Alfredo Naffah - Nietzsche - a Vida Como Valor Maior

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    CAPTULO 1 - ESTE NOSSO MUNDO DOS FRACOS

    (Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, So Paulo, 1996)

    Um pensamento distorcido

    Apenas os medocres tm perspectivas de prosseguir, procriar - eles so os homens do futuro, os nico sobreviventes: "sejam como eles!

    Tornem-se medocres!", diz a nica moral que agora tem sentido, que ainda encontra ouvidos.

    Friedrich Nietzsche, Alm do bem e do mal, 262

    No dia 15 de outubro de 1844, na cidade de Rocken (antiga Prssia, atual Alemanha), nascia aquele que se tornaria um dospensadores mais importantes da contemporaneidade: Friedrich Wilhelm Nietzsche.Desprezado e incompreendido em sua poca, seu pensamento acabaria por ser distorcido, utilizado pelos nazistas na SegundaGuerra Mundial como justificativa para "a purificao de uma suposta "raa ariana". A que levou essa ideologia racista omundo todo soube atravs do massacre de milhes de judeus, comunistas, homossexuais, deficientes fsicos e mentais,

    considerados pelos nazistas como a escria da humanidade. Infelizmente, Nietzsche permaneceu confundido com opensamento nazista at h pouco tempo. S muito recentemente - e por iniciativa de alguns pensadores franceses, como MichelFoucault, Gilles Deleuze e Pierre Klossowski, entre outros - iniciou-se um processo de releitura dos textos nietzschianos.Descobriu-se, ento, que Nietzsche havia sido um dos mais contundentes crticos do anti-semitismo apregoado pelos nazistas.Em 1885/1886, no aforismo 251 deAlm do bem e do mal, ele escrevera:Os judeus so, sem qualquer dvida, a raa mais forte, mais tenaz e rnais pura que atualmente vive na Europa; eles sabem seimpor mesmo nas Piores condies (at mais que nas favorveis), merc de virtudes que hoje se prefere rotular de vcios. [...] Oque eles desejam e anseiam, COM insistncia quase importuna, serem absorvidos e assimilados na Europa, pela Europa;querem finalmente se tornar estabelecidos, admitidos, respeitados em algum lugar, pondo um fim sua vida nmade, ao "judeuerrante"; esse mpeto e pendor (que talvez j indique um abrandamento dos instintos judaicos) deveria ser considerado e bemacolhido: para isso talvez fosse til e razovel expulsar do pas os agitadores anti-semitas.A origem do mal-entendido deveu-se a dois fatos distintos. O primeiro deles que a nica irm de Nietzsche, Elizabeth - elasim, claramente anti-semita -, deturpou vrios dos seus textos, chegando mesmo a forjarO segundo motivo do mal-entendido deveu-se a incompreenses do prprio pensamento de Nietzsche, notadamente de suascrticas aos rumos que havia tomado o mundo ocidental. Autor de uma obra assistemtica por natureza, ou, mais do que isso,avessa idia de sistema, escrevia por meio de aforismos, o que d margem a diferentes leituras, articulaes, ngulos de viso.Isso contribui para que cada qual a utilize do jeito que bem entender. Alm disso, as noes controvertidas de nobre e deescravo ajudariam a "colocar mais lenha na fogueira". Embora seja muito difcil sintetizar seu pensamento, convm, pelomenos, tentar esclarecer os mal-entendidos que cercam essas noes bsicas.Nietzsche via na cultura judaico-crist, dominante no mundo ocidental, uma preponderncia de valores fracos, escravos, emoposio aos valores fortes, nobres, sue haviam vigorado em pocas passadas, notadamente na Grcia arcaica, na culturatrgica. Mas, para ele, nobre e escravo compunham dois tipos bastante caractersticos, bem diferentes dos que comumente seentendem por esses termos.O tipo nobre define umaforma de existir capaz de dizer "sim" vida integralmente, em todos os seus aspectos, afirmando-a,criando valores e participando ativamente da produo de sentido do mundo. Isso caracteriza uma maneira de viver expandida,

    potente, onde estar-asignifica acolher e amar a existncia, com tudo o que ela traz de prazer, alegria, mas tambm de dor,sofrimento, pois nessa perspectiva as imperfeies da vida - geradoras de infelicidade - so a prpria condio de o homemcrescer, Potencializar-se, tornar-se capaz de se vergar sem se despedaar. Por isso, esse tipo de vida implica fundamentalmenteuma capacidade de esquecer: metabolizar as injrias, ofensas, transformando-as em proveito desse existir exuberante, que soequer pleno de riscos, de aventura, sabendo-se habitar em um mundo que no feito de permanncia, mas de movimentosperenes de transformao. E, pois, uma vida que se desdobra em morte e renascimento contnuos, em movimentos dedestruio e de construo, como parte do mesmo devir criador.

    A vida denegrida

    Dominncia de valores escravos queria dizer a propagao de uma forma de ser, ocupada apenas com a sobrevivncia, semqualquer ambio de dar forma ao mundo. Por estar atravessado por umaimpotncia paralisante, aprisionado por um passadono-digerido, no-metabolizado, o tipo escravo viveperdido no tempo, incapaz de viver no presente e de criar qualquer coisa

    que seja. Cultua uma memria prodigiosa que- no lhe permite superar as amarguras, as humilhaes, os ultrajes vividos,vivendo amarrado a essas experincias. , pois, incapaz de acolher e aceitar as imperfeies da vida. Est permanentementebuscando culpados por seus infortnios, puro ressentimento e desejo de vingana. Assim, incapaz de caminhar por seusprprios ps. Vive deriva, espera de uma redeno vinda de fora, de um Outro, concebido como Poderoso, Absoluto e

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    Perfeito, seja ele Deus, uma Sociedade Irrepreensvel ou uma Outra Vida, de preferncia Eterna, Pois o escravo no tolera afatalidade da morte.Resumindo, trata-se de uma forma de vida alienada de sua potncia criadora e culpada de existir. Essa alienao-tornada-impotncia que, ao se perpetuar como memria, envenena o mundo real para depois rejeit-lo; esse veneno que cresce e que senutre com a iluso de recompensas em mundos imaginrios, Nietzsche os via corno uma criao da sociedade de massas e deseus valores morais corporificados especialmente nos valores cristos (tais quais expressos pelas mximas de So Paulo).Se o cristianismo no inventou os valores escravos, sem dvida trouxe-lhes novo sangue, novas justificativas, universalizando-os e refundando-os na idia de Eternidade; com isso, eles cresceram, alastraram-se, tornando-se os valores dominantes no

    mundo ocidental. E por essa razo que Nietzsche foi um dos mais contundentes crticos do cristianismo, embora sepreocupasse, em seus ltimos escritos, em discriminar o cristianismo como doutrina instituda, da figura de Jesus, por quem atsentia alguma simpatia pois o considerava um homem adiante de sua poca, tendo sido capaz de ensinar aos homens comomorrer com serenidade.A utilizao de Nietzsche pelos nazistas imprimiu aos termos escravo e nobre, fraco e forte conotaes de cunho racial epoltico que eles jamais tiveram. Ao se identificar a fora nobre com os valores arianos e com os poderes nazistas institudos,invertia-se totalmente o sentido que Nietzsche lhes dera, j que, em vez do amor incondicional vida que definia o nobrenietzschiano, o "nobre" nazista fazia a apologia do dio, do ressentimento, da busca de bodes expiatrios para os infortnios dahumanidade, massacrando judeus, comunistas, homossexuais, deficientes fsicos e mentais.Mas na poca, e durante muito tempo, essa deturpao no se fez visvel. Isso veio lanar uma maldio sobre o filsofo,somente revista a partir dos anos 60, quando se voltou a ler sua obra. Ainda assim, essas questes esto longe de qualquerconsenso no moldo da filosofia.Nietzsche continua at hoje louvado por uns, execrado por outros. Uma coisa, entretanto, ningum pode negar: desde que seu

    nome voltou baila, no cessam de proliferar admirao e espanto diante de um pensamento cuja fora demolidora s encontraequivalentes, desde a Segunda metade do sculo XIX, na obra de um Marx e de um Freud. Uma filosofia a marteladas, comoele costuma dizer. Na mira: os valores ocidentais dominantes, que ele descreveu como valores escravos.

    TEXTOS SELECIONADOS

    1. A aurora de uma contracultura

    Aqui, o filsofo francs Gilles Deleuze, um dos mais importantes comentadores da obra nietzschiana, traa adiferena desentido, para o mundo contemporneo, das obras de Marx, Freud e Nietzsche.

    Se perguntarmos o que ou o que vem a ser Nietzsche hoje em dia, sabemos muito bem a quem preciso se dirigir. precisose dirigir aos jovens, que esto lendo Nietzsche, que esto descobrindo Nietzsche. Quanto a ns, j somos muito velhos namaioria aqui.O que que um jovem descobre atualmente em Nietzsche, que certamente no aquilo que minha gerao descobriu nele, quecertamente no era aquilo que as geraes precedentes tinham descoberto? Como que acontece quejovens msicos de hojesintam-se ligados a Nietzsche naquilo que fazem, embora no faam absolutamente uma msica nietzschiana no sentido em queNietzsche a fazia? Como que ocorre que jovens pintores, jovens cineastas sintam-se ligados a Nietzsche? O que acontece,ou seja, como que eles recebem Nietzsche?A rigor, tudo o que se pode explicar, olhando de fora, de que maneira Nietzsche exigiu para si mesmo e para seus leitores,contemporneos e futuros, um certo direito ao contra-senso. No um direito qualquer, alis, porque ele tem suas regrassecretas, mas um certo direito ao contra-senso a respeito do qual eu gostaria de me explicar logo mais, e que faz com que nose trate de comentar Nietzsche como se comenta Descartes, Hegel.Eu digo a mim mesmo: quem hoje em dia o jovem nietzschiano? Ser aquele que prepara um trabalho sobre Nietzsche?

    possvel. Ou bem ser aquele que, voluntria ou involuntariamente, pouco importa, produz enunciados particularmentenietzschianos no decorrer de uma ao, de uma paixo, de uma experincia? Isso tambm acontece.Pelo que conheo, um dos textos recentes mais belos, mais profundamente nietzschianos, o texto em que Richard Deshayesescreve: "Viver no sobreviver", exatamente antes de receber uma granada durante uma manifestao. Talvez os dois casosno se excluam. Talvez se possa escrever sobre Nietzsche e depois produzir, no decorrer da experincia, enunciadosnietzschianos.Sentimos todos os perigos que nos espreitam nesta questo: o que Nietzsche hoje? Perigo demaggico ("os jovensconosco..."). Perigo paternalista (conselhos a um jovem leitor de Nietzsche ... ). E em seguida, sobretudo, perigo de uma snteseabominvel. Toma-se como aurora da nossa cultura moderna a trindade Nietzsche, Freud, Marx. Pouco importa que todomundo esteja aqui desarmado de antemo. Marx e Freud talvez sejam a aurora de nossa cultura, mas Nietzsche claramenteoutra coisa, ele a aurora de uma contracultura. evidente que a sociedade moderna no funciona a partir de cdigos. umasociedade que funciona sobre outras bases.Ora, se considerarmos Marx e Freud, no literalmente, mas o devir do marxismo ou devir do freudismo, v-se que eles se

    lanaram paradoxalmente numa espcie de tentativa de recodificao: recodificao pelo Estado, no caso do marxismo ("vocsesto doentes pelo Estado, e sero curados pelo Estado", no ser o mesmo Estado) - recodificao pela famlia (estar doentepela famlia, curar-se pela famlia, no a mesma famlia). E isso que realmente constitui, no horizonte de nossa cultura, omarxismo e a psicanlise, como as duas burocracias fundamentais, uma pblica, outra privada, cujo objetivo operar bem oumal uma recodificao daquilo que no cessa de se codificar no horizonte.

