Ana Cristina Cesar - A Teus Pés

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  • A TEUS PSAna Cristina CesarEditora brasiliense

    @m1ras

  • Sem autorizao prvia do editor.ISB : 85-11-05008-6Primeira ediao, 1982,7 edio, 1992Reviso: Jane S. Coelho

  • POR CAIO FERNANDO ABREU Fascinada por cartas, dirios ntimos ou o que ela chama de cadernos teraputicos, Ana C.

    concede ao leitor aquele delicioso prazer meio proibido de espiar a intimidade alheia pelo buraco dafechadura. Intimidade s vezes atrevida, mas sempre elegantssima. Intimidade dentro de um espaoliterrio particular, onde no h diferena entre poesia e prosa, entre dramtico e irnico, culto eemocional, cerebral e sensvel. A Teus Ps revela finalmente, para um grupo maior, um dos escritoresmais originais, talentosos, envolventes e inteligentes surgidos ultimamente na literatura brasileira.

  • BIOGRAFIANasceu em 1952, no Rio de Janeiro, criou-se entre Niteri, Copacabana e os jardins do velho

    Bennett. Depois de 68, um ano em Londres, primeiras viagens pelo mundo, e na volta deu aulas,traduziu, fez letras, escreveu para revistas e jornais alternativos, saiu na antologia 26 Poetas Hoje, deHelosa Buarque, publicou, pela Funarte, pesquisa sobre literatura e cinema, fez mestrado emcomunicao, lanou seus primeiros livros em edies independentes: Cenas de Abril eCorrespondncia Completa. Dez anos depois, outra vez a Inglaterra, onde, s voltas com um M.A. emtraduo literria, escreveu muitas cartas e editou Luvas de Pelica. Ao retornar, descobre So Paulo,fixa residncia numa vila da Baixa Gvea, Rio, trabalha em jornalismo e televiso, e escreve A TeusPs.

  • A TEUS PS

  • Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando uma informao difcil. Agora

    silncio; silncio eletrnico, produzido no sintetizador que antes construiu a ameaa das asas batendofreneticamente.

    Apuro tcnico.Os canais que s existem no mapa.O aspecto moral da experincia.Primeiro ato da imaginao.Suborno no bordel.Eu tenho uma idia.Eu no tenho a menor idia.Uma frase em cada linha. Um golpe de exerccio.Memrias de Copacabana. Santa Clara s trs da tarde.Autobiografia. No, biografia.Mulher.Papai Noel e os marcianos.Billy the Kid versus Drcula.Drcula versus Billy the Kid.Muito sentimental.Agora pouco sentimental. Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu amor de

    ontem.Gertrude: estas so idias bem comuns.Apresenta a jazz-band.No, toca blues com ela.Esta a minha vida.Atavessa a ponte. sempre um pouco tarde.No presta ateno em mim.Olha aqueles trs barcos colados imveis no meio do grande rio.Estamos em cima da hora.Daydream.Quem caa mais o olho um do outro?Sou eu admito vitria.Ela que mora conosco ento nem se fala.Caa, caa.E faz passos pesados subindo a escada correndo.Outra cena da minha vida.Um amigo velho vive em txis.Dentro de um txi que ele me diz que querchorar mas no chora.No esqueo mais.E a ltima, eu j te contei? assim .Estamos parados.

  • Voc l sem parar, eu ouo uma cano.Agora estamos em movimento.Atravessando a grande ponte olhando o granderio e os trs barcos colados imveis no meio.Voc anda um pouco na frente.Penso que sou mais nova do que sou.Bem nova.Estamos deitados .Voc acorda correndo.Sonhei outra vez com a mesma coisa.Estamos pensando.Na mesma ordem de coisas.No, no na mesma ordem de coisas. domingo de manh (no dia til s trs da tarde).Quando a memria est til.Usa.Agora a sua vez.Do you believe in love...?Ento est.No insisto mais.

  • O tempo fecha.Sou fiel aos acontecimentos biogrficos.Mais do que fiel, oh, to presa! Esses mosquitos que no largam! Minhas saudades ensurdecidaspor cigarras! O que fao aqui no campo declamando aos metros versos longos e sentidos?Ah que estou sentida e portuguesa, e agora no sou mais, veja, no sou mais severa e rspida:agora sou profissional.

  • Segunda histria rpida sobre a felicidade descendo a colina ao escurecer - meu amor ficou

    longe, com seu ar de no ter dvida, e dizia: meus pais... - no posso mais duvidar dos meuspassinhos, neste stio - voc agora fala at mais baixo, delicada que eu reparo mais que os outrodepois de um tempo fora - como voltar e achar as crianas crescidas, e sentar na varanda para trocarpensamentos e memrias de um tempo que passou - mas quando eu fui (aquele dia no aeroporto)ainda havia ares de mistrio - agora, agora, descendo esta colina, sem nenhum, que eu conto ento doamor distante, e no imito a minha nostalgia, mas a delicadeza, a sua, assim feliz.

  • SETE CHAVES Vamos tomar ch das cinco e eu te conto minha grande histria passional, que guardei a sete

    chaves, e meu corao bate incompassado entre gaufrettes. Conta mais essa histria, me aconselhascomo um marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo fogo. Mais um roman cl?

    Eu nem respondo. No sou dama nem mulher moderna.Nem te conheo.Ento: daqui que eu tiro versos, desta festa - com arbtrio silencioso e origem que no confesso - com

    quem apaga seus pecados de seda, seus trs monumentos ptrios, e passa o ponto e as luvas.

  • INVERNO EUROPEU Daqui mais difcil: pas estrangeiro, onde o creme de leite desconjunturado e a subjetividade

    se parece com um roubo inicial. Recomendo cautela. No sou personagem do seu livro e nem que vocqueira no me recorta no horizonte terico da dcada passada. Os militantes sensuais passam a bola:depresso legtima ou charme diante das mulheres inquietas que s elas? Manifesto: segura a bola; eude conviva no digo nada e indiscretssima descalo as luvas (no mximo), direita de quem entra.

  • NOITE CARIOCA Dilogo de surdos, no: amistoso no frio. Atravanco na contramo. Suspiros no contrafluxo. Te

    apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que no tem nenhum segredo.

  • MARFIM A moa desceu os degraus com o robe monogramado no peito: L.M. sobre o corao. Vamos

    iniciar outra Correspondncia, ela prope. Voc j amou algum verdadeiramente? Os limites doromance realista. Os caminhos do conhecer. A imitao da rosa. As aparncias dese nganam. Estoudesenganada. No reconheo voc, que to quieta, nessa histria. Liga amanh outra vez sem falta.No posso interromper o trabalho agora. Gente falando por todos os lados. Palavra que no mexe maisno barril de plvora plantado sobre a torre de marfim.

  • MOCIDADE INDEPENDENTE Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir mais as conseqncias. Por

    que recusamos ser profticas? E que dialeto esse para a pequena audincia de sero? Voei pra cima eagora, corao, no carro em fogo pelos ares, sem uma graa atravessando o Estado de So Paulo demadrugada, por voc, e furiosa: agora, nesta contramo.

  • EXTERIOR. DIA. Trocando minha pura indiscrio pela tua histria bem datada. Meus arroubos

    pela tua conjuntura. MAR, AZUL, CAVERNAS, CAMPOS e TROVES. Me encosto contra a muretado bondinho e choro. Pego um txi que atravessa vrios tneis da cidade. Canto o motorista. Driblo aminha f. Os jornais no convocam para a guerra. Tora, filho, tora, mesmo longe, na distncia dequem ama e se sabe um traidor. Tome bitter no velho pub da esquina, mas pensando em mim entreum flash e outro de felicidade. Te amo estranha, esquiva, com outras cenas mixadas ao sabor do teuamor.

  • CARTILHA DA CURA As mulheres e as crianas so as primeiras que desistem de afundar navios.

  • Preciso voltar e olhar de novo aqueles dois quartos vazios.

  • CONVERSA DE SENHORAS No preciso nem casarTiro dele tudo o que precisoNo saio mais daquiDuvido muitoEsse assunto de mulher j terminouO gato comeu e regalou-seEle dana que nem um realejoEscritor no existe maisMas tambm no precisa virar deusTem algum na casaVoc acha que ele agenta?Sr. ternura est batendoEu no estava nem aConchavando: eu fao a trplicaArmadilha: louca pra saberEla esquisitaTambm voc mente demaisEle est me patrulhandoPara quem voc vendeu seu tempo?No sei dizer: fiquei com o gaucheNo tem a menor lgicaMas e o trampo?Ele est bonzinhoAcho que mentiraNo comea

  • SUMRIO Polly Kellog e o motorista Osmar.Dramas rpidos mas intensos.Fotogramas do meu corao conceitual.De tomara-que-caia azul marinho.Engulo desaforos mas com sinceridade.Sonsa com bom-senso.Antena da praa.Artista da poupana.Absolutely blind.Teso do talvez.Salta-pocinhas.gua na boca.Anjo que registra.

  • A histria est completa: wide sargasso sea, azul. azul que no me espanta, e canta como uma

    sereia de papel.

  • Sem voc bem que sou lago, montanha.Penso num homem chamado Herberto.Me deito a fumar debaixo da janela.Respiro com vertigem. Rolo no colcho.E sem bravata, corao, aumento o preo.

  • ATRS DOS OLHOS DAS MENINAS SRIAS Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vo, por injunes muito mais srias, lustrar pecados

    que jamais repousam?

  • ATRS DOS OLHOS DAS MENINAS SRIAS Aviso que vou virando um avio. Cigana do horrio nobre do adultrio. Separatista protestante.

    Melindrosa basca com fissura de verdade. Me entenda faz favor: minha franqueza era meu fraco, oprimeiro side-car anfbio nos classificados de aluguel. No flanco do motor vinha um anjoencouraado, Charlie's Angel rumando a toda para os Lagos, Seven Year Itch, mato sem cachorro.Pulo para fora (mas meu salto engancha no pedao do pedal?), no me afogo mais, no abano o rabonem rebolo sem gs de decolagem. No olho pra trs. Aviso e profetizo com minha bola de cristaisque v novela de verdade e meu manto azul dourado e mais pesado do que o ar. No olho pra trs e saida frente que essa uma rasante: garras afiadas, e pernalta.

  • ENCONTRO DE ASSOMBRAR NA CATEDRAL Frente a frente, derramando enfim todas as palavras, dizemos, com os olhos, do silncio. que no

    mudez.E no toma medo desta alta compadecida passional, desta crueldade intensa de santa que te toma

    as duas mos.

  • ESTE LIVRO Meu filho. No automatismo. Juro. jazz docorao. prosa que d prmio. Um tea for twototal., tilintar de verdade que voc seduz,charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie acarapua.E cante.Puro acar branco e blue.

