva passar-se no universo de acordocom nos sa expectativa e fundamental, em nossa opiniao, para aforma do conto; ela e a disposi~ao mental especilica do conto.Perrault viu muito bern, como tantos outros, que se trata deu~!1 ?ifPosi~~o~o~l,.mas_n~~ no .sentid

    Ao inves da etica filosdfica, quee uma etica de a~io, cha-marei a esta a i ti ea d o a c on te cimen to ou mora l ingenua, usando199

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    a palavra ingenuo (naio) na mesma aceC em que Schillerfalou de urna poesia ingenua (naiver Dichtung). 0 nos so julga-mento de etica i,ng~nua e de ordem afetiva; nao e estetico, dadoque nos fala categoricameriie '; -nio-e -uti ll tarista nem hedonista,porquanto seu criterio nlio e 0 titil nem 0 agraddvel; e exteriora religiao, vis t o nio ser dogmdtico nem depender de um guiadivino; e um julgamento puramente erico, quer dizer, absoluto.Se partirmos desse julgamento para determiner a Forma do Con-to, poderemos dizer que existe no Conto uma forma em que 0acontecimento e 0 curse das coisas obedecem a uma ordem talque satisfazem completarnente as exigencias da moral ingenua eque, portanto, serao "bons" e "justos" segundo nosso jufzo senti-mental absolute.

    Neste aspecto, 0 Conto opoe-se radical mente so aconteci-mento real como e observado de habito no universe. E muitoraro que 0curso das eoisas satlsfaca as exigencies da moral inge-nua, e muito raro que seja "justo"; logo, 0 Conto opoe-se aouniverse da "realidade". Entretanto, esse universo da realidadenao e aquele onde se reconheee nas coisas um valor essenclaluniversalmente valido; e , antes, 0 universo em que 0 aconteci-mento contraria as exigencias da moral ingenua, 0 universo queexperimentamos ingenuamente como imoral. Pode-se dizer quea disposi~o mental do Conto exerce ai a sua a~io em dois sen-tidos: por uma parte, toma e compreende 0 universe como umarealidade que ela recusa e que nao corresponde a sua etica doacontecimento; por outra parte, prcpde e adota urn outro uni-verso qce satisfaz a todas as exigencies da moral ingenua.

    Esse universo contrario a moralidade ingenua, esse universo"real" e rechacado, recebe aqui 0 nome de tragico, 0 que naoimplica, de modo algum, urn jufzo estetico, mas 0 julgamentosentimental que nos fala em termos categ6ricos e apoditieos. 0tnigico acontece, de acordo com uma f6rmula sucinta mas intei-ramente correta, quando 0 que deve ser nao pede ser ou quandoo que na o pode ser deve ser. Segundo a nossa formula, 0 trigieoe a resistencia de urn universo sentido como contrmo a s exigen-cias da nossa etiea ingenua em face do aconteclmento.

    Podemos esperar, agora, que dessa dupla tendenda em curso. nesta disposi~ao mental resultem duas formas: a par de urna for-ma em que 0 curso das coisas obedeee a uma ordem tal que elassarisfazem inteiramente as exigencies da moral ingenua, devere-mos encontrar outra forma em que se cristalize 0 universo Iage

    nuame' imoral do tnigico; em' poucas palavras, deveri existirurn anticonto. E ele existe, de fato. Tomemos, por ezemplo,a hist6ria do prlncipe e da princesa que nio podem juntar-seporque os separa um rio demasiado profunda, ou a hist6ria dePframo, Tisbe e 0 lelo, e teremos diante de nos a arualiza~aoclara dessa Forma Simples. Tais hist6rias correspond em ao uni-verso do trdgico e 0 curso trdgico das coisas neIas se sintetizanum gesto verbal que e "urn rio demasiado profundo" ou "0leao", gesto verbal que comporta em si mesmo a separa~ e amorte. Seria fadl encontrar grande mimero desses anticontosou, se quisermos empregar uma contradictio in aJjecto, esses"centes trdgicos". Tenho a impressao de que eles sio muitofreqiientes na Antiguidade e abundam em celtieo. Essa formanao foi reconhecida como tal e, por conseguinte, nao tem nome;com efeito, ela misturou-se em geral as Formas artisticas, naepoca moderna (como ja se ve nos flOSSOS dois exemplos) e s6a conhecemos em suas atualizacoes; por seu lado, a outra forma,aquela que resulta da disposi~o da moral ingenua e r e a l i z a igual-mente todo 0 seu efeito, com sua dupla orientacao, rechacou aforma que agia numa s6 dire~ao. Quando chegarmos a s Formasartfsticas, veremos toda a Importancia de que se reveste dis tin-guirmos tambern 0 conto tragico como Forma Simples.