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    O caso de Nietzsche, ao contrrio, no absolutamente esse. Seu problema est em outro lugar. Atravs de todos os cdigos,do passado, do presente, do futuro, trata-se para ele de fazer passar algo que no se deixa e no se deixar codificar. Faz-lopassar num novo corpo, inventar um corpo em que isso possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso, o da terra, o doescrito...(DELEUZE, Gilles. "Pensamento nmade.",. In, Marton, Scarlett (org). Nietzsche hoje? So Paulo, Brasiliense, 1985, p. 56-7)

    2. Nietzsche, o antiprofeta

    O filsofo Eugene Fink, outro dos importantes intrpretes do pensamento nietzschiano, fala das nuances, sutilezas e artifciosque caracterizam o estilo literrio e filosfico deste antiprofeta, na sua misso demolira dos valores contemporneos.

    Com suas contradies, suas mscaras e suas mudanas, quase no h pensador que d lugar a mltiplas interpretaes comoNietzsche. L-se em seus "Pstumos": "Sou o mais dissimulado entre todos os dissimulados" e "Tudo o que profundo ama amscara". Toda exegese da obra de Nietzsche empresa arriscada e, no melhor dos casos, perspectiva. Estilizaram o pensadorcomo heri de lenda, celebraram suas "conquistas psicolgicas", e, graas sua prpria psicologia desmascaradora,descobriram-no como um homem que sofre profundamente e sonha com a riqueza de uma vida forte e s; denunciaram-nocomo precursor o fascismo, como anunciador do niilismo ascendente, etc.Vrios filosofemas tentaram abusivamente invoc-lo e lhe impuseram desvios de sentido. Empresa facilitada por sua maneirade ser, suas vises a mergulharem no corao mesmo do vivido, a colorao apaixonada e o brilho indito de suas formulaesexpressivas, sua habilidade em acionar todos os registros de uma grande arte da linguagem, capaz no seu conjunto de persuadir

    e convencer.Essa multiplicidade de faces provm de sua desconfiana frente ao rigor do conceito, sua exatido e fora petrificante, de suarecusa em sacrificar universalidade do Logos o concreto com seus meios-tons e suas nuances intermedirias e, sobretudo, doinvocar imagens sugestivas, figuras de visionrio e falar por metforas inslitas. Some-se a isso um estilo fragmentrio,aforstico, imperioso, sedutor e provocante.Mas para compreender seu pensamento melhor partir de sua pessoa, de sua humanidade emprica, ou antes, de preferncia,considerar suas enunciaes sobre a essncia do homem? A fascinao que exerceu sua obra literria, principalmente nocomeo do sculo; o encanto com que ela entreteve espritos de grande classe intelectual e uma juventude capaz de entusiasmotudo isso pertence ao passado. O duplo combate de Nietzsche, contra a tradio ocidental e as "idias modcrna.5" perturbou,sem dvida, o esprito do tempo; ele no o transformou em profundidade.A realidade efetiva da tecnocracia, a racionalidade planificadora estendida a todo o planeta, a influncia crescente, nos doishemisfrios, do igualitarismo provindo da Revoluo Francesa - tudo isso os fatos confirmam, contra o sonho nietzschiano doalm-do-homem senhor da Terra. Hoje opathos dessa linguagem para ns s vezes intolervel, mesmo sendo necessrioadmitir que Nietzsche enriqueceu maravilhosamente o potencial expressivo da lngua alem, que a tornou mais sensvel sressonncias afetivas do sublime, s nuances do pensamento e do sentimento, que tornou seu ritmo mais leve. com uma mistura de admirao e mal-estar que, presos ao aparelho de uma civilizao racionalmente tecnicizada, lemos hoje,impassveis, as obras de um escritor que, para descrever a situao e os problemas do homem, recorre quase sempre aosconceitos romnticos de natureza e paralelamente pratica o modo de pensar desmistificador da filosofia das Luzes, ousa falarno estilo potico dos mais altos mistrios, no teme o pomposo hieratismo e se faz de imitador da Bblia para volt-la contra ocristianismo.A conscincia plena de estilo de uma misso a cumprir, o prazer em aturdir e subjugar, o amor pela mise-en-scne, a est o quedesconcerta e incomoda em Nietzsche. Ele domina com virtuose os artifcios da sugesto, sabe destacar com vigor posies esituaes fundamentais diante do mundo e das coisas, delinear um retrato do homem e conferir-lhe o esplendor de um dolo.

    (FINK, Eugene. "Nova experincia do mundo em Nietzsche." In: Marton, Scarlett (org. ) Nietzsche hoje? So Paulo, Brasiliense,

    1985, p. 168-9)

    3. Moral nobre e moral escrava

    Aqui, Nietzsche traa, com seu estilo direto e irreverente, as caractersticas que demarcam os dois tipos de vida, representados

    pelas duas morais: a nobre (ou dos senhores) e a escrava.

    Numa perambulao pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que at agora dominaram e continuam dominandona terra, encontrei certos traos que regularmente retornam juntos e ligados entre si: at que finalmente se revelaram dois tiposbsicos, e uma diferena fundamental sobressaiu. H uma moral dos senhores e uma moral de escravos; acrescento deimediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem tambm tentativas de mediao entre as duas morais,e, com ainda maior freqncia, confuso das mesmas e incompreenso mtua, por vezes inclusive dura coexistncia at mesmonum homem, no interior de uma s alma.

    As diferenciaes morais de valor se originaram ou dentro de uma espcie dominante, que se tornou agradavelmente cnscia dasua diferena em relao dominada, ou entre os dominados, os escravos e dependentes de qualquer grau. No primeiro caso,quando os dominantes determinam o conceito de "bom", sao os estados de alma elevados e orgulhosos que so consideradosdistintivos e determinantes da hierarquia. O homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrrio desses estados

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    de elevao e orgulho: ele os despreza. Note-se que, nessa primeira espcie de moral, a oposio "bom" e "ruim" significatanto quanto "nobre" e "desprezvel"; a oposio "bom" e "mau" tem outra origem.Despreza-se o covarde, o medroso, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olharobstrudo, o que rebaixa a si mesmo, a espcie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e, sobretudo,o mentiroso - crena bsica de todos os aristocratas que so, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade; assim como odesconfiado, com seu olhar obstrudo, o que rebaixa a si mesmo, a espcie canina de homem, que se deixa maltratar, o aduladorque mendiga, e, sobretudo, o mentiroso - crena bsica de todos os aristocratas que o povo comum mentiroso. "Ns,verdadeiros"- assim se denominavam os nobres da Grcia antiga.

    bvio que as designaes morais de valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro a homens, e somente depois, de formaderivada, a aes: por isso um grande equvoco, quando historiadores da moral partem de questes como "por que foilouvada a ao compassiva?". O homem de espcie nobre se sente como aquele que determina valores, ele no temnecessidade de ser abonado, ele julga: "o que me prejudicial prejudicial em si", sabe-se como o nico que empresta honra scoisas, que cria valores. Tudo o que conhece de si, ele honra: uma semelhante moral glorificao de si.Em primeiro plano est a sensao de plenitude, de poder que quer elevada, a conscincia de uma riqueza que gostaria de cedere presentear - tambm o homem nobre ajuda o infeliz, mas no ou quase no por compaixo, antes por um mpeto gerado pelaabundncia de poder.O homem nobre honra em si o poderoso, e o que tem poder sobre si mesmo, que entende de falar e calar, que com prazerexerce rigor e dureza consigo e venera tudo que seja rigoroso e duro."Um corao duro me colocou Wotan no peito", diz uma velha saga escandinava: uma justa expresso potica da alma de umorgulhoso viking. Uma tal espcie de homem se orgulha justamente de no serfeito para a compaixo: da o heri da sagaacrescentar, em tom de aviso, que "quem quando jovem no tem o corao duro, jamais o ter". Os nobres e bravos que assim

    pensam esto longe da moral que v o sinal distintivo do que moral na compaixo, na ao altrusta ou no desintressement[desinteresse]; a f em si mesmo, o orgulho de si mesmo, uma radical hostilidade e ironia face "abnegao" pertencem toclaramente moral nobre quanto um leve desprezo e cuidado ante as simpatias e o "corao quente".So os poderosos que entendem de venerar, esta sua arte, o reino de sua inveno. A profunda reverncia pela idade e pelaorigem - todo o direito se baseia nessa dupla reverncia -, a f e o preconceito em favor dos ancestrais e contra os vindourosso algo tpico da moral dos poderosos; e quando, inversamente, os homens das "idias modernas" crem quase instintivamenteno progresso" e no "porvir", e cada vez mais carecem do respeito pela idade, ia se acusa em tudo isso a origem no-nobredessas "idias"O que faz uma moral dos dominantes parecer mais estranha e penosa para o gosto atual, no entanto, o rigor do seu princpiobsico de que apenas frente aos iguais existem deveres; de que frente aos seres de categoria inferior, a tudo estranho-alheio,pode-se agir ao bel-prazer ou como quiser o corao", e em todo caso "alm do bem e do mal": aqui pode entrar a compaixo, ecoisas do gnero. A capacidade e o dever da longa gratido e da longa vingana - as duas somente com os iguais -, a finura naretribuio, o refinamento no conceito de amizade, de uma certa necessidade de ter inimigos (como canais de escoamento, porassim dizer, para os afetos de inveja, agressividade, petulncia - no fundo, para poder ser bem amigo): todas essas socaractersticas da moral nobre, que, como foi indicado, no a moral das "idias modernas", sendo hoje difcil perceb-la,portanto, e tambm desenterr-la e descobri-la. diferente com o segundo tipo de moral, a moral dos escravos. Supondo que os violentados, oprimidos, prisioneiros,sofredores, inseguros e cansados de si moralizem: o que tero em comum suas valoraes morais? Provavelmente umasuspeita pessimistaface a toda a situao do homem achar expresso, talvez uma condenao do homem e da sua situao. Oolhar do escravo no favorvel s virtudes do poderoso: ctico e desconfiado, tem finura na desconfiana frente a tudo"bom" que honrado por ele gostaria de convencer-se de que nele a prpria felicidade no genuna.Inversamente, as propriedades que servem para aliviar a existncia dos que sofrem so postas em relevo e inundadas de luz: acompaixo, a mo solcita e afvel, o corao clido, a pacincia, a diligncia, a humildade, a amabilidade recebem todas ashonras - pois so as propriedades mais teis no caso, e praticamente todos os nicos meios de suportar a presso da existncia.A moral dos escravos essencialmente uma moral de utilidade. Aqui est o foco de origem da famosa oposio "bom" e

    "mau" - no que mau se sente poder e periculosidade, uma certa terribilidade, sutileza e fora que no permite o desprezo.Logo segundo a moral dos escravos o "mau" inspira medo; segundo a moral dos senhores e precisamente o "bom" que despertae quer despertar medo, enquanto o homem "ruim" sentido como desprezvel. A opresso chega ao auge quando, de modoconseqente moral dos escravos, um leve aro de menosprezo envolve tambm o "bom" dessa moral - ele pode ser ligeiro ebenvolo porque em todo caso o bom tem de ser, no modo de pensar escravo, um homem inofensivo: de boa ndole, fcil deenganar, talvez um pouco estpido, ou seja, un bonhomme [um bom homem]. Onde quer que a moral dos escravos se tornepreponderante, a linguagem tende a aproximar as palavras "bom" e "estpido".Uma ltima diferena bsica: o ser, no modo de pensar escravo, um homem inofensivo: de boa ndole, fcil de enganar, talvezum pouco estpido, ou seja, un bonhomme [um bom homem]. Onde quer que a moral dos escravos se torne preponderante, alinguagem tende a aproximar as palavras "bom" e "estpido".Uma ltima diferena bsica: o anseio de liberdade, o instinto para a felicidade e as sutilezas do sentimento de liberdadepertencem to necessariamente moral e moralidade escrava quanto a arte e entusiasmo da venerao, da dedicao, sintomaregular do modo aristocrtico de pensamento e valorao.

