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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

    FACULDADE DE EDUCAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    ANA CLARA CORREA HENNING

    CONEXES ENTRE CULTURA POPULAR E CULTURA ACADMICA:RECONTEXTUALIZAO CURRICULAR NA PRTICA DE PESQUISA

    JURDICA DO CURSO DE DIREITO DA ANHANGUERAEDUCACIONAL/FACULDADE ATLNTICO SUL EM PELOTAS

    Pelotas2008

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    ANA CLARA CORREA HENNING

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Educao da Universidade Federal de Pelotas, comorequisito parcial para a obteno do grau de Mestre emEducao.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria Ceclia Lorea Leite

    Co-Orientador: Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira

    Pelotas2008

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    ANA CLARA CORREA HENNING

    CONEXES ENTRE CULTURA POPULAR E CULTURA ACADMICA:RECONTEXTUALIZAO CURRICULAR NA PRTICA DE PESQUISA

    JURDICA DO CURSO DE DIREITO DA ANHANGUERAEDUCACIONAL/FACULDADE ATLNTICO SUL EM PELOTAS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduaoem Educao, da Universidade Federal de Pelotas, comorequisito parcial para a obteno do grau de Mestre emEducao.

    Aprovado em:............de..........................de......

    Banca Examinadora:

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Ceclia Lorea Leite

    Prof. Dr. Avelino da Rosa Oliveira

    Prof. Dr. lvaro Hyplito

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    Este trabalho foi resultado da colaborao e inspirao de inmeras pessoas.

    Assim, a vo os agradecimentos.

    Ao Mrcio, por encantar os meus dias, e pelo companheirismo sob as

    atribulaesdas pesquisas de campo e da elaborao desta dissertao:

    Tira-me o po, se quiseres, tira-me o ar,mas no me tires o teu riso.No me tires a rosa, a lana que desfolhas,a gua que de sbito brota da tua alegria,a repentina onda de prata que em ti nasce.A minha luta dura e regresso com os olhos cansadoss vezes por ver que a terra no muda,

    mas ao entrar, teu riso sobe ao cu a procurar-mee abre-me todas as portas dessa vida [...]Ri-te da noite, do dia, da lua,ri-te das ruas tortas da ilha,ri-te deste grosseiro rapaz que te ama,mas quando abro os olhosquando os fecho,quando meus passos vo,quando meus passos voltam,nega-me o po, o ar,a luz, a primavera,mas nunca o teu riso,porque seno, amor, eu morreria.

    Pablo Neruda

    toda a Famlia Trapo, evidentemente:

    Didi, Eva, Bibi e Tia Chininha, nossas razes: to fortes que com eles sentia-

    se o prazer que se experimenta junto a uma montanha (Paul Veyne).

    Rosinha e Fernando. O tema desta pesquisa no mera coincidncia. Oamor incondicional que atravessa todas as distncias tambm fruto da admirao

    pela generosidade, senso de justia e confiana na superao de obstculos.

    s minhas Gmeas, Paula e Clarissa. Parte da minha identidade foi forjada

    em meio ao barulho e reunio, aos encontros e desencontros de nossa

    convivncia familiar.

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    Ao Fernando Alberto, cujos passos segui durante a infncia e, mais tarde,

    ao longo da Faculdade de Direito. E Elena, modelo de profissional dedicada ao

    direito e a famlia.

    Ao Igor, Laurinha e ao Henrique, nova gerao que nos torna melhores.

    Nbia, irm mais velha e confidente, agradeo pela doao e

    companheirismo ao longo da maior parte de minha vida.

    Aos Andrade: Ambrsio, Loiva e Isabela, exemplo de dedicao acadmica

    e rigor cientfico, pelo apoio e incentivo na concluso deste texto. Especialmente D. Loiva, pela ajuda inestimvel em momentos de crise metodolgica.

    Bia Cunha, pela tarefa cotidiana de construo e reconstruo da minha

    identidade. Sem ela, nada disso seria possvel.

    Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul Pelotas, no nome da

    Diretora Executiva, Professora Renata Lobato Schlee e do Coordenador do Cursode Direito, Professor Marcelo Nunes Apolinrio.

    Agradeo, especialmente, ao Professor Renato Duro Dias, amigo de

    sempre, pela confiana atribuda a minha proposta docente.

    A todos os funcionrios da Instituio, especialmente querida Gabriela

    Amaral Bastos, responsvel pela Secretaria das Coordenaes da Faculdade.

    Aos professores que participaram do projeto de pesquisa analisado. Maria

    Amlia Dias da Costa, Elis Radmann e Paulo Csar Barboza Neves. Maria Amlia,

    da qual ainda sou aluna e de quem me orgulho de ser amiga. Elis, primeira

    idealizadora da conjuno entre Sociologia e Antropologia Jurdicas na prtica da

    pesquisa de campo, com saudades das nossas parcerias acadmicas. E ao PC,

    amigo leal, companheiro de ideologias, irmo.

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    Aos alunos-pesquisadores e professores que, gentilmente, concederam as

    entrevistas para este trabalho.

    professora Maria Fernanda Wanglon Montagna, amiga de tantas

    caminhadas, pela reviso textual desta dissertao.

    s minhas monitoras Dani Weidle e Kelen Calcagno, que, alm de

    cumprirem de maneira irretocvel os deveres da monitoria, colaboraram com a

    realizao desta pesquisa.

    Agradeo, ainda, aos alunos, professores e funcionrios do Programa dePs-Graduao em Educao, especialmente Ana Luiza Barros, da Secretaria do

    PPGE, pela ateno e gentileza constantes.

    Ao meu Co-Orientador, Professor Dr. Avelino da Rosa Oliveira, por ter

    suscitado, na sua prtica pedaggica, o desejo de aprofundamento terico das obras

    de Marx, Adorno e Horkheimer, que aqui utilizo.

    Por fim, um agradecimento especialssimo. minha Orientadora, Professora

    Dra. Maria Ceclia Lorea Leite, no apenas por ter confiado na possibilidade deste

    projeto e por ter me apresentado a obra de Basil Bernstein, mas pelo equilbrio entre

    firmeza, suavidade, conhecimento e alegria em nossas sesses de orientao. Suas

    inmeras qualidades me inspiram e motivam docncia.

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    RESUMO

    A presente dissertao foi desenvolvida na Linha de Pesquisa Currculo,Profissionalizao e Trabalho Docente, tendo por fundamentos principais asinvestigaes acerca dos Estudos Culturais, de Basil Bernstein, especialmente sobreclassificao e enquadramento, Boaventura de Sousa Santos e a transioparadigmtica da cincia contempornea e Max Horkheimer e Theodor Adorno,quanto relao dual entre razo instrumental e emancipatria.

    Nesse texto examinada a proposta docente de recontextualizao curricularda prtica de pesquisa jurdica, abrangendo a pesquisa terica, jurisprudencial e decampo, realizada por trs professores e efetivada por vinte e um alunos do primeiroe do segundo semestre do Curso de Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade

    Atlntico Sul de Pelotas, Rio Grande do Sul, entre maro e dezembro de 2007, e, emdois casos, estendendo-se at o comeo de 2008, em atividade envolvendo oscomponentes curriculares de Metodologia da Cincia do Direito, AntropologiaJurdica e Sociologia Jurdica.

