Léon Denis - Giovanna

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Lon Denis - Giovanna

www.autoresespiritasclassicos.comGiovannaNovela Esprita Escrita por Lon Denis

Traduzido do Francs

Giovanna (Nouvelle)

(1880)

Edio eletrnica original:

Centre Spirite Lyonnais Allan Kardec

http://spirite.free.fr

Paul Czanne - A montanha de Saint Victoire

Contedo resumido

Esse um delicioso romance escrito por Lon Denis, a mais importante figura do movimento esprita francs depois de Allan Kardec.Interessado em difundir a doutrina esprita entre o grande pblico, Denis criou uma fascinante histria de amor e espiritualidade, que consegue ser didtica, sem perder o encanto do texto literrio e o interesse de uma trama bem elaborada.I

Todos aqueles que percorreram a Lombardia conhecem o Lago de Cme, retalho do cu da Itlia cado entre as montanhas, esse maravilhoso den onde a natureza se senta em trono, ornada por uma festa eterna. As linhas sinuosas dos montes que o rodeiam, a o espelho lmpido e azul de suas guas, formam um surpreendente contraste.

Cidades e brancas aldeias se sucedem sobre suas bordas como prolas de um colar. Acima delas, sobre o flanco das colinas, se dispem jardins em terraos que se revestem, em disputa pela primazia, de laranjeiras, limoeiros, romzeiras e figueiras. Mais para o alto, a folhagem plida das amendoeiras, o cinzento de prata das oliveiras, os pmpanos das videiras, atapetam os declives. Como graciosas cidades, pintadas de cores suaves, as copas de grandes rvores sombreando brancas esttuas, abrem-se aqui e ali nesse verdejante manto.

Ao longe, os Alpes se elevam majestosos, coroados de um diadema de geleiras. Sobre tudo isso, resplandece a luz do meio-dia, luz radiosa que reveste de tons deslumbrantes as cristas das rochas e as velas dos barcos de pesca, que deslizam numerosos sobre o pacfico lago.

Para apreciar a poesia serena desses lugares, pegue uma barca e faa-se ao largo quando chega a hora do crepsculo. Nesse momento, uma brisa ligeira enruga as guas e faz estremecer as tamarineiras na margem. O odor penetrante das murtas se casa aos doces cheiros das laranjeiras e dos limoeiros. De todos os pontos do lago se elevam cantos. a hora em que os trabalhadores dos campos e os jovens trabalhadores das fbricas retornam s aldeias, cantando as barcarolas. Suas melodias chegam a ns enfraquecidas pela distncia, e, na calma do entardecer, parecem descer do cu.

Logo, esses sons se junta o som dos instrumentos de msica vindo da costa e das vilas iluminadas. O lago inteiro vibra como uma harpa. E assim, acrescentando magia desta cena, o astro das noites mostra seu disco por cima das montanhas; sob seus raios peneirados, os cumes alpestres se colorem; ele lana sobre as guas transparentes suas longas caudas de prata fluida; ento, esse ar inebriado, esses cus to doces, esses perfumes, essas harmonias, esses jogos de luz e sombras, tudo isso, preenche nossa alma de uma emoo deliciosa, inexprimvel.

Uma graa encantadora envolve toda a regio sul do lago; entretanto, mais ao alto, na direo norte, aproximando-se dos Alpes, o aspecto se faz severo, imponente. As rochas tm formas mais speras; os montes so mais abruptos. Os jardins e as plantaes de oliveiras do lugar s castanheiras, aos sombrios pinheiros. Grandes picos, calvos, solitrios, observam do fundo do horizonte e parecem sonhar.

Prximo de Gravedona abre-se um vale estreito, percorrido por uma torrente que salta de rocha em rocha e faz brotar suas guas vivas em cascatas alegres. Algumas modestas habitaes esto espalhadas pelo verde. Ao p de uma queda retumbante, pela qual a torrente se precipita nos ltimos contrafortes, um moinho desabando de velhice faz ouvir seu barulho montono. De l, uma vereda segue as desigualdades do solo escalando as escarpas, mergulha nas ravinas pedregosas e, atravs os cistes, as aveleiras, as salvas e os buxos, termina em um ltimo casebre que dois grandes freixos protegem com sua sombra. Ao redor de seus troncos robustos, as guirlandas de uma videira se enrolam. Elas enlaam os galhos com seus festes e quando ficam autnomas, deixam pender seus belos cachos de uvas italianas, de meio metro de comprimento, de bagos oblongos, saborosos, crocantes que estalavam entre os dentes. O casebre est quase inteiramente escondido sob uma espessa camada de hera.

Sobre seu telhado, transformado em canteiro, gramneas germinam, flores desabrocham. As andorinhas construram seus ninhos entre as traves. Ao menor rudo, vem-se aparecer suas pequenas cabeas inquietas.

Um vasto cercado, invadido pelas heras e plantas selvagens, se estende atrs da cabana, e um estbulo vazio, deteriorado, aberto a todos os ventos, se apia na sebe densa.

H alguns anos, o aspecto desse canto de terra era todo diferente. O jardim, conservado com cuidado, era produtivo, agradvel vista; o estbulo abrigava duas belas cabras e um asno vigoroso. Pitro Menoni habitava esta cabana com sua mulher Marta e suas trs crianas. Toda esta famlia vivia do produto do cercado.

Cada semana, Pitro carregava seu asno, Ruffo, de cestas de frutas, cestos de legumes e jarras de leo que ele ia vender no mercado de Gravedona. No inverno, havia o leite das cabras, as castanhas em quantidade e, durante os longos seres, tranavam-se os cestos e preparavam-se as guarnies de vime que preservavam os frascos de vinho.

A abundncia reinava nesta casa. Mas vieram os maus dias: Pitro, atingido por uma doena grave, definhou muito, e morreu. Foi preciso vender as cabras e Ruffo, por sua vez, partiu. O jardim, abandonado, no produzia mais, e a misria caiu sobre a humilde famlia. Sujeita a um incessante labor, minada por dolorosas preocupaes, Marta sentiu suas foras se esvarem rapidamente.

Penetre nesse interior e veja, sobre um catre, essa mulher envelhecida antes do tempo, a pele tingida de amarelo, as faces cavadas, os olhos brilhantes de febre; eis o que as viglias, o sofrimento e as lgrimas fizeram da robusta camponesa. Suas trs crianas esto junto dela. A mais velha, Lna, mocinha de quinze anos, de membros franzinos, fisionomia j murcha pelas privaes e pela inquietude, est sentada sobre um banquinho perto da cama e remenda alguns farrapos usados.

Seus pequenos irmos, meio deitados sobre a terra batida, esto tentando tranar uma corbeille. As paredes so nuas, alvejadas com cal. Em um canto, as folhas de samambaia amontoadas servem de leito aos garotos. Uma Nossa Senhora de madeira, recoberta por um trapo de pano outrora azul, algumas grosseiras imagens de santos, formam, com os mveis rsticos, os nicos ornamentos do aposento. Um penoso silncio, apenas perturbado pela respirao oprimida da doente, reina na cabana. Os raios dourados, penetrando pela grande porta aberta, brincam no seio desta misria.

Mas um rudo ligeiro se faz escutar do lado de fora. Dir-se-ia o roar de um pano sobre a areia da vereda. As crianas se voltam e soltam exclamaes alegres. Uma jovem est de p no portal de entrada. mesmo uma moa? No seria, antes de tudo, uma criatura sobre-humana, uma apario celeste? O sol, iluminando suas tranas louras, coroa sua fronte com uma espcie de aurola. Seu vestido branco, seu talhe esbelto, seus traos charmosos, a tornam semelhante s virginais pinturas de Rafal Sanzio. Ela se adianta e, vendo-a, a viso emagrecida de Marta se ilumina de um plido sorriso; as crianas a rodeiam. Ela se inclina em direo enferma, sua mo branca e doce pressiona seus dedos ardentes, e lhe fazem ouvir palavras consoladoras e amigas. Uma senhora, curvada sob o peso de um enorme cesto entra por sua vez; coloca, estafada e calma, brevemente, sobre o ba de madeira, provises de toda espcie, uma garrafa de vinho generoso, vestimentas, uma coberta. Esses objetos se acumulam sobre a moblia, acanhada demais para os receber.