  • DUAS ANTIGAS I Vamos fazer uma coisa:escreva cartas doces e azedasAbre a boca, deusaAquela solenidade destransando leveLinhas cruzando: as mulheres gostamde provocaoSaboreando o privilgioseu livro solta as folhasA ento ela percebeu que seu olho corriaveloz pelo museu e s parava em trs,desprezando como uma ignorante os outrosgrandes. E ficou feliz e muito certa com avolpia da sua ignorncia.S e sempre procuraessas frases soltas no seu livroque conta histria que no pode ser contada.S tem caprichos mais e mais diria e no se perde no meio de tanta e tamanha companhia

  • II Eu tambm, no resisto. Dans mon le, vendo a barca e as gaivotinhas passarem. Sua resposta

    vem de barca e passa por aqui, muito rara. Quando tenho insnia me lembro sempre de uma gaffe e deum anncio do museu: "To see all these works together is an experience not to be missed". E eu nemnada. Fiz misrias nos caminhos do conhecer. Mas hoje estou doente de tanta estupidez porque esperoardentemente que alguma coisa... divina acontea. F for fake. Os horscopos tambm erram.

    Me escreve mais, manda um postal do azul (eu no me espanto).O lugar do passado? Na prxima te digo quem so os 3, mas os outros grandes... eu resisto.No fica aborrecida: beijo poltico lbios de cada amor que tenho.

  • VACILO DA VOCAO Precisaria trabalhar --- afundar ------ com voc --- saudades loucas ---Nesta arte --- ininterrupta ---De pintar --- A poesia no --- telegrfica --- ocasional ---Me deixa sola --- solta --- merc do impossvel ------ do real.

  • Minha boca tambmest secadeste ar seco do planaltobebemos litros dguaBraslia est tombadailuminadacomo o mundo realpouso a mo no teu peitomapa de navegaodesta varandahoje sou eu queestou te livrandoda verdade

  • te livrando castillo de alusionesforest of mirrors anjoque exterminaa dor

  • ela quisqueria me matarquerer ainda, querida?

  • muito claroamorbateupara ficarnesta varanda descobertaa anoitecer sobre a cidadeem construosobre a pequena constriono teu peitoangstia de felicidadeluzes de automveisriscando o tempocanteiros de obrasem repousorecuo sbito da trama

  • Quando entre ns s haviauma carta certaa correspondnciacompletao trem os trilhosa janela abertauma certa paisagemsem pedras ousobressaltosmeu salto altoem equilbrioo copo dguaa espera do caf

  • Reaparecia abruptamentecomo se nada tivesse acontecidoabria as cortinas com palpitesturbilho de novidades antena da ltimas tendnciasfora de leoescancarava a porta pretavento remoinhogargalhada no armeio dia.

  • CABECEIRA Intratvel.No quero mais pr poemas no papelnem dar a conhecer minha ternura.Fao ar de dura,muito sbria e dura,no pergunto"da sombra daquele beijoque farei?" intilficar escutaou manobrar a lupada adivinhao.Dito istoo livro de cabeceira cai no cho.Tua mo deslizadistraidamente?sobre a minha mo

  • AVENTURA NA CASA ATARRACADA Movido contraditoriamentepor desejo e ironiano disse mas soltou,numa noite fria,aparentemente desalmado;- Te pego l na esquina,na palpitao da jugular,com soro de verdade e meia,bem na veia, e cimento armadopara o primeiro a andar. Ao que ela teria contestado, no,desconversado, na beira do andaimeainda a descoberto: - Eu tambm,preciso de algum que s me ame.Pura preguia, no se movia nem um passo.Bem se sabe que ali ela no presta.E ficaram assim, por mais de hora,a tomar ch, quase na borda,olhos nos olhos, e quase testa a testa.

  • O HOMEM PBLICO N. 1 (ANTOLOGIA) Tarde aprendibom mesmo dar a alma como lavada.No h razopara conservareste fiapo de noite velha.Que significa isso?H uma fitaque vai sendo cortadadeixando uma sombrano papel.Discursos detonam.No sou eu que estou alide roupa escurasorrindo ou fingindoouvir.No entantotambm escrevi coisas assim,para pessoas que nem sei maisquem so,de uma douravenenosade to funda.

  • POUR MMOIRE No me toquesnesta lembrana.No perguntes a respeitoque viro me-leoaou pedra-lage lvidaeretana gramamuito bem-feita.Estas so as fazes da minha fria.Sob a janela molhadapassam guarda-chuvasna horizontal,como em Cherbourg,mas no era esteo nome.Saudade em pedaos,estao de vidro.guaAs cartasno mentem jamais:vir ver-te outra vezum homem de outro continente.No me toques,foi minha cortante respostasem palavrasque se digamdentro do ouvidonum murmrio.E mais no quer sabera outra, que sou eu,do espelho em frente.Ela instrui:deixa a saudade em repouso(em estao de guas)tomando contadesse objeto claroe sem nome.

  • SEXTA-FEIRA DA PAIXO Alguns esto dormindo de tarde,outros subiram para Petrpolis como meninos tristes.Vou bater porta do meu amigo,que tem uma pequena mulher que sorri muito e falapouco, como uma japonesa.Chego meio prosa, sombras no rosto.No tenho muitas palavras como pensei."Coisa nfima, quero ficar perto de ti".Te levo para a avenida Atlntica beber de tardee digo: est lindo, mas no sei ser engraada." A crueldade seu diadema..."O meu embarao te deseja, quem no v?Consolatriz cheia das vontades.Caixa de areia com estrelas de papel.Balano, muito devagar.Olhos desencontrados: e se eu disser, te adoro,e te raptar no sei como dessa aflio de maro,bem que aproveitando maus bocados para sair doesconderijo num relance?Conheces a cabra-cega dos coraes miserveis?Beware: esta compaixo paixo.

  • QUE DESLIZA Onde seus olhos estoas lupas desistem.O tnel corre, interminvelpouco negro sem quebrade estaes.Os passageiros nada adivinham.Deixam correrNo ficam negrosDeslizam na borrachacarinho discretopelo cansaoque apenas se recostacontra a transparenteescurido.

  • SAMBA-CANO Tantos poemas que perdi.Tantos que ouvi, de graa,pelo telefone ta,eu fiz tudo pra voc gostar,fui mulher vulgar,meia-bruxa, meia-fera,risinho modernistaarranhando na garganta,malandra, bicha,bem viada, vndala,talvez maquiavlicae um dia emburrei-me,vali-me de mesuras(era uma estratgia),fiz comrcio, avara,embora um pouco burra,porque inteligente me punhalogo rubra, ou ao contrrio, caraplida que desconheceo prprio cor-de-rosa,e tantas fiz, talvezquerendo a glria, a outracena luz de spots,talvez apenas teu carinho,mas tantas, tantas fiz

  • TRAVELLING Tarde da noite recoloco a casa toda em seuLugar.Guardo os papis todos que sobraram.Confirmo para mim a solidez dos cadeados.Nunca mais te disse uma palavra.Do alto da serra de Petrpolis,com um chapu de ponta e um regador,Elizabeth reconfirma, Perder mais fcil que se pensa.Rasgo os papis todos que sobraram.Os seus olhos pecam, mas seu corpono, dizia o tradutor preciso, simultneo,e suas mos que tremiam. perigoso,ria a Carolina perita no papel kodak.A cmera em rasante viajava.A voz em off nas montanhas, inextinguvelfogo domado da paixo, a vozdo espelho dos meus olhos,negando-se a todas as viagens,e a voz rascante da velocidade,de todas as trs bebi um poucosem notarcomo quem procura um fio.Nunca mais te disseuma palavra, repito, preciso alto,tarde da noite,enquanto desalinhosem luxosedeagulhadasos pareceres que ouvi num dia interminvel: sem parecer mais com a luz ofuscante dessemesmo dia interminvel

  • L FORA h um amorque entra de frias.H um embaamentode minhas agulhasntidas diantedessa boa biscade mulher.H um placarvisvel em altas horas,pela persiana deste hotel,fatal, que diz: fiado,s depois de amanhe olhe l,onde a minha lminacortante,sofrendo de sbitacegueira noturna,pendura a contae no corta mais,suspendendo seu pnduloDe Nietzsche ou Poepor um nada que piscae tira folga e saiafiado para a ruacomo um ato falhodeixando as chavessoltasem cima do balco.

  • Volta e meia vasculho a sacola preta cata de um trs por quatro.Exatamente o meu peito est superlotado.Os ditos dele zumbem por detrs.Na batida dou com figuras de outras dimenses.Nesta hora grave a mais peituda, estirada no sof,encara fixamente a mulher da mquina.(Junto a lista lacnica das frias: mudana,aborto, briga rpida com A, tenso dramticaem SP, carta para B pura negao ,afasia com H, tarde sentida no Castelo.)Rigidez aguardando um clique. Um still.Que morresse pela boca.Nesta volta e meia vira e mexe acabo achando ouro na sacola.Fabulosas iscas do futuro.Helicptero sobrevoando baixo o hospital do cncerSorriso gabola da turma de 71.Papai, mame, a linha do horizonte.Concorde. Bonde do desejo. Espaonave.Hoje mesmo quando olhei para o rosto exausto de Angelita.Desde que o Sombra me falou de amor.

  • Queria falar da mortee sua juventude me afagava.Uma estabanada, alvssima,um palito. Entre dentesno maldizia a distraoeltrica, beleza ossudaal mare. Afogava-me.

  • SBADO DE ALELUIA Escuta, Judas.Antes que voc parta pro teu baile.A morte nos absorve inteiramente.Tudo aconchego rido.Cheiro eterno de Proderm.Mesa posta, e as garras da vontade.A gana de procurar um por ume pronunciar o escndalo.Falar sem ser ouvida.Desfraldar pendengas: te desejo.Indiferena fantica ao ainda no.

  • Desde que voltei tenho sobressaltosao ouvir tua voz ao telefone.Incertas. s vezes me despeo com brutalidade.Chego a parecer ingrata.No, Pedro, no quero mais brincar de puta. Imagino outra coisa; que cochilo, e Luz me cobre

    com seu peso-pluma. Consulto o boy da casa sobre a hora e o minuto do prximo traslado. Circulo sobo lustre do saguo. Espera ardente, transstor, polaride, passaporte verde, o cu azul. Deixo as chavesdo 1114 soltas no balco. Deso para o parque. Pego a China em ondas curtas, pego o p com medo,bato o filme at o fim procurado desde a hora em que ela ps os ps no sul.

    Ou no era suicdio sobre a relva.Eram brincos cadose um anel de jade que selasse numa dura castidade minha fria de batalhaque viaja e volta.Desperto e vejo quatro estrelaspela escotilha do comando.Quase encosto no peito do piloto.

  • Tudo que eu nunca te disse, dentro destas margens.A curriola consolava.O assunto era sempre outro.Os espies no informavam direito.A intimidade era teatro.O tom de voz subtraa um nmero.As cartas, quando chegavam, certos silncios,nunca mais.Excesso de ateno varrido para baixo do capacho.Risco a lpis sobre o dbito. Vermelho.Agora chega. Agora, aqui, de repente, de propsito, de batom,leio: Contas Novas, em letras plsticas.Trs variaes de assinatura.Trs dias para o livro de cheques desta agncia.Demito o agente e o atravessador.Felicidade se chama meios de transporte.Sada do cinema hipntico. Ascenso e queda e ascenso e quedadeste imprio mas vou abrir um lacre.Antes disso, um sus: pousa aqui. Ouve: Como em turvas guas de enchente l fora. Espera.