    Essa prtica pedaggica teve como objetivo construir um conhecimentoemancipatrio e crtico atravs de uma investigao transdisciplinar e multicultural,que conectasse o saber acadmico-jurdico com os saberes populares e prticos degrupos e comunidades locais e que, ao final, proporcionasse aos alunos umapercepo de direito mais ampla e inclusiva. Para isso, pretendeu modificar o cdigopedaggico tradicional dos cursos de Direito, baseado na escola positivista,investindo na flexibilizao do poder e do controle social e orientando-se pelas

    caractersticas do paradigma emergente, segundo as teorizaes utilizadas naproposta inicial.

    Foi realizado um estudo de caso de abordagem qualitativa, por meio deentrevistas semi-estruturadas, cujos resultados confirmaram a possibilidade dainverso dos plos da racionalidade ocidental, ainda que de maneira tnue, e daconstruo de um conhecimento-emancipao junto aos alunos, voltado autonomia de pensamento, anlise crtica do direito estatal e incluso de outrosregramentos jurdicos, elaborados e aplicados pelas comunidades locais.

    Palavras-Chave: Ensino Jurdico. Prtica de Pesquisa Jurdica. ParadigmaEmergente. Cultura Acadmica e Cultura Popular. Recontextualizao.

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    ABSTRACT

    This thesis follows Curricular Research, Professionalization and TeachingStudies, and is based on investigation of Cultural Studies, Basil Bernsteins analyseson classification and framing, Boaventura de Souza Santos interpretation of theparadigmatic transition of contemporary science, as well as Max Horkheimers andTheodor Adornos analyses on the dual relationship between instrumental andemancipative reason.

    The teachers proposal of curricular recontextualization of legal practice andresearch encompassing theoretical, jurisprudential and field research was performedby three professors and was put into practice by twenty-one undergraduate students

    attending the first and second terms of the Law Course at AnhangueraEducational/Atlntico Sul College in Pelotas, Rio Grande do Sul, from March toDecember 2007 and, in two specific cases, up to the beginning of 2008. Theactivities included curricular components of Legal Science Methodology, LegalAnthropology and Legal Sociology.

    The pedagogic practice aimed to build emancipative and critical knowledgeby means of interdisciplinary and multicultural research that was able to connectacademic legal knowledge to the popular and practical lore of groups and localcommunities, eventually providing students with a broader, more inclusive view oflaw. For such it intended to modify the traditional pedagogic code of Law Courses,which is based on the Positivist Theory, by investing on flexibility of power and socialcontrol, being guided by the characteristics of the emerging paradigm according tothe theorization used in the initial proposal.

    A case study of qualitative approach was performed by means of semi-structured interviews whose results confirmed the possibility of inverting the poles ofwestern rationality, however small, and that of building emancipative knowledgedirected towards the autonomy of thought in students, the critical analysis of statelaw, and the addition of other legal rules, prepared and applied by local communities.

    Key words: Legal Teaching. Legal Research Practice. Emerging Paradigm.Academic Culture and Popular Culture. Recontextualization.

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    SUMRIO

    INTRODUO 01

    1 CONSIDERAES INICIAIS 05

    1.1 QUESTO DE PESQUISA E JUSTIFICATIVA 05

    1.2 OBJETIVOS:GERAL E ESPECFICOS 07

    1.3 AEXPERINCIA DA PESQUISADORA E A DEFINIO DO TEMA 08

    2 METODOLOGIA DA PESQUISA 16

    2.1 PESQUISA QUALITATIVA NA REA DO ENSINO JURDICO 16

    2.2 FONTES DA PESQUISA REALIZADA:BIBLIOGRFICAS,DOCUMENTAIS E

    ENTREVISTAS SEMI-ESTRUTURADAS 17

    2.3 A PESQUISA INSERIDA NOS ESTUDOS CULTURAIS EM EDUCAO E

    COMO ESTUDO DE CASO 20

    3 AS DIFERENTES CONCEPES DO DIREITO 22

    3.1 DIREITO COMO GARANTIA DE PAZ E LIBERDADE SOCIAL 233.2 DIREITO COMO SISTEMA DE NORMAS GARANTIDOR DA ESTRUTURA

    ECONMICA-SOCIAL 28

    3.3 DIREITO COMO CONJUGAO DAS RACIONALIDADES INSTRUMENTAL

    E EMANCIPATRIA 32

    4 ENSINO JURDICO: RAZO INSTRUMENTAL/CONHECIMENTO-

    REGULAO E RAZO EMANCIPATRIA/CONHECIMENTO-EMANCIPAO 40

    4.1 CONCEPES POSITIVISTA E EMANCIPATRIA DO DIREITO NO

    ENSINO JURDICO 41

    4.2 CRTICA DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS MODERNIDADE E O

    ENSINO JURDICO EMANCIPATRIO 47

    4.3 REFLEXES SOBRE PRTICAS PEDAGGICAS: ALGUMAS

    CONTRIBUIES TERICAS DE BASIL BERNSTEIN 51

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    5 POSSIBILIDADES DE TRANSGRESSO AO PODER HEGEMNICO:

    CURRCULO JURDICO E RECONTEXTUALIZAO CURRICULAR NO

    CURSO ANALISADO 63

    5.1 POSSIBILIDADES DE RESISTNCIAS LOCAIS HEGEMONIA GLOBAL 64

    5.2 CURRCULO COMO ARTEFATO CULTURAL: ARENA DE RELAES DE

    PODER 68

    5.3 ESCOLHAS DE SABERES CURRICULARES:MINISTRIO DA EDUCAO

    E IESSOB ANLISE 73

    6 A PROPOSTA DE PESQUISA JURDICA NAS COMPONENTES

    CURRICULARES DE METODOLOGIA CIENTFICA DO DIREITO,

    ANTROPOLOGIA JURDICA E SOCIOLOGIA JURDICA 80

    6.1 CLASSIFICAO DOS CONTEDOS PELA IES E PROPOSTA DE

    RECONTEXTUALIZAO E ENQUADRAMENTO NOS PLANOS DE ENSINO

    ELABORADOS PELOS DOCENTES DOS COMPONENTES CURRICULARES

    ENVOLVIDOS 81

    6.2 PESQUISA JURDICA COMO ATIVIDADE INTEGRADORA DE

    COMPONENTES CURRICULARES E O PRINCPIO DA TRADUO 866.3 DESCRIO DA PROPOSTA DA PESQUISA JURDICA ANALISADA 90

    7 ENQUADRAMENTO E AUTONOMIA NA PRTICA PEDAGGICA DA

    PESQUISA JURDICA SOB ANLISE 97

    7.1 PAPEL DOS ALUNOS E PROFESSORES NA ELABORAO DAS

    PESQUISAS JURDICAS 98

    7.2 ENQUADRAMENTO: DEFINIO, RITMO E DESENVOLVIMENTO DASPESQUISAS JURDICAS 100

    7.3 ENQUADRAMENTO: AVALIAO E APRESENTAO PERANTE AS

    BANCAS 104

    8 CLASSIFICAO DO CAMPO DO DIREITO NA PRTICA DA PESQUISA

    JURDICA INVESTIGADA 112

    8.1 INTEDISCIPLINARIDADE E CONEXO ENTRE TEORIA E PRTICA 113

    8.2 CONEXO ENTRE CULTURA POPULAR E CULTURA ACADMICA NA

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    x

    PESQUISA JURDICA SOB ENFOQUE 118

    8.3 APLICAO DOS RESULTADOS DAS PESQUISAS DE CAMPO NOS

    COMPONENTES CURRICULARES PERTENCENTES AO TERCEIRO

    SEMESTRE 121

    9 RELAES ENTRE ENQUADRAMENTO E CLASSIFICAO:

    POSSIBILIDADE DE CONSTRUO DE UM CONCEITO CRTICO DE

    DIREITO 132

    9.1 VISO PANORMICA DOS TRABALHOS REALIZADOS PELOS ALUNOS 133

    9.2 TRANSIO PARADIGMTICA DO CONCEITO DE DIREITO E DA

    CLASSIFICAO DO CAMPO JURDICO NA PERCEPO DOS

    ENTREVISTADOS 143

    9.3 CONHECIMENTO-EMANCIPAO E VISO CRTICA DA SOCIEDADE

    ATRAVS DA PRTICA PEDAGGICA ANALISADA 150

    10 SOCIALIZAO DO CONHECIMENTO JURDICO E RESISTNCIA AO

    PODER HEGEMNICO 162

    10.1 PROPOSTAS DE RETORNO DO CONHECIMENTO JURDICO SOCIEDADE E IMPORTNCIA DA SOCIALIZAO DO DIREITO NA

    PERCEPO DOS ALUNOS 163

    10.2 POSSIBILIDADE DE RESISTNCIA AO ENSINO MERCADOLGICO E

    TEORIZAES DE BASIL BERNSTEIN NA PRTICA PEDAGGICA SOB

    ENFOQUE 169

    10.3 CONTRIBUIES DOS ENTREVISTADOS PARA O APRIMORAMENTO DA

    PRTICA PEDAGGICA INVESTIGADA 174

    CONCLUSO 184

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 197

    ANEXOS 205

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    INTRODUO

    O trabalho que apresento analisa a proposta docente de recontextualizao

    curricular da prtica de pesquisa jurdica realizada pelos alunos do primeiro e do

    segundo semestre do Curso de Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade

    Atlntico Sul de Pelotas, iniciada em maro de 2007, no componente curricular de

    Metodologia da Cincia do Direito, e complementada entre agosto e dezembro do

    mesmo ano nos componentes curriculares de Antropologia Jurdica e de Sociologia

    Jurdica. Em certos casos essa prtica se estendeu at o comeo de 2008, uma vez

    que a socializao do conhecimento adquirido para a comunidade foi efetivada pelos

    discentes nesse perodo.

    A proposta dessa prtica pedaggica pretendeu a elaborao de um

    conhecimento jurdico multicultural e emancipador estruturando a ao dos alunos e

    professores envolvidos em, basicamente, trs etapas. Inicialmente, no componente

    curricular de Metodologia Cientfica do Direito, foram elaborados anteprojetos de

    pesquisa por grupos de discentes, prevendo uma pesquisa de campo a ser aplicada

    em bairros, comunidades ou instituies pblicas de Pelotas, no semestre seguinte,

    nas disciplinas de Antropologia e Sociologia Jurdicas. Da mesma forma, foi previsto

    um retorno dos estudantes aos locais onde aplicaram os instrumentos de pesquisa,

    questionrios ou roteiros semi-estruturados, a fim de socializarem os conhecimentos

    adquiridos.

    A elaborao dessa pesquisa teve por fundamento a construo do

    conhecimento, a qual ocorre atravs da compreenso de que a realidade jurdica

    no se restringe aplicao de normas abstratas, mas faz parte de um mundo mais

    vasto do que aquele encontrado em cdigos e legislaes esparsas. Na verdade, a

    essncia do direito, em minha concepo, reside na sua conexo com a concretude

    social, com as aspiraes e necessidades das comunidades locais e com o seu

    objetivo ltimo que o de garantir o exerccio da cidadania e da dignidade

    proporcionalmente s necessidades dos diversos grupos e indivduos que formam asociedade.

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    Entendo que a compreenso do currculo recontextualizado pelos

    professores nesse curso e das relaes pedaggicas da advindas so essenciais

    para definirmos o tipo de identidade profissional que desejamos construir com

    nossos alunos, ou seja, que tipo de ser humano queremos que nosso currculo

    contribua para formar. Essa viso do direito como instrumento social de

    emancipao passa por uma relao pedaggica que possibilite a construo crtica

    de um conceito de direito que abranja uma sntese entre a cultura erudita,

    acadmico-jurdica, e a cultura popular, advinda da comunidade. Isso inclui, na

    prtica da pesquisa de campo aqui investigada, a interdisciplinaridade organizada ao

    redor de temas comuns aos componentes curriculares envolvidos, os trabalhos

    individuais e em grupos, a pesquisa bibliogrfica, a relao entre pesquisa, ensino eextenso, a nfase no estudo humanista, a insero na vida real de nossa

    comunidade, enfim, o debate e a crtica ao processo de conhecimento.

    A recontextualizao curricular ao longo de uma prtica em implementao

    tornou-se uma tarefa cotidiana, a qual requereu boas doses de criatividade e

    dedicao. A preocupao dos professores envolvidos era a de oportunizar um

    ensino crtico e inovador, que assumisse a condio de ser o sistema jurdico,

    muitas vezes, instrumento de perpetuao de injustias e descaminhos.Entendamos ser este o momento e o espao que tnhamos para, de uma maneira

    solidria, construirmos um outro conceito dedireito, mais prximo das comunidades

    locais, mais inteligvel e desafiador para nossos alunos.

    Frente ao exposto, restou claro o recorte que fiz a partir da apresentao do

    projeto de pesquisa a este Programa de Ps-Graduao, o qual teve seu tema

    considerado por demais amplo para a elaborao de uma dissertao. Assim, a

    delimitao do campo de estudo do presente trabalho no apenas temporal (o anode 2007 e, em dois casos, algumas experincias efetivadas pelos alunos no primeiro

    semestre de 2008), mas igualmente quanto aos sujeitos que concederam as

    entrevistas: dois professores dos componentes curriculares envolvidos e seus

    alunos, vinte e um discentes, os quais participaram da prtica pedaggica analisada.

    Os discentes voluntrios entrevistados so aqueles que pertencem aos cinco grupos

    que alcanaram a nota mxima ao final da proposta pedaggica. Tambm minha

    prtica foi analisada, uma vez que fui a professora responsvel pelos componentes

    curriculares de Metodologia da Cincia do Direito e de Antropologia Jurdica e

    coordenadora da prtica pedaggica em foco.

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    O texto ora apresentado encontra-se construdo sob uma premissa: a de

    tornar-se compreensvel para ambos os campos principais de sua fundamentao,

    ou seja, o direito e a educao. Para tanto, procurei utilizar exemplos prticos - no

    intuito de tornar a exposio o mais didtica possvel - e conectados com os

    trabalhos de pesquisa elaborados pelos alunos. O trabalho est dividido em dez

    captulos. Inicialmente, teo algumas consideraes preliminares, que abrangem a

    justificativa do tema escolhido frente minha experincia pessoal e profissional,

    minha questo de pesquisa e aos objetivos da investigao realizada. O captulo

    segundo foi reservado para a exposio da metodologia utilizada para a realizao

    da pesquisa, identificando-a como um estudo de caso.