Pelo ar afetuoso da moa, o desvelo com o qual foi acolhida, a festividade, advinha-se que essas visitas so freqentes. A loura e graciosa jovem a providncia neste humilde aposento, como em todos aqueles do vale onde h aflies a consolar, prantos a enxugar, sofrimentos a curar. por isso que a chamam a fada dos pobres.

Giovanna (Joana) Speranzi nasceu na vila dos Lentisques, da qual se percebe, do vale, os terraos embranquecidos.

Seus dezoito anos decorreram nesses lugares amados de sol e de flores. Diz-se que a alma est ligada, por secretas influncias, s regies em que ela habita, para que participe de sua graa ou de sua rudeza. Sob esse cu lmpido, no melhor desta natureza serena, Giovanna cresceu e todas as harmonias fsicas e morais se uniram para fazer dela uma maravilha de beleza, de perfeio. Ela alta; sua pele branca, sua cabeleira loura, espessa e sedosa, sua boca mida guarnecida de dentes pequenos, brilhantes, seus olhos, de um azul profundo e doce. A sublimidade do rosto lhe d um qu de nobreza, de ideal de pureza. Uma claridade parece envolv-la. Malgrado a expresso de melancolia que lhe habitual, Giovanna, na flor de suas dezoito primaveras, uma das mais encantadoras moas do Milanais. rf aos treze anos, conservou da perda dos seus pais uma lembrana sempre viva. Tornou-se pensativa, recolhida, sua fronte contemplativa se pende freqentemente em direo terra onde dormem os mortos amados. Ardentes aspiraes a levam s coisas do alto, a Deus, ao infinito. No desdenha o mundo, entretanto, um tesouro de sensibilidade, de inefvel caridade est contido em seu corao; toda pena, toda dor, a despertam um eco. Por isso, consagra sua vida queles que choram. Ela no conhece nenhuma alegria mais doce, nenhuma tarefa mais cativante do que socorrer, consolar os infelizes.

Assim decorre sua juventude, entre uma tia enferma e uma velha ama de leite que vela por ela e a acompanha em suas visitas aos indigentes.

Um incidente, contudo, est por vir, que pode romper a uniformidade desta vida, lanando uma agitao na alma cndida de Giovanna. Um dia, em que segue a vereda bem conhecida que conduz morada dos Menoni, nuvens negras se acumulam sobre o vale, grandes gotas de gua caem com barulho entre as moitas de aveleiras, e os troves, murmurando a cada golpe, enchem os desfiladeiros dos montes com seus estrepitosos estrondos. Apenas entra na cabana e a tempestade se desencadeia por trs dela com violncia, curvando at a terra os cimos das rvores, cobrindo o horizonte com uma espessa cortina de chuva. A torrente, crescendo a olhos vistos, mistura a barulheira de suas guas aos clamores do temporal. Um jovem rapaz, vestido com roupa de caa, tendo na mo um fuzil, chega, correndo, ao casebre, e pede para a se abrigar. Enquanto a tempestade castiga do lado de fora, ele pode examinar o lugar onde se encontra, com vagar. Vendo esse despojamento, o aspecto de Marta estendida sobre uma cama, sofrendo, ele parece se interessar por seu infortnio e coloca algumas questes, discretas, s quais Joana responde baixando os olhos. A presena, a funo desse anjo consolador entre esses infelizes, o toca. Ele pede para se associar a esta boa obra e conversa, mostrando-se determinado; a tempestade tinha passado havia j algum tempo e o sol tinha voltado a sorrir, mas ele no pensava ainda em deixar aquela morada para onde o acaso o havia conduzido. Finalmente se retira, mas para voltar freqentemente. No se passava mais que um dia sem que se o visse aparecer na hora habitual em que Giovanna visitava a pobre famlia. Permanecia at a sua partida, cobrindo-a de olhares, admirando sua graa virginal, sua requintada bondade pela enferma. Acabou mesmo por prolongar suas visitas por um bom tempo depois que ela j tinha se afastado, conversando com Lna sobre ela, incomodando-a com mil perguntas.

Ainda que, antes desse dia de tempestade, jamais tivesse franqueado o limiar dos Menoni, Maurice Ferrand no era certamente desconhecido deles. Quinze anos antes, um Francs, exilado em seguida a eventos polticos, tinha vindo fixar-se no pas. Ele havia comprado em Domaso, aldeia que beira o lago, perto de Gravedona, uma pequena habitao, situada sobre uma colina, de onde a vista abraa o imenso panorama das guas e dos montes, a Brianza, a Valteline, os grandes picos dos Alpes. O exilado trouxe com ele seu filho, jovem menino de oito a dez anos, cuja me tinha morrido na Frana. Maurice, percorrendo a regio, seguindo os pequenos pastores sobre as rochas procura de ninhos de pombas, ou os pesqueiros de trutas que exploram o leito das torrentes, bem depressa aprendeu a lngua potica e sonora dos Manzoni e dos Alfiri. Mas era preciso renunciar a essas alegres diverses, e um dia seu pai o acompanhou a Cme, onde pegaram a estrada de ferro para Milo. Chegados a esta grande cidade, o primeiro cuidado do exilado foi colocar o menino em uma das melhores instituies, depois do que, voltou a fechar-se no pavilho onde vivia, s com seus livros e uma velha servente do pas.

Maurice fez progressos rpidos. Sua viva inteligncia e sua prodigiosa memria o serviram to bem, que aps alguns anos, nada mais tendo a aprender no estabelecimento onde havia sido colocado, devia prosseguir seus estudos na Universidade de Pvia. Ao mesmo tempo em que sua instruo se desenvolvia, seu carter se desenhava, carter singular, mistura de sentimentos generosos e duros. Maurice amava instintivamente a solido; tinha poucos amigos. Os comportamentos brilhantes, expansivos dos Lombardos e dos Toscanos, no meio dos quais se encontrava, lhe desagradavam. Vivia parte, o mais possvel, consagrando seu lazer leitura de poetas favoritos. Uma curiosidade profunda o levava, assim, para os estudos filosficos. Em boa hora, levado a procurar o porqu das coisas, querendo aprofundar esses misteriosos problemas que dominam toda a vida e que, semelhantes ao fluxo do mar, quando repelidos de nosso pensamento pela impotncia, a retornam mais imperiosos a cada vez.

O sentimento religioso tinha, de incio, se manifestado nele por um vivo amor ao catolicismo. As pompas resplandecentes do culto italiano, a voz possante dos rgos, os cantos, os perfumes, a magnificncia dos edifcios, o Dome de Milo, maravilha da escultura, onde as esttuas de mrmore se perfilam em legies inumerveis contra o azul do cu, todos esses esplendores do romanismo, preenchiam a alma de Maurice de uma emoo profunda. Mas, quando os sentidos ficaram habituados a essas pompas estrondosas, sua razo quis descer ao fundo dos dogmas, analis-los, desfolh-los; quando, rasgado o vu brilhante e material que esconde, aos olhos do vulgo, a pobreza dos ensinamentos catlicos, ele no v seno uma moral embaciada pela casustica, os princpios do Cristo falseados, um Deus parcial e cruel, entronizado sobre um monte de supersties; procura ento uma crena esclarecida, capaz de satisfazer seu corao, sua razo, sua necessidade de f e de justia. Mergulha no estudo das diversas filosofias, desde a dos Gregos e dos Orientais at o moderno e dessecante positivismo. Desse colossal exame, se destaca para ele uma f espiritualista, baseada no estudo da natureza e da conscincia, encontrando na comunicao ntima da alma com Deus uma fora moral que acreditava suficiente para manter um homem no caminho reto. Suspeitava que a existncia presente no seria a nica para ns, que a alma deveria se elevar pelas vidas sucessivas e sempre renascentes, de mundos em mundos, rumo perfeio.

