À V O L T A DO MONTE BR ANC O€¦ · no bosque sentem-se protegidos; este ambiente de...

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100 GQPORTUGAL.PT JULHO/AGOSTO 2019 À V O L T A D O M O N T E B R A N C O HÁ UM CIRCUITO PEDESTRE NOS ALPES, EM TORNO DO MACIÇO DO MONT BLANC, QUE TEM CERCA DE 170 QUILÓMETROS. HÁ QUEM O FAÇA A CORRER E EXISTE UMA GRANDE PROVA DE ULTRA TRAIL QUE AÍ SE REALIZA ANUALMENTE. Por Diego Armés.

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100 GQPORTUGAL.PT JULHO/AGOSTO 2019

À V O L T A

D O M O N T E

B R A N C O

HÁ UM CIRCUITO PEDESTRE NOS ALPES, EM TORNO DO MACIÇO DO MONT BLANC,

QUE TEM CERCA DE 170 QUILÓMETROS. HÁ QUEM O FAÇA A CORRER E EXISTE UMA

GRANDE PROVA DE ULTRA TRAIL QUE AÍ SE REALIZA ANUALMENTE. Por Diego Armés.

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VIAGEM IN&OUT

E stamos ali, ao pé dele, em linha reta não serão mais de dois qui-lómetros (estivéssemos nós no mesmo plano) e, porém, nunca o

vemos. É o maior gigante da Europa, inspi-ra marcas, eventos, pinturas, até logotipos (digo eu, porque olho para o Toblerone e associo imediatamente o símbolo ao ponto mais alto do velho continente) e, no entan-to, é quase impossível ter do Mont Blanc um vislumbre que seja, caso não estejam reunidas as condições ideais. Ergue-se um pico e pensamos “lá está ele”, mas não está, “fica mais atrás”, diz alguém entendi-do, “ele é mais alto, mas estes tapam-no”, são quase cinco quilómetros postos na ver-tical em rocha xistosa, mas nem isso bas-ta para que o vejamos no meio de tantos picos, tantas escarpas, tanta neve, tantas nuvens, glaciares, esquinas agudas como agulhas eretas feitas de pedras duras, en-costas que nos fazem dobrar e abrir a linha do pescoço a 180 graus, voltando os olhos para cima, tentando ver o cume dos cumes. “O Mont Blanc é um conceito”, pensamos, “não passa de um conceito“. Mas ele está lá em cima, como que orquestrando todo o tu-multo montanhoso ao seu redor, feito líder supremo de montes e vales.

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A partir de 2006, foram sendo introduzi-das outras provas dentro do grande evento. A mais prestigiada, talvez por ser a mais exigente e competitiva, é a chamada CCC. Cada C corresponde ao nome de uma loca-lidade: Courmayeur, em Itália, Champex, na Suíça, e Chamonix, em França. A CCC tem, hoje, um circuito de cerca de 100 quiló-metros, depois de ter começado mais curta, nos 86. Os tempos dos vencedores, esses, andam pelas 10 horas e meia para os ho-mens, e entre as 12 e as 13 para as mulheres. Existem outras categorias e outros percur-sos em que os atletas se podem inscrever. Há variações na dificuldade dos trilhos, no comprimento da prova e na altitude a que está o circuito, de modo a que atletas de condições diversas e com expectativas diferentes possam participar dentro de um ambiente razoavelmente harmonioso. De qualquer modo, quem tiver a ambição de participar, deve preparar-se bem, para não dizer muito bem, mesmo. É preciso muito ritmo, muita determinação, muita discipli-na e muito tempo de treino, de preferên-cia em altitude, para se fazer frente a um desafio desta monta. Estamos a falar de uma prova em que os concorrentes estão nos trilhos durante muitas horas e em que as pausas que fazem servem para pouco mais do que trocar de roupa e renovar os mantimentos que levam no fato – sim, não se para para comer; come-se enquanto se corre ou se caminha.