    No captulo terceiro apresento diversas concepes de direito com as quaisconvivemos diariamente, tanto em sala de aula quanto nas relaes jurdicas que

    organizam nossa vida cotidiana. Em seguida, no decorrer do quarto captulo, procuro

    estabelecer conexes entre esses conceitos de direito e as relaes pedaggicas

    perpetradas no ensino jurdico, e identificar caractersticas do ensino

    tradicionalmente existente em nossas faculdades, alm de formas alternativas e

    emancipadoras de educao.

    No quinto captulo, trato das relaes de poder que regulam nossas vidas,tecendo breves comentrios sobre a chamada globalizao e as formas de

    resistncia hegemonia cultural da advinda, especialmente no campo da educao.

    Tambm fao referncia s relaes de poder que fundamentam as decises

    curriculares, evidenciando o currculo como um artefato cultural, social e

    economicamente condicionado. essa a premissa da anlise da recontextualizao

    curricular realizada pela Instituio de Ensino Superior (IES) pesquisada, a partir das

    diretrizes nacionais estabelecidas pelo Ministrio da Educao (MEC) para oscursos de direito.

    O sexto captulo destinado exposio de conceitos relativos integrao

    curricular e sua relao com a prtica de pesquisa jurdica, tanto bibliogrfica quanto

    emprica. Nessa parte do texto, analiso tambm a recontextualizao das ementas

    dos componentes curriculares atravs dos planos de ensino e da proposta da prtica

    de pesquisa feita pelos professores nela envolvidos. Ao final, apresento a proposta

    de pesquisa jurdica em foco.

    No captulo subseqente, identifico a percepo dos entrevistados a

    respeito do papel dos alunos e professores na relao pedaggica tema deste

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    trabalho. Da mesma forma, considero a maneira como ocorreu o enquadramento

    dessa prtica no que se refere definio, ao ritmo, ao desenvolvimento e

    avaliao, assim como a apresentao perante s bancas avaliadoras dos trabalhos.

    A maneira como o enquadramento concretizado na pesquisa jurdica

    efetivada pelos alunos e professores pode, ou no, enfraquecer as relaes de

    poder o tema do captulo oito. Nele, ressalto a opinio dos entrevistados a respeito

    da interdisciplinaridade, da conexo entre a teoria e a prtica e da possibilidade de

    aplicao dos resultados das pesquisas de campo nos componentes curriculares

    pertencentes ao terceiro semestre.

    O captulo nove destina-se anlise da conceituao de direito por parte

    dos professores e dos alunos. Procurei comparar, no que diz respeito aos discentes,seus conceitos de direito anteriores pesquisa e os atuais, aps a prtica

    pedaggica, a fim de saber se houve, ou no, alterao nestes. Para isso, foi

    necessrio que eu fizesse breves comentrios a respeito dos trabalhos dos cinco

    grupos de alunos entrevistados no intuito de melhor reconhecer as relaes

    possveis entre o conhecimento-emancipao e a nova viso do direito proposta por

    essa prtica.

    As propostas de socializao do conhecimento jurdico elaboradas pelosalunos encontram-se expostas no captulo dez, da mesma forma que os retornos

    efetivados por dois dos grupos entrevistados. Nessa parte, fao uma breve

    discusso sobre a possibilidade de, mesmo no interior de uma organizao

    empresarial como a Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul, existirem

    possibilidades de luta emancipatria atravs da criao de redes de solidariedade

    entre os participantes da prtica analisada: alunos, professores e as comunidades

    locais. Ao final, apresento algumas sugestes concedidas pelos entrevistados erelacionadas ao aprimoramento da proposta pedaggica analisada, uma vez que ela

    est sendo realizada novamente no decorrer deste semestre e ter seqncia no

    segundo semestre de 2008.

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    1 CONSIDERAES INICIAIS

    (...) O riso que me interessa aqui aquele que um componente dialgico dopensamento srio. E um elemento essencial da formao do pensamentosrio. De um pensamento que, simultaneamente, cr e no cr, que, aomesmo tempo, se respeita e zomba de si mesmo. De um pensamento tenso,aberto, dinmico, paradoxal, que no se fixa em nenhum contedo e que nopretende nenhuma culminncia. De um pensamento mvel, leve, que sabetambm que no deve se tomar, a si mesmo, demasiadamente a srio, sobpena de se solidificar e se deter, por coincidir excessivamente consigomesmo. De um pensamento que sabe levar dignamente, no mais alto de si,

    como uma coroa, um chapu de guizos (LAROSSA, 1998, p. 212).

    As palavras de Jorge Larossa traduzem uma forma leve e antiformalista de

    construo do conhecimento. Um ensino ldico e dinmico, que recusa a

    cristalizao dos saberes e incentiva sua construo autnoma. Entretanto, o que

    vem sendo observado no ensino jurdico encontra-se bem distante dessa proposta.

    A relao pedaggica estabelecida , geralmente, centrada na figura do professor e

    fortemente apartada da realidade social. O seu objeto: a letra da lei, muitas vezes

    petrificada no tempo e sem conexo com o substrato econmico e social.

    A partir dessas consideraes, procuro nesse primeiro captulo apresentar

    minha questo de pesquisa e a importncia de sua realizao, especialmente no

    campo do ensino jurdico, to marcado por essa pedagogia fundamentada em uma

    concepo formal e legalista do direito. Exponho, da mesma forma, o objetivo geral

    e os objetivos especficos desta pesquisa. Ao final, discorro, ainda que de forma

    breve, sobre minhas motivaes na escolha desse tema, direcionadas pela

    construo de minha identidade discente e docente.

    1.1 QUESTO DE PESQUISA E JUSTIFICATIVA

    Para fins deste estudo foi realizado um recorte no currculo do Curso de

    Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul de Pelotas, Rio Grande

    do Sul, delimitando como objetivo principal a anlise da prtica de pesquisa nos

    componentes curriculares de Metodologia Cientfica do Direito, Antropologia Jurdica

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    e Sociologia Jurdica, efetivada no decorrer do ano de 2007 e, em certos, casos

    estendida ao comeo de 2008.

    Minha investigao partiu do seguinte questionamento: como essa prtica

    pedaggica conectou o conhecimento acadmico-jurdico e a cultura popular atravs

    da recontextualizao curricular efetivada, especialmente no que se refere sua

    etapa de pesquisa de campo? Da mesma forma, como ocorreu essa conexo na

    previso de socializao do conhecimento jurdico, a qual, em alguns casos, foi

    materializada no incio de 2008?

    O desenvolvimento da reviso da literatura e da anlise de documentos, no

    decorrer do ano de 2007 e do primeiro semestre de 2008, abrangeu a bibliografia

    indicada ao final deste texto, as diretrizes curriculares do MEC (Ministrio daEducao e Cultura) para os cursos de direito, o projeto pedaggico da faculdade

    investigada, a grade curricular do curso, as ementas da instituio de ensino

    superior, os planos de ensino dos professores envolvidos na pesquisa, o projeto da

    prtica pedaggica analisada, os anteprojetos, as monografias e os resumos

    elaborados pelos alunos, os instrumentos de pesquisa de campo por eles

    elaborados e aplicados, assim como alguns materiais utilizados pelos estudantes em

    sua pesquisas. Minha pesquisa de campo foi desenvolvida no perodo de maro ajunho de 2008, contando com a participao de alunos e professores. Foi aplicado o

    mtodo de estudo de caso buscando evidncias atravs de entrevistas semi-

    estruturadas.