  • FOGO DO FINAL Escrevendo no automvel.Pedra sobre pedra: voc estava pra chegar.Numa providncia, me desapaixonei, num risco, numa frase:No adiantam nem mesmo os bilhetes profanos pela grande imprensa.Saudades do rigor de Catarina, impecvel riscando o cho da sala.Ancorada no carro em fogo pela capital: sightseeing no viaduto para a Liberdade. Caio chutando

    pedrinhas na calada, damos adeus passando a mil, dirijo em crculo pelo maior passeio pblico domundo, nos perdemos - exclamo num achado -, tardssimo, um deserto industrial com perigosasbocas imperguntveis.

    No precisa responder.Envelopes de jasmim.Amizade nova com o carteiro do Brasil.Cartes postais escolhidos dedo a dedo.No verso: ateno, ests falando para mim, sou eu que estou aqui, deste lado, como um

    marinheiro na ponta escura do cais. para voc que escrevo, hipcrita.Para voc - sou eu que te seguro os ombros e grito verdades nos ouvidos, no ltimo momento.Me jogo aos teus ps inteiramente grata.Bofetada de estalo - decolagem lancinante baque de fuzil. s para voc y que letra tn.hermosa.

    Pratos limpos atirados para o ar. Circo instantneo, pano rpido mas exato descendo sobre a tuacabeleira de um s golpe, e o teu espanto!

    No tenho pressa.Neste lago um vapor, neste lago.Por enquanto no tem luz de lado amenizando a noite; nem um abajur.Uma sentinela: ilha de terrvel sede.Hoje no estou me dando com mulheres, ele responde, enfurecido, e bate o telefone num tropel.As mulheres pedem: vem c, te trato, fao um ch, mas nada, ele no vai mais casa de ningum

    e faz rcita sozinho, como se no fosse com ningum.Meu velho:Antes te dava chs de cadeira alternados com telefonemas de consultas: que fao com a mulher

    que mente tanto e me calunia pelas costas, ou o homem que pede que eu apenas faa sala para o seusilncio?

    O ch abria, mas eu queria uma quiromancia, um olho clnico, mundano, viajado, uma respostaaguda, uma pancada no miolo. Quem sabe uma corrida por fora da tabela, meio em zigue-zague,

  • motorista de percia desvairada.Comprou carteira no Detran? E suicidaram-se os operrios de Babel. Isso foi antes. Agora

    irretocvel prefiro ficar fora, s na capa do seu livro.Este o jasmim.Voc de morte.No posso mais mentir. Corto meu jejum com dedos de prosa ao telefone, meu prprio fanatismo

    em ascenso: "O silncio, o exlio, e a astcia"?Engato a quarta ao som de Revolution.Descontinuidade. Iluminaes no caladoUltImamente deu pra me turvar a vista,Atleta no sou mais a mesma, vertigem das alturas.Voc est errado: no O romance da longa vida que comea. No foi nossa razo que deu com

    os burros n'gua. Nem o frio na espinha dentro do ar engarrafado no aterro do Flamengo. Rush. Nofoi a pressa. O estabanamento na escada em espiral. O livro que falta na estante e no entanto deveriaficar l onde est. A amizade recente com o carteiro do Brasil, que entra vila adentro e bate na janela eme entrega o envelope pelo nome. Os grunhidos do cime. Minhas escapadas pelo grande mundo, suasretiradas para dentro da slida manso. No foi nada disso. Ento O qu?

    26 de maro.Preciso comear de novo o caderno teraputico. No como o fogo do final. Um caderno

    teraputico outra histria. deslavada. Sem luvas. Meio bruta. um papel que desistiu de darrecados. Uma imitao da lavanderia com suas mquinas a seco e suas prensas a vapor. Um relatriodo instituto nacional do comrcio, rspido mas ditoso, inconfessadamente ditoso. Nele eu sou eu evoc voc mesmo. Todos ns. Digo tudo com ais vontade. E recolho os restos das conversas,ambulncia. Trottoir na casa. Umas tantas cismas. O teraputico no se faz de inocente ou de rogado.Responde e passa as chaves. Metlico, estala na boca, sem cascata.

    E de novo.

  • CENAS DE ABRIL

  • RECUPERAO DA ADOLESCNCIA sempre mais difcil ancorar um navio no espao

  • PRIMEIRA LIO Os gneros de poesia so: lrico, satrico, didtico, pico, ligeiro.O gnero lrico compreende o lirismo.Lirismo a traduo de um sentimento subjetivo, sincero e pessoal. a linguagem do corao, do amor.O lirismo assim denominado porque em outros tempos os versos sentimentais eram

    declamados ao som da lira.O lirismo pode ser:a) Elegaco, quando trata de assuntos tristes, quase sempre a morte.b) Buclico, quando versa sobre assuntos campestres.c) Ertico, quando versa sobre o amor.O lirismo elegaco compreende a elegia, a nnia, a endecha, o epitfio e o epicdio.Elegia uma poesia que trata de assuntos tristes.Nnia uma poesia em homenagem a uma pessoa morta.Era declamada junto fogueira onde o cadver era incinerado.Endecha uma poesia que revela as dores do corao.Epitfio um pequeno verso gravado em pedras tumulares.Epicdio uma poesia onde o poeta relata a vida de uma pessoa morta.

  • olho muito tempo o corpo de um poemaat perder de vista o que no seja corpoe sentir separado dentre os dentesum filete de sanguenas gengivas

  • CASABLANCA Te acalma, minha loucura!Veste galochas nos teus clios tontos e habitados!Este som de serra de afiar facasno chegar nem perto do teu canteiro de taquicardas... Estas molas a gemer no quarto ao ladoRoberto Carlos a gemer nas curvas da BahiaO cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema... As chamins espumam pros meus olhosAs hlices do adeus despertam pros meus olhosOs tamancos e os sinos me acordam depressa namadrugada feita de binculos de gveae chuveirinhos de bid que escuto rgida nos lenis de pano

  • FINAL DE UMA ODE Acontece assim: tiro as pernas do balco de onde via um sol de inverno se pondo no Tejo e saio

    de fininho dolorosamente dobradas as costas e segurando o queixo e a boca com uma das mos.Sacudo a cabea e o tronco incontrolavelmente, mas de maneira curta, curta, entendem? Eu estavadando gargalhadas e agora estou sofrendo nosso prximo falecimento, minhas gargalhadinhasevoluram para um sofrimento meio nojento, meio ocasional, sinto uma d extrema do rato que sefere no poro, ai que outra dor sbita, ai que estranheza e que lusitano torpor me atira de braosabertos sobre as ripas do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera dividir o corpo em heternimos -medito aqui no cho, imvel txico do tempo.

  • Noite de Natal.Estou bonita que um desperdcio.No sinto nadaNo sinto nada, mameEsqueciMenti de diaAntigamente eu sabia escreverHoje beijo os pacientes na entrada e na sada com desvelo tcnico.Freud e eu brigamos muito.Irene no cu desmente: deixou detrepar aos 45 anosEntretanto sou moaestreando um bico fino que anda feio,pisa mais que deve,me leva indesejvel pra perto dasbotas pretaspudera

  • "NESTAS CIRCUNSTNCIAS O BEIJA-FLOR VEM SEMPRE AOS MILHARES" Este o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o ch. Caso

    ele me cheirasse... Ai que enjo me d o acar do desejo.

  • INSTRUES DE BORDO (para voc, A.C., temerosa, rosa, azul celeste) Pirataria em pleno arA faca nas costelas da aeromoa.Flocos despencando pelos cantos doslbios e casquinhas que suguei atrsda porta.Ser a greta,o garbo,a eterna liu-chiang dos postais vermelhos.Latejar os tneis lua azul celestial azul,Degolar, atemorizar, apertaro cinto, o senso, a mancharoxa na coxa: calores lunares,copas de champ, charutos mido delicores chineses nas alturas.Metlico torpor na barrigada baleia.Da cabine o profeta feio,de bandeja,Trs misses sapatinho fino alto esmalte naudos insensatos supervosrasantes ao luardespetaladamentepeladapedalar sem ccegas sem scubosincomparvel poltrona reclinvel

  • ENCICLOPDIA Hcate ou Hcata, em gr. Hkt. Mit. gr. Divindade lunar e marinha, de trplice forma (muitas

    vezes com trs cabeas e trs corpos). Era uma deusa rfica, parece que originria da Trcia. Enviavaaos homens os terrores noturnos, os fantasmas e os espectros. Os romanos a veneravam como deusa damagia infernal.

  • ARPEJOS 1Acordei com coceira no hmen. No bid com espelhinho examinei o local. No surpreendi

    indcios de molstia. Meus olhos leigos na certa no percebem que um rouge a mais tem significado amais. Passei pomada branca at que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharamigualmente meus projetos de ir de bicicleta ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a irritao.Em vez decidi me dedicar leitura.

    2Ontem na recepo virei inadvertidamente a cabea contra o beijo de saudao de Antnia. Senti

    na nuca o bafo seco do susto. No havia como desfazer o engano. Sorrimos o resto da noite. Falo otempo todo em mim. No deixo Antnia abrir sua boca de lagarta beijando para sempre o ar. Na sadanos beijamos de acordo, dos dois lados. Aguardo crise aguda de remorsos.

    3A crise parece controlada. Passo o dia a recordar o gesto involuntrio. Represento a cena ao

    espelho. Viro o rosto minha prpria imagem sequiosa. Depois me volto, procuro nos olhos delasinais de decepo. Mas Antnia continuaria inexorvel. Saio depois de tantos ensaios. O movimentodas rodas me desanuvia os tendes duros. Os navios me iluminam. Pedalo de maneira insensata.

  • NADA, ESTA ESPUMA Por afrontamento do desejoinsisto na maldade de escrevermas no sei se a deusa sobe superfcieou apenas me castiga com seus uivos.Da amurada deste barcoquero tanto os seios da sereia.

  • ANNIMO Sou linda; gostosa; quando no cinema voc roa o ombro em mim aquece, escorre, j no sei

    mais quem desejo, que me assa viva, comendo coalhada ou atenta ao buo deles, que ternura inspiraaquele gordo aqui, aquele outro ali, no cinema escuro e a tela no importa, s o lado, o quentelateral, o mnimo pavio. A portadora deste sabe onde me encontro at de olhos fechados; falo pouco;encontre; esquina de Concentrao com Difuso, lado esquerdo de quem vem, jornal na mo, discreta.

  • LTIMO ADEUS I Os navios fazem figuras no arescapam a cores os faunos.Os corpos dos bombeiros bailamno brilho dos meus ps.Do cais mordoimpacientea mo imersanos faris.