II

Era, sobretudo por ocasio das viagens, muito curtas para seu gosto, que Maurice fazia morada paterna e durante as excurses que se seguiam, que seu pensamento, estimulado pela poesia da natureza, se elevava para Deus em um impulso rpido e seguro. Ele gostava ento de perambular nos desfiladeiros selvagens dos montes, de percorrer os lugares apartados onde ressoavam o murmrio perptuo das torrentes e das cascatas, as florestas de pinheiros, de faias, de larices que cobrem com suas sombrias cpulas os declives dos Alpes.

Os sopros de vento, esfregando a galharia, lanando na profundeza dos bosques suas notas queixosas e harmoniosas, semelhantes ao de um rgo invisvel, o murmrio das guas esguichantes, o canto dos passarinhos, at o barulho longnquo do machado batendo os troncos sonoros, todas essas vozes da solido embalam seu esprito, lhe falando uma linguagem de paz. Sobre os cumes banhados de luz, sob as abbadas verdejantes, sua prece subia para Deus de uma forma mais pura e ardente que nos templos invadidos pela multido. No seio dos bosques cheirosos, retiros sombrios e escondidos o convidavam ao repouso. E os milhares de rudos desta natureza alpestre formavam para ele uma melodia deliciosa na qual se inebriava a ponto de olvidar as horas e de deixar passar o momento de retorno.

Ele precisou, todavia, se desarraigar dessas festas dos olhos e do corao e retomar o curso dos estudos interrompidos. Maurice passou em seus exames com sucesso. Hesitando em seguida entre as diversas carreiras que se lhe abriam, a convite de seu pai, fez Direito, recebeu o ttulo de advogado e comeou a exercer a profisso no frum de Milo. Sua eloqncia ousada, exercitada, sua viva imaginao, o estudo aprofundado das causas a ele confiadas, o fizeram logo se distinguir no mundo dos tribunais; um brilhante porvir sorria sua ambio se tivesse querido curvar sua conscincia s sutilezas da trapaa e da poltica, fazendo-se um satlite dos poderosos. Mas esta alma elevada e altiva no podia se rebaixar a uma tal funo. As intrigas, as torpezas dos tribunais e dos sales a enchiam de amargura. O espetculo de um mundo ocioso, corrompido, ostentando com estrpito sua riqueza e seus ttulos, a cupidez, o egosmo, tomando de assalto a sociedade e a dominando; a probidade cambaleante; a especulao desenfreada humilhando o trabalho regenerador; todas essas lceras de nossa poca de decadncia moral se mostravam em sua hediondez aos olhos do jovem e lhe levaram a desprezar a vida, a se desligar mais e mais das coisas terrestres. Na taa dos prazeres, tendo querido temperar seus lbios, ele no havia encontrado seno fel; o amor tarifado, a orgia brutal, o jogo estupefaciente, foram para ele outros tantos monstros que o fizeram recuar de horror.

Com tais gostos, uma disposio natural meditao, o amor pela solido, viu desatar-se pouco a pouco todas as suas relaes. Aqueles que primeiramente o haviam acolhido, repelidos por essa rigidez, por essa misantropia que se exalava em termos amargos, pela ausncia da benevolncia to necessria ao sbio, se afastaram de Maurice e o deixaram a seus sonhos. A vida se desfez em torno dele. Um desgosto profundo apoderou-se do jovem advogado. Ele recusava as causas malficas ou duvidosas que lhe eram ofertadas e viu assim se reduzir o nmero de seus clientes. Suas brilhantes faculdades permaneceram sem emprego.

Um morno abatimento o invadia, quando de Domaso lhe chegou a notcia de que seu pai, gravemente doente, pedia sua presena perto dele. Maurice partiu imediatamente.

O exilado, devorado pela nostalgia, por esse amor da terra natal, sentia uma necessidade da ptria que nada podia substituir, lutava em vo contra um mal sem remdio. Logo morreu entre os braos de seu filho. Esta morte estendeu uma sombra ainda mais espessa sobre a fronte de Maurice; sua tristeza, sua melancolia naturais aumentaram. Renunciou ao frum e se instalou na pequena casa solitria que lhe havia legado o defunto. Seu tempo foi repartido entre as leituras e as excurses. Freqentemente, desde a manh, pegava seu fuzil e, sob o pretexto de caar, percorria a regio em todos os sentidos, indo aventura, descuidado dos caminhos. A caa podia impunemente passar perto dele. Mergulhado em interminveis desvarios, no pensava muito em persegu-la. Sentava-se por vezes sobre qualquer ponto rochoso dominando o lago, para observar o movimento dos barcos deslizando sob os esforos dos remadores, as guias descrevendo crculos imensos no cu, as lentas gradaes da luz durante as horas do entardecer e, assim, apenas quando a noite comeava a estender seu vu sobre a terra. que ele pensava em voltar sua morada.

Foi durante um desses cursos que, surpreendido pela tempestade, ele se refugiou entre os Menoni e a encontrou Giovanna. Desde esse dia, sua vida mudou.

A viso desta moa o reaqueceu subitamente. Um alegre raio de sol penetra a obscuridade de sua alma; uma voz desconhecida canta em seu corao. Primeiro no se d conta do sentimento novo que nasce nele. Uma fora magntica o levava para a mocinha e ele a obedecia instintivamente. Quando ela estava l, diante dele, de tudo esquecia, observando-a, escutando-a. O timbre de sua voz, ritmado, despertava no seu ser ecos de uma doura infinita. Via nela mais que uma moa da terra, mais que uma criatura humana, como que uma apario passageira, reflexo misterioso de um outro mundo, um tesouro de beleza, de pureza, de caridade, ao qual Deus emprestava uma forma sensvel a fim que, em vendo-a, os homens pudessem compreender as perfeies celestes e a isso aspirar. A presena de Giovanna o arrancava sua misantropia. Fazia surgir nele uma onda de pensamentos benfazejos, generosos, um ardente desejo de ser bom e de consolar. Seu exemplo o convidava ao bem; sentia a vida, a inutilidade de sua vida e compreendia enfim que tinha melhor a fazer aqui em baixo do que fugir dos homens e se fechar numa indiferena egosta. Interessava-se pelas dores dos outros; pensava mais freqentemente nos pequenos, nos deserdados desse mundo, em todos os que esto oprimidos pela adversidade; procurava avidamente os meios de lhes ser til.

Durante suas conversas, ainda que se falando pouco, trocavam milhares de pensamentos. A alma tem meios de se exprimir, de se comunicar com o exterior, que a cincia humana no pode definir, nem analisar. Uma atmosfera fludica, em correlao ntima com seu estado moral, envolve todos os seres e, seguindo sua natureza, simptica ou contrria, se atraem, se repelem, se expandem ou se fecham, e assim que se explicam as impresses, que a simples vista de pessoas desconhecidas nos fazem experimentar.