    A relevncia cientfica deste estudo pode ser constatada tendo em vista a

    forma como o ensino do direito ministrada na maioria dos cursos no Brasil,

    fundamentados em uma viso legalista, descontextualizada da prtica e da realidade

    das comunidades locais, sem incentivar seus alunos a pesquisas de campo, tonecessrias construo do conhecimento integral, multicultural e emancipatrio.

    Atravs dessa proposta inovadora feita pelos docentes dos componentes

    curriculares envolvidos, os alunos de direito foram inseridos na comunidade em uma

    tarefa acadmica orientada que pretendeu prepar-los para exercer a prtica

    profissional de uma maneira mais abrangente do que a mera consulta legislativa e

    jurisprudencial. Assim sendo, a relao pedaggica que se estabeleceu possibilitou

    aos alunos a conexo, atravs de suas vivncias, entre a cultura erudita, acadmico-

    jurdica, e a cultura popular.

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    Considero que essa pesquisa feita pelos discentes possibilitou, tambm,

    exercitar a interdisciplinaridade atravs de temas comuns aos componentes

    curriculares do curso. Os trabalhos individuais e em grupo, a pesquisa bibliogrfica,

    a nfase no estudo humanista, as vivncias compartilhadas com colegas,

    professores e comunidade, oportunizaram ao aluno a construo do saber, a

    produo intelectual, a reflexo no ensino e na pesquisa projetados em razo dos

    reais interesses locais e comunitrios.

    O presente trabalho pretende, ao final, contribuir para o aprimoramento dessa

    prtica pedaggica, suscitando questionamentos e propondo modificaes na sua

    estrutura e organizao. Acredito que o ensino jurdico deve ser construdo e

    desconstrudo permanentemente, e a reflexo sobre nossa prtica, minha, de meuscolegas e de nossos alunos, deve ser um instrumento de socializao do

    conhecimento jurdico, objetivo importante do nosso fazer pedaggico.

    1.2OBJETIVOS:GERAL E ESPECFICOS

    OBJETIVO GERAL

    Investigar a construo do conhecimento emancipatrio e da maneira como

    ocorreu a conexo entre o conhecimento acadmico-jurdico e a cultura popular na

    recontextualizao curricular proporcionada pela prtica pedaggica de pesquisa

    jurdica, especialmente na sua etapa de pesquisa de campo. Essa etapa foi

    implementada por meio de ao conjunta dos componentes curriculares de

    Metodologia Cientfica do Direito, Antropologia Jurdica e de Sociologia Jurdica do

    Curso de Direito da Anhanguera Educacional/Atlntico Sul de Pelotas, e realizada nodecorrer do ano de 2007. Da mesma forma, analisar a previso de socializao do

    conhecimento jurdico, que, em alguns casos, foi efetivada no incio de 2008.

    OBJETIVOS ESPECFICOS

    Analisar, sucintamente, a problemtica que cerca a concepo do direito,

    sob diferentes perspectivas, propondo novas formas de compreend-lo;

    Demonstrar a inter-relao entre o campo do direito e o campo do ensino

    jurdico;

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    Discutir a possibilidade de, mesmo no interior de uma organizao

    empresarial, existir possibilidades de luta emancipatria atravs da criao de redes

    de solidariedade entre os participantes da prtica analisada;

    Evidenciar o currculo como artefato culturalmente construdo e social e

    economicamente determinado;

    Desenvolver breve estudo sobre a estruturao curricular do ensino jurdico

    no Brasil, tanto no campo da pedagogia oficial quanto na recontextualizao

    realizada pelo Curso de Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul,

    em Pelotas, nos planos de ensino elaborados pelos professores dos componentes

    curriculares envolvidos na prtica investigada e na proposta de pesquisa jurdica por

    eles construda;Analisar a recontextualizao curricular, a classificao e o enquadramento

    realizados na prtica de pesquisa investigada atravs de entrevistas com os

    professores e alunos-pesquisadores envolvidos, estudando a conexo

    proporcionada entre o conhecimento acadmico-jurdico e o conhecimento popular e

    a possibilidade da construo de um conhecimento jurdico emancipatrio.

    1.3AEXPERINCIA DA PESQUISADORA E A DEFINIO DO TEMA

    War um jogo que privilegia a lgica, a estratgia na tomada de decises, a

    frieza do raciocnio linear a conquista de territrios ou a dominao do mundo seria

    uma decorrncia natural dessa maneira de agir. Portanto, era uma surpresa quando,

    nas noites de vero na Praia do Laranjal, eu alcanava o resultado final que me

    coubera no sorteio dos objetivos, aps ter estabelecido os passos a serem trilhados

    e, com dificuldade, blefado o suficiente para que meus oponentes nodesconfiassem dos meus propsitos. Meu irmo mais velho costumava chamar de

    sorte no jogo, azar no amor as poucas ocasies em que eu vencia no jogo em que

    ele era imbatvel, o que no abalava de modo algum o gosto por ter ousado

    suplantar aquele conhecimento, a meu ver caracterstica do mundo masculino que

    ele possua.

    Essa e diversas outras vivncias so elementos importantes na construo de

    minha identidade docente, a qual como a de todos ns, encontra-se impregnada por

    relaes de poder. A maneira com que estas se estruturaram na minha formao

    reflete diretamente nas questes que movimentam e direcionam meus olhares.

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    Assim, permitam-me digresses necessrias compreenso das motivaes que

    aqui apresento.

    A concepo do conhecimento como instrumento de dominao, arraigada

    na sociedade moderna, impe uma separao entre o conhecimento erudito, e a

    capacidade de raciocnio, e o conhecimento prtico e cotidiano, no decorrente da

    racionalidade cientfica prpria de nossas academias. A estratificao social, a etnia

    ou o gnero, como no caso explicitado acima, impem determinadas posies no

    discurso, criam um mundo de representaes que constroem nossas identidades.

    [...] sendo [a cultura] em grande medida arbitrria e convencional, elaconstitui os diversos ncleos de identidade dos vrios agrupamentos

    humanos, ao mesmo tempo que os diferencia uns dos outros. Pertencer aum grupo social implica, basicamente, em compartilhar um modo especficode comportar-se em relao aos outros homens e natureza (ARANTES,2006, p. 26).

    Essa nfase no saber instrumental e tcnico, que possibilita a dominao do

    mundo da natureza e de outros homens, e que privilegia o mecanismo formal da

    estruturao desse conhecimento, desconsidera a sua dimenso emancipatria,

    construda atravs da crtica autnoma do sujeito e de indagaes a respeito dos

    contedos e finalidades do conhecimento (SANTOS, 2001a; ADORNO e

    HORKHEIMER, 1985).

    Alm dessa rgida separao entre o conhecimento dominador e o

    emancipatrio, houve, ainda, inmeras vivncias que moldaram minha viso de

    mundo. As freqentes mudanas de cidade que ramos obrigados a fazer, em

    decorrncia do cargo pblico de meu pai, nos proporcionavam o contato com todo o

    tipo de gente e de cultura, realidades que nunca vivenciaramos se no nos fosse

    dada essa oportunidade. Hoje, vejo que um dos aspectos o qual mais procuropreservar (a que custo!) a aceitao do diferente. Mais, a capacidade de absorver

    os aspectos positivos de cada pessoa ou situao. Nas palavras de Fernando

    Pessoa (2002, p. 133):

    As viagens, os viajantes tantas espcies deles!Tanta nacionalidade sobre o mundo! Tanta profisso! Tanta gente!Tanto destino diverso que se pode dar vida, vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!Tantas caras curiosas! Todas as caras so curiosasE nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.A fraternidade afinal no uma idia revolucionria. uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo,

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    E passa a achar graa ao que tem que tolerar,E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!