  • ULTIMO ADEUS II O navio desatracaimagino um grande desastre sobre a terraas lies levantam vo,agudaspnicos felinos debruados na amurada. E na deck-chairainda te escuto folhear os ltimos poemascom metade de um sorriso.

  • LTIMO ADEUS III Tenho escrito longamente sobre este assuntoAizita traz o chBebericamos na varandaNenhum descontrole na tardeIntervalo para as folhas caindo da rvore em frenteque nos entra pela janelaNo precisamos nos dizer nadaO parapeito vaza outra indicaoseca do presenteOuvimos:outra indicao seca do presenteAizita vai ver na folhinhapendurada no prego da cozinhaAcaba o chAcaba a colher de chLongamenteEu tambm, bem, tenho escrito

  • 16 DE JUNHO Posso ouvir minha voz feminina: estou cansada de ser homem. ngela nega pelos olhos: a

    woman left lonely. Finda-se o dia. Vinde meninos, vinde a Jesus. A Bblia e o Hinrio no colinho.Meia branca. rgo que papai tocava. A bno final amm. Reviradssima no beliche de solteiro.Mame veio cheirar e percebeu tudo. Me v dentro dos olhos do corao mas estou cansada de serhomem. ngela me d trancos com os olhos pintados de lils ou da outra cor sinistra da caixinha. Ospeitos andam empedrados. Disfunes. Frio nos ps. Eu sou o caminho, a verdade, a vida. Lmpadapara meus ps a tua palavra. E luz para o meu caminho. Posso ouvir a voz. Amm, mame.

  • 18 DE FEVEREIRO Me exercitei muito em escritos burocrticos, cartas de recomendao, anteprojectos, consultas.

    O irremovvel trabalho da redaco tcnica. Somente a dico nobre poderia a tais alturas consolar-me. Mas no o ritmo seco dos dirios que me exigem!

  • 19 DE ABRIL Era noite e uma luva de angstia me afagava o pescoo. Composies escolares rodopiavam,

    todas as que eu lera e escrevera e ainda uma multido herdada de mame. Era noite e uma luva deangstia... Era inverno e a mulher sozinha... Escureciam as esquinas e o vento uivando... Sa comjbilo escolar nas pernas, frases bem compostas de pornografia pura, meninas de saiote que zumbiamnas escadas ngremes. Galguei a ladeira com caretas, antecipando o frio e os sons erticos povoando asala esfumaada.

  • 16 DE JUNHO Decido escrever um romance. Personagens: a Grande Escritora de Grandes Olhos Pardos, mulher

    farpada e apaixonada. O fotgrafo feio e fino que me v pronta e prosa de lpis comprido inventando ailha perdida do prazer. O livrinho que sumiu atrs da estante que morava na parede do quarto quecabia no labirinto cego que o coelho pensante conhecia e conhecia e conhecia. Nessa altura eu tinhaum quarto s para mim com janela de correr narcisos e era atacada de noite pela fome tenra que papaime deu.

  • 21 DE FEVEREIRO No quero mais a fria da verdade. Entro na sapataria popular.Chove por detrs. Gatos amarelos circulando no fundo.Abomino Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um modelo brutal. Fica boazinha, dor;

    sbia como deve ser, no to generosa, no. Recebe o afeto que se encerra no meu peito. Me calodecidida onde os gatos fazem que me amam, juvenis, reais. Antes eu era 36, gata borralheira, p antep, pequeno polegar, pagar na caixa, receber na frente. Minha dor. Me d a mo. Vem por aqui, longedeles. Escuta querida, escuta. A marcha desta noite. Se debrua sobre os anos neste pulso. Belo belo.Tenho tudo que fere. As alems marchando que nem homem.

    As cenas mais belas do romance o autor no soube comentar. No me deixa agora, fera.

  • MEIA-NOITE, 16 DE JUNHO No volto s letras, que doem como uma catstrofe. No escrevo mais. No milito mais. Estou no

    meio da cena, entre quem adoro e quem me adora. Daqui do meio sinto cara afogueada, mo gelada,ardor dentro do gog. A matilha de Londres caa minha maldade pueril, cndida seduo que d etoma e ento exige respeito, madame javali. No suporto perfumes. Vasculho com o nariz o ternodele. Ar de Mia Farrow, translcida. O horror dos perfumes, dos cimes e do sapato que era gmeaperfeita do cime negro brilhando no gog. As noivas que preparei, amadas, brancas. Filhas do horrorda noite, estalando de novas, tontas de buqus. To triste quando extermina, doce, insone, meu amor.

  • GUIA SEMANAL DE IDIAS SegundaNo achei a Tvora mas vi o King Kong na pracinha. Anlise. Leu-se e comentou-se que o

    regime no vai cair. Clmax alencariano das duas Vidas.TeraParque Lage com Patinho. Yoga. Sopa chez av. Di do Glauber. Traduzi 5 p de masturbao at

    encher o saco.QuartaFingi que no era aniversrio. Almoo em famlia. Saidinhas tarde com e sem Tutu. No me

    aclamaram no colgio como se esperava. Sa deixando pistas com a psicloga.QuintaPassei para os alunos redao com narrador sarcstico. ltimo captulo de Duas Vidas. Encontro

    PQ na portaria e vamos ao chins.Conversa de cerca-loureno, para ingls no ver.SextaBebericamos depois do filme polons. Quarto recendendo a chul e suti. Guardados. Voltei no

    aperto, mas no to mole.SbadoCartas de Paris. Disfarcei-me de nariz para enganar PQ. Casas da Banha. Cheguei cedo, parei em

    frente banca das panelas.DomingoLauto caf beira-mar. Mmicas no nibus. Emoo exagerada, demais, imotivada. Dildoligou, pobre. Darei bola? Anoto no dirio versinhos de lvares de Azevedo. Eu morro, eu morro,

    leviana sem d, por que mentias. Meu desejo? Era ser Boiar (como um cadver) na existncia! Mascomo sou choro, deixai que gema. Penso em presentinhos, novos desmentidos, novos ricos beijos,sonatilhas. Contnuo melada por dentro.

  • JORNAL NTIMO Clara Alvim 30 de junhoAcho uma citao que me preocupa: No basta Produzir contradies, preciso explic-las. De

    leve recito o poema at sab-lo de cor. Clia aparece e me encara com um muxoxo inexplicvel.29 de junhoVoltei a fazer anos. Leio para os convidados trechos do antigo dirio. Trocam olhares. Que bela

    alegriazinha adolescente, exclama odiplomata. Me deitei no cho sem calas. Ouvi a palavradissipao nos gordos dentes de Clia.

    27 de junhoClia sonhou que eu a espancava at quebrar seus dentes. Passei a tarde toda obnublada.

    Datilografei at sentir cimbras. Seriam culpas suaves. Binder diz que o dirio um artifcio, que nosou sincera porque desejo secretamente que o leiam. Tomo banho de lua.

    27 de junhoNossa primeira relao sexual. Estvamos sbrios. O obscurecimento me perseguiu outra vez.

    No consegui fazer as reclamaes devidas. Me sinto em Marienbad junto dele. Perdi meu pente.Recitei a propsito fantasias capilares, descabelos, plos subindo pelo pescoo. Quando Binderperguntou do banheiro o que eu dizia respondi Nada funebremente.

    26 de junhoClia tambm deu de criticar meu estilo nas reunies. Ambguo e sobrecarregado. Os excessos

    seriam gratuitos. Binder prefere a hiptese da seduo. Os dois discutem como gatos enquantorumbas me sacolejam.

    25 de junhoQuando acabei Os Jardins dos Caminhos que se Bifurcam uma urticria me atacou o corpo.

    Comemos pato no almoo. Binder me afaga sempre no lugar errado.27 de junhoO prurido s passou com a datilografia. Copiei trinta pginas de Escola de Mulheres no original

    sem errar. Clia irrompeu pela sala batendo coma lngua nos dentes. Clia uma obsessiva.28 de junhoCantei e dancei na chuva. Tivemos uma briga. Binder se recusava a alimentar os corvos. Voltou a

    mexericar o dirio. Escreveu algumas palavras. Recurso mofado e bolorento! Me chama de vadia parabaixo. Me levanto com dignidade, subo na pia, fao um escndalo, entupo o ralo com fatias degoiabada.

    30 de junhoClia desceu as escadas de quatro. Insisti no despropsito do ato. Comemos outra vez aquela ave

    no almoo. Fungo e suspiro antes de deitar. Voltei ao

  • NA OUTRA NOITE NO MEIO-FIO The other night I had a dream that Iwas sitting on the sidewalk on MoodyStreet, Pawtucketville, Lowell, Mass.,with a pencil and paper in my handsaying to my self Describe thewrinkly tar of this side walk, alsothe iron pickets of Textile Institute,or the doorway where Lousy and you andG.J.s always sitting and dont stopto think of words when you dostop, just stop to think of thepicture better and let your mind offyourself in this work.Jack Kerouac, Dr. Sax Na outra noite sonhei que estava sentada no meio-fio com papel, lpis e assobios vazios me

    dizendo: Voc no Jack K erouac apesar das assombraes insistirem em passar nas bordas da camaexatamente como naquele tempo. Eu era menina e j escrevia memrias, envelhecida. O tempo sefazia ao contrrio. De noite no dormia enquanto meus olhos viam as luzes dos automveis velozes noteto. Quando me virava de bruos vinha o diabo e me furava as costas com o punhal de prata. As mosse interrompiam meia-noite quando chegava o anjo mais escuro que o silncio. No havia maissonho e eu e Jack brincvamos de paixo escondida.

    O caso rendia por cima dos balces. Eu era rainha das cobras. Jack com sobrolho carregado e ardesentendido. Ningum devia saber de nada, nem a gente. Eu era a freira de nariz arrebitado eboquinha vermelha. Jack doente e eu cuidava dele no hospital. Me d a mo. ngela, segura a minhamo, ele falava angustiado como se estivesse delirando. Eu segurava a mo dele porque era irm Paulamas ngela no me chamava. Ele torcia meus dedos e suava nos lenis. Eu sentia um calor terrvel,inquieta na cadeira branca de ferro coberta de hbitos pretos. O colarinho engomado pinicava. Com aoutra mo eu pegava nos meus seios que no eram grandes como a angstia de Jack.

    Altas horas l ia eu atender a luzinha vermelha do quarto que piscava. De manh Jack partia parasempre e eu tinha calores na madrugada seguinte sem luzinha. Na confisso virava Jack sofrendo naenfermaria e chamava ngela de olhos fechados. O confessor era careca e no dizia nada, suportavameus dedos retorcidos entre as grades. Sozinha imitava o jeito de Jack tirando livros da estantegravemente. Quando dava por mim estava amparando a cabea para no cair de sono igual ele faziadepois de falar muito. Andava de perna meio aberta e batia a porta. O hbito ficava preso no vo; euno saa do lugar.