IN&OUT VIAGEM

AS TRÊS CIDADESImporta sublinhar que é neste maciço mon-tanhoso que se situa o ponto onde as três fronteiras – de França, Itália e Suíça – se encontram, ou seja, circular em torno do Mont Blanc, dar-lhe a volta completa, im-plica necessariamente passar pelos três territórios. Como é que se conseguiu juntar instituições, autarquias e comunidades dos três países para realizar uma prova desta dimensão? “Sabes que somos todos vizi-nhos, na verdade”, diz Catherine Poletti , co-fundadora do UTMB, com um ar sábio e paciente. “É tudo uma questão de todos cederem um pouco num ou noutro ponto, mas não foi difícil mobilizar as pessoas dos três países.”

A IMPORTÂNCIA DAS CONDIÇÕES Atrás, falou-se das condições climatéricas como fator determinante para que os ultra- -atletas conseguissem melhores ou piores desempenhos. Não é preciso fazer um gran-de exercício mental para se compreender que correr (ou caminhar, trepar, saltar e descer, mas sempre em esforço físico) ao longo de 170 quilómetros a mais de 2.500 metros de altura, ao longo de mais de um dia é algo que está sujeito a inúmeras os-cilações meteorológicas, algumas delas im-previstas, mesmo que a prova se realize no fim de agosto. Afinal de contas, estamos os Alpes, no teto da Europa.

Uma maneira de minimizar potenciais efeitos de uma chuva inesperada ou de uma repentina e abrupta descida de temperatu-ra, é o ultra-atleta levar equipamentos ade-

PREOCUPAÇÕES AMBIENTAISNo decorrer de uma das caminhadas pelas belíssimas paisagens dos Contamines, um vale ascendente próximo do Mont Blanc, a comitiva foi acompanhada por Geoffrey Garcel e Christelle Backache. Ele é uma espécie de guarda florestal com autoridade de polícia caso apanhe alguém a prevaricar contra o ambiente do parque natural; ela é uma especialista ambiental que acompanha, em permanência, o ecossistema desta zona. Explicam-nos o quanto se tenta minimizar o impacto de vários milhares de humanos num ambiente quase virgem como este ao longo de três ou quatro dias. “O turismo não é estranho aqui”, dizem, “mas tem de haver regras rigorosas”. Uma muito simples, por exemplo: nunca, em momento algum, sair dos trilhos definidos. “Os animais que estão no bosque sentem-se protegidos; este ambiente de sobrevivência é duro, muitas vezes as criaturas estão a armazenar energia, mantimentos, em lugares para a estadia de inverno. Se forem incomodados pelos humanos e saírem dos seus sítios, é possível que não consigam sobreviver à longa estação do frio.” Este é apenas um exemplo entre vários. O compromisso do UTMB com a preservação ambiental é muito sério. “Não nos esqueçamos de que tudo o que vive aqui é praticamente exclusivo, não existe em mais lado nenhum”, lembram-nos.

A os poucos, vamos percebendo que o Monte Branco, o tal Mont Blanc, é mesmo um conceito, para além de ser aquele pico

específico. Existe todo um maciço rochoso, um opulento sistema montanhoso, repleto de picos e desfiladeiros agressivos, que podemos considerar “o Mont Blanc”, ape-sar de conter, em si, no seu sistema, uma vasta gama de designações para todo o tipo de montes que o constituem – e eles são muitos.

O ULTRA TRAIL Agora que o lugar está identificado – iden-tificado é o termo, porque está longe de ter sido apresentado, muito menos devidamen-te descrito –, avancemos até ao propósito da viagem, o que nos trouxe aqui. Trata-se da apresentação do Ultra Trail Mont Blanc 2019 (UTMB). De um modo geral e, em si-multâneo, sucinto, o UTMB é uma prova de resistência a pé (a correr, a andar, a trepar, a descer) de longa duração e de elevada di-ficuldade, em torno, precisamente, do maci-ço do Monte Branco.