    A valorizao do conhecimento acadmico, como mencionei, faz parte de

    nossa cultura social. Assim, o ingresso na Faculdade de Direito da Universidade

    Federal de Pelotas (UFPel) em 1989 foi um elemento importante na motivao desta

    pesquisa. A expectativa com as aulas, o conhecimento de novas pessoas, a

    disciplina do estudo jurdico tudo era novo para mim.

    Entretanto (e apesar desta instituio ter sido imprescindvel para o meu

    desenvolvimento profissional) logo me deparei com aulas expositivas, formalistas e

    desconectadas do mundo real, alm de teorias ultrapassadas e currculo estanque

    com disciplinas fortemente individualizadas.

    A pesquisa era relegada a um segundo plano e o currculo, por sua vez, no

    previa componentes curriculares que, hoje, considero essenciais para a formao

    jurdica: Metodologia da Pesquisa, Antropologia e Linguagem Jurdicas, apenas para

    citar disciplinas pertencentes, geralmente, ao primeiro ano do curso. De uma forma

    geral, assim so estruturados os curso de direito no Brasil.

    O saber meramente tcnico, descontextualizado e reprodutor, apartado do

    sistema econmico em que vivemos e das transformaes polticas e sociaiscontemporneas, tanto por parte das instituies de ensino superior (IES), quanto

    dos docentes e alunos, reduzia o espao da sala de aula a lies dogmticas e

    leituras de cdigos, impedindo o desenvolvimento da crtica do direito e da prpria

    relao pedaggica desenvolvida. Em outras palavras, a concepo jurdica

    meramente positivista foi um importante instrumento para a estagnao e ausncia

    de aprofundamento terico do ensino jurdico.

    Por outro lado, o Centro Acadmico Ferreira Vianna (CAFV), da Faculdadede Direito, no qual ingressei ainda no primeiro semestre do curso, e do qual sa

    somente por ocasio da formatura, em 1995, proporcionou a descoberta de um

    mundo novo, porque me oportunizou o desenvolvimento do pensamento crtico, do

    sentimento de equipe, de uma viso mais humanitria, interdisciplinar e concreta do

    direito, em contrapartida estrutura formal e estratificada do currculo institucional.

    Aprendi a me expressar, a investigar autores com os quais dificilmente teria

    contato dentro da sala de aula e, mais uma vez, a visualizar vrios aspectos de uma

    mesma questo, convivendo com pontos de vista diferentes dos meus. A utopia da

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    transformao social tomou forma e, relembrando aquela poca, eu sempre recordo

    da dupla Kleiton & Kledir:

    Ns vamos semear, companheiroNo coraoManhs e frutos e sonhosPara um dia acabar com essa escuridoNs vamos preparar, companheiroSem ilusoUm novo tempo, em que a paz e a farturaBrotem das mos (RAMIL e FOGAA, 2007).

    Aps a formatura, pude vivenciar realidades diferentes em relao ao

    ensino jurdico, tanto no curso de Especializao em Direito Comercial na

    Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), em So Leopoldo, quanto na

    Escola Superior da Magistratura Estadual, na Associao dos Juzes de Direito do

    Estado do Rio Grande do Sul (AJURIS), em Porto Alegre. Algumas caractersticas

    do ensino jurdico tradicional, entretanto, continuavam presentes. A razo

    instrumental e sua nfase na dominao da sociedade perpassava todos os

    contedos, especialmente nas disciplinas de Direito Civil e Direito Penal. Ainda havia

    a compartimentalizao disciplinar, a abstrao da teoria em relao prtica e a

    formalidade das aulas expositivas.Alguns professores, entretanto, demonstraram com suas prticas

    pedaggicas a viso do direito realmente concretizado, no mais abstrado do

    mundo real. Tal efetivao, nesse entendimento, passava necessariamente pela

    reconfigurao da percepo do direito e por uma reforma na estrutura curricular e

    na relao pedaggica desta decorrente.

    A prtica como professora substituta das disciplinas de Direito Internacional

    Pblico e Privado da Faculdade de Direito da UFPel iniciada em janeiro de 2002proporcionou mais um espao para a construo da minha identidade docente.

    Procurei desenvolver nos alunos a percepo de que o combate contra as injustias

    uma das funes do estudante e do profissional do direito:

    Porque ali onde um homem no tem voz,Ali, minha voz.

    Onde tratem os negros a pauladas,

    Eu no posso estar morto.Quando no crcere entrem meus irmos,Eu entrarei com eles.

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    Quando a vitria,No a minha vitria,Mas a grande vitriaChegue,Ainda que esteja mudo, vou falar:

    Eu a verei chegar, ainda que cego (NERUDA, 1994, p. 130-133).

    Na relao estabelecida com os alunos pude perceber a dimenso da

    cincia na contemporaneidade. O estudo do direito, fruto do positivismo e da

    racionalidade cientfico-instrumental, possui uma estrutura rgida e formal que no se

    adapta realidade em constante transformao na qual vivemos, especialmente se

    percebermos a situao econmico-social precria existente em nosso pas. A crise

    do ensino jurdico advm, ainda que no exclusivamente, dessa inadequao e do

    reflexo dessas caractersticas tanto na organizao curricular como na inter-relao

    em sala de aula.

    A hierarquizao do saber, a postura formalista do professor, a passividade

    do aluno e a ausncia de solidariedade entre ambos relacionam-se diretamente com

    a falta de flexibilidade curricular concomitantemente desatualizao dos

    contedos. Assim, no componente curricular de Metodologia da Pesquisa em Direito,

    o qual lecionei, estudvamos estes aspectos e o debate gerado pela leitura de Um

    Discurso sobre as Cincias, de Boaventura de Sousa Santos (2001a), deu origem avrios artigos cientficos interdisciplinares, abrangendo variveis como

    renascimento, arte moderna, msica e poesia contemporneas.

    Dessa experincia com trabalhos acadmicos e construo de anteprojetos

    de pesquisa, surgiu o convite para a implantao da disciplina de Trabalho de

    Concluso de Curso (TCC) e sua coordenao. A exigncia da elaborao e

    apresentao do TCC pelas turmas de bacharelandos no Curso de Direito da UFPel

    teve incio em 2003. Procurei, sempre com o apoio do Chefe do Colegiado de Curso,concretizar tudo aquilo que foi analisado na disciplina de Metodologia, incentivando

    a produo cientfica interdisciplinar, a quebra de paradigmas, a ousadia criativa e a

    autocrtica.

    Alm disso, a minha turma de orientandos assumiu um carter solidrio,

    visvel nas sesses de orientao em grupo, nas quais cada aluno contribua com

    sua experincia para a preparao dos trabalhos individuais. Assim, o resultado da

    conjugao das orientaes particulares com aquelas sesses conjuntas foi umadas experincias docentes que mais me realizou. O importante que, apesar da

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    seriedade e da disciplina de estudo que nos dedicvamos, tudo fluiu de maneira

    espontnea e alegre, resultado de nossa convivncia acadmica.