Os dias se escoam. Graas ao socorro de Joana, graas aos cuidados do mdico de Gravedona, ao qual Maurice pagava as visitas, Marta tinha recuperado sua sade. No dia que pode sair, uma agradvel surpresa a esperava l fora. O jardim, invadido h pouco tempo pelas ervas e silvas emaranhadas, estava renovado, limpo e gracioso. O outono tinha suspendido nas rvores guirlandas de ouro e de esmeralda. Pereiras, figueiras, abricoteiros, dobravam sob o peso de seus frutos. Longos cachos de uvas vermelhas pendiam entre os ramos das amoreiras; opulentos legumes cobriam os canteiros. Um hbil jardineiro, enviado por Maurice havia podado as rvores, cuidado da vinha, operado esta transformao. Tinha feito desse recanto desolado um maravilhoso pomar. O inverno podia vir. A vida da pobre famlia estava assegurada.

III

Sobre uma das colinas que bordejam o lago, a alguma distncia de Gravedona, se estende uma cortina de teixos e de ciprestes. Sua sombra verdejante aparece de longe, misturada de manchas de brilhante brancura. Lages funerrias, cruzes de madeira ou de pedra erguem-se entre os verdes ramos. o Campo-Santo (o cemitrio), o lugar onde vem se solucionar a cadeia infinita das dores humanas. Uma flor brilhante desabrocha entre as tumbas e esparge no ar agradveis fragrncias. A luz jorra, e os pssaros cantam sobre as pedras sepulcrais. Com efeito, que importa natureza que tantas esperanas e alegrias a estejam sepultadas aos olhos dos humanos? Por isso, no deixaria de seguir os ciclos de suas maravilhosas transformaes.

No longe da entrada do cemitrio, uma grande laje de mrmore est cercada de roseiras, de jasmins, de cravos rubros, entre os quais zumbem os insetos. Uma accia a cobre com sua sombra. L dormem, embalados pelos ecos longnquos, pelos murmrios enfraquecidos da vida, os pais de Giovanna, e sua piedosa mo que mantm essas flores. Vrias vezes por semana, ela desce para orar na Igreja de Gravedona, e de l, seguida de sua ama de leite, ganha o campo fnebre onde moram os despojos dos seus; l tambm repousa o corpo do pai de Maurice, e este, em seu taciturno tdio, gosta de percorrer essas alias silenciosas, retemperando seu esprito na grande calma da cidade dos mortos. Um dia, os dois jovens a se encontraram, Giovanna, ajoelhada, a cabea pendida sobre a tumba de sua me, parecia conversar em voz baixa com ela; via-se seus lbios moverem. Que dizia morta? Que misteriosa troca de pensamentos se operava entre essas duas almas? Maurice no sabia, mas receando perturbar seu recolhimento, se mantinha parte, imvel, atento. Em se levantando, Giovanna o percebe, e sua face se enrubesce. Mas ele, todo feliz deste reencontro, se aproxima e a cumprimenta.

- Senhorinha, disse, vejo que um mesmo motivo nos conduz a esse lugar. doce, no , nos revermos prximo daqueles que perdemos, experimentando que sua lembrana est sempre gravada em nossos coraes?

- Sim, respondeu ela, e no cumprimento desse dever se possudo de foras novas, se fortalecido no bem. Cada vez que venho aqui, saio mais calma, mais submissa vontade de Deus.

- Sente voc tambm isso que experimento prximo dos mortos? Desde que me aproximo da tumba de meu pai, parece que uma comunicao ntima se estabelece entre eu e ele. No fundo de meu ser uma conversao se estabelece. Creio escutar sua voz, lhe falo e ele me responde. Mas talvez isso no seja mais que uma iluso v, um efeito de nossa emoo?

Ela eleva para ele seus olhos que brilham de um fogo profundo e doce.

- No, isso no uma iluso, disse, tambm escuto essas vozes interiores. Tenho aprendido desde muito tempo a compreend-las. E no somente aqui que se fazem escutar, em qualquer lugar que esteja, se chamo pelo pensamento meus queridos invisveis, eles vem, me aconselham, me encorajam, guiam meus passos na vida; a tumba no uma priso, todos, ao mais, podem consider-la como uma espcie de altar de recordaes. No creio que as almas a estejam encantadas.

- As almas dos mortos voltam ento para a Terra?

- Pode-se disso duvidar? Disse a moa. Como, aqueles que nos amaram aqui em baixo se desinteressariam de ns no espao? Liberadas dos laos da matria, no esto elas mais livres, e a lembrana do passado no as reconduziriam para ns? Sim, certamente, retornam, se associam s nossas alegrias, s nossas dores. Se Deus o permitisse, ns os veramos freqentemente ao nosso lado, regozijando-se com nossas boas aes, entristecendo-se com nossas faltas.

- Todavia voc uma catlica fervente, ora, o catolicismo no ensina que na morte a alma julgada e, segundo o decreto divino, eternamente fixada ao lugar do castigo ou morada dos bem aventurados?

- Adoro Deus, obedeo de meu melhor sua lei, mas esta lei uma lei de amor e no uma lei de rigor. Deus muito bom e muito justo para punir eternamente. Conhecendo as fraquezas do homem, como poderia se mostrar to severo para com ele?

- Qual ser ento, segundo voc, a sano do bem e como se consumiria a justia divina?

- A alma, deixando a Terra, v descerrar-se o vu material que lhe fazia esquecer sua origem, seus destinos. Compreende ento a ordem do mundo; v o Bem reinar acima de tudo. Segundo sua vida tenha sido boa ou m, estril ou fecunda, conforme ou contrria lei do progresso, goza uma paz deliciosa ou sofre um cruel remorso, at que retome a tarefa inacabada.

- E como isso?

- Retornando para esta terra de provas e de dores, trabalhando por seu adiantamento, ajudando suas irms na sua marcha comum para Deus.

- Voc pensa ento que a alma deve cumprir vrias existncias aqui em baixo?

- Sim, eu o sinto, uma existncia no pode ser suficiente para nos permitir atingir a perfeio; e como, sem isso, explicar que as crianas de Deus sejam to dessemelhantes de carter, de valor moral, de inteligncia?

- Permita de me espantar que na idade em que tantas jovens so divertidas e risonhas e voc seja to sria, to reflexiva, to esclarecida das coisas do alto.

- sem dvida porque tenho vivido mais do que aquelas de quem voc fala.

- Creio, como voc, que a existncia atual no a primeira que cumprimos, mas, por que a lembrana do passado est apagada em nossa memria?

- Porque os barulhos e as ocupaes da vida material nos desviam da observao interior de ns mesmos. Muitas reminiscncias de minhas vidas, vez por outra, me vem ao esprito. Creio que muitas pessoas poderiam reconstituir suas existncias passadas analisando seus gostos, seus sentimentos.

- A amizade ou a repugnncia instintiva que sentimos, primeira vista, por certas pessoas, no teria sua fonte nesse obscuro passado?

-Sim, sem dvida, mas devemos resistir a esses sentimentos de repugnncia. Todos os seres so nossos irmos e ns lhes devemos a nossa afeio.

- Assim, este impulso irresistvel, que me leva para voc desde o primeiro dia que a vi, esta fora que no faz seno crescer depois de nosso encontro na casa de Marta, e que me faz procur-la por toda parte, seria uma prova de que ns j teramos nos reencontrado e conhecido sobre a terra.

A moa sorriu e corou.

- Querida donzela, continua Maurice em um tom grave e emocionado, devo lhe dizer, nossos pensamentos se unem em uma concordncia singular. Reencontro em voc todas as minhas idias; mas essas idias, confusas em meu esprito, crescem e se aclaram passando por sua boca. A solido e a reflexo tm feito de voc um anjo de bondade, de doura; a mim, me tinha azedado, tornado indiferente aos sofrimentos humanos. Mas no dia em que a vi, na hora compreendi onde estava o bem, o dever. Minha vida recebeu uma impulso nova. a voc que devo esta revelao. Vendo-a, escutando-a, um vu se descerrou, um mundo infinito de sonhos, de imagens, de aspiraes, se mostrou aos meus olhos. Assim, sua presena se tornou uma necessidade para mim, uma alegria profunda. Permita-me esperar que possamos nos rever freqentemente.