    Com isso, pode-se compreender por que o amor-paixo - nossa especialidade europia - deve absolutamente ter umaprocedncia nobre: notrio que ele foi inveno dos cavaleiros-poetas provenais, aqueles magnficos, inventivas homens dogai saber[gaia cincia], aos quais a Europa tanto deve, se no deve ela mesma.

    (NIETZSCHE, Friedrich. Alm do bem e do mal, 260. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo, Companhia das Letras, 1992, p, 172-5)

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    ATIVIDADES

    1. Procure, em um bom dicionrio, o significado dos verbetes nobre e escravo e compare os seus sentidos correntes com osque Nietzsche lhes deu.

    2. Assista a um captulo de uma novela de televiso e identifique, nas falas das personagens, valores escravos e valoresnobres.

    VAMOS REFLETIR

    1. Pelo que entendeu do texto, voc acha que os valores escravos e os valores nobres tm a ver com o poder aquisitivo daspessoas, com as classes sociais, ou independem disso? Explique.

    2. Descreva as ressonncias que estas afirmaes de Nietzsche encontram em voc, sem sua vida: "quem chegou, ainda queapenas em certa medida, liberdade da razo, s pode sentir-se sobre a terra como um andarilho. [...] Bem que ele quer vere ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso no pode prender o seu corao comdemasiada firmeza em nada de singular; tem de haver nele prprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudana ena transitoriedade" (Humano, demasiado humano 638)

    3. Comente a afirmao de Gilles Deleuze presente nos textos selecionados: "toma-se como aurora de nossa cultura atrindade Nietzsche, Freud, Marx".

    4. Nos eu modo de ver, difcil viver segundo os valores nobres apresentados por Nietzsche?5. Comente o texto de Nietzsche usado como epgrafe no incio deste captulo.

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    CAPTULO 2 - UM SOLITRIO INCOMPREENDIDO

    (Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto,FTD, So Paulo, 1996, pg. 21-35)

    Neste dia perfeito, em que tudo amadurece e no somente o cacho que se amorena, acaba de cair um raio de sol sobre a minha vida; olheipara trs, olhei para a frente, nunca vi tantas e to boas coisas de uma vez. No foi em vo que enterrei hoje meu quadragsimo quartoano, eu podia enterr-lo9 - o que nele era vida est salvo, imortal [...] Como no haveria eu de estar grato minha vida inteira? E por

    isso me conto minha vida.

    Friedrich Nietzsche, Ecce homo, epgrafe

    Nietzsche nasceu numa famlia protestante: seus dois avs eram pastores e ele tambm chegou a pensar em se tornar um.Aos cinco anos perdeu o pai e o irmo, restando-lhe somente a me e a irmo. A famlia mudou-se de Rocken para Naumburg,onde Nietzsche cresceu e se educou. Em 1858, obteve uma bolsa de estudos na ento famosa Escola de Pforta, onde comeoua se distanciar do cristianismo. Freqentou, entre 1864 e 1867, as Universidades de Bonn e de Leipzig, de onde se originouseu interesse por filologia.Filologia - Reconstituio histrica da vida do passado por meio da linguagem e, portanto, do estudo crtico de documentosliterrios

    De fillogo a filsofo

    Em 1869 foi nomeado professor de filologia clssica na Universidade de Basilia, Sua, onde permaneceu por dez anos eescreveu boa parte de sua obra: O nascimento da tragdia (l871),A filosofia na poca trgica dos gregos (l873), Introduoteortica sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral (l873), Consideraes extemporneas (l873/74) e Humano,demasiado humano (l878/80). O desdobramento do fillogo em filsofo deveu-se leitura do livro de Schopenhauer, Omundo como vontade e representao, que exerceu grande influncia sobre seus primeiros escritos. tambm desse perodo sua amizade com Richard Wagner, a quem, de incio, dedicou uma calorosa admirao,especialmente porque via em obras como Tristo e Isolda ou O anel dos Nibelungos uma espcie de reencarnao da tragdiagrega, da cultura dionisaca. Essa admirao foi arrefecida por volta de 1876, quando percebeu no amigo um prestigiador damediocridade cultural alem, acalentado por um crculo de nacionalistas e anti-semitas.Em 1878, ao receber o libreto de Parsifal, a ltima obra de Wagner, e notar que era eivada de preconceitos e superstiescrists, a amizade esfriou ainda mais, redundando num distanciamento cada vez maior, que culminou nos famosos textos em

    que denunciava a impostura wagneriana: O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner(l888). Apesar de no ter lido os textosna poca - at porque no estavam publicados -, Wagner percebeu que ganhara um crtico de grosso calibre, tanto que proibiu,desde ento, que o nome de Nietzsche fosse pronunciado nos limites de Bayreuth, sob qualquer alegao.

    Richard Wagner - Compositor alemo do sculo XIX, criou, em oposio pera tradicional, o que ele denominou drama-musical, em que msica e libreto formam uma unidade intrnseca expressiva, articulando um trabalho orquestralextremamente refinado ao canto e ao cnica. Considerado o ltimo compositor romntico, criou grandes inovaes nacomposio musical, um marco revolucionrio nesse sentido. Uma das caractersticas dos seus dramas-musicais arepetio e harmonizao de vrios leitmotive - associados a personagens, acontecimentos ou temas -, o que lhes imprimeuma temporalidade em espiral, de mltiplos centros e anis.

    Solido, incompreenso e doena

    Os primeiros dez anos em Basilia j revelaram a Nietzsche aquelas que seriam as tnicas de sua vila: a incompreenso deseus textos por seus contemporneos; a solido, somente quebrada por alguns poucos amigos; a sade precria, cujosdistrbios se manifestaram em 1873 com enxaquecas, dores na vista e problemas estomacais e que evoluiriam para a perda darazo em 1889. Na poca, a doena no foi diagnosticada; depois, suspeitou-se de um quadro degenerativo de origemsifiltica.Foi em funo da sade precria que Nietzsche se viu obrigado a pedir demisso da Universidade de Basilia, em 1879, ecomeou uma vida errante, percorrendo a Sua, a Itlia, a Frana e a Alemanha; nesse perodo, o tempo maior que conseguiuparar em algum lugar foi seis meses. Nessa errncia, que durou at a perda da razo, produziu o restante de sua obra:Aurora(l880/1881), A gaia cincia (l881/82), Assim falou Zaratustra (l883/85), Alm do bem e do mal (l885/86), Genealogia damoral (l887), Crepsculo dos dolos (l888), O Anticristo (l888), Ecce homo (l888), alm de uma srie de fragmentos e notasque somente foram publicados aps a sua morte.

    Pedidos de casamento recusados, interesses e afetos no-correspondidos teceram a vida amorosa de Nietzsche. Dentre essasrecusas, destaca-se a paixo no-correspondida por Lou Andras-Salom - uma jovem russa ento em viagem com a me pelaEuropa -, que posteriormente seria conhecida como psicanalista e colaboradora de Freud.Nessa poca, o que se formou foi um tringulo amoroso entre Nietzsche, seu amigo Paul Re e a jovem viajante, entremeadopor intrigas e pela oposio preconceituosa da famlia de Nietzsche relao amorosa. O episdio terminou com a unio de

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    Lou e Paul Re e o rompimento de Nietzsche com ambos e com a prpria famlia. J nessa poca, ele usava os maisdiferentes tipos de drogas para aplacar seus sintomas: sais, soporferos e haxixe. Aps a desiluso com Lou Salom,perseguiram-no idias de suicdio: por trs vezes, ingeriu doses abusivas de narcticos.Foi como um solitrio incompreendido que Nietzsche viveu at o fim de seus dias. Numa carta ao amigo Overbeck (Cf.MARTON, 1991: 75-6), ele assim se expressa:

    Se eu pudesse dar-lhe uma idia do meu sentimento de solido! Nem entre os vivos nem entre os mortos, no tenho algum

    de quem me sinta prximo. No se pode descrever como aterrorizador; e apenas o treino em suportar esse sentimento e ocarter progressivo de sua evoluo desde a tenra infncia permitem-me compreender que no tenha sido totalmenteaniquilado por ele.

    A incompreenso da obra de Nietzsche por seus contemporneos chegou ao ponto de o desinteresse das editoras obrigar ofilsofo a custear, do prprio bolso, a Publicao de suas ltimas obras. O reconhecimento s viria no final da vida e, mesmoassim, s ganharia fora total aps a sua morte. Com tudo isso, ele reconhecia, a partir do valor se suas obras, a importncia desua trajetria existencial: "Como no haveria eu de estar grato minha vida inteira?", diz ele no incio de Ecce homo.

    Encarnando cada um dos personagens

    Das grandes relaes que Nietzsche manteve na vida, a maior e mais importante foi com um fiel amigo-colaborador, que o

    acompanhou at o fim e que foi o responsvel pela compilao de todas as suas obras finais: Heinrich Koselitz, que Nietzschecarinhosamente rebatizara com o apelido de Peter Gast (Pedro, o hspede), por razes desconhecidas para os seus bigrafos, eque assim ficou conhecido desde ento. Peter Gast era, alm de tudo, msico, o que o habilitou tambm a transcrever empartituras as Poucas e desconhecidas composies musicais que Nietzsche produziu na vida. A ele se referiu o compositorCaetano Veloso, numa de suas msicas:

    Peter Gast,o hspede do Profeta sem morada,O menino bonito Peter Gast,Rosa do crepsculo de Veneza.

    Os primeiros sinais de degenerao mental de Nietzsche aparecera em janeiro de 1889; a doena alastrou-.se, levando-o a umatotal perda d identidade. A partir de ento, ele se designava pelos vrios personagens d sua obra: Dioniso, Cristo e outros

    tantos com os quais se identificara e algum momento da vida.De qualquer forma, independentemente da doena, talvez seja possvel dizer que Nietzsche, de fato, encarnou na prpria pelecada um desses personagens, enquanto deles falava. Nada de estranho, pois, que se designasse por seus nomes no final davida. Nesse estado crepuscular, ainda viveu mais de dez anos sob custdia familiar, primeiro da me e depois da irm. Asconseqncias funestas dessa custdia foram a usurpao e deturpao de sua obra, j mencionadas anteriormente.