    Nessa poca comearam os bombardeios. Tivemos que nos esconder todos dentro de um trem

  • apagado no meio da floresta. Tinha mais gente que espao e todos deitavam no cho meio emboladose tentavam descansar os peitos fatigados, os coraes exaustos, os olhares carregados etc. Jack vigiavaos cus de insnia por uma fresta no teto. Um homem gordo roncava aos meus ps. Ao lado dele umamulher carnuda se remexia. No deitei tensa de medo de fazer caridade pelos porcos. Jack barbado ecabeludo movia a cabea de um lado para o outro. Quando as exploses recomeavam Jack se atiravano cho e rolava por cima de seus protegidos at no meu cantinho acocorado. A rainha das cobras eracruel com olhos flamejantes. Capturava Jack na floresta e torturava com chicotes, embebia feridascom gua e sal. No pessoalmente, mas comandando soldados cabeudos, barris de obedincia. Nahora do aperto tinha de agentar os cheiros de Jack colados no meu brao. Dava as costas e fingia queno sentia o aperto do perigo. Jack tambm me dava as costas e as exploses sacudiam as paredes dotrem. Ningum podia se mexer s se juntar mais e mais at os ossos estalarem, gemidosimperceptveis.

    Jack me pegou desprevenida durante o descanso vespertino. Subiu nas minhas costas e desceu aboca nas dobras grudentas do pescoo. No mexi e deixei que os dentes trincassem preso o corpo todo.As mos de Jack parece que entenderam e vieram muito por cima pros meus peitos. As pernas de Jackentenderam e mudas deram vo rasante pelas minhas. Meus dentes seguraram: no me movi pelatesoura. Jack entendeu e no passou de mariposa. Rasteiro se afastou e era como se tivssemosdormido a noite inteira sem reparos.

    Finalmente a mulher carnuda acordou, superiora, madre, dona dos soldados, dona da penso.Quando Jack subia nas costas dela no se dormia mais no casaro, no trem, no hospital. Fiquei escuta, tentei brincar de acordar sozinha, chamei ngela cortante, s tesouradas, touradas, trovoadasde vero, punhal de prata. De fato recebi visitas discretas da nova enfermeira de planto, enfermeirade enfermeiras que contraam a peste que curavam. Ainda toda ouvidos s de insnias povoadas. Jackno coro franzia a cara e s eu percebia na platia; mas no mudo, no falo, no mexo. Tinha suor, notinha palmas.

  • CORRESPONDNCIA COMPLETA

  • MY DEAR Chove a cntaros . Daqui de dentro penso sem parar nos gatos pingados. Mos e ps frios sob

    controle. Notcias imprecisas, fiquei sabendo. de propsito? Medo de dar bandeira? Oua muitoRoberto: quase chamei voc mas olhei para mim mesmo etc. J tirei as letras que voc me pediu.

    O dia foi laminha. Clia disse: o que importa a carreira, no a vida. Contradio difcil. A vidaparece laminha e a carreira um narciso em flor. O que escrevi em fevereiro verdade mas vem juntodram de desocupado. Agora fiquei ocupadssima, ao sabor dos humores, natureza chique, disposioambgua (signo de gmeos).

    Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoo esfriou com a vozreal. Ao pedir a ligao, meu corao queimava. E quando a gente falou era to assim, voc vendo tv eeu perto de bananas, to sem estilo (como nas cartas). Voc no acha que a distncia e acorrespondncia alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)?

    Penso no Thomas. Passou o frio dos primeiros dias. Depois, desgosto: dele, do pau dele, dapoltica dele, do violo dele. Mas no tenho mexido no assunto. Entrei de frias. Tenho medo que obalano acabe. O Thomas de hoje muito mais velho do que eu. No liga mais, estuda, milita e amora Martinica de longos peitos e dentes perfilados, tanta perfeio.

    Atrada pelo portugus de camiseta que atendeu no Departamento Financiero. Era jacar e tinhabigode de pontas. Ralhei com teso que me deu uma dor puxada.

    S hoje durante a vista de Cris que me dei conta qie batizei a cachorra com o nome dela. Tivediscreto repuxo de embarao quando gritei com Cris que me enlameava o tapete. Cris fugiu mas Crisno percebu (julgando-se tavez homenageada?). Gil por sua vez leu como sempre no smeus lbios eeclatou de riso tpico umidificante.

    O mesmo Gil jura que so de Shakespeare os versos trepar humano, chupar divino e desviao olhar do centro da mesa, depois de diagnosticar silenciosamente minha parania.

    Deu discuo hoje com a Mary. Segundo ela Altmann cruel com a classe mdia e isso imperdovel. Me senti acusada e balbuciei uma bela briga. Ao chegar em casa pesou a moimperdovel na barriga. Mary tem sempre razo.

    Gil diz que ela no se abre comigo porque sabe que minha inveja maior que meu amor. Aotelefone me conta da carreira e cacac. Por Gil porm sei dos desastres do casamento. Comigo ela nofala.

    Ontem fizemos um programa, os trs. Nessas ocasies o cime fica saliente, rebola e dizgracinhas que nem eu mesma posso adiantar. Ningum sabe, mas ele tem levezas de um fetinho. maternal, pe fraldas, enquanto o trio desanca seus caprichos. Resulta um show de uva, brilhantemicrofone do cime! H sempre uma sombra em meu sorriso (Roberto). A melanclica sou eu,insisto, embora voc desaprove sempre, sempre. Aproveito para pedir outra opnio.

    Gil diz que sou leoa-marinha e eu exijo segredo absoluto (est ficando convencido): historinhasruminadas na calada so afago para o corao. Quem que pode saber? Eu sim sei fazer calada o

  • dia todo, e bem. Do contrrio...No fui totalmente sincera.Recebi outro carto postal de Londres. Agora diz apenas: What are men for?. Sem data.No consigo dizer no. Voc consegue?E a somatizao, melhorou?Insisto no sumrio que voc abandonou ao deus-dar: 1. bondade que humilha; 2. necessidade

    versus prazer; 3. filhinho; 4. prioridades; 5. what are men for.Sonho da noite passada: consultrio escuro em obras; homens trabalhando; cama e tijolos; decidi

    esperar no banheiro, onde havia um patinete, anuncios de pudim, um suti preto e outros trastes. Dequem seria o suti? Ele dormiu aqui? J nos vimos antes, eu saindo e voc entrando? Deitados lado alado, o brao dele me tocando. Chega pra l (sussurro). Ela deu minha blusa de seda para a empregada.Sem ele no fico em casa. H trs dias que pareo morar onde estou (ecos de ngela). Aquele lugar dedesateno neurolgica me deixa louca. Samos para o corredor. Voc vai ter um filho, ouviu?

    Passei a tarde toda na grfica. O coronel implicou outra vez com as minhas idias mirabolantesda programao. Mas isso que bom. Escrever a parte que chateia, fico com dor nas costas eremorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto de artes grficas. Inventar o livro antes do texto.Inventar o texto pra caber no livro. O livro anterior. O prazer anterior, boboca.

    Epgrafe masculina do livro (h outra, feminina, mais contida), do Joaquim: a crnica de umatara gentil, encontro lrico nas veredas escapistas de Paquet, imagintica, verbalizao e exposiode fantasias erticas. Contm denncia da vocao genital dos legumes, a inteligncia das mocinhasem flor, a liberdade dos jogos na cama, a simpatia pelos tarados o gosto pela vida e a suma potica deCarlos Galhardo.

    Meu percoo est melhor, obrigada.Quanto histria das mes, acenando umas para as outras com lenis brancos, enquanto a filha

    afinal no presta assim tanta ateno, s posso dizer que corei um pouco de ser tudo verdade. F.Pensao no percebe, mas como sempre mente muito. Mente muito! S eu sei. Vende a alma ao diabonegociando a inteligncia alerta pela juventude eterna. Voc diria? No pacto pura Rita Hayworth,com N. Na cenografia, encaixilhando espelhos. Brincam de casinha na hora vaga. Na festa que deramGil alto discursava que casamento a soluo, mestre da sade. Ironias do destino. Seguiu-se claroressaca sonsa e cimes rpidos de Rita.

    No estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?Fica difcil fazer literatura tendo o Gil como leitor. Ele l para desvendar mistrios e faz

    perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biogrficos. No perdoa ohermetismo. No se confessa os prprios sentimentos. J Mary me l toda como literatura pura, e noentende as referncias diretas.

    Na mesa do almoo Gil quis saber a verdadeira identidade de um Jean-Luc, e diante de todos fezclima de conluio, julgando adivinhar tudo. Na sada me fez jurar sobre o perfil dos sepulcros santos Gil est sempre jurando ou me fazendo jurar. E depois voc ainda diz que eu no respondo.

    Ainda aguardando.Beijo.Jlia

  • P.S. 1 No quero que T. Leia nossa correspondncia, por favor. Tenho paixo mas tambm

    tenho pudor!P.S. 2 Quando reli a carta descobri alguns erros ortogrficos, inclusive a falta do h no verbo

    chorar. No corrigi para no perder um certo ar perfeito repara a paginao gelomatic, agora que souartista plstica.

  • LUVAS DE PELICA

  • Eu s enjo quando olho o mar, me disse a comissria do sea-jet.Estou partindo com suspiro de alivio. A paixo, Reinaldo, uma fera que hiberna

    precariamente.Esquece a paixo, meu bem; nesses campos ingleses, nesse lago com patos, atrs dasaltas vidraas de onde leio os metafsicos, meu bem.No queira nada que perturbe este lago agora,bem.

    No pega mais o meu corpo; no pega mais o seu Corpo.No pega.Domingo beira-mar com Mick. O desejo uma pontada de tarde. Brincar cinco minutos a me

    que cuida para no acordar meu filho adormecido.And then it was over. Viajo num minibus pelo campo ingls. Muitas horas viajando, olhando,

    quieta. Fico quieta.No escrevo mais. Estou desenhando numa vila que no me pertence.Nao penso na partida. Meus garranchos so hoje e se acabaram."Como todo mundo, comecei a fotografar as pessoas minha volta, nas cadeiras de

    varanda."Perdi um trem. No consigo contar a histria completa. Voc mandou perguntar detalhes (euainda acho que a pergunta era daquelas cansadas de fim de noite, era eu que estava longe) mas nofalo, no porque a minha boca esteja dura. Nem a ironia nem o fogo cruzado.

    Tenho medo de perder este silncio.Vamos sair? Vamos andar no jardim? Por que voc me trouxe aqui para dentro dest e quarto?

    Quando voc morrer os caderninhos vo todos para a vitrine da exposio pstuma. Relquias.Ele mediz com o ar um pouco mimado que a arte aquilo que ajuda a escapar da inrcia.

    Outra vez os olhos.Os dele produzem uma indiferena quando ele me conta o que a arte.Estou te dizendo isso h

    oito dias. Aprendo a focar em pleno parque. Imagino a onipotncia dos fotgrafos escrutinando portrs do visor, invisveis como Deus. Eu no sei focar ali no jardim, sobre a linha do seu rosto, mesmoque seja por displicncia estudada, a mulher difcil que no se abandona para trs, para trs, palavrasescapando, sem nada que volte e retoque e complete.