Um rudo de passos e de vozes o impede de continuar, vindo, propsito, esconder a perturbao de Giovanna. Um comboio morturio se aproxima; uma salmdia lgubre se prepara no ar. A jovem moa chama sua ama de leite, mas, antes de se afastar, faz um sinal amigo Maurice e lana essas palavras: at logo!

O jovem a seguiu, com o olhar, at que sua veste branca tivesse desaparecido no ngulo da alia.

A admirao que havia despertado no esprito de Maurice, no seu primeiro encontro com Giovanna, ia crescendo medida que aprendia a conhec-la melhor. Mas, pouco a pouco, esta impresso estava mudando em um sentimento todo novo. Aps cada uma de suas conversas na casa de Marta, ele se sentia, como havia dito, melhor, mais inclinado para o bem, mais doce para com seus semelhantes. O poder misterioso que irradiava em torno da jovem o envolvia, fazia fundir o que tinha de duro, de glacial em sua alma. Uma fora atrativa, invencvel, o atraia para ela. Uma espcie de embriaguez subia em seu crebro assim que escutava o som de sua voz. Maurice amava. Amava com o ardor juvenil, com o entusiasmo de um corao que fala pela primeira vez. Cada dia descobria em Giovanna uma perfeio nova. Todos aqueles que a conheciam, todos esses humildes habitantes do vale que ela havia socorrido, no celebravam suas virtudes? E como, malgrado sua doura e sua modstia, se mostrava superior todas as moas de sua idade! Maurice havia vivido prximo s moas da grande cidade lombarda, ele conhecia as alegres meninas de Cme e das margens do lago. Em nenhuma parte, havia encontrado uma igual. Havia vivido a vaidade, o desejo de brilhar, de reinar entre a maior parte delas. Sem dvida, havia a sedutoras pessoas, jovens capazes de tornar um esposo feliz, entre as que havia encontrado; nenhuma possua esta simplicidade unida a esse ar nobre e doce, esse no sei o qu de sobre-humano, esta chama quase divina que se refletia nos olhos de Giovanna, ganhando os coraes, afastando daqueles que dela aproximavam todo pensamento baixo ou impuro. No era isso uma coisa maravilhosa, o escut-la, aos dezoito anos, falar com tanta convico das grandes leis ignoradas pelo homem, perceber os sombrios mistrios da vida e da morte, reconfortar os indecisos, mostrar a todos o dever? Eis o que se dizia Maurice, aps a conversa do cemitrio, com a imagem de Giovanna preenchendo seu esprito. Repassava na sua memria todos os incidentes que o haviam aproximado dela. Revia-a tal qual lhe tinha aparecido, num dia de festa, na Igreja de Gravedona, absorta na sua prece, enquanto que ao redor tudo era barulho, movimento de caixas removidas, esfregao de panos sobre as lajes. E de tudo isso: recordaes, pensamentos, secretas esperanas, se liberava um sonho delicioso, um sonho de amor e de felicidade, que acariciava silenciosamente no fundo de sua alma.

IV

Maurice, em suas caminhadas vagabundas, havia reencontrado vrias vezes Luisa, a velha ama de leite. Tendo sabido conquistar sua amizade, adquiriu a certeza de que seria bem acolhido na vila Esperana, e ali se apresentou um dia. Aquele que encontrasse o advogado misantropo teria podido perceber, com surpresa, a emoo que ele sentia. O que planejava iria destruir ou realizar suas esperanas? Ele foi fortemente bem recebido pela tia de Giovanna que, enfraquecida pela idade e pela doena, sentia chegado o momento de dar um suporte natural, um esposo, sua sobrinha. Ela autorizou Maurice renovar suas visitas, o que ele fez freqentemente. Comearam ento, para os jovens, as prolongadas conversas, as conversas familiares, sobre o terrao dominando o lago, durante as quais suas almas se expandiam em mtuas confidncias. Maurice contava sua vida, sua triste vida de criana privada da me, depois as decepes, os receios de sua juventude. Abria, como se o rasgasse, seu corao a Giovanna. Ela o consolava, lhe confiava seus sonhos, sonhos ainda cndidos, ainda puros como os de um anjo. E esses dois seres, se aproximando mais e mais, aprendiam se amar, mil laos secretos se formavam, os enlaavam, os uniam em estreitas e poderosas malhas.

O dia em que, segundo os costumes da alta Itlia, o noivado devia ser celebrado, foi logo fixado, e tudo foi preparado para esta festa ntima, na qual dois ou trs velhos amigos deviam tomar parte. A vspera desse dia, Maurice sobe ainda cedo vila. Aps a refeio da noite, os dois se dirigem para o terrao, de onde seus olhares podiam se estender sobre um mgico horizonte. Sentam-se em silncio sob um bosque de laranjeiras. Luisa se mantinha um pouco afastada.

A noite avana lentamente; estende sobre o lago seu vu azulado, derramando um colorido uniforme sobre os campos de oliveiras, as vinhas, os bosques de castanheiras, as vilas e as aldeias. Enquanto que a sombra se espessava nos vales, os cumes das colinas, avermelhados pela prpura do poente, semelhava-se bastante ao fogo de um incndio. A noite subia pouco a pouco; suas sombras arrastadas se estendiam sobre as cristas; as luzes inumerveis resplendiam nas janelas das vilas e das cabanas. As trevas envolviam inteiramente o lago e seu quadro de montanhas, mas, para o Norte, as luzes do dia morrendo coloriam ainda de cores fantsticas o colosso dos Alpes. Como uma armada de gigantes dispostos em batalha, a Bernina, a Sella, o Monte-d'Oro, a Disgrazia, e vinte outros picos, apontavam para o cu seus cimos orgulhosos, coroados de neve, sobre os quais o sol, antes de desaparecer no ocidente, lanava seus raios fracionados.

Em vo, a noite procurava apag-los, eles lutavam com ela. Mas seu vu passa enfim sobre essas frontes soberbas. As ltimas luminosidades se extinguiram. A noite triunfava; s, iria reinar at a aurora.

Nesse momento, um concerto argentino se eleva nos ares. Em todas as aldeias, os sinos tilintavam. Era o ngelus, a prece do entardecer, o sinal que evoca entre todos, os pescadores do lago, os lenhadores da floresta, os pastores da montanha, o pensamento de Deus. Giovanna e Maurice, sonhadores, recolhidos, observavam esse majestoso espetculo; escutavam o som melanclico dos sinos, seguiam com o olhar as belas estrelas de ouro emergindo das profundezas do cu para subir lentamente, em legies cerradas, para o znite. A poesia dessa noite preenchia suas almas; suas bocas estavam mudas, mas seus coraes se confundiam num enlevo profundo. Maurice rompeu o silncio primeiro.

- Giovanna, disse ele, voc pensa, s vezes, nessas esferas luminosas que se movem no espao? J se perguntou se so, como nossa terra, mundos de sofrimento, habitados por seres materiais e atrasados, ou se almas mais perfeitas a vivem no amor, na felicidade?