    Morreu em 25 de agosto de 1900, pouco tempo depois da virada do sculo.

    TEXTOS SELECIONADOS

    1. superfcie de um mar agitado

    Nesta descrio biogrfica de um perodo da vida de Nietzsche, Daniel Halvy nos d uma idia bastante sugestiva dofervilhar de acontecimentos que articulava a sua existncia naqueles primeiros tempos.

    Esse segundo ano de estudos em Leipzig incontestavelmente feliz. Nietzsche goza plenamente da segurana intelectual queo domnio de Schopenhauer lhe assegura. Escreve ao amigo Deussen:

    Pedes-me uma apologia de Schopenhauer? Direi simplesmente isto- olho a vida de frente, com coragem e liberdade, desdeque meus ps encontraram um cho em que pisar. As guas da perturbao, para me servir de uma metfora, no medesviam de meu caminho, porque no me abalam; sinto-me em casa nessas regies obscuras.

    Ano de recolhimento ativo e de camaradagem. Nietzsche desinteressa-se das questes pblicas, e com razo: elas deixaram de

    ter qualquer grandeza. A Prssia, mal conquistou sua vitria, retornou ao nvel da vida cotidiana. os falatrios da tribuna e daimprensa sucederam ao dos grandes homens, dos dois grandes, Bismarck e Moltke; Nietzsche retira-se."Que uma multido de crebros medocres se ocupe de coisas com importncia e conseqncias reais", escreve, " umpensamento assustador." Talvez haja algum remorso por se ter deixado seduzir por uma peripcia dramtica. Acontece, de

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    quando em quando, que a interveno de um gnio confira algum interesse, algum brilho histria. Mas trata-se apenas deum brilho artificial, e a histria s se transfigura por um breve momento. E esse o tema de uma nota manuscrita:

    Ser a histria mais do que o combate de interesses inmeros e diversos, a lutarem pela existncia? As grandes "idias",onde muitos julgam descobrir as foras diretrizes desse combate, no so mais do que reflexos que passam superfcie domar agitado. Elas no tm nenhum efeito sobre o mar, mas do muitas vezes uma bela aparncia s ondas, enganando assimaquele que as contempla. Pouco importa que essa luz emane de uma lua, de um sol ou de um fiaria]: as ondas sero um

    pouco mais ou um pouco menos brilhantes. Eis tudo.

    Toma-se de paixo por seu mestre Ritschl: "Esse homem minha conscincia cientfica", diz ele. Dirige, vigia de perto osestudos da sociedade que fundou. Imagina mais trabalhos do que capaz de realizar, e prope-nos a seus amigos. Guardapara si prprio o exame das fontes de Digenes Larcio, esse compilador a quem devemos tantas informaes valiosas sobreos filsofos da Grcia.Em abril, organiza e redige suas notas: tarefa rdua; no quer escrev-las maneira dos eruditos, que ignoramo sabor daspalavras, o equilbrio das frases. Quer escrever, no o difcil e clssico do vocbulo:

    Finalmente percebo a verdade. Vivi por muito tempo num estado de inocncia estilstica. O imperativo categrico "Deve-seescrever, tens de escrever" me despertou. Tentei escrever bem. um trabalho que eu havia esquecido desde que sa dePforta, e a princpio a pena falseou-me entre os dedos. Sentia-me impotente, irritado. Resmungavam em meus ouvidos os

    princpios da boa linguagem estabelecidos por Lessing, Lichtenberg, Schopenhauer. Lembrava-me pelo menos, e era esse omeu consolo, que essas trs autoridades so acordes em dizer que difcil escrever bem, que nenhum homem escrevenaturalmente bem, e que, para adquirir um estilo, preciso muito trabalho e persistncia... Antes de tudo, quero seduzir commeu estilo alguns espritos felizes; dedicar-me-ei a essa tarefa como me dedico s minhas teclas, e pretendo executar, por fim,no apenas trechos aprendidos, mas livres fantasias, livres na medida em que isso possvel, ainda que sempre lgicas ebelas.

    Ocupao e alegria de um outro gnero: ligou-se a um aluno de Ritschl, Erwin Rohde, esprito forte e laborioso que tem umabrilhante carreira pela frente. Nietzsche punha muito ardor em suas amizades. Seus colegas de Pforta se haviam dispersado:Gersdorff em Goettingen, Deussen em Berlim; Nietzsche no os esquecia, escrevia-lhes com freqncia. Mas as cartastrocadas no satisfaziam sua necessidade de comunicao constante, ntima. Erwin Rohde tornou-se, e continuou sendo pormuito tempo, o seu maior amigo. Nietzsche admirou-o, atribuindo-lhe generosamente uma genialidade que nele era apenas o

    reflexo de um outro.Todas as noites, depois dos dias cansativos, os rapazes voltavam a se encontrar. Nos meses de bom tempo, percorriam acavalo os arredores de Leipzig. Na volta, entravam na Universidade com botas e de chicote na mo, e os colegas admiravamesses formosos atletas, lderes em tudo. "Pela primeira vez" escreve Nietzsche, "experimento o prazer de uma amizade que seconstri sobre um pano de fundo moral e filosfico. Ocorrem discusses calorosas, pois discordamos em muitos pontos. Masbasta que nossas conversas assumam um aspecto mais profundo, e 1090 os pensamentos discordantes desaparecem e instala-seentre ns um calmo e total acordo." Eram ambos schopenhauerianos.Em agosto, com a chegada das frias, deixam Leipzig e vo explorar, de mochila s costas, as colinas arborizadas que seelevam nos confins da Bomia e da Saxnia. Vo de albergue em albergue, sempre andando e sempre conversando. Julgamcom severidade os recentes trabalhos dos fillogos alemes, dominados pela mincia. O que se esqueceram de estudar? Oablativo em Tcito, a evoluo do gerndio nos autores latinos da frica, a lngua da Ilada em seus aspectos maisparticulares. Mas a beleza daIlada nica, ela era sentida por Goethe, e eles a ignoram. chegado o momento de pr termo pesquisa erudita. Isso, convm eles, ser tarefa da nossa gerao. Melhor instruda do que Goethe, mas guardando

    fidelidade ao seu gnio, ela se h de apoderar do legado transmitido pelo passado e colher os seus frutos. A cincia, tambmela, deve estar a servio do progresso.Aps um ms de peregrinaes, abandonam as florestas e dirigem-se para Meiningen, pequena cidade em que os msicos daescola pessimista davam uma srie de concertos. Uma carta de Friedrich Nietzsche nos conservou a crnica desse festivalmetafsico: "O padre Liszt presidia os trabalhos. Executou-se um poema sinfnico de Hans de Blow, Nirvana, cujaexplicao era dada no programa por meio de mximas schopenhauerianas. Mas a msica era terrvel. Liszt, no entanto,soube encontrar, de maneira notvel, o carter desse Nirvana indiano em algumas de suas composies religiosas, porexemplo, em suas Beatitudes". (Sobre Wagner, nenhuma palavra. No entanto o seu dia se aproxima.) Nietzsche e Rohdeseparam-se logo aps essas festas, e voltam para suas famlias.

    (Halvy,Daniel. Nietzsche - uma biografia. Trad. Roberto Cortes de Lacerda e Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Campus,1989, p. 41-4)

    2. O andarilho e o crculo

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    Neste fragmento, Lou Andras-Salom faz uma analise da obra de Nietzsche, articulando-a sua vida. Rompimentos,separaes e voltas funcionam a ligados imagem do crculo, no eterno retorno: .uma eterna mudana, numa eternarepetio ".

    A primeira metamorfose que Nietzsche realizou em sua vida situa-se no crepsculo de sua infncia ou, pelo menos, de suapuberdade. E o rompimento com a f na Igreja crist. Em suas obras, raramente se menciona essa ruptura.No obstante, ela pode ser considerada o ponto de partida de suas metamorfoses, porque, com ela, j se esclarece acaracterstica peculiar de sua evoluo. Suas declaraes sobre o assunto, que ambos discutimos de forma especialmente

    detalhada, diziam respeito sobretudo s causas que produziram o rompimento de sua f. Alis, a maioria dos homens deinclinao religiosa s impelida por motivos intelectuais, e em conflitos dolorosos, a renegar seus conceitos sobre a f.Mas, em casos raros, onde o primeiro alheamento parte da prpria vida emocional, o processo pacfico e indolor: a razoapenas decompe o que j estava previamente morto um cadver.No caso de Nietzsche ocorreu um cruzamento singular dessas duas modalidades: no foram apenas os motivos intelectuaisque, originalmente, o libertaram dos conceitos inculcados, tampouco deixara a velha f de corresponder s necessidades desua ndole. Pelo contrrio, Nietzsche, repetidamente acentuava que o cristianismo da parquia paterna se assentava suaessncia interior "liso e suave como uma pele s", e que, para ele, o cumprimento de todos os seus mandamentos se tomara tofcil como a observncia de uma tendncia prpria. Considerava esse "talento", por assim dizer, nato e inalienvel, paraqualquer religio, uma das causas da simpatia que lhe dispensavam cristos srios, mesmo quando j estava deles separadopor um profundo abismo espiritual.O instinto obscuro que, pela primeira vez, o expulsou dos crculos de idias que encarecia e amava, despertou justamentenesse sentimento de bem-estar, desse clido "estar em casa', pelo qual sua essncia se sentia envolvida. Para chegar a si

    mesmo, numa evoluo plena, seu esprito precisava de lutas psquicas, dores e abalos; era preciso que seu gnio se separassedesse tranqilo estado de paz, pois sua fora criativa era dependente da emoo e da exaltao de seu interior. Aqui, pelaprimeira vez, nos defrontamos na vida de Nietzsche com o fenmeno da exigncia de dor na natureza decadente".Em circunstncias pacficas, o guerreiro agride a si mesmo" (Alm do bem e do mal, 76) e exila-se num pas de idiasestrangeiras onde, doravante, est fadado a um eterno vagar, sem descanso. Doravante, em seu desassossego, Nietzscheabriga uma nsia insacivel que aspira pelo paraso perdido, enquanto a evoluo de seu esprito o fora, o tempo todo, a delese afastar em linha reta.No dilogo sobre as metamorfoses que deixara para trs, Nietzsche certa vez expressou um pouco jocosamente o seguinte:

    Sim, desse modo comea agora a marcha e desse modo prossegue; mas at onde? Se tudo j est percorrido, para onde secorre nesse caso? Se estivessem esgotadas todas as possibilidades de combinao, o que sucederia ento? de que modo?No deveramos retornar f? Talvez uma f catlica?

    E o pensamento secreto oculto nessa declarao revelou-se nestas palavras, acrescentadas com gravidade: "Em todo caso, ocrculo seria mais provvel que a paralisao".Um movimento que retrocede sobre si mesmo, que nunca pra eis, na verdade, o distintivo de toda a mentalidade deNietzsche. As possibilidades de combinao no so de modo algum infinitas; so, ao contrrio, muito limitadas, pois ompeto que o leva para a frente, que o faz ferir-se a si prprio e que no deixa os pensamentos repousarem, brotaintegralmente de sua singular personalidade interna: por mais distante que os pensamentos paream divagar, permanecem,contudo, sempre ligados aos mesmos processos psquicos que continuamente os foram a voltar ao domnio de suasnecessidades predominantes.Veremos at que ponto a filosofia nietzschiana descreve, com efeito, um crculo, e como, por fim, o adulto, em algumas desuas vivncias mais ntimas e secretas, se reaproxima do menino, de modo que, para o andamento de sua filosofia, valem suasprprias palavras: "vejam um rio que, depois de meandros, flui de volta nascente" (Assim falou Zaratustra, "Da virtudeamesquinhadora", 1, III, 23). No por acaso que, em seu ltimo perodo criativo, Nietzsche tenha chegado sua msticadoutrina de um eterno retorno: a imagem do crculo, de uma eterna mudana numa eterna repetio, figura como um smbolo

    maravilhoso e como um sinal secreto sobre a porta de entrada s suas obras.