    Explico mais ainda: falar no me tira da pauta; vou passar a desenhar; para sair da pauta. Estou muito compenetrada no meu pnico. L de dentro tomando medidas preventivas. Minha

    filha, l isso aqui quando voc tiver perdido as esperanas como hoje. Voc meu nico tesouro.Voc morde e grita e no me deixa em paz mas voc meu nico tesouro. Ento escu ta s; toma essexarope, deita no meu colo, e descansa aqui; dorme que eu cuido de voc e no me assusto; dorme,dorme.

    Eu sou grande, fico acordada at mais tarde. Quero te explicar isso, te passar este quarto imvel

  • com tudo dentro e nenhuma cidade fora com redes de parentela. Aqui tenho maquininhas de medistrair, tv de cabeceira, fitas magnticas, cartes postais, cadernos de tamanhos variados, alicate deunhas, dois pirex e outras mais. No tem nada l fora e minha cabea fala sozinha, assim, commovimento pendular de aparecer e desaparecer. Guarde bem este quarto parado, com maquininhas,cabea e pndulo batendo. Guarde bem para mais tarde. Fica contando ponto. no corao.

    Ataque de riso no Paris Pullman numa cena inesperada de Preparem seus Lencinhos - a falao

    entregando tudo pela me do menino que Solange seduziu. Ningum mais ria, s eu. Dor no corpo.Inglesa chata junto, pai da Vogue, ha bita Costa Brava. Me lembro da bandeira. Joe anmico, a vidacorre, no tem memria ele diz. Alice nice, no gosta de no ser nice. Flutuo como maluca: gosto demim, no gosto, gosto, no gosto. Teso pelo Luke no underground. Acalmei bem, me distra, nopenso tanto, penso a te.

    Epistolrio do sculo dezenove.Civilizada pergunto e o seu desenho trai um desejo por cima de todos os outros.Guarda sim,mas eu no vejo,e por isso que - est vendo aquele lago com patos? no, voc no v da, da janela da cozinha

    parece mais outro pas - eu fao um pato opaco, ingls, num parque sem reflexo da vitrina que apaga,devagar (circulo sozinha pela galeria), tela a tela, o contorno da cidade; o ltimo quadro estinacabado, esquisito porque quando entrei aqui pensei que essa histria terminava num crculoperfeito.

    Passemos.A tcnica que d certo (politicamente correta):sentar na Place des Vosges quentando sol.Eu sei passar - civilizadamente - masVim olhando quadro a quadro, cheguei aqui e no tem ningum aqui.Tenho certeza de que voc no pintaria as paredes de preto.Querida,Hoje foi um dia um pouco instvel em Paris.Recebeu meu primeiro carto postal?(Me dei ao luxo de ser meio tipo hermtica, assim voc se expe a um certo deboche, amoroso

    sem dvida, na mesa do jantar.)No d para ver, eu sei,mas meu desenho guarda simvocno falatraium desejo pardessus tous les autres,mesmo nesse penltimo pato aqui, est vendo, que eu cobri mais um pouco naquele dia em que

  • no gritei de raiva,mas no fui eu que pintei a galeria de preto, voc sabe que eu no sou sinistra.O manequim de dentro, reflexo do manequim de fora. Se voc me olha bem, me v tambm no

    meio do reflexo, de mquina na mo.Eu respondo que no Consigo ver.Saio para a rua e no limite encontro o boulevard iluminado, rabes passando mais espertos, medo

    da superfcie, "saiu o sol aqui em Paris esta tarde depois de algumas chuvas espersas e ns passeamosmuito, beijos, saudades", respondo que no consigo ver ainda.

    Sentada na escrivaninha do quarto depois da toalete.Tentei traduzir e no pude muito com aquilo. Radio One toca Top of the Pops, Do that to me one

    more time, aqueles sucessos que a Shirley gosta para falar infinitamente no chileno indiferente que eusempre confundo.

    Desiste de escrever carta.Desenho trs patos presos numa loja.(P.S. para ontem ou reflexos sobre a caixa preta: o espao incompleto no final da galeria era na

    verdade claro, aberto por uma clarabia de vidro branco; na verdade havia uma passagem com trsdegraus para uma sala um pouco mais acima. O espao incompleto no escondia nenhuma caixa preta-"non, je ne veux pas faire le dtective".)

    Prossigo meu desenho baixando ligeiramente a lmpada porque a luz do dia escapa pela rua: urnafileira de paIos opacos que escorrem pela pgina grosseiramente, esquecidos de tudo isso.

    Imaginei um truque barato que quase que d certo. Tenho correspondentes em quatro capitais do

    mundo. Eles pensam em mim intensamente e ns trocamos postais e novidades. Quando no chegacarta planejo arrancar o calendrio da parede, na sesso de dor. Fao cobrinhas que so filhotes deraiva - raivinhas que sobem em grupo pela mesa e cobrem o calendrio da parede sem parar de mexer.Esses planos e truques fui eu que inventei dentro do trem.

    "Trem atravessando o caos"? - qual o que. Chega uma carta da capital do Brasil que diz: "Tudo!Tudo menos a verdade". "Os personagens usam disfarces, capas. rostos mascarados; todos mentem equerem ser iludidos. Querem desesperadamente." Era ao contrrio um trem atravessando ocountryside da civilizao. Era um trem atrasado, parador , que se metia em tneis e nessas horas euplanejava mais longe ainda, planejava levantar uma cortina de fumaa e abandonar um a um os meuscorrespondentes. Porque eu fao viagens movidas a dio. Mais resumidamente em busca de bliss.

    assim que eu pego os trens quinze minutos antes da partida. Sweetheart, cleptomaniacsweetheart. Vou know what lies are for. Doce corao cleptomanaco.

    Pondo na mala de esguelha sobras do jantar, gatos e bebs adoentados.Bafo de gato. Gato velho parado h horas em frente da porta da frente.Qual o qu. Corao pe na mala. Corao pe na mala. Pe na mala. Chegou outra carta no ltimo quarto de hora. "Escreve devagar e conta a vidinha tipo dia-a-dia e

  • os projetos de volta". Omito exclusivamente para meu hspede, intruso das delicadezas, as citaes doafeto. Dia-a-dia: entrei num telefone pblico em Paris; disquei o nmero do sinal possvel de bliss;no esto respondendo, no tem ningum em casa; vamos imediatamente para a casa de ch da ilha, eudisse para meu hspede com uma preciso que s uma mulher. Meu hspede no percebe minha dor.Flash de sangue em golfada pela boca. Baixo os olhos, evito a tela e como mestre deixo escapar a cartaque no mando. Ele no sabe mas meu discurso de hoje tarde na casa de ch em Paris era a cartapara a primeira capital que eliminei. Mas a aconteceu o inesperado. ele ficou puto de repente, fez umgesto dramtico, chamou a garonete, pediu gua mineral, me fuzilou com o olhar. Eu no sou seuhspede muito menos. Mas a ele no teve foras de continuar. Paris tira a fora (fora de expresso):minha nica vantagem no momento.

    A batalha no se trava da seguinte maneira: ele percebeu um truque mas eu tambm j percebivrios. Ento estamo quites. Estou a salvo. No entanto... esquisito, voc entende? No entanto foi elequem me salvou da cmara de horrores da cabine telefnica, com ch, bolinhos, divagaes literrias egua mineral depois. Um gesto dramtico e sus... ele no desconfia.

    Meu hspede est escrevendo um romance parisiense. Como eu chego de viagem com dentestrincados e disfarces de dio, me prometi que nesse romance no figuro. Que numa sesso de dorarranco o calendrio da parede. Que corto de vez essa espera de carteiro. A minha figurao no. Masele pobre de mim acho que no peguei direito. Talvez a figurante entre de gaiata, e a j viu, babaumeus planos disciplinares no quartinho que no Paris, nem bliss.

    Dear me! Miss Brill didn't know whether to admire that or not!Fini le voltage atroce.Fico olhando para o desenho e no vejo nada.Certains regardant ces peintures, croient y voir des batailles.Desisti provisoriamente de qualquer deciso mais brusca.A nica coisa que me interessa no momento a lenta cumplicidade da correspondncia. Leio

    para mim as cartas que vou mandar: "Perdoe a retrica. Bobagem para disfarar carinho".Estou jogando na caixa do correio mais uma carta para voc que s me escreve aluses, elidindo

    fatos e fatos. irritante ao extremo, eu quero saber qual foi o filme, onde foi, com quem foi. quaseindecente essa tarefa de eliso, ainda mais para mim, para mim! um abandono quase grave, e barato.Voc precisava de uma injeo de neo-realismo, na veia.

    De repente fao uma anticarta, antdoto do pathos. Estamos conversando em rodinhas quando

    voc entra inesperadamente no salo; sinto um choque terrvel, empalideo, mas ainda estou vermelhade dez dias de vero meio vestida nos gramados, e ningum percebe, exceto talvez um velho enrustidopuxado para o chato que me saca longe e faz questo de piscar o olho e me mostrar que saca; esqueoo velho prematuro e de batom inabalvel tudo me passa na cabea, todos os possveis escndalos depernas bambas e atravesso a rodinha com licena em direo a voce que acaba de entrar e no me viuainda e reconhece os primeiros acenos nas rodinhas.

  • Estou pensando duro e a cena no ousa prosseguir. Suspenso didtica: esttuas humana emcarros alegricos no desfile de pscoa no parque coberto de papel de sorvete e union jacks.

    Tinha uma cena em West Side Story que me ocorre, confere se a mesma que te ocorre. Nosltimos segundos passei em revista minhas tticas bem elaboradas. Preciso aproveitar os ltimossegundos, as solues do dia, a maturao da espera - realmente pensei nisso, e no sou umpersonagem sob a pena impiedosa e suave de KM, wild colonial girl e metas no caminho do bem,tuberculose em Fontainebleau e histrias em fila e um dirio com projetos de verdade que me vejoadmirando ardentemente nos ltimos segundos. E disciplina. E aquela rejeio das solues maisfceis. Me lembro da Shirley na borda do repuxo em surto de mania, e o chileno de cabelo sujotambm fazendo charme, e eu tentando a sria com Mick pornogrfico do lado, impossvel. A eudisse adeus e desci com Mick e perdi o desenrolar dos acontecimentos, eles que so brancos que seentendam. A essa altura Mick havia se transfigurado, todo compenetrao, acho que ele se excita com surto de mania. Fomos deitar na grama como doi pombinhos, o brao roa aqui, me recomponho,fazemos comentrios sobre a natureza dos arbustos nesta regio. peculiar. Peculiar como a arte dascartinhas que os carteiros transportam sob minha formal desconfiana; algumas no chegam nunca eeu acordo de manh e esqueo um sonho capital; houve um carteiro que foi enfim processado porenterrar as cartas de cada dia no poro da casa; ele enterrava e passava o resto da jornada vadiandocontente pelas redondezas de uma cidade chamada Bradford-on-Avon que tem vrias excelnciastursticas de sculos atrs e uma vista magnfica do alto do monastrio de Saint Mary. Uma dessasque ele enterrou no ms de maio continha todo o meu pathos derramado, belo e secreto como os fatos.Me revolto quando dois ou trs dias depois sei que errei lamentavelmente, errei de destinatrio napressa furiosa do derrame; preciso de mais uns dias para o trabalho impiedoso e suave da leveza antesda parada cardaca do nosso encontro no salo.