- Bem s vezes, respondeu ela, tenho visitado esses mundos. Protetores, amigos invisveis, me levam quase todas as noites para essas regies celestes. Com dificuldade tenho visto, que um grupo de espritos, de longas vestes flutuantes, de fronte brilhante, me cercam, me chamam. Vejo minha prpria alma que, semelhante deles, se libera de meu corpo e os segue. Rpido como o pensamento, atravessamos os espaos imensos, povoados de uma multido de espritos; por toda parte oceanos de vida desdobram suas perspectivas sem limites. Por toda parte retinem os cantos harmoniosos, de uma suavidade desconhecida na Terra. Percorremos esses arquiplagos estelares, essas esferas longnquas, bem diferentes de nosso globo. Em lugar de uma matria compacta e pesada, muitos dentre eles so formados de fluidos leves, de brilhantes cores. Enquanto que os hspedes da terra se arrastam penosamente na superfcie do planeta, os habitantes desses mundos, de corpos sutis, areos, se elevam facilmente, planam no espao ambiente. Eles agem sobre esses fluidos leves e coloridos que compem o centro de suas esferas; lhes do mil formas, mil aspectos diversos.

Assim so os palcios admirveis, colnias deslumbrantes, com inumerveis prticos, templos com abbadas gigantescas, ornados de esttuas, de pilastras de gs, e cujas muralhas transparentes permitem entrever seu interior. De todas as partes se erguem construes prodigiosas, abrigos da cincia e das artes, bibliotecas, museus, escolas, exposies, sempre invadidas pelas multides. O ensinamento a dado sob a forma de quadros luminosos e cambiantes. A linguagem uma espcie de msica.

Quais so as necessidades corporais dos habitantes desses mundos?

So quase nulas. No conhecem nem o frio, nem a fome, quase nada da fadiga. Sua existncia bem simplificada. Empregam-na na instruo, no estudo do universo, de suas leis fsicas e morais. Prestam a Deus um culto magnfico, e desenvolvem em sua honra os esplendores de uma arte desconhecida aqui. Mas a prtica das virtudes , sobretudo, seu objetivo. A misria, as doenas, as paixes, a guerra, so quase ignoradas sobre esses mundos. So moradas de paz, de felicidade, dos quais no saberamos fazer nenhuma idia em nosso globo de lutas e de lgrimas.

ento para l que se transportam os homens virtuosos que deixam a terra?

H muitos degraus a transpor antes de obter a entrada desses mundos. Esses so os ltimos degraus da vida material, e os seres que os povoam, difanos e leves para ns, so ainda grosseiros e pesados comparados aos puros Espritos. Quanto nossa terra, ela no seno um mundo inferior. , aps a haver vivido um nmero de existncias suficientes para perfazer sua educao e seu adiantamento moral, que o Esprito a deixa para abordar esferas mais e mais elevadas, e revestir um corpo menos material, menos sujeito aos males e s necessidades de toda sorte. Aps um nmero incalculvel de vidas, sempre mais longas ao mesmo tempo em que mais doces, crescendo em cincia e em sabedoria, esclarecendo-se, progredindo sem cessar, a alma abandona enfim as moradas corporais e vai perseguir no infinito o curso de sua eterna ascenso. Suas faculdades se ampliam, uma fonte inesgotvel de caridade, de amor flui nela; compreende as leis superiores, conhece o universo, entrev Deus. Mas pobre de mim! Como esto longe de ns suas beatitudes, suas alegrias inefveis! preciso nos elevar para essas alturas sublimes; Deus nos tem dado os meios. Ele tem querido que sejamos os artesos de nossa felicidade. A lei do progresso no est escrita em nossa conscincia? No recuemos ento diante das lutas, dos sacrifcios, de tudo que purifica, eleva, enobrece. Oh! Se os homens quisessem saber! Se eles se dignassem a procurar o verdadeiro propsito da vida! Que horizontes se abririam ante eles! Como os bens materiais, esses bens efmeros, lhes pareceriam miserveis, como os rejeitariam para se ligar ao bem moral, virtude, que a morte no pode tomar e que, sozinhos, nos abrem o acesso s regies bem aventuradas.

Assim se escoavam as horas. Maurice se inebriava das palavras da jovem moa, porque elas lhe ensinavam coisas que haviam sido sempre ignoradas em seus livros. Era para ele como uma linguagem serfica, revelando os mistrios do alm-tmulo e, com efeito, Giovanna, mdium inspirada, era, sem o saber, o eco de uma voz sobre-humana que retinia nas profundezas de seu ser.

Quase todo dia, passeavam assim, conversando atravs os bosquezinhos perfumados, reaquecidos pelos raios do sol da Itlia, acariciados pelo vento, sob o azul profundo do cu. Algumas vezes, subiam em um barco com Luisa e se deixavam deslizar docemente ao sabor das correntes do lago. Pouco a pouco os barulhos enfraquecidos da margem vinham morrer em torno deles. Bem alto, no ar lmpido, grandes aves de rapina voavam em giros; peixes prateados saltavam na gua transparente. Tudo ento os convidava ao devaneio, aos doces desabafos do corao. Mas, reconduzidos por uma fora oculta para os assuntos srios, Giovanna falava de preferncia da vida futura, das leis divinas, dos progressos infinitos da alma, de sua depurao pelas provas e sofrimentos.

- A dor, dizia, to temida, to mal conhecida aqui em baixo, , na realidade, o ensinamento por excelncia, a grande escola onde se aprende as verdades eternas. Ela somente habitua o ser a se desapegar dos bens pueris, das coisas terrestres, a apreciar o nada. Sem as provas, o orgulho e o egosmo, esses flagelos da alma, no teriam nenhum freio. sua funo amolecer os Espritos rebeldes, os constranger pacincia, obedincia, submisso. O sofrimento o grande cadinho da purificao. Como os gros na joeira, sempre da se sai melhor. preciso ter sofrido para compadecer-se com os sofrimentos dos outros. A aflio nos torna mais sensveis, nos inspira mais piedade pelos infelizes. Se os homens fossem esclarecidos, bendiriam a dor como o mais possante agente de progresso, de crescimento, de elevao. Por ela, a razo se fortifica, o julgamento se afirma, as enfermidades do corao desaparecem. Mais alto que os bens terrestres, mais alto que o prazer, mais alto que a glria, ela mostra alma aflita, a grande figura do dever se erguendo, imponente, augusto, iluminado pelas claridades do fogo que no se extingue.

Essas revelaes, esta voz encantadora, esses acentos eloqentes, inspirados, preenchiam Maurice de espanto e de admirao.

- Giovanna, dizia, fale ainda, fale sempre, querida, o vivo eco de minhas esperanas, de minha f, de minha paixo pelo justo e o verdadeiro. Fale! Sou to feliz de escut-la, de contempl-la. E, todavia, me surpreende por vezes o receio de que nossa felicidade se esvanea de repente. Nossa felicidade no tem nada de humano. Parece-me que o vento spero da vida vai soprar sobre nosso sonho de amor; uma voz secreta me diz que um perigo nos ameaa.

Em vo a jovem moa procurou seguir seus receios. A aproximao de eventos dolorosos nos preenche de uma apreenso vaga. A alma pressente o porvir? Este um problema em suspenso, acima de nossa inteligncia e que ns no podemos resolver.

Assim como Giovanna havia dito, quem pode prever o dia de amanh aqui em baixo?

Alegrias, riquezas, honras, amores insensatos, afeies austeras, tudo passa, tudo escapa entre as mos do homem como uma areia sutil. As horas amargas e desoladas da vida podem tocar de perto as horas de felicidade e de paz; mas raro, quando as primeiras se aproximam, que no sejamos atingidos por um sombrio prognstico. Assim estava Maurice. Esta conversa sobre a dor, pensava, no seria como um pressgio, uma advertncia do alto? Uma presso penosa lhe apertava o corao quando se separava de Giovanna.

A noite se escoava longa e sem sono. Mas as primeiras claridades da alvorada afastaram suas impresses e quando retornou para perto de sua bem-amada, vendo-a plena de graa, de jovialidade, de vida, embelezada pelo noivado, seus ltimos receios se esvaneceram como um nevoeiro matinal sob os raios do sol de Agosto.