    (Andras-Salom,Lou.Nietzsche em suas obras. Trad. Jos Carlos Martins Barbosa. So Paulo, Brasiliense, 1992, p. 62-5)

    3. O romntico decadente

    Neste aforismo, Nietzsche fala de sua relao com Richard Wagner segundo ele um romntico de origem francesa que secorrompeu ao identificar-se com os ideais alemes (representados no texto pelo carola, o bonacho).

    Aqui, onde falo das recreaes de minha vida, preciso de uma palavra para exprimir minha gratido por aquilo que nela foi, delonge, o que mais profundamente e mais de corao me recreou. Foi, sem dvida nenhuma, o trato mais ntimo com RichardWagner. Deixo barato o resto de minhas relaes humanas; por nenhum preo eu cederia, de minha vida, os dias deTribschen, dias da confiana, da serenidade, dos sublimes acasos - dos instantes profundos... No sei o que outros viveram

    com Wagner; por sobre nosso cu nunca passou uma nuvem.E com isso, mais uma vez, volto Frana - no tenho razes, tenho apenas um ricto de desdm nos lbios contra oswagnerianos e hoc genus omne que acreditam honrar Wagner achando-o semelhante a si. Assim como sou, em meus maisprofundos instintos, estrangeiro a tudo o que alemo, a tal ponto que j a proximidade de um alemo atrasa - assim o

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    primeiro contato com Wagner foi tambm a primeira vez em minha vida em que pude respirar: senti que o venerava comopas estrangeiro, como oposto, como o protesto encarnado contra todas as "virtudes alems".Ns, que fomos crianas no ar pantanoso dos anos cinqenta, somos necessariamente pessimistas quanto ao conceito de"alemo"; no podemos ser seno revolucionrios - no admitiremos nenhum estado das coisas, em que o carola esteja porcima. Para mim, perfeitamente indiferente que ele hoje use outras cores, que se vista de escarlate e envergue uniformes dehussardo... Pois bem! Wagner era revolucionrio - fugia dos alemes...Como artista no se tem nenhuma ptria na Europa fora Paris: a dlicatesse de todos os cinco sentidos artsticos, que a arte deWagner pressupe, os dedos para nuances, a morbidez psicolgica encontram-se somente em Paris. Em nenhum outro lugar

    se tem essa paixo em questes da forma; essa seriedade na mise-en-scne - a seriedade francesa par excellence. NaAlemanha no se tem nenhum conceito da descomunal ambio que vive na alma de um artista parisiense. O alemo bonacho - Wagner no era nada bonacho...J enunciei suficientemente (em Alm do bem e do mal, aforismo 256) onde o lugar de Wagner, em que ele tem seusparentes mais prximos: o romantismo francs da ltima fase, aquela espcie de artistas de alto vo e alto arrebatamento,como Delacroix, como Berlioz, com umfondde doena, de incurabilidade em seu ser, puros fanticos da expresso, virtuosesde ponta a ponta...Quem foi o primeiro adepto intelligent de Wagner? Charles Baudelaire, o mesmo que foi o primeiro a entender Delacroix,esse tpico dcadent, em quem uma gerao inteira de artistas se reconheceu - ele foi tambm, talvez, O ltimo... O que nuncaperdoei a Wagner? Ter condescendido com os alemes - ter-se tornado alemo doReich... At onde a Alemanha alcana*, elacorrompe a civilizao.

    (Nietzsche,Friedrich. "Por que sou to esperto", 5 Ecce homo. ln: Nietzsche - Obras. Trad. Rubens Rodrigues Torres

    Filho, So Paulo, Abril, 191-8, p. 371-2.)* O adjetivo reichsdeutsch ("alemo do Reich") refere-se ao Reich alemo do perodo 1871-1938, com suas conotaespolticas e ideolgicas: no bastaria, portanto, traduzir simplesmente por "cidado da Alemanha".- "At onde a Alemanha alcana" (So weit Deutschiand reicht) um trocadilho entre essereich e o verbo reichen - "ir","estender-se (uma regio)". (N. do T.)

    4. Aprendendo a amar o destino

    Neste aforismo, Nietzsche realiza uma daquelas famosas inverses de valores em que as pequenas coisas do cotidiano

    ganham a importncia e o relevo at ento atribudos s "grandes causas ": as questes da alma, da virtude, do pecado, daverdade, etc. cedem lugar s da alimentao, do lugar, do amor-prprio. E, no final do texto, o filsofo danos uma das maisbelas definies do que ele denominava amor fati (amor ao destino).

    Essas pequenas coisas - alimentao, lugar, clima, recreao, a inteira casustica do amor-prprio so, para alm de todos osconceitos, mais importantes do que tudo a que se deu importncia at agora. Aqui precisamente preciso comear areaprender. Aquilo que at agora a humanidade ponderou seriamente nem sequer so realidades, so meras imaginaes ou,dito mais rigorosamente, mentiras provenientes dos piores instintos de naturezas doentes, perniciosas no sentido maisprofundo - todos os conceitos "Deus", "alma", "virtude", "pecado", "alm", "verdade", "vida eterna"... Mas procurou-se neles agrandeza da natureza humana, sua "divindade"...Todas as questes da poltica, da ordem social, da educao foram falsificadas pela base e pelo fundamento por se tomarem oshomens mais perniciosos por grandes homens - por aprenderem a desprezar as "pequenas" coisas, quer dizer, as disposiesfundamentais da prpria vida... E, se me comparo com os homens que at agora foram honrados como os primeiros doshomens a diferena palpvel. Nem sequer tenho esses pretensos primeiros" em conta de homens em geral - so para mimvmito da humanidade, aborto de doena e instintos vingativos: so apenas funestos, no fundo incurveis monstros inumanos,que tomam vingana da vida... Disso quero ser o oposto: minha prerrogativa ter a suprema finura para todos os signos deinstintos sadios.Falta em mim qualquer trao doentio; mesmo nos tempos de mais grave doena, nunca me tornei doentio; em vo que seprocura em meu ser por um trao de fanatismo. Em nenhum instante de minha vida se poder apontar um gesto pretensioso oupattico. O pathos das atitudes no pertence grandeza; quem em geral necessita de atitudes falso... Cuidado com oshomens pitorescos!A vida se tornou para mim leve, levssima, quando reclamava de mim o mais pesado. Quem me viu nos setenta dias desseoutono, em que eu, sem interrupo, s fiz coisas de primeira ordem, que nenhum homem pode repetir - ou imitar, com umaresponsabilidade por todos os milnios depois de mim, no ter percebido nenhum trao de tenso, mas antes umtransbordante frescor e serenidade. Nunca comi com mais gosto, nunca dormi melhor.No conheo nenhum outro modo de tratar com grandes tarefas, a no ser o jogo: isso, como sinal de grandeza, umpressuposto essencial. A mnima coao, a expresso sombria, algum tom duro na garganta, tudo isso so objees contra umhomem, quanto mais contra sua obra!... No permitido ter nervos... Tambm sofrercom a solido uma objeo - sempresofri somente com a "multido"... Absurdamente cedo, aos sete anos, eu j sabia que nunca me alcanaria uma palavrahumana; algum j me viu atribulado com isso?

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    Ainda hoje tenho a mesma afabilidade para com todos, e at mesmo trato com toda distino os mais inferiores; em tudo issono h um gro de petulncia, de desprezo secreto. Quem eu desprezo adivinha que desprezado por mim: revolto por minhamera existncia tudo que tem sangue ruim no corpo... Minha frmula para a grandeza do homem amor fati: no querer nadade outro modo, nem para diante, nem para trs, nem em toda eternidade. No meramente suportar o necessrio, e menos aindadissimul-lo - todo o idealismo mendacidade diante do necessrio -, mas am-lo...

    (Nietzsche, Friedrich. "Por que sou to esperto", 10 Ecce Homo. ln: Nietzsche - Obrasincompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. So Paulo, Abril, 1978, p. 373-4)

    ATIVIDADES

    1. Pesquise e descubra alguma poesia que fale do sentimento de solido. Analise-a .2. Escreva um comentrio sobre como voc foi tocado afetivamente ao ler esta pequena biografia de Nietzsche3. Depois de ler os textos complementares, faa duas colagens com recortes de fotos de jornais e revistas mostrando o que

    viver a vida intensamente para voc e para Nietzsche

    VAMOS REFLETIR

    1. Voc acha que a solido pode ser uma experincia de vida importante?2. Por que voc acha que os gnios so sempre incompreendidos na poca em que vivem?

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    Foi Apolo. Foi Apolo, sem, meu amigo!Foi Apolo o autor de meus males,De meus males terrveis; foi ele!Mas fui eu quem vazou os meus olhos.Mais ningum. Fui eu mesmo, o infeliz!Para que serviriam meus olhosQuando nada me resta de bom

    Para ver? Para que serviriam?

    Aqum e alm dos deuses

    No universo trgico, quem cometia hbris era todo aquele que, atravs de um ato, ultrapassasse a medida humana, seja emdireo dimenso ilimitada de um deus, seja em direo dimenso irrefletida de um animal. dipo, por exemplo, aocometer parricdio e incesto ultrapassa essa medida, dado que esses crimes so prerrogativas dos deuses ou da inconscinciaanimal. verdade que seus atos no tiveram carter intencional, que foram marcados pelo puro desconhecimento: elematara um velho ao entrar em Tebas, porque fora provocado e aoitado por ele, sem saber que era Laio, rei de Tebas e seupai; da mesma forma, recebera a mo da rainha Jocasta como prmio por ter decifrado o enigma da Esfinge livrado a cidadedo monstro. Entretanto, apesar do desconhecimento, h uma hbris que atravessa todo o seu percurso, tal qual aparece natragdia dipo-rei, de Sfocles: o orgulho, a prepotncia, que o acompanham desde a sada de Corinto e o levam at o final

    da trama, a tentar descobrir o assassino do rei Laio, sem suspeitar que ele pudesse ser o assassino, sem sequer imaginar queLaio pudesse ser seu pai. Embora oficialmente dipo fosse filho dos reis de Corinto, ele sabia da possibilidade de ser apenasfilho adotivo, pois, certa vez, um corteso embriagado jogara-lhe essa ofensa no rosto. Tambm havia consultado o Orculode Delfos, santurio do deus Apolo, e recebido a previso de que mataria seu pai e partilharia o leito de sua me. Foi entoque se desviou de Corinto e tomou o caminho de Tebas, imaginando que, assim, escaparia da previso. Opera, pois, a, uma prepotncia que desconsidera a fora do orculo, que se imagina acima das injunes do destino humano, imune circunstncias capazes de produzir desgraa e infortnio, como se no habitasse este mundo, feito de surpresas e acasosinesperados, como se a vida no fosse meramenteNo final de tudo, ao se perceber completamente cego trama quedeterminara sua vida, dipo cega-se de fato, furando os olhos: na escurido, dever aprender a "ver"o mundoinvisvel das foras que ele desconsiderara at ento, aquele que opera sob o mundo das formas visveis e que osgregos chamavam de mora (= destino).