    A forma do Conto e justamente aquela em que a dispo-si~ao mental em questlio se produz com seus dcis efeitos: aforma em que 0 tragico e , ao mesmo tempo, proposto e aboIido.Isto ja se percebe na combinacao dos incidentes e dos dados.OConto escolhe, de preferencia, os estados e os incidentes quecontrariem 0 nosso sentimento de acontecimento justo; um mocorecebe menos em heranca que seus irmdos, e menor ou maistolo que os que 0 cercam; criancas sao abandonadas por seus paisou maltratadas por uma madrasta; 0 noivo e separado da suaverdadeira noiva; homens fiearn sujeitos a espiritos maHazejos,sao forcados a executar tarefas sobre-humsnas, so&em perse-gui~ao e tern de fugir; eis outras tantas injusti~as que sio invaria-velmente abolidas no deeurso dos aeontecimentos e cujo desfechosatisfaz nosso sentimento de aeontecimento justo. Sevlcias, des-prezo".pecadQ,arbitrariedades, todas estas coisas 50aparecem noConto para que possam ser, pouco a pouco, definitivamente eIimi-nadas e para que haja um desecho em concordancie com a moralingenua. Todas as modnhas pobres acabam por casar com 0principe que devem desposar, todos os jovens pobres tern suaprincesa; e a morte, que signifiea, em certo sentido, 0 auge da

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    imoralidade ing&lUa, e abolida no Conto: "Se e1es nao estiomortos, ainda vivem." Esta construcao iIJlf' '1a do Conto e quesuscitara a satisfa~ao de que falamos ha ~IJUco:ao ingressar-seno universe do Conte, aniquila-se 0 universo de uma realidadetida por imoral.Tal aniquilamento realiza-se em todos os pormenores. Emprimeiro Iugar, explica 0 maravilhoso em que os escritores inte-ressados pelo conto ja the viam como caracterlstica dcminante.Quando a realidade, numa disposicso mental, e contraria a mora-lidade ingenua, nenhuma aventura poderd assemelhar-se a reali-

    dade, 0 que da Iugar a urn paradoxo que constitui a verdadeirabase do Conto: n es ta fo rm a , a m a ra uilb oso n li o e maraoilboso,mas natural, 0 Conto e a Legends podem ser comparados nesseaspecro. Na Legenda, 0 prodigio do milagre era a unica confir-ma~ao possfvel de uma virtude que se tornou atuante e obje-t~vada; no Conto, 0 prodigio do maravilhoso e a unica possibi-1tdade que se tem de estarmos seguros de que deixou de exist ira imoraIidade da realidade. Assim como a Legenda 56 e com-preenslvel como tal no milagre e este e-lhe elemento necessdrioe natural, assim tambern 0 Conto e incompreenslvel sem 0 mara-viIhoso. Que os andrajos da Cinderela se convertam em roupasopulenras ou que os sete cabritos saiam do ventre do lobo nadate,:" de maravilhoso; e isso 0 que se espera aconteca e que seexige dessa forma; 0 que seria maravilhoso, no contexto dessaforma e, portanto, despido de sentido, seria que tais coisas nioacontecessem; 0 conto e seu universo peculiar perderiam entao avalidade.

    _.Uma segunda e conhecida propriedade do Cento pode sere~phcada do mesmo,modo. A a~aoloceliza-sesempre "num paisdistante, Ionge, multo longe daqui", passa-se "ha multo, muitotempo", ou entjio 0 lugar e em toda e nenhuma parte, a e p o c asempre e nunca, Quando 0 Conto adquire os traces da Hist6ria- 0que acontece as vezes, quando se encontra com a Nove1a-, perde uma parte de sua forca. A localiza~aohist6rica e 0tem!,~ histdrico a.vizinham-noda realidade imoral e quebram 0fascfnio do maravilhoso natural e imprescindivel.o mesmo ocorre com as personagens, que tambem devemter es~a seguranca indeterminada contra a qual se desfaz a reali-dade Imoral, Se 0 pdncipe do Conto tivesse 0 nome de um. princi~ d a Histcria, serlamos logo transportados da etica doacontecimento para a etica da a~ao. ]a nao perguntarfamos,