V

Giovanna e Maurice haviam trocado os anis benzidos pelo padre; a poca de sua unio estava fixada. Os dias passaram para eles rpidos, entregues sua felicidade. Eles ignoravam que um espantoso flagelo avanava, que sua devastao havia despovoado as plancies lombardas e que o ar puro das montanhas seria impotente para o deter. Que lhes importava com efeito as novidades de fora, os barulhos do mundo. O mundo para eles se resumia em um s ser, o ser amado! Seu pensamento, no visitava mais do que as regies supraterrestres.

No sonhavam seno com seu amor, com a vida que se abria diante deles to bela, to rica de promessas. Mas a Vontade Suprema iria reverter todas essas esperanas. Aps haver entrevisto uma felicidade ideal, Maurice devia retomar a sombria e desesperante realidade.

Um violento tifo se abatia sobre as margens do lago e Gravedona e o vale de Domaso foram sucessivamente atingidos. Alguns dias tinham penosamente escoado e j muitas das moradas estavam vazias. A fumaa azulada no se elevava mais acima dos telhados. O silncio, esse silncio cruel da morte ou da perda, substitua o barulho do trabalho e das canes; grandes cruzes brancas apareciam sobre as portas das cabanas desertas. A foice da morte ceifava muitas existncias entre essas famlias de pescadores e artesos, mal vestidos, mal nutridos, de higiene duvidosa que ofereciam uma presa fcil ao flagelo. Durante quase todo o dia o sino da igreja tocava o dobre fnebre e numerosos cortejos se encaminhavam para o campo-santo.

A epidemia no poupou os Menoni. Marta foi atingida primeiro, depois sua menina tombou doente por sua vez. Todas as famlias, todas as moradas atingidas pelo flagelo foram abandonadas. Os mdicos eram pouco numerosos. Nenhum cuidado em atender os parentes, os amigos; o isolamento, o sofrimento e a morte, eis o que podiam esperar aqueles que fossem contagiados. As lamrias que ressoavam de todas as partes, a desolao geral, arrancaram Giovanna de sua quietude, de sua felicidade. A voz imperiosa do dever se elevava nela e dominava a voz do amor. Desdenhando do perigo, surda s splicas de Maurice, partilhava doravante seu tempo entre os infelizes abandonados. Seu noivo, no podendo desvi-la do risco, imita seu exemplo. Giovanna passa um ms inteiro na cabeceira dos moribundos; vrios expiram sob seus olhos. Marta e sua menina morreram malgrado os seus cuidados. At os derradeiros momentos ela os assistiu, suportando com uma calma aparente o espetculo de suas convulses, respirando o sopro envenenado que exalavam de seus lbios. Tanta fadiga e emoes acabaram com a jovem moa. Uma tarde em que, extenuada, retornava da vila com Maurice, teria cado no solo, desmaiada, se seu noivo no a tivesse recolhido em seus braos.

Ela retornou para casa e se acamou, e os assustadores sintomas se manifestaram em seguida. Um crculo de fogo apertava suas tmporas; zumbidos inslitos faziam barulhos em seus ouvidos; os calafrios a tomaram, uma cor arroxeada se estendeu em torno de seus olhos. O mal fazia rpidos progressos; a vida de Giovanna fundia como uma cera mole sob o sopro do flagelo. A partir do dia seguinte, a sombra da morte flutuava sobre sua face. Maurice, plido, desesperado, permanecia o tempo todo perto dela, apertando suas mos geladas. Aproximando seus lbios de sua boca descolorada, pedia Deus lhe permitisse aspirar a morte em um beijo.

Giovanna respondia docemente ao seu abrao. Seus olhos, j brilhantes das luzes do lado de l, se fixavam sobre ele com uma expresso de calma, de doura serena. Mesmo nesse momento solene, malgrado o sofrimento que despedaava seus membros, um sorriso resignado aclarava sua face. tarde, a agonia comeou. Giovanna agitava-se convulsivamente, debatia-se sob uma opresso dolorosa, implorando a Deus aos gritos. A essas crises terrveis sucedia um abatimento profundo, uma imobilidade semelhante morte. Somente, os lbios da jovem menina mexiam. Parecia conversar com seres invisveis. Por vezes tambm, se a escutava murmurar o nome de Maurice. Um ligeiro cerramento da mo, um ltimo estremecimento, e Giovanna expira. A alma desse anjo retornava para Ele que a havia criado.

Maurice, esmagado pela dor, estava como um homem brio. Suas lgrimas, no podendo sair, recaiam sobre seu corao e o afogava em ondas de um cruel desespero. A noite veio, colocou-se velas acesas prximo ao leito; um crucifixo repousava sobre a peito da morta cujos cabelos louros esparsos formavam uma coroa de ouro em torno de sua cabea plida. Soluos meio comprimidos se elevaram dos cantos da sala. A tia, a velha ama de leite de Giovanna, algumas pobres pessoas a quem a morta havia socorrido, oravam e choravam. Maurice se aproxima da janela toda aberta. Ironia da natureza! O disco brilhante da lua aclarava plancies e montes; aromas balsmicos flutuavam no ar; a torrente, correndo sobre as pedras, fazia ouvir seu alegre murmrio ao qual respondia o rouxinol pousado sobre os altos galhos. No seio da noite tpida e perfumada, tudo eram luzes e cantos, tudo celebrava a felicidade de viver, e l, sobre seu virginal leito, a doce criana dormia j o eterno sono. Assim pensava Maurice; mil idias sombrias, tumultuadas, cresciam no seu crebro como um vento de tempestade.

Qual ento o Deus cruel que brinca assim com nosso corao! Haver-lhe mostrado a felicidade, haver-lhe feito a tocar para logo a furtar. Esses sonhos dourados, esses sonhos formados a dois, estariam para sempre desvanecidos! Esse cadver que pernoitava ali era tudo o que restava de Giovanna?

No a veria mais, no ouviria mais sua voz, no veria mais nos seus olhos aqueles clares de ternura que o inebriavam, que o reaqueciam deliciosamente. Mais algumas horas e no teria mais nada dela, nada seno a lembrana, uma lembrana dilacerada, penetrante como uma espada na alma ulcerada. No mais as caminhadas a dois no vale, no mais os passeios sobre o lago, na brilhante luminosidade do dia, no mais as conversas sobre o terrao na suave claridade das noites. Ele era triste, deprimido, at que a conheceu; como um raio, seu olhar havia clareado sua vida, e eis que, subitamente, tudo se extinguia. Estava acabado agora; sua vida tinha se encerrado; no mais os sonhos alegres, no mais a esperana, agora o vazio, a solido terrvel, as trevas se formariam ao redor dele. Como seu corao batia a golpes precipitados no seu peito, como sua cabea queimava! Um peso esmagador lhe fazia curvar a fronte, mergulhando-a em seus joelhos. E chamava a morte, desejava-a ardentemente. - Vem, dizia, leve-me com ela, envolva-nos no mesmo sudrio, deite-nos na mesma cova; que a mesma pedra nos cubra! Mas no, ela estava morta e ele lhe falava, vivo. Que abismo se abria sob seus passos! E a revolta esmagava esta alma contra o implacvel destino.