    Roberto Calasso em seu livroAs npcias de Cadmo e Harmonia mostra que, na Grcia arcaica, a noo de culpacarregava um sentido completamente diverso daquele que, mais tarde, o mundo ocidental lhe daria: estavaassociada idia de delito, mas como algo que pertence vida, no sendo depositada em ningum em especial.Por essa razo, deslocava-se sempre por vrios supostos "sujeitos", sem nunca se centrar numa pessoa. Assim,culpada foi a faca que matou o boi; ou culpado foi o prprio boi, que comeu o bolo oferecido aos deuses e foiento, morto por um campons enfurecido - segundo um mito que nos conta a origem dos sacrifcios de animaisaos deuses. Nesse exemplo, o campons pode livrar-se facilmente da culpa, deslocando-a apra seres que, no tendoo Dom da palavra, no sabem se defender, como a faca ou o boi.No mundo trgico, a cosia era um pouco diferente, mas no inteiramente. Se j se podia acusar o autor de umcrime por adkema, nunca se podia ter certeza de que ele no fora de alguma forma comandado por uma potnciareligiosa, de que no cumprira o desgnio de algum deus. Assim, por exemplo nas Eumnides de squilo, aps ter

    assassinado sua me (como vingana pela morte de seu pai, que ela e o amante haviam apunhalado), Orestespoder justificar seu crime dizendo que foi ordenado por Apolo, acabando por ser absolvido por Palas Atenas.Todos esses deslocamentos serviam para afastar a culpar apara esferas distantes, desconhecidas, libertando ohomem do seu peso moral.Essa possibilidade de projetar em foras religiosas a responsabilidade por seus desvarios era uma das grandesvantagens que Nietzsche via no mundo trgico, uma vez que, por meio do sentimento de culpa, o homem modernose volta contra si prprio e ataca, desqualifica, uma dimenso fundamental de seu ser: a agressividade, alm deoutros afetos considerados pouco "dignos", tais como dio, cime, inveja. Ora, o homem trgico sabia, muito maisdo que qualquer um de ns, respeitar esse lado escuro da alma, ele sabia que, quando era tomado por certosimpulsos vitais sob a possesso de um deus e ficava fora de si, ocorriam desgraas.Entretanto, em outras circunstncias esses mesmos impulsos, quando bem dirigidos, eram foras importantes, sejade criao, seja, pelo menos, de apoio vital: a agressividade como fora transformadora (em processos de

    autodefesa); o dio (como um aliado da agressividade, nesses mesmos processos; o cime e a inveja como foras de auto-sustentao, em momentos em que a nossa existncia est alienada de si prpria, s capaz de desejar o que fantasiamos que ooutro recebe ou possui.Esse respeito integral s foras vivas, nos trgicos, advinha do fato de no conceberem as aes como totalmente centradasnos "egos", de postularem um universo mltiplo e polivalente, pelo qual os homens eram atravessados de ponta a ponta. Os

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    crimes, os delitos, tinham origem justamente no que eles denominavam hbris (que significa desmesura), ou seja, em estadosem que os indivduos se centravam em si prprios, fechando-se no prprio poder, inflando-o para aqum ou alm da medida,dos limites da condio humana, e esquecendo-se das foras misteriosas que os dominavam. Nesses estados, ficavam mercdessas foras, fora de si, cegos, advindo da atos de conseqncias imprevisveis (hamrtema).Quando voltavam a si, tinham uma dvida a resgatar com aqueles seres atingidos por esses atos, e essa dvida se transmitia aseus descendentes. Ento, sofriam as punies - impostas pelos deuses ou pelos homens - e choravam suas dores, num castigodiretamente provocado pelo seu orgulho, pela ausncia de uma avaliao correta de seu tamanho, de sua medida, por terem seesquecido de que erram apenas homens e aspirado condio divina, ilimitada.

    Quo nefastas eram, pois, as conseqncias quando os homens se colocavam como centro do mundo, nopuro esquecimento dasforas do destino, invisveis, misteriosas e transcendentes!

    As foras do destinoDe acordo com a mitologia grega, o destino representado pelas Moras, as trs deusas (Cloto, Lquesis e tropos) que fiam dobram ecortam o fio da vida. Personificam a "poro" de vida, felicidade e desgraa que cabe a cada um neste mundo. Tanto as entidades tecelscomo o destino que elas tecem possuem o mesmo nome (mora).

    Mesmo diante de todos os castigos e sofrendo inmeras dores, o homem trgico estava livre da piordelas: a auto-acusao, a autoflagelao ou seja, aquilo que denominamos sentimento de culpa.

    Um distanciamento esttico

    A tragdia ensinava uma sabedoria de viver isenta de qualquer conotao moral. Ao deslocar a hbris eos acontecimentos nefastos que dela decorriam para a vida de um heri, criando um distanciamentoesttico, a tragdia mantinha essas foras atuante e visveis, ao mesmo tempo que evitava sua perigosadestrutividade. Assim, em vez de ser atravessado por elas de forma descontrolado, o homem grego podiapresenciar o heri nessa condio e aprender atravs das suas desgraas. A tragdia funcionava, assim,como uma escola de vida. importante lembrar, aqui, que a tragdia grega era um acontecimento pblico, encenado em grandes estdios. Havia concursos detragdias, com encenao das vencedoras em grandes festivais. A tragdia originalmente envolvia a msica, o canto e a dana, alm darepresentao teatral (que, por sua vez, pressupe a poesia e as artes cnicas); reunia, nesse sentido todas as formas artsticas entrelaadasnuma mesma manifestao.

    O grande elogio mundo trgico, Nietzsche o realizou em seu primeiro livro, o nascimento da tragdia.A ele descreve a tragdia como unio de dois impulsos bsicos da natureza: o impulso apolneo e oimpulso apolneo.Ao impulso dionisaco, assim nomeado em referncia o deus Dioniso, pertencem todas as foras queesto presentes ira vida sob a forma de xtase, unio csmica com a natureza em alegria ou sofrimento,expanso, intensidade, fecundidade, eterna transmutao.Dioniso o caos originrio, o sem-fundo proliferante a partir do qual se produzem todas as formas; oconjunto das foras do mundo em eterno movimento de expanso e de intensificao,prenhe de virtualidades, aspirando a alguma forma possvel.Ao impulso apolneo, que faz referncia o deus Apolo, pertencem as foras ligadas a processos de darforma, limites, contornos, individualidade, clareza e direo a impulsos originalmente caticos. Atragdia realiza, pois, essa unio dos dois impulsos, ao dar forma esttica s profuses transbordantes davida.Entretanto, a angstia diante dos perigos desse caos originrio, dionisaco, levou o homem grego a acharque no bastava disfar-lo, sob o manto da bela forma apolnea: era preciso disciplin-lo, orden-lo,dividindo-o em verdades e falsidades, em categorias deBem e de Mal. Era preciso substituir esse saberintuitivo, artstico, por um conhecimento racional, capaz de permitir o controle do mundo.Isso foi realizado pela metafsica e pela moral, a primeira fundando um mundo verdadeiro por meio darazo; a segunda fundando um mundo bom por meio do imperativo moral. Mas, ao fazer isso, o homemgrego passava a selecionar, filtrar os impulsos da natureza: doravante somente aqueles disciplinveis eordenveis em termos de valores de Verdade e de Bem passariam na seleo. E a vida, que para os

    trgicos era integralmente justificada, passou a ter uma parte considerada falsa e outra m, portantoambas repudiveis.Com a filosofia socrtica nasciam os valores metafsicos e os valores morais, transferindo o l6gos (=razo) e a dik (=justia), que para os trgicos eram imanentes ao cosmos, para a esfera das habilidades

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    e decises humanas, dando forma, ento, s noes de inteligncia, responsabilidade e culpa. O homem,finalmente, ocupava o centro do mundo, esconjurando todas as foras misteriosas que um dia aprendera arespeitar. Rapidamente, a tragdia declinou e desapareceu.A squilo, Sfocles e Eurpedes (que Nietzsche j considerava um trgico decadente) seguiram-seScrates, Plato, Aristteles. A vida perdia sua fecundidade e sua profuso csmica em formasdisciplinadas, ordenadas.A intensidade cedia lugar ao meio-termo; o mundo real, multiproliferante, ao mundo ideal - o mundo das

    Idias platnicas, o universo dos conceitos e da lgica aristotlicos - medida que esse segundo mundo,o ideal, tornava-se critrio do primeiro, passando a avali-lo, discrimin-lo selecion-lo, hierarquiz-lo,ou, num s termo, a control-lo a partir de critrios metafsicos e morais, quer dizer, de critriosracionais.Quando surgiu o cristianismo, mais tarde, ele s veio reforar e dar forma a esse ascetismo, atravs danoo de pecado, que se sobreps de culpa. O homem radiante, inocente, puro esplendor, que j setornara responsvel e culpado, torna-se, ento, pecador, num mundo gerador de pecado, s lhe restandorenunciar vida terrena, "m", e ao mundo real g@ pecaminoso", por uma vida eterna, "boa", e ummundo imaginrio, "redentor". Estava fundada a cultura ocidental.

    TEXTOS SELECIONADOS

    1. A cidade fazendo-se teatro

    Dois dos mais renomados helenistas da atualidade, Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, traam a fisionomia docontexto em que a tragdia se desenvolveu, das tenses e ambigidades que a atravessam como expresso artstica.