    O magistrio tornou-se um modo de vivenciar mudanas necessrias para a

    estrutura do ensino jurdico amalgamadas na interdisciplinaridade, na revitalizao

    dos contedos, na relao com os alunos, no espao-tempo para a formao

    humanista e profissional que podem proporcionar reflexes a respeito da inaptido

    do direito em garantir a paz e a justia sociais. A docncia, agora em um Curso de

    Direito de uma IES privada, a Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul, em

    Pelotas, uma contnua construo dessa utopia.

    As indagaes sobre teoria e prtica do ensino do direito, dessa forma, so

    fundamentais para que possamos avaliar o que vem sendo desenvolvido nos cursosjurdicos e, a partir desta constatao, procurar construir novas e contemporneas

    formas de ensino. Para alcanar tal objetivo, devemos reconhecer a nossa prpria

    concepo do direito e quais as nossas expectativas a seu respeito. Dependendo

    dessa compreenso, o currculo, o professor e o aluno, iro assumir determinadas

    posies na relao pedaggica - se o direito for entendido como forma de

    manuteno do status quo, atravs da mera reproduo da letra da lei, no h

    sentido em trabalhar com um currculo integrado, com o dilogo com outras cincias,com a conexo entre a cultura popular e a cultura erudita, por exemplo.

    Por outro lado, importante visualizar como deve ser construda a relao

    padaggica se nos indagarmos sobre o lugar que deve ser ocupado pelo direito em

    uma sociedade dividida, empobrecida, condicionada por vises de mundo que,

    historicamente, impem uma razo direcionada dominao, estratificao dos

    ramos da cincia, separao da teoria e da prtica, do sujeito e do objeto, da vida

    acadmica do mundo real.Tal resposta, entretanto, no ser nica nem final. A contemporaneidade

    revela um mundo para alm da elaborao de respostas estanques e fechadas,

    onde a noo de historicidade, com realidades mutveis e no acabadas, nos faz

    vivenciar a cincia como processo. Nesse sentido, a interpretao terica da prtica

    realizada a partir de um recorte da realidade, sobre o qual o pesquisador elaborar

    a sua verso, oseu ponto de vistaentre muitos outros igualmente possveis. No h,

    portanto, a to defendida neutralidade cientfica, ou seja, o distanciamento do sujeito

    em relao ao objeto estudado.

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    O ensino jurdico, especialmente, possui uma caracterstica histrica

    fortemente embasada na neutralidade da lei e da vontade estatal. A pesquisa de

    campo no faz parte dos currculos das escolas de direito, nem mesmo da prtica de

    pesquisadores nessas academias. A investigao cientfico-jurdica se resume, na

    grande maioria das vezes, pesquisa bibliogrfica. Entretanto, no paradigma

    emergente, os conhecimentos produzidos somente sero possveis com o processo

    investigativo e com a democratizao deste a toda a sociedade. Para isso, a ruptura

    epistemolgica acontece de forma diferenciada da concepo clssica positivista na

    qual o ensino do direito foi estruturado:

    Para que esta configurao de conhecimentos ocorra, necessrioinverter a ruptura epistemolgica. Na cincia moderna a rupturaepistemolgica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do sensocomum para o conhecimento cientfico, na cincia ps-moderna o saltomais importante o que dado do conhecimento cientfico para oconhecimento do senso comum (SANTOS, 2001a, p. 57).

    Faz-se necessria a identificao dos elementos caractersticos de uma

    transio do paradigma tradicional para o paradigma emergente na

    recontextualizao do currculo no curso de direito analisado. As crises e mudanas

    de paradigmas so necessrias ao aprimoramento e procura por uma melhor

    adaptao do direito realidade social contempornea, podendo favorecer uma

    atuao mais igualitria, geradora de maior solidariedade social. Para que isso

    ocorra, como j foi referido, tanto a concepo do direito quanto a conseqente

    seleo de saberes feita na elaborao do currculo e a relao pedaggica so

    instrumentos essenciais de transformao.

    Conforme exposto acima, a conjugao desses instrumentos, no entanto,

    no definitiva. A recontextualizao do currculo pelo professor ocorre de maneiradiferente a cada prtica efetivada. Para Santos (2001b), vivenciamos um tempo de

    quebra de paradigmas, onde a ps-modernidade de oposio assume a

    impossibilidade de desenvolver um princpio nico de transformao da sociedade,

    uma vez que no h apenas uma nica forma de dominao. Assim, existem

    mltiplas formas de resistncia, pelos mais variados agentes. O que deve ser

    buscado, o que o autor denomina de princpio de traduo, tornar essas diversas

    lutas mutuamente inteligveis, permitindo trocas de experincias e aspiraes.

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    A prtica da pesquisa de campo analisada parte desse princpio, procurando

    assumir as diferenas de percepo do mundo entre a cultura popular e acadmica,

    com o objetivo de criar pontes que conectem ambas na experincia dos alunos,

    professores e, ao final, da prpria comunidade investigada, possibilitando a

    construo de um conhecimento emancipatrio e crtico. Atravs disso, entendo que

    o ensino jurdico possa transformar a percepo do direito nas pessoas envolvidas

    nessa proposta pedaggica, tornando-o mais prximo da comunidade, mais

    inteligvel para aqueles que se dedicam ao estudo e prtica jurdica.

    O desafio da transformao tambm faz parte da minha histria de vida: aos

    poucos, percebo e experimento minhas capacidades e minhas limitaes, a

    possibilidade de superar o antigo dogma de que o mundo existe para serconquistado pelos homens. No existe. Nem pelos homens, nem pelas mulheres.

    Uma das frases que mais ouvamos, em criana, era: no dominar, mas

    compreender.

    No final de tudo, o que buscamos a compreenso maior de que a vida no

    pode ser desperdiada na estagnao, na rigidez de pensamento, na indiferena

    quanto ao resto de ns. Acredito firmemente que para isto que o ensino jurdico

    deve se voltar. E me identifico com Murilo Mendes, quando se compara a umachama com dois olhos andando, sempre em transformao (MENDES, 2001, p.

    69).

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    2 METODOLOGIA DA PESQUISA

    A teoria precisa ser traduzida em uma prtica que faa diferena, queassegure que as pessoas vivam suas vidas com dignidade e esperana [...]Levar em considerao a prtica da vida cotidiana no significa privilegiar opragmtico em oposio teoria, mas ver essa prtica como inspirada porconsideraes tericas reflexivas e, ao mesmo tempo, como transformandoa teoria (GIROUX, 1995, p. 97).

    As consideraes de Henry Giroux relacionam-se, diretamente, com a

    proposta de pesquisa que apresento neste captulo. A unio entre a teoria e a

    prtica essencial, na medida em que ambas se complementam, podendo, a partir

    da, gerar novas formas de ver o mundo em que vivemos, mais solidrias e

    emancipatrias.

    Nessa parte do texto, portanto, apresento a metodologia que direcionou

    minha pesquisa, situada no mbito das pesquisas qualitativas e de estudo de caso.

    Tal deciso, conforme ser percebido no decorrer dos captulos deste trabalho, foi

    essencial para a anlise terica dos dados empricos, advindos do estudodocumental e de entrevistas semi-estruturadas.