Evocando as lembranas de sua vida, depois seus tristes anos de infncia, Maurice via passar como um turbilho as iluses dissipadas, as alegrias to curtas, to vazias, evanescentes, as felicidades efmeras de sua juventude. Todas as sombras, todas as preocupaes do passado, subiam como uma onda amarga do fundo de sua memria, submergindo nele as ltimas esperanas. Em seu lugar, uma profunda sensao de isolamento, de abandono, permanecia. Todos aqueles que tinha amado haviam partido. Sua me, morta quando ele era apenas uma criana, depois seu pai, e agora, a estava Giovanna. Tudo o que havia alegrado sua existncia, tudo o que havia feito bater seu corao iria se resumir em trs, sepulcros. - Oh! murmurava , Ser invisvel que se ri de nossas lgrimas, nos faz ento viver apenas para nos torturar? Entretanto no pedi para nascer. Por que me tirou do nada, l onde se dorme, onde se repousa, onde no se sofre! A alvorada veio aclarar com suas plidas luzes a triste cena da morte, Giovanna depositada no caixo, a chegada do padre, a partida para o cemitrio. Semelhante a um autmato, Maurice seguiu o fretro, coberto de ramalhetes de rosas brancas, levadas pelas jovens meninas de Gravedona. Afundado em sua dor, ele no via nada do cerimonial fnebre na igreja, no escutava certamente as salmodias lgubres. O barulho surdo da terra caindo sobre as tbuas do caixo o chamou enfim a si.

Os assistentes se foram, a cova fechada, se encontra s, diante da sepultura de sua noiva. Ento seu corao se dilacera; ele se lana sobre o solo, estendendo seus braos por cima da morta; um soluo se ergue em seu peito e um regato de lgrimas escorre de seus olhos.

VI

O inverno chega, espessas nuvens demoram no cu; o vento passa mugindo sobre as colinas despojadas, fazendo turbilhonar os monturos de folhas mortas. Maurice, sozinho, vestido de luto, est sentado perto de uma lareira que crepita no seu pequeno aposento dominando o lago. Um livro est aberto diante dele; mas no o est lendo; sombrios pensamentos o assediam. Sonha com aquela que repousa sob a terra gelada, ouvindo os gemidos do vento que chora como uma legio de almas em sofrimento. Por vezes, se levanta e vai observar, por detrs do vidro, o tapete cinzento das guas, o horizonte cujas cores de chumbo se harmonizam com o estado de seu esprito; depois apanhando um bauzinho de madeira esculpida, abre-o e retira flores dessecadas, um lao de fitas, jias de mulher. Aperta sobre seus lbios essas relquias de amor; o passado evocado se revela em sua memria. E as horas se sucedem s horas. Maurice permanece l, meio inclinado sobre esse fogo que queima na atmosfera mida. Ele sonha com a felicidade perdida, as esperanas desvanecidas. A falta de coragem reavivou o desgosto da vida, esse desgosto de amar outra vez, o invadiu novamente; idias de suicdio germinam no fundo de seu pensamento.

A noite se faz e o fogo vai se extinguir, mas Maurice se compraz nesta obscuridade mais e mais espessa. Um roamento se fez ouvir atrs dele. Volta-se e no v nada. sem dvida o barulho do vento ou os passos da empregada, no quarto vizinho. Perto da chamin est um piano, mudo h muito tempo. De repente sons se elevam desse mvel hermeticamente fechado. Confundido pala surpresa, Maurice presta ateno. Essa ria bem conhecida a cano de Mignon, a cano preferida de Giovanna, e que ela gostava de tocar noite, aps a refeio. O corao de Maurice fica apertado; as lgrimas molham seus olhos. Levanta-se, d a volta no piano: ningum! O banquinho est vazio. Volta para o seu lugar. Ser isso uma iluso sonora? Uma sombra branca ocupa a poltrona que acabara de deixar. Tremendo, se aproxima. Seus olhos, seu olhar lmpido, seus cabelos louros como espigas maduras, essa boca sorridente, esse porte esbelto, alongado, a imagem de Giovanna. Oh magia, a tumba devolve ento os seus hspedes! Uma voz vem acariciar seus ouvidos: - Amigo, no receie nada, sou bem eu, no procure me segurar, no sou seno um Esprito. No se aproxime mais, escute-me. Maurice se ajoelha e chora - Meu anjo, minha noiva, ento voc ?

- Sim, sou sua noiva, noiva de voc bem antes desta vida. Escuta, um lao eterno nos une. Ns nos conhecemos desde sculos, temos vivido lado a lado por muitas vezes, percorrido juntos muitas existncias. A primeira vez que o encontrei sobre a terra, estava bem fraca, bem tmida, e a vida ento era dura. Voc me tomou pela mo, me tem servido de apoio; desde esse momento, no nos separamos jamais. Sempre nos seguimos nas nossas vidas materiais, andando no mesmo caminho, nos amando, sustentando um ao outro. Ocupado com os combates, os empreendimentos guerreiros, voc no podia realizar os progressos necessrios para que seu esprito livre, purificado, pudesse deixar este mundo grosseiro. Deus queria prov-lo; nos separou. Eu poderia subir para outras esferas, mais felizes, enquanto que voc deveria prosseguir, sozinho, sua provao aqui em baixo. Mas preferi esper-lo no espao. Voc cumpriu duas existncias desde ento, e durante seu curso, testemunha invisvel de seus pensamentos, no tenho cessado de velar sobre voc. Cada vez que a morte arrancava sua alma da matria, voc me encontrava e o desejo de se elevar o fazia tomar com mais ardor o fardo da encarnao. Desta vez, tendo tanto orado, tendo tanto suplicado ao Senhor, ele me permitiu voltar sobre a terra, a tomando um corpo, uma voz, para ensinar a voc o bem e a verdade. Nossos amigos do espao nos aproximaram, reunidos, mas por um tempo limitado. Eu no podia mais permanecer por muito tempo sobre a terra, minha misso j estava completa. No devia ser sua aqui em baixo.

chegada uma hora em que os Espritos podem, segundo a permisso divina, se comunicar com os humanos. Por isto venho, para gui-lo, encoraj-lo, consol-lo. Se quiser que esta existncia terrestre seja a ltima para voc; se quiser que, sua partida, sejamos reunidos para no mais nos separarmos, consagre sua vida seus irmos, ensine-lhes a verdade. Diga-lhes que o objetivo da existncia no de adquirir bens efmeros, mas de aclarar sua inteligncia, de purificar seu corao, de se elevar para Deus. Revele as grandes leis do Universo, a ascenso dos Espritos para a perfeio. Ensine-lhes a via mltipla e solidria, os mundos inumerveis, as humanidades irms. Mostre-lhes a harmonia moral que rege o infinito. Deixe atrs de voc as sombras da matria, as paixes maldosas; d a todos o exemplo do sacrifcio, do trabalho, da virtude. Tenha confiana na divina justia. Olhe adiante, para a luz longnqua que aclara o objetivo, o objetivo supremo que deve nos reunir no amor, na felicidade.

Sem tardar entregue-se obra; ns o sustentaremos, o inspiraremos. Estarei prximo a voc na luta, envolv-lo-ei em um fluido benfazejo. Assim, nesta noite, me tornei visvel aos seus olhos, revelei o que ainda ignorava. E um dia, quando tudo o que tem em voc, de terrestre e de baixo, tiver se desvanecido, unidos, confundidos, nos elevaremos juntos para o Eterno, juntando nossas vozes ao hino universal que sobe de esfera em esfera at Ele.

Reencontrei Maurice Ferrand, h alguns anos, numa grande vila, por detrs dos Alpes. Havia comeado sua obra. Pela escrita, pela palavra, trabalhava disseminando esta doutrina conhecida sob o nome de Espiritismo. Os sarcasmos e as zombarias choviam sobre ele de todas as partes. Cticos, devotos, indiferentes, todos se uniam para o importunar. Mas, calmo, resignado, no parava de seguir em sua misso. Que me importa, me dizia, o desdm desses homens. Um dia vir em que, com auxlio da provao, compreendero que esta vida no tudo e pensaro em Deus, em seu porvir sem fim. Ento talvez se recordem daquilo que lhes disse. A semente lanada neles poder germinar. E, alis, acrescentou observando o espao - e uma lgrima brilhou em seus olhos - o que fao, obedecer queles que me amam, para me aproximar deles!

FIM