    A tragdia surge na Grcia no fim do sculo VI a.C. Antes mesmo que se passassem cem anos, o veio trgico se tinha esgotado e quando, nosculo IV, na Potica, procura estabelecer--lhe a teoria, Aristteles no mais compreende o que o homem trgico que, por assim dizer, setornara estranho para ele.Sucedendo epopia e poesia lrica, apagando-se no momento em que a filosofia triunfa, a tragdia, enquanto gnero literrio, aparececomo a expresso de um tipo particular de experincia humana, ligada a condies sociais e psicolgicas definidas. Esse aspecto demomento histrico, localizado com preciso no espao e no tempo, impe certas regras de mtodo na interpretao das obras trgicas.Cada pea constitui uma mensagem encerrada num texto, inscrita nas estruturas de um discurso que, em todos os nveis, deve constituir o

    objeto de anlises filolgicas, estilsticas e literrias adequadas. Mas esse texto no pode ser compreendido plenamente sem que se leve emconta um contexto. em funo desse contexto que se estabelece a comunicao entre o autor e seu pblico do sculo V e que a obra podereencontrar, para o leitor de hoje, sua plena autenticidade e todo seupeso de significaes.Mas o que entendemos por contexto? Em que plano da realidade o situaremos? Como veremos suas relaes com o texto? Trata-se, emnossa opinio, de um contexto mental, de um universo humano de significaes que , consequentemente, homlogo ao prprio texto aoqual o referimos: conjunto de instrumentos verbais e intelectuais, categorias de pensamentos, tipos de raciocnios, sistemas derepresentaes, de crenas, de valores, formas de sensibilidade, modalidade de ao e do agente.A esse propsito, poder-se-ia falar de um mundo espiritual prprio dos gregos do sculo V, se a frmula no comportasse um graverisco de erro. Ela, com efeito, faz supor que existiria em algum lugar um domnio espiritual j constitudo e que atragdia apenas teria que apresentar, sua maneira, um reflexo dele. Ora, no h universo espiritual existente emsi, fora das diversas prticas que o homem desenvolve e renova continuamente no campo da vida social e dacriao cultural. Cada tipo de instituio, cada categoria de obra possui seu prprio universo espiritual que preciso elaborar para que se constitua em disciplina autnoma, em atividade especializada, correspondente a um

    domnio particular da experincia humana.Assim, o universo espiritual da religio est plenamente presente nos ritos, nos mitos, nas representaes figuradasdo divino; quando se edifica o direito no mundo grego, ele toma sucessivamente o aspecto de instituies sociais,de comportamentos humanos e de categorias mentais que definem o esprito jurdico, por oposio aoutras formasde pensamento, em particular s religiosas. Assim, tambm com a cidade desenvolve-se um sistema deinstituies e de comportamentos, um pensamento propriamente poltico. Ainda a ntido o contraste com asantigas formas mticas de poder e de ao social que a plis substituiu juntamente com as prticas e a mentalidadeque lhes eram solidrias.No diferente o que se d com a tragdia. Ela no poderia refletir uma realidade que, de alguma forma, lhe fosseestranha. ela prpria quem elabora seu mundo espiritual. S h viso e objetos plsticos na pintura e pelapintura. A prpria conscincia trgica nasce e se desenvolve com a tragdia. exprimindo-se na forma de umgnero literrio original que se constituem o pensamento, o mundo, o homem trgicos.Ento, utilizando uma comparao espacial, poderamos dizer que o contexto, no sentido em que o entendemos, no se situaao lado das obras, margem da tragdia; est no tanto Justaposto ao texto quanto subjacente a ele. Mais que um contexto, constitui umsubtexto que uma leitura erudita deve decifrar na prpria espessura da obra por um duplo movimento, uma caminhada alternada de idas evindas.

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    preciso, em primeiro lugar, situar a obra, alargando o campo da pesquisa ao conjunto das condies sociais e espirituais que provocaram aapario da conscincia trgica. Mas preciso, em seguida, concentr-lo exclusivamente na tragdia, nisso que constitui sua vocaoprpria- suas formas, seu objeto, seus problemas especficos. Com efeito, nenhuma referncia a outros domnios da vida social - religio,poltica, direito, tica - poderia ser pertinente, se tambm no se mostrar como, assimilando um elemento emprestado para integr-lo suaperspectiva, a tragdia o submeteu a uma verdadeira transmutao.Tomemos um exemplo: a presena quase obsessiva de um vocabulrio tcnico do direito na lngua dos Trgicos, sua predileo pelos temasde crime de sangue sujeitos competncia de tal ou tal tribunal, a prpria forma de julgamento que dada a certas peas exigem que ohistoriador da literatura, se quer apreender os valores exatos dos termos e todas as implicaes do drama, saia de sua especialidade e se tornehistoriador do direito grego. Mas no pensamento jurdico ele no encontrar luz capaz de iluminar diretamente o texto trgico como se estefosse apenas um decalque daquele. Para o intrprete, trata-se apenas de algo prvio que finalmente deve lev-lo de volta tragdia e ao seumundo a fim de explorar-lhe certas dimenses que, sem esse desvio pelo terreno do direito, ficariam dissimuladas na espessura do texto.Nenhuma tragdia, com efeito, um debate jurdico, nem o direito comporta em si mesmo algo de trgico. As palavras, asnoes, os esquemas de pensamento so utilizados pelos poetas de forma bem diferente da utilizada no tribunal ou pelosoradores. Fora de seu contexto tcnico, de certa forma, eles mudam de funo e, na obra dos Trgicos, misturados e opostos aoutros, vieram a ser elementos de uma confrontao geral de valores, de um questionamento de todas as normas, em vista deuma pesquisa que nada mais tem a ver com o direito e tem sua base no prprio homem: que ser esse que a tragdia qualificade deins, monstro incompreensvel e desnorteante, agente e paciente ao mesmo tempo, culpado e inocente, lcido e cego,senhor de toda a natureza atravs de seu esprito industrioso, mas incapaz de se governar a si mesmo? Quais so as relaesdesse homem com os atos sobre os quais o vemos deliberar em cena, cuja iniciativa e responsabilidade ele assume, mas cujosentido verdadeiro o ultrapassa e a ele escapa, de tal sorte que no tanto o agente que explica o ato, quanto o ato que,revelando imediatamente sua significao autntica, volta-se contra o agente, descobre quem ele e o que ele realmente fezsem o saber? Qual , enfim, o lugar desse homem num universo social, natural, divino, ambguo, dilacerado por contradies,onde nenhuma regra aparece como definitivamente estabelecida, onde um deus luta contra um deus, um direito contra umdireito, onde a justia, no prprio decorrer da ao, se desloca, gira sobre si mesma e se transforma em seu contrrio?A tragdia no apenas uma forma de arte, uma instituio social que, pela fundao dos concursos trgicos, a cidadecoloca ao lado de seus rgos polticos e judicirios. Instaurando sob a autoridade do arconte epnimo, no mesmo espaourbano e segundo as mesmas normas institucionais que regem as assemblias ou os tribunais populares, um espetculo abertoa todos os cidados, dirigido, desempenhado julgado por representantes qualificados das diversas tribos, a cidade se faz teatro;ela se toma, de certo modo, como objeto de representao e se representa a si prpria diante do pblico.Mas se a tragdia parece, assim, mais que outro gnero qualquer, enraizada na realidade social, isso no significa que seja umreflexo dela. No reflete essa realidade, questiona-a. Apresentando-a dilacerada, dividida contra si prpria, torna-a inteiraproblemtica. O drama traz cena uma antiga lenda de heri. Esse mundo lendrio, para a cidade, constitui o seu passado -um passado bastante longnquo para que, entre as tradies mticas que encarna e as novas formas de pensamento jurdico epoltico, os contrastes se delineiem claramente, mas bastante prximo para que os conflitos de valores sejam aindadolorosamente sentidos e a confrontao no cesse de se fazer.

    A tragdia nasce, observa com razo Walter Nestle, quando se comea a olhar o mito com olhos de cidado. Mas no apenas o universo do mito que, sob esse olhar, perde sua consistncia e se dissolve. No mesmo instante o mundo da cidade submetido a questionamento e, atravs do debate, contestado em seus valores fundamentais. Mesmo no mais otimista dosTrgicos, em Esquilo, a exaltao do ideal cvico, a afirmao de sua vitria sobre todas as foras do passado tem menos ocarter de uma verificao, de uma segurana tranqila que de uma esperana e de um apelo onde a angstia jamais deixa deestar presente, mesmo na alegria das apoteoses finais. Uma vez apresentadas as questes, para a conscincia trgica no maisexiste resposta que possa satisfaz-la plenamente e ponha fim sua interrogao.

    (VERNANT, Jean-Pierre e NAQUET, Pierre-Vidal. "Tenses e ambigidades na tragdia grega." In: Mito e tragdia na Grcia antiga. So Paulo, Duas Cidades, 1977, p. 17-20)

    2. Uma noite medonha

    Neste fragmento, Nietzsche nos d a sua interpretao de duas tragdias de Sfocles: dipo-rei e dipo em Colono, num belssimo exemplo de como atuam o impulsodionisaco e o impulso apolneo, na constituio de uma obra trgica.

    Tudo o que na parte apolnea da tragdia grega chega superfcie, no dilogo parece simples, transparente, belo. Nessesentido, o dilogo a imagem e o reflexo dos helenos, cuja natureza se revela na dana, porque na dana a fora mxima apenas potencial, traindo-se porm na flexibilidade e na exuberncia do movimento. Assim, a linguagem dos herissofoclianos nos surpreende tanto por sua apolnea preciso e clareza, que temos a impresso de mirar o fundo mais ntimo deseu ser, com certo espanto pelo fato de ser to curto o caminho at esse fundo.Se abstrairmos, todavia, do carter do heri, tal como aparece superfcie e se torna visvel - o qual no fundo nada mais seno uma imagem luminosa lanada sobre uma parede escura, isto , uma aparncia de uma ponta a outra -, se penetrarmos bem mais nomito que se projeta nesses espelhamentos luminescentes, perceberemos ento, de repente um fenmeno que tem uma relao inversa com um conhecido

    fenmeno ptico.Quando, numa tentativa enrgica de fitar de frente o Sol, nos desviamos Ofuscados, surgem diante dos olhos, como umaespcie de remdio, manchas escuras: inversamente, as luminosas aparies dos heris de Sfocles, em suma, o apolneo da

    mscara, so produtos necessrios de um olhar no que h de mais ntimo e horroroso na natureza, como que manchasluminosas para curar a vista ferida pela noite medonha. S nesse sentido devemos acreditar que compreendemos corretamenteo srio e importante conceito da "serena jovialidade grega"; ao passo que, na realidade, em todos os caminhos e sendas dopresente, encontramo-nos com o conceito falsamente entendido dessa serenojovialidade, como se fosse um bem-estar no-ameaado.

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    A mais dolorosa figura do palco grego, o desventurado dipo, foi concebida por Sfocles como a criatura nobre que, apesar desua sabedoria, est destinada ao erro e misria, mas que, no fim, por seus tremendos sofrimentos, exerce sua volta umpoder mgico abenoado, que continua a atuar mesmo depois de sua morte. A criatura nobre no peca, o que o poetaprofundo nos quer dizer: por sua atuao pode ir abaixo toda e qualquer lei, toda e qualquer ordem natural e at o mundomoral, mas exatamente por essa atuao traado um crculo mgico superior de efeitos que fundam um novo mundo sobre asrunas do velho mundo que foi derrubado. o que o poeta, na medida em que ao mesmo tempo um pensador religioso, nos quer dizer: como poeta, ele nos mostraprimeiro um n processual prodigiosamente atado, que o juiz lentamente, lao por lao, desfaz, para a sua prpria perdio; a

    autntica alegria helnica por tal desatamento dialtico to grande que, por esse meio, um sopro de serenojovialidadesuperior se propaga sobre a obra inteira, o qual apara por toda a parte as pontas dos horrveis pressupostos daquele processo.Em dipo em Colono nos deparamos com essa mesma serenojovialidade, porm elevada a uma transfigurao infinita; emface do velho, atingido pelo excesso de desgraa, que, a tudo quanto lhe advm, abandonado como puro sofredor- ergue-sea serenojovialidade sobreterrena, que baixa das esferas divinas e nos d a entender que o heri, em seu comportamentopuramente passivo, alcana a sua suprema atividade, que se estende muito alm de sua vida, enquanto sua busca e empenhoconscientes apenas o conduziram passividade. Assim vo-se desatando lentamente, na fbula de dipo, os ns processuaisinextrincavelmente enredados aos olhos dos mortais - e a mais profunda alegria humana nos domina diante dessa divinacontraparte da dialtica.Se com essa explanao fizemos justia ao poeta, ainda assim se poder sempre perguntar se com isso se esgotou o contedodo mito: e aqui se evidencia que toda a concepo do poeta nada mais seno aquela imagem luminosa que a naturezasaneadora nos antepe, aps um olhar nosso ao abismo. dipo, o assassino de seu pai, o marido de sua me, dipo, odecifrador do enigma da Esfinge! O que nos diz a misteriosa trade dessas aes fatais?