    Primeira traduoKM acaba de morrer. LM partiu imediatamenteAo chegar ao mosteiro jantou com Jack no quarto que ela ocupara nos ltimos meses. Olga

    Ivanovna veio conversar um pouco e tentou explicar que o amor como uma grande nuvem que a tudorodeia e que na ltima noite KM estava transfigurada pelo amor. O seu rosto brilhava e ela deve ter seesquecido do seu estado porque ao deixar o grupo no salo comeou a subir a escada em passos largos.O esforo foi o bastante para causar a hemorragia. Na manh seguinte LM e Jack foram capela.Havia diversas pessoas circulando. LM ficou ali ao lado dela por um tempo mas acabou indo buscar amanta espanhola e a cobriu. O resto do dia LM passou fazendo mala e embalando tudo. O relgio deouro e a corrente ela guardou consigo conforme o combinado. noite houve uma reunio de amigosque tinham vindo para o enterro. Antes do jantar LM andou de um lado para o outro com Orage nojardim. Durante o jantar todos se sentaram numa mesa comprida. O jantar comeou em silncio mas

  • aos poucos a atmosfera distendeu e comearam a discutir a vida de KM. Por que ela se havia mudadopara l? O que a impelira? Quando? Como? Inesperadamente LM se levantou - fato extraordinrio - eproibiu qualquer discusso sobre KM. Com isso a reunio se dispersou. No dia seguinte uma longafila de automveis seguiu KM a passo de tartaruga. LM acabou descendo e seguiu a p quilmetros equilmetros. No cemitrio LM e Jack ficaram lado a lado. No ltimo momento houve uma certahesitao. Parece que estavam esperando que Jack fizesse alguma coisa. LM tocou a mo de Jack, eele recuou num gesto rpido. Algum sugeriu que a manta espanhola fosse junto. LM no deixoulembrando outra vez o combinado. Mais hesitao. LM jogou alguns cravos antes de voltar. Naquelanoite todos se sentaram no teatro. LM se sentiu dormente e partida em pequenos pedaos. No extremooposto Jack falava muito e ria histericamente. Orange veio e pediu a LM que o levasse para cama, oque foi feito. No dia seguinte Jack e LM partiram para o seu pas. KM teria apreciado que LMcuidasse dele o mximo possvel.'

    Querida. a terceira com esta a quarta que te escrevo sem resposta. No dia do meu aniversrio

    pegou fogo na linha frrea e eu vinha lendo A Man and Two Women e tive de mudar de cabine detanto que me irritou a mulher que no falava uma palavra, feia apontando pro livrinho, e o velhoprestativo se inclinando e abrindo a boca para falar mais. Sa da cabine e procurei um canto vazio masno tinha. Horas paradas esperando. Troquei de trem e o ingls falando bem das minhas botas, minharoupa errada. Ele reparou no livro e disse que no aguentava a flacidez da perfeio, mas eu preciso devoc, querida, mesmo fazendo conferncias e limpando a piscina com vestido branco e aurolaprateada, eu preciso te ouvir assim mesmo com tim tim por tim tim e falta de elegncia pedaggica,eu reclamava disso, lembra? Me conta uma histria com moral.

    Fico considerando se no roubei demais, mas nessa hora acordo com um sonho incomodando

    como um sinal de alerta, um sonho dentro do automvel, cidade adentro, uma cidade sem muitocontorno, de noite, uma cidade grande, com trnsito noturno, faroletes vermelhos e um fala-fala queno termina mais, uma considerao de casos e desencontros que vai ficando confusa e de repente ocarro pra e eu estou entorpecida e seduzvel e num ponto cego, e acordo com a aflio que bateudentro do carro.

    Shirley caiu do cu. Discutimo o veio masoquista com olho bem naturalista. Querido dirio:Vergonha ricocheteia. Eu quero que voc saia daqui.

  • No vou mais Espanha. O motociclista me dispensou inexplicavelmente depois de cinco diasem que no parei de pensar numa garupa. Sa para arejar no parque e sabe aquele susto todo de perdaconcentrado num nico pargrafo? Lembra que eu abri um mapa e havia planos incontveis deviagens? Aflio de no poder retomar daquele ponto, com toda a inocncia de turista.

    Estava no canto do quarto esperando o carteiro soar quando resolvi te escrever assim mesmo.

    Assim mesmo sem resposta, abrindo meu caderno de notas seis meses depois. Folheio seis meses toa; a folha no macia nem tem marca d'gua extra forte com dobras de

    envelope que viaja de avio, selado com dois anjos inocentes que rasguei.Dois anjos inocentes!A folha muito dura e hoje o dia mais longo do ano com ou sem voc. Thank you very much,

    thank you very much. A prxima cano que eu vou cantar Me Myself I (aplausos fortes e breves emais longos) que neste vero quero dedicar a voc que no me escreve mais e diretamenteresponsvel pelo meu flerte com o homem dos correios. Tonight... maybe one of these days... hewrote a letter about a girl... Are you ready? One, two, three - estou mestre em abrir envelopes.

    "Kiss you anelipsyif...?"Se o qu?Entendeu agora por que a folha dura e chupa a tua tinta?Bota tudo, ele me falou.Over here on the piano...and on this side of the stage...No estou pegando direito. Por que esto vaiando agora? Voc ser possvel que no avisou que

    se mudou? Eu estou escrevendo para a pea vazia, para a louca senhoria, para a locatria com mania?Me desculpe mas isso uma grande covardia.

    Blissful Sunday afternoon enroscada na cama.Quatro cobertores de vero ouvindo Top Forties no rdio da cabeceira. Sobrou um pouco de

    enjo do curry do almoo. Passando loo de vaselina. Prestando ateno sem querer na porta dobanheiro que bate ser que ele sobe pra me ver. Lendo Class meu olho pensa em figuras complicadas,descaradas, excitadas, milhares de mincias subindo colunatas ou atendendo as npcias das trs noivasart nouvau ofelia salome esfinge escalando dipo entre rochedos.

    Meu olho pensa mas esquecerei depressa blissful Sunday afternoon s vezes chove uma pancadae pra.

    Depressa porque bliss sem trama para os netos, sem fio nervoso comendo solto seqncias

    inteiras sem trucagem.

  • No posso parar de colar figuras na parede. Shirley me carrega da casa onde passei a ltima noitecom Luke que dizia you're a woman, a woman, pra com isso, eu respondia em voz pastosa. A luzapagou e parecia um desperdcio adormecer com Apolo do meu lado, quase moa de to belo. Entofinjo pela primeira vez porque ele paga pra ver prazer supremo nem sempre vivel para a gente. Hojeno porsso com aventuras. Eu tremo e passa um filme e vejo Candide chorando fortssima em Brasliae acendendo velas a Jarrett no apartamento sem luz na tempestade e vejo Beatriz inescrutvelcozinhando com destreza e fazendo desenhos com a cabea secreta que nem voc conhece e vejoCarlos bissexto que nunca disse nada e a quem eu nunca disse nada, mando um postal de Barcelonacom nunca te esqueci mesmo quando esqueo nesta noite quente em Catalunha? No dia seguinteShirley me traz e a mudana empilhada no automvel. Nos perdemos na cidade de Rochester e rimoscomo tontas. S de noite perdi tuOO para sempre e Apolo mo no andar de baixo, pagando para verprazer supremo estranho no meu rosto. No choro mas decoro o quarto novo e penduro tudo na parede.Estou manic e no sei onde voc

    News at Ten. Vejo o papa no Rio de Janeiro. Brazil today. Frenesi, Corcovado, fogos de artifcio.

    Olho hipnotizada esse carto postal. E do Luke no posso, no posso ter saudade, apago e vejo o cuda porta, tomo lager mas no sei se com ele.

    Deso para mais uma xcara de ch. Ele no diz uma palavra e toca Dire Straits e eu me

    recomponho no sof com tema recorrentes. And I'm walking in the wild west end Walking with yourwild best friend. Deso o west end e do outro lado da rua... era igual, igual, igual. Quase atravessei.Mudei de cidade e ainda ouo a caixa do correio tremer e fazer - klimt.

    Digamos que um dia voc percebesse que o seu nico grande amor era uma falcia, um arrepio

    sem razo. Digamos que voc percebesse que 40% de lcool apenas te garantiam emoo concentradacomo sopa Knorr, arriscando o telefonema internacional que d margens a suores contrariando o IChing que manda que eu me cale, ou diga pouco, ou pelo menos respeite esse silncio.

    Dia seguinte.Nesse ponto, me lembro agora, Mick entrou no quarto. A camisola estava pelo avesso. L

    estvamos outra vez com sociologias, ele muito oferecido na ponta da cama, at que me pus a passarbaby oil nas mos, lambana, e da para o cabelo, e para os cabelos dele, beijos molhados que hoje domaldade e gostinho de tortura. De manh horas na cama, elaborando carta para Mick com medo de umJack que abriria a porta a qualquer momento, vingador. Desci ainda do avesso e tinha correio,envelope chique com colagens de fotos ("cena de abril", se chamava), carto com flore de neon,finesse de poucas palavras e um abuso de entrelinhas. Depois cuidei do banho que me d aflio

  • quando termina. Cozinhei para a primeira moa que conheci nesta cidade. No melhorou ela falar deguerra atmica e da Atlantis irlandesa de onde ela escapou aos bofetes porque queriam que ela visseno sei o que no filho dela. O almoo tinha muita pretenso. Falei de Mick versus Luke e ela deupalpite. Me senti inconfidente, conversao traindo meu I Ching, j disse. Fiz promessa deabstinncia e repeti a palavra flippant vrias vezes. Tem alguma utilidade. Ela alis tambm se chamaChris que era ainda o nome de um pastor alemo no Brasil mas sem h. Espiou cena de abril que eutinha deixado no canto de propsito e comentou que l (no Luxembourg) eu tinha cara de mais velha.Apreciao que me adulou.

    Ela saiu pala o dentista s trs e meia. Que triteza esta cidade porturia. Subo London Road de bicicleta e sinto as bochechas pesarem.