    "Que ~ntece entao ao prlncipe?" mas "Que fez 0 pr1nc:ipe?"e comt{ - se -i a a duvidar da necessidade d a s coisas. Nio e outraa situa~o daquelas personagens que desempenham papel taoimportante que se lhes deve 0 nome que 0 Conte recebeu naFranca e na Inglaterra, por exemplo; refire-me as.fadas e tam-bern aos mcnstros, ogres e bruxas que sao sua contrapartida.Todos esses seres sao 0 produto bern claro da dis~o mentaleujas duas direcoes encarnam. Monstros, espiritos malignos,ogrese bruxas encarnam a dire~o trdgica; gracas aos seus poderesmagicos, as boas fadas e tudo 0 que a elas se a s s o c i a sao 0meio mais segura de escapar a realidade. Todos esses seres siomaravilhosos, nenhum deles e, na verdade, um personagematuan-te; sao todos os executores do acontecimento etico que umadas duas especies pode impedir, enquanto que a outra 0 orientana dire~ao do nosso juIgamento sentimental. Portanto, 0 Gatode Botas nao esta diante de urn ser que M O the fez mal algum- ou s6 urn pouco - e que ele mata mediante um ardil; e ,antes, 0 vefculo necessario para que a injusti~a seja reparada, 0animal sem valor que permite ao filho pobre do moleiro recebermais do que aquilo de que 0 destino 0 privara, 0 vencedor deurn ser que, por sua natureza, e um obstdculo ao acontecimentojusto e a felicidade; nao e a ele que pertencem os tesouros domagico perverse, mas aquele que cornecara por receber muitopouco.

    Examinemos, finalmente, 0 gesto verbal do Conto. Estegesto manifesta-se de modo tao acentuado, 0 acontecimentoorde-na-se nele de maneira tao determinada, que se quis ver nele 0verdadeiro "conteiido" do Conto. Os especial istas do Contotem extraordinaria predilecao pelo "motive" (termo que evita-mos pelas razoes antes mencionadas) e 0 hsbito de classificar oscontos segundo os respectivos "motives". Chegaramate a aflr-mar que 0Conto seria, meramente, uma montagembastante arbi-tearia de motivos dessa ordem e que era POSSIVe1ecompe-loemseus motivos para 0 reconstituir a partir de outros motivos;enfim, que era posslvel fabricar contos usando cs motivos comopecas de um mosaico. Nao perderemos nosso tempo discutindotais ideias, 0 conto e acontecimento, no sentido d a moral inge-nua; se descartarmosesse.accntecimento coin 0 sen prindpiotr~gico, 0 progresso no sentido da justi~. os obst&culostrigicose 0 desecho etico, restara tao-s6 urn esqueleto despojado desentido, 0 qual nao poderd proporcionar-nos satisa~ moral deespecie alguma e servird, no maximo, como vefculomnemotecnico

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  • 5/14/2018 Andr Jolles - O conto

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    p~. recoostrui; Forma: Pod=o~ multobe~~ ~ ;4~ ;i.~ ')_ ' .., :~; '~: :~: , :~:{~~;;;{~:~~;t&~;(?\{~~iR:,_ ' .partida, que esse.aeontecmento, ~Ja tot""lde co"n~t1t~.afOtmI!. ;;;:;\:,~i;'~'.t,. ' : ; , ~ .~ h ; " ; - : . . ' : : . c ' ' _ ' . ; ; . ' : ~ : ' ~~ ' . ~ ; : :;;':' r . i ? < - : ; , . : : ~ : , . : . : \ : : L ~ : J : . ~ , ~ ; , :< ; ' : \ _ ; S ~ : : ' 7 : C , :: :o . " ' ,' ".di .d' ,.." dad < ~. ,.'. r ' . " :' . t . . .' ." ,I "~: i! :_; " '_ '_'_' ,. . , "J>", > 0 . , 1" v- ,. ~: .. e. ," . -: e-, , ".... .' . / ....se lVl e~ por sua vez, em "Urn es mdiVlSVeiS,.e:.que..rais:: .,,:";': . ' . ; ' ;'..:.:.;..,.......;.,~;./.~. ,:. ~.;:.,t.::~:: :; . .. '".1':" ,;:,,,,,.:;>.::;;'~,,