    H uma antiqussima crena popular, persa, sobretudo, segundo a qual um sbio mago s podia nascer do incesto, o que ns,em relao a dipo, o decifrador do enigma e desposante de sua me, devemos interpretar imediatamente no sentido de que londe, por meio das foras divinatrias e mgicas, foi quebrado o sortilgio do presente e do futuro, a rgida lei da individuaoe mesmo o encanto prprio da natureza, l deve ter-se antecipado como causa primordial uma monstruosa transgresso i danatureza - como era ali o incesto; divinatrias e mgicas, foi quebrado o sortilgio do presente e do futuro, a rgida leida individuao e mesmo o encanto prprio da natureza, l deve ter-se antecipado como causa primordial umamonstruosa transgresso da natureza - como era ali o incesto; pois como se poderia forar a natureza a entregarseus segredos, seno resistindo-lhe vitoriosamente, isto , atravs do inatural?Esse conhecimento eu o vejo cunhado naquela espantosa trade do destino edipiano: aquele que decifra o enigmada natureza - essa esfinge biforme [corpo de leo e face humana] -, ele mesmo tem de romper tambm, cornoassassino do pai e esposo da me, as mais sagradas ordens da natureza. Sim, o mito parece querer murmurar-nosao ouvido que a sabedoria, e precisamente a sabedoria dionisaca, um horror antinatural, que aquele que por seu

    saber precipita a natureza no abismo da destruio h de experimentar tambm em si prprio a desintegrao danatureza.

    "0 aguilho da sabedoria se volta contra o sbio; a sabedoria um crime contra a natureza" - tais so asterrveis sentenas que o mito nos grita: o poeta helnico, porm, toca qual um raio de sol a sublime e temvelcoluna mnemnica do mito, de modo que este de sbito comea a soar - em melodias sofoclianas!

    (Nietzsche,Friedrich. O nascimento da tragdia - helenismo e pessimismo, 9. Trad. Jacob Guinsburg. So Paulo, Companhia dasLetras, 1992, p. 63-9)

    3. O descomunal ganha medida

    Num aforismo de seu ltimo perodo Nietzsche sintetiza o sentido do dionisaco e do apolneo no interior datragdia.

    Com a palavra dionisaco expresso um mpeto unidade, um remanejamento radical sobre pessoa, cotidiano,sociedade, realidade, sobre o abismo do perecer: o passionalmente doloroso transporte para estados mais escuros,mais plenos, mais oscilantes; o embevecido dizer sim ao carter global da vida como aquilo que, em todamudana, igual, de igual potncia, de igual ventura; a grande participao pantesta em alegria e sofrimento, queaprova e santifica at mesmo as mais terrveis e problemticas propriedades da vida; a eterna vontade de gerao, defecundidade, de retorno; o sentimento da unidade entre a necessidade do criar e do aniquilar.Com a palavra apolneo expresso o mpeto ao perfeito ser-para-si, ao tpico "indivduo", a tudo o que simplifica, destaca,torna forte, claro, inequvoco, tpico: a liberdade sob a lei.Ao antagonismo desses dois poderes artstico-naturais est vinculado o desenvolvimento da arte, com a mesma necessidadeque o desenvolvimento da humanidade est vinculado ao antagonismo dos sexos. A plenitude de potncia e o comedimento, a

    suprema forma de auto-afirmao em uma fria, nobre, arisca beleza: o apolinismo da vontade helnica.Essa contrariedade do dionisaco e do apolneo no interior da alma grega um dos grandes enigmas pelo qual me senti atrado,frente essncia grega. No me esforcei, no fundo, por nada seno adivinhar por que precisamente o apolinismo grego tevede brotar de um fundo dionisaco: o grego dionisaco tinha necessidade de se tornar apolneo; isso significa quebrar sua

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    vontade de descomunal, mltiplo, incerto, assustador, em uma vontade de medida, de simplicidade, de ordenao a regra econceito. O desmedido, o deserto, o asitico, est em seu fundamento: a bravura do grego consiste no combate com seuasiatismo: a beleza no lhe foi dada de presente, como tampouco a lgica, a naturalidade do costume - ela foi conquistada,querida, ganha em combate - ela sua vitria.

    (Nietzsche,Friedrich. "0 eterno retorno", 1050. ln: Nietzsche - Obras incompletas.Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. So Paulo, Abril, 1978, p. 393-4)

    ATIVIDADES

    1. Pesquise em livros de histria o contexto sociopoltico que fez brotar a tragdia como gnero literrio, experincia poltica e instituio social, entre os gregos, no final do sculo VI a . C . e no decorrer dosculo V a . C . Pesquise tambm em uma enciclopdia os verbetes tragdia grega, squilo, Sfocles, Eurpedes.2. Procure, em um jornal de grande circulao e sua cidade, a notcia de um crime descrito com grande riqueza de detalhes. Depois, tente se colocar no lugar de um grego da poca trgica e fazer uma

    interpretao do crime sob esse enfoque (no importa se voc conhece ou no os nomes dos deuses e heris).3. Com as informaes que voc tem sobre o mundo trgico, a partir da leitura deste captulo, avalie se o crime que voc selecionou na questo anterior envolve hbris. Justifique seu argumento.4. Leia dipo-rei, de Sfocles. A melhor traduo a de Mrio da Gama Cury, editada por Jorge Zahar Editor (Rio de Janeiro), no livro intitulado A trilogia tebana. Alm de narrar essa tragdia, inclui

    outras duas: dipo em colono e Antgona. Assim, se voc ficar curioso, pode ler as trs obras e conhecer a histria inteira, alm de desfrutar de um dos maiores dramaturgos que humanidade j teve.

    VAMOS REFLETIR

    1. Depois de ler o texto complementar "A Cid. fazendo-se teatro", comente: "A tragdia nasce quando omito comea a ser visto com olhos de cidado".2. possvel ao homem de hoje, inundado pela cultura judaico-crist, viver sem culpa? Explique.3. At que ponto o homem responsvel por seus atos, se ele no s determinado pelas condies socioeconmicas, mas tambm atravessado por impulsos desconhecidos? Justifique.4. Para os gregos, o destino no perdoa. Assim, o homem um ser-para-a-morte. Voc concorda?

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    CAPTULO 4 - O ETERNO RETORNO: PROVA MAIOR

    (Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, So Paulo, 1996, p. 76-83)

    Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser.Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser.Tudo se desfaz, tudo refeito; eternamente constr-se a mesma casa do ser.Tudo se separa, tudo volta a se encontrar;

    eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser.Em cada instante comea o ser; em torno de todo o "aqui " rola a bola "acol ".O meio est em toda parte. Curvo o caminho da eternidade.

    FRIEDRICHNIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, "0 convalescente", 2.

    Quando Nietzsche se pergunta o que o mundo, ele assim o descreve (l978: 397): como fora por toda parte, como jogo deforas e ondas de foras, ao mesmo tempo um e mltiplo, aqui articulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um mar deforas tempestuando e ondulando em si prprias, eternamente recorrentes [... ], abenoando a si prprio como aquilo queeternamente tem que retornar, corno um vr-a-ser que no conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansao.

    Uma usina em ebulio

    Esse mundo descrito por Nietzsche, como "um mar de foras tempestuando e ondulando", que em muitos aspectos evoca osquadros de Van Gogh, como uma usina: eternamente se produzindo, se rompendo, se recompondo, se reconstruindo. A,cada instante traz em torno de si todo o passado e todo o futuro que ele projeta: enlaa-os e os agita como num caldeiro,lanando-os, em seguida, corno num jogo de dados ou de bzios. Assim, cada instante retraa a sorte e o destino, fazendoretornar o mundo com tudo o que ele tem de bom e de ruim, de grande e de pequeno, de cintilante e de opaco. E, no fundodesse caldeiro, cada um de ns enlaado, agitado e recriado, em cada instante em que o ser recomea, em cada um dosmltiplos anis em que retorna.

    O eterno retorno a grande prova, o grande teste de vida pelo qual cada homem tem de passar, como nos conta Nietzsche emA gaia cincia (1978: 208):

    E se um dia ou uma noite um demnio se esgueirasse em tua mais solitria solido e te dissesse: "esta vida, assim como tuaavives agora e como a viveste, ters de viv-la ainda uma vez e ainda inmeras vezes; e no haver nela nada de novo, cadador e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que h de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida h de teretornar, e tudo na mesma ordem e seqncia- e do mesmo modo essa aranha e este luar entre as rvores, e do mesmo modoeste instante e eu prprio. A eterna ampulheta da existncia ser sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha dapoeira!" No te lanarias ao cho e rangerias os dentes e amaldioarias o demnio que te falasse assim? Ou viveste algumavez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu s um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamentoadquirisse poder sobre ti, assim como tu s, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cadacoisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inmeras vezes"" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou, ento,com terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para no desejar nada mais do que essa ltima, eterna confirmao

    e chancela?

    Amor ao destino

    impondervel o quanto cada um de ns necessita estar bem consigo prprio e com a vida para dizer: "Quero isso inmerasvezes, quero isso eternamente!". Por isso, o eterno retorno posto por Nietzsche como um imperativo tico, seletivo. Parapassar por essa prova, qualquer homem dever ter vencido todos os ressentimentos, azedumes e depreciaes com relao vida, dever estar imbudo daquilo que Nietzsche denominou amor fati (amor ao destino), que significa no querer nada deoutro modo, nem para diante nem para trs, nem em toda a eternidade, conforme disse o filsofo em um de seus derradeirosescritos.O mundo e o "eu" que retornam, em cada instante, trazem consigo todas as pequenezas e todas as grandezas que lhe soprprias, o que no poderia ser de outra forma, desde que no existe nenhum outro mundo, assim como nenhum outro "eu".Poder-se-ia, entretanto, argumentar que todos os entes do mundo (incluindo os inmeros "eus") esto em contnuo devir, ou

    seja, transmutando-se ininterruptamente em "outros mundos", "outros eus".De fato, esse o pensamento de Nietzsche. Contudo, esse devir no torna o mundo ou o "eu" entes mais perfeitos, maisideais; ele somente faz retornar aquilo que terreno, mundano, imperfeito por natureza. Isso significa que todas essastransformaes carregam, elas tambm, as pequenezas e as grandezas que caracterizam a esfera humana.

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  • 8/6/2019 Alfredo Naffah - Nietzsche - a Vida Como Valor Maior

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    hipotticos, possveis em si. Se, por exemplo, o mecanismo no pode escapar conseqncia de um estado final, queWilliam Thomson tira dele, com isso o mecanismo est refutado.Se o mundopode ser pensado como grandeza determinada de fora e como nmero determinado de centros de fora - e todaoutra representao permanece indeterminada e consequentemente inutilizvel -, disso se segue que ele tem de passar por umnmero calculvel de combinaes, no grande jogo de dados de sua existncia. Em um tempo infinito, cada combinaopossvel estaria alguma vez alcanada; mais ainda: estaria alcanada infinitas vezes.E como entre cada combinao e seu prximo retorno todas as combinaes ainda possveis teriam de estar transcorridas ecada uma dessas combinaes condiciona a seqncia inteira das combinaes da mesma srie, com i