    Comprei um carto de avio para Malink - um avio rolico, troical, feliz de estar partindo. Estou h vrios dias pensando que rumo dar correspondncia.Em vez dos rasgos de Verdade embarcar no olhar estetizante (foto muito oblqua, de lado,

    olheiras invisveis na luza azul).Ou ser repentino e exclamar do avio - no me escreve mais, suave. Opto pelo olhar estetizante, com epgrafe de mulher moderna desconhecida. ("No estou

    conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?".) No sou rato de biblioteca. noentendo quase aquele museu da praa, no tenho embalo de produo, no nasci para cigana, e tambmtenho o chamado olho com pecados. Nem aqui? Recito WW pra voc: "Amor, isto no um livro, soueu, sou cu que voc segura e sou eu que te eguro ( de noite'? estivemos juntos e sozinhos?), caio daspginas nos teus braos, teus dedos me entorpecem, teu hlito, teu pulso, mergulho dos ps cabea,delcia, e chega -

    Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente deslizando, chega de passado emvideotape impossivelmente veloz, repeat, repeat. Toma este beijo s para voc e no me esquece mais.

    Trabalhei o dia inteiro e agora me retiro, agora repouso minha. cartas e tradues de muitaorigens, me espera uma esfera mais real que a sonhada, mais direta. dardos e raios minha volta,Adeus!

    Lembra minha palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo, e parto, eu incorpreo, triunfante,morto".

    A luz apagou de repente s dez da noite. Fiquei parada com resto de dia e luzes de vizinhos

    distncia. Esperei fazendo um teste de casa quieta e pensei em telefonar com tato e fazer coberturacompleta do black-out. Desci escada com tapete, abri a porta, casas coladas e unha de lua que noadianta olhar, olhar. Bati na porta ao lado para pedir 50 pi e tive de meter a cabea no poro e

  • descobrir a ranhura e lutar pensando na cabea ali dentro at achar o encaixe e a luz voltar. No me pea para arrancar as figuras da parede, puxar a toalha com o jantar completo servido

    fumegante, atirar lbuns inteiros de retrato pela janela que ficou mais longe, largar todos os pertences,inclusive bota que machuca e casaco que me irrita e sair velejando pelo mundo, ou tomar o avio echegar sem aviso no Rio de Janeiro, completamente s, ou pior ainda, no mandar carta nenhuma andhave done with it. P.S. Li Brs Cubas verticalmente e me ps low, quite low.

    Pensando em voc no bem o termo. Voc na minha pele, me ocorrendo sem querer, lembrana

    de perfume. Assim sentei l fora ao sol. Luke veio de repente sem camisa e eu disse em portugus quesusto. Ele entende e vem dar beijos mas conheo aquele meloso de propsito, pardia de meloso, esaio e volto e saio e bato a porta. Almocinho e um pouco de trabalho. s 3 olho na janela e vejo logoquem l embaixo de calo tomando sol. Deso e boto Gershwin e fico lendo o golpe na Bolvia nojornal. Dias em que ler jornal saca lgrima e do fundo da cabea figuras da galeria nacional anjossuspensos no ar de cabea para baixo, um deles ao peito de Vnus e em volta os outros olhando,flechando, rodopiando entre cortinados, lenis desarrumados, pssaros, paves, lagostas, avies.Logo logo vou de novo l. Mas no quero esse salgado do meu lado. Fico s, com raiva do cachorro dovizinho. No queremos falar nada, nem como vai nem o golpe na Bolvia. Estamos encostadospegando o sol que se inclina e eu dou uma volta completa para sair da ombra e complicado como umTintoretto. Minha cabea encosta no p dele e a cabea dele no meu p; minha mo alcana a pernadele e a mo dele a minha perna; graminhas, cobertores brancos nas graminhas, cores fortes de altarenascena. No descrevo mais e minha mo passa enquanto a dele passa e abre o zper e embaixo difcil com blue jeans. Acho que eu queria sim esse salgado. Subi para o chuveiro. Botei um shortinhoe me enrolei debaixo da janela at ele chegar. Eu fao em mim com ele quieto dentro. s vezes emsilncio e s vezes alto com rdio ligado e ritmo que no despega da pele como perfume em CoventGarden. Mas nunca sei ao certo o que vir. Fao o detetive. Ele fica dentro quieto, parece que fazsempre igual e sem engano (s se me engano, no sou diplomata nem cigano, vagando pelo mundo,mas isso foi numa outra carta que mandei). Hoje no pensei onde que vai parar e quis te escrevercarta de amor com detalhes de hoje tarde, minha ternura por voc que s no dia seguinte pesco mais,de brao dado em Covent Garden, pegando a tua mo e dizendo que te rapto e Joe do lado no queria.Estou esperando na janela onde tem casaro de tijolinhos com rvores no sol e brisa de leve e outrostrechos de paisagem na tarde de vero. E um fio de luz que s depois faz foco. Tem um passarinhoque quando pia quero matar o passarinho, acho que um pombo ou uma pomba ou uma coruja, um piocanino que me mata. Fico esperando na janela - fazendo uma figura - voc v? - com truques: asrvores maiores no fundo e as rvores menores na frente, os carneiros na mesma ordem, e a mulherdebruada na janela com uma vela na mo que acende o charuto do ano no morro em frente e um cu

  • rgua, um rio, dois homens pescando, todos os trechos certos da paisagem e a perspecliva todaerrada. Perhaps he is trying to show you can do all lhe perspective wrong and lhe picture will stilllook all right.

    Me deu uma dor forte de repente e eu disse - me leva para o hospital.O casal do lado me levou no carro.Tinha fila na emergncia. Eu fiquei chorando e espiando a folia que no quero contar como que

    era.Quando voltei ele estava plido e contou que tinha desmaiado.Fiquei sabendo melhor como o desmaio.Voc no apaga - acende uma velocidade de sonho slido, e voc v tudo num minuto. At a sala

    de pio com Fats Waller cantando Two Sleepy People em cmera bem lenta: no corao de Paris umacmara de sonho oriental, tapetes persas fechando as paredes e almofadas fechando os olhos como noparaso. Voc pode tambm sentar de novo na Place des Vosges, que perfeita, carto postal mgicovoador. Parece que voc v e pega, ou fica completamente dentro. No uma esponja nem umabagatela. At a travessia do canal, ou a primeira vez que algum te cobriu de beijos, ou o nervoso deperder o trem por dois minutos. um cinema hipntico, sem pernas. No vago.

  • EPLOGO I am going to pass around in a minute some lovely, glossy-blue picture postcards.Num minuto vou passar para vocs vrios cartes postais belos e brilhantes. Esta a mala de

    couro que contm a famosa coleo.Reparem nas minhas mos, vazias.Meus bolsos tambm esto vazios.Meu chapu tambm est vazio. Vejam. Minhas manga.Viro de costa, dou uma volta intena.Como todos podem ver, no h nenhum truque, nenhum alapo escondido, nem jogos de luz

    enganadores.A mala repousa nesta cadeira aqui.Abro a mala com esta chave mestra em cerimnias do tipo, e me permitem a brincadeira.A primeira coisa que encontramos na mala, por cima de tudo, - adivinhem - um par de luvas.Ei-la .Pelica.Coisa fina. .Visto as luvas - mo esquerda... mo direita...corte... perfeito.Isso me lembra...Um jovem artista perdido na elegante Berlim da Belle poque, sozinho, em vo procurando por

    prazer. Passa um grupo ruidoso de patinadores, e uma mulher de branco deixa cair a sua luva, umaluva com seis botes forrados, branca, longa, perfumada. O jovem corre, apanha a luva, mas reluta sedeve aceitar ou no o desafio. Afinal decide ignor-lo, guarda a luva no bolso e volta caminhando parao seu hotel por ruas mal iluminadas.

    Mas assim me desvio do meu propsito desta noite. Depois se houver tempo concluirei estahistria fantstica, onde entra at uma carruagem de Netuno, um morcego gigantesco que sorri e fogesempre, e um oceano de folhagens.

    Quem sabe esta no exatamente aquela luva?No entanto temos aqui no apenas uma, mas o par; muito delicado e contrasta com este terno

    preto.A valise de couro conter objetos de toucador?No, meus amigos.Como todos podem ver, mediante uma ligeira rotao que fao na cadeira sobre a qual ela se

    encontra, a valise contm apenas papel... cartes... dezenas, talvez centenas de cartes postais.Estranha valise!E agora, ateno.Com minhas mos enluvadas - um momento enquanto aboto uma... e depois outra

    cuidadosamente... no h fraude... ajusto os punhos, assim... - agora com estas mos, ao acaso,apanho o primeiro carto postal, que contemplo por um instante sob a luz... h um reflexo... mas vejo

  • aqui uma moa afogada entre os juncos... passo o primeiro carto, por favor passem uns para osoutros... segundo carto: a Avenida Atlntica... vo passando... cadil aque em Acapulco... Carmem...Centro Pompidou... igreja no Alabama... castelo visto do levante... dois cupidos de culos escuros... oladro de jias e a duquesa... e este aqui... Fred Astaire em Lady Be Good, ou no faz arte, menina...nostlgica... e uma Marilyn, e aqui a praia em Clacton com bingo e fish and chips... o Boeing da AirFrance... bondes subindo a ladeira em So Francisco... um urso polar no zoo de Barcelona... Salom...Londres... outra Salom ... vo passando, vo passando.

    Meus amigos, isto uma valise, no uma cartola com coelhos.Temos cartes para a noite inteira. Alexandria... Beirute... Praga...Sejam misteriosas, um quadro de Paul...Gauguin, seguido de O que, ests com cime?, uma pergunta malandra em tom capcioso, assim

    tomando sol na praia.E outros de museu aqui:O olho, como um balo bizarro, se dirige para o infinito;No horizonte, o anjo das certitudes, e no cu sombrio, um olhar interrogador;A dama em desespero;O sangue da Medusa;As mes malvadas;Tranco a porta sobre mim;O beijo;Outro beijo;O cime novamente,e agora o verdadeiro Morro dos Ventos Uivantes, seguido de uma curiosa competio esportiva, e

    de alguma pornografia, e de um padrinho Ccero.Meus amigos, eu no sei onde ns vamos parar.Continuo a passar mais rapidamente estes cartes. Reparem nesses bolinhos presos com elstico,

    e alis ia me esquecendo de dizer, podem e devem verificar se no verso h palavras rabiscadas, esteaqui por exemplo, "Para quando sero nossas prximas horas exquisitas?", esquisitas com xis, ou esteaqui, "O Posto 6, onde passei minha infncia e minha adolescncia, como est mudado!", ou esteoutro, ouam s, "Fico tentando te mandar um pedacinho de onde estou mas fica faltando sempre". Ecom uma letra bem mida: "Acalmei bem, me distra, no penso tanto, penso a te". Acho que o finalest em italiano. Vo lendo, vo lendo, a maioria est em branco mesmo, com licena.

    Eu preciso sair mas volto logo.Um cisco no olho, um pequeno cisco; na volta continuo a tirar os cartes da mala, e quem sabe,

    quando o momento for propcio, conto o resto daquela histria verdadeira, mas antes de sair tiro aluva, deixo aqui no espaldar desta cadeira.

  • FIN

    BIOGRAFIAA TEUS PS