A prova principal, e a primeira a ter sido organizada, em 2003, é a Ultra-Trail du Tour du Mont-Blanc, hoje em dia com uma distância a rondar os 170 quilómetros e uma duração, para os homens mais aptos e expeditos – leia-se “para os vencedores” – por volta das 20 horas (o recorde é de 19 horas, 1 minuto e 54 segundos, mas foi batido na distância de apenas – tão “ape-nas” quanto a palavra consiga significar nestes termos – 167 quilómetros; nos 170 quilómetros, o melhor tempo é de 20 ho-ras e 36 minutos). Na categoria feminina, em que as distâncias são exatamente as mesmas, o melhor tempo na distância mais longa é de 25 horas e 2 minutos. Ambos os recordes foram batidos no mesmo ano, 2011, o que só pode significar uma coisa: as condições meteorológicas eram favoráveis aos corredores. O tempo médio estimado pela organização para a generalidade dos corredores ronda as 40 horas.

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UTMB EM NÚMEROS" 4 franchises: o UTMB expandiu-se muito para lá do Monte Branco. Jebel-Akdar, em Omã, Yunnan, na China, Ushuaia – Terra do Fogo, na Argentina, Val D’Aran – Pirenéus, em Espanha, são as quatro provas com o carimbo da edição original;" 5 continentes, mais de 100 nações: eis as origens dos concorrentes;" 10 mil concorrentes e 20 mil membros de equipas-suporte; " 800 mil espectadores;" 2 mil voluntários; " 70 a 75% de atletas a terminar as corridas.

quados. Sebastien Camus, um dos embai-xadores da prova e da marca parceira da organização, a Columbia, já correu várias vezes o circuito UTMB e sabe bem o que é necessário. Os materiais de que é feita a roupa e o calçado são fundamentais – têm de ser térmicos, ao mesmo tempo que de-vem ser leves e resistentes. Um impermeá-vel é uma boa companhia, e estamos a falar de calças e parte de cima. As luvas também fazem diferença, bem como os gorros e os óculos de sol, que idealmente terão lentes “inteligentes”, capazes de se adaptar aos diferentes níveis de luminosidade. Uma manta térmica pode ser fundamental, para o caso de o atleta parar a meio do caminho durante a noite. Já que falamos de noite, di-ga-se que uma lanterna de usar na cabeça é absolutamente indispensável. Os bastões de caminhada também devem ser consi-derados, uma vez que ajudam a distribuir o peso e o esforço na fase mais adiantada da corrida, quando as pernas começam a fraquejar. Não tenhamos ilusões: a vitória, nesta prova, é chegar ao fim.

UTMB 2019 Quando se realizou a primeira edição do UTMB, em 2003, Catherine e Michel Polet-ti, o casal que impulsionou o projeto e que começou a reunir amigos e apoios no an-terior, estimavam que ninguém fosse ins-crever-se. Abriram as inscrições na noite

de passagem de ano e, no primeiro dia de 2003, já tinham pessoas inscritas. Acaba-ram por ser cerca de 500 atletas na linha de partida da primeira edição. Em 2019, há 25.678 candidatos (and counting) no mo-mento em que se escreve este artigo. Des-tes, apenas 10 mil poderão concorrer. Os atletas serão selecionados mediante uma pontuação obtida no decorrer de outras provas realizadas ao longo dos últimos 12 meses. A edição deste ano realiza-se entre 26 de agosto e 1 de setembro. ●

A Montblanc decidiu assinalar, também, o 50.º aniversário da chegada do Homem à Lua lançando uma caneta muito especial, a StarWalker, que pode ser sua.

D E S A F I O D A G Q A O L E I T O R

A GQ desafia os seus leitores a tentarem conquistar a StarWalker, a caneta Montblanc comemorativa do aniversário da chegada do Homem à Lua em julho de 1969. Para se habilitarem a ganhar a StarWalker, os leitores devem enviar-nos cartas (ver morada na ficha técnica), escritas à mão, como se estivessem a escrever da Lua para alguém na Terra. As cartas não devem ter mais de duas páginas. O autor da melhor carta ganha a caneta. O júri será a redação da GQ, que levará em conta o conteúdo do texto (70%) e a caligrafia (30%).

Imagem da linha de partida no centro da cidade de Chamonix, do lado francês

do Mont Blanc. Os atletas partem em direção ao maciço montanhoso.