    2.1 PESQUISA QUALITATIVA NA REA DO ENSINO JURDICO

    A abordagem da pesquisa teve em vista a compreenso de que a formulao

    objetiva de um projeto, especialmente em cincias sociais, no um ato neutro,

    eqidistante, meramente positivista, j que provm de um sujeito histrico e social,imerso e participante no fenmeno que ser estudado. A este respeito, Luiz

    Fernando Coelho (1991, p. 221) faz esta referncia:

    A tese que sustento a de que essa circunstncia (do objeto) determinada pelo sujeito, portanto o significado do objeto no autnomo,como algo que sai dele e que o sujeito apreende, mas heternomo,porque atribudo ao objeto pelo sujeito. Quando o objeto o social ou umaexpresso do social, como a moral e o direito, mesmo o significadoessencial heternomo, pois no existe uma essncia do socialpreviamente dada, como no existe uma essncia do jurdico anterior aosujeito; este quem constri o social e o jurdico, construo que ocorre no

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    plano real pela participao do sujeito no objeto que conhece, e conceitual,por meio da atividade terica (1991, p. 221).

    A presente pesquisa est inserida no campo da pesquisa qualitativa, mais

    especificamente em um estudo de caso. Seu campo de investigao: o Curso de

    Direito da Anhanguera Educacional/Faculdade Atlntico Sul, em Pelotas. A

    delimitao do seu tema: a possibilidade de construo de um conhecimento

    emancipatrio atravs da recontextualizao curricular realizada por meio da

    atividade de pesquisa nos componentes curriculares de Metodologia da Cincia do

    Direito, Antropologia Jurdica e Sociologia Jurdica durante o ano de 2007 e, em

    alguns casos, no incio de 2008.

    Este captulo estruturado, principalmente, a partir dos ensinamentos de

    Robert C. Bogdan e Sari Knopp Biklen. Nas suas palavras:

    Os investigadores qualitativos freqentam os locais de estudo porque sepreocupam com o contexto. Entendem que as aes podem ser melhorcompreendidas quando so observadas no seu ambiente habitual deocorrncia. Os locais tm de ser entendidos no contexto da histria dasinstituies a que pertencem [...] Para o investigador qualitativo divorciar oacto, a palavra ou o gesto do seu contedo perder de vista o significado(BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 48).

    2.2 FONTES DA PESQUISA REALIZADA: BIBLIOGRFICAS, DOCUMENTAIS E ENTREVISTAS

    SEMI-ESTRUTURADAS

    As evidncias para este estudo de caso vieram de trs fontes distintas:

    reviso bibliogrfica, documentos e entrevistas semi-estruturadas gravadas em

    vdeo, incluindo respostas por escrito feitas pelos alunos a respeito dos prs e

    contras da prtica pedaggica analisada. A anlise documental abrangeu as

    diretrizes curriculares do Ministrio da Educao para os cursos de direito, o projeto

    pedaggico da Faculdade Atlntico Sul, sua matriz curricular, as ementas das

    disciplinas de Metodologia da Cincia do Direito, Antropologia Jurdica e Sociologia

    Jurdica e seus respectivos planos de ensino, o projeto da prtica pedaggica

    analisada, os anteprojetos, as monografias e os resumos elaborados pelos alunos,

    os instrumentos de pesquisa de campo por eles elaborados, assim como alguns

    materiais utilizados pelos estudantes em suas investigaes, tais como as

    manifestaes artsticas interpretadas pelos alunos no momento da elaborao de

    seus projetos de pesquisa.

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    Minha pesquisa de campo foi desenvolvida no perodo de maro a junho de

    2008 e teve como sujeitos os professores e alunos que realizaram a prtica de

    pesquisa acima referida. Os docentes entrevistados so os que lecionaram a

    disciplina de Sociologia Jurdica no segundo semestre de 2007, com uma exceo,

    devido a problemas de agenda de uma das professoras. Tambm minha prtica ser

    analisada, tendo em vista ser professora das disciplinas de Metodologia da Cincia

    do Direito e de Antropologia Jurdica, alm de coordenadora do projeto de pesquisa

    em foco.

    Cabe ressaltar, neste momento, a inerente subjetividade do pesquisador,

    em qualquer investigao efetuada. Especialmente, no meu caso, em que serei

    tambm sujeito da pesquisa. Entretanto, Bogdan e Biklen (1994, p. 67-68) afirmam:

    Os investigadores qualitativos tentam identificar os seus estados subjectivose os efeitos destes nos dados, mas no acreditam que possam ser 100%bem sucedidos. Todos os investigadores so presas dos enviesamentosinerentes ao observador. Quaisquer questes ou questionrios, porexemplo, reflectem os interesses daqueles que os constroem, o mesmo sepassando nos estudos experimentais. Os investigadores qualitativos tentamreconhecer e tomar em considerao os seus enviesamentos, como formade lidar com eles.

    Os discentes foram escolhidos tendo por base seu desempenho acadmico

    durante a pesquisa realizada no segundo semestre-a avaliao final dos trabalhos

    de pesquisa. As avaliaes variaram entre 5,0 e 10,0 (sem contar uma

    desclassificao, devido ao grupo ter utilizado fontes da internetsem identificar seus

    autores), tendo por critrios a realizao da pesquisa bibliogrfica, da pesquisa de

    campo (elaborao e aplicao dos instrumentos de pesquisa), da interpretao dos

    dados, da elaborao do texto final e da apresentao perante as bancas

    avaliadoras.As entrevistas foram realizadas por grupos. Os cinco grupos que

    participaram da pesquisa foram: Ensino Jurdico, Mediao em Direito de Famlia,

    Delegacia da Mulher, Navegantes II e Quilombolas. Eles foram escolhidos por terem

    sido avaliados com grau mximo, ou seja, 10,0. Eu realizei o convite e o nmero de

    discentes que participou da pesquisa variou de trs a seiscomponentes por grupo,

    sendo vinte e um alunos entrevistados no total. Os grupos no semestre passado

    possuram, em mdia, seis componentes.

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    A questo escrita (em anexo) foi entregue aos alunos antes do

    desenvolvimento do roteiro das entrevistas semi-estruturadas (roteiro em anexo) e

    propunha que eles indicassem os pontos positivos e negativos do trabalho de

    pesquisa por eles realizado, sem a identificao dos nomes daqueles que a

    responderam. Essas contribuies podem ser observadas no captulo dez deste

    trabalho. A filmagem das entrevistas semi-estruturadas proporcionou uma anlise

    mais aprofundada das relaes de poder e controle que fundamentam as prticas

    pedaggicas, o seu grau de classificao e enquadramento, a forma como a

    recontextualizao curricular foi realizada pelos professores e, em certos casos,

    pelos alunos (BERNSTEIN, 1996, 1998). Assim, pude perceber a maneira pela qual

    os discentes desenvolveram suas pesquisas e de que maneira suas percepes dodireito e do ensino jurdico puderam ser entendidas, ou no, como possveis

    instrumentos da construo do conhecimento-emancipao (SANTOS, 2001a,

    2001b).

    Utilizei tpicos previamente desenvolvidos e que serviram como guia

    durante as entrevistas, evitando que estas ocorressem de maneira rgida e que, por

    outro lado, permitissem o livre desenvolvimento das idias dos sujeitos investigados.

    A importncia do guia de perguntas a serem feitas evidenciada na citao quesegue:

    Mesmo quando se utiliza um guio, as entrevistas qualitativas oferecem aoentrevistador uma amplitude de temas considervel, que lhe permitelevantar uma srie de tpicos e oferecem ao sujeito a oportunidade demoldar o seu contedo. Quando o entrevistador controla o contedo de umaforma demasiado rgida, quando o sujeito no consegue contar a suahistria em termos pessoais, pelas suas prprias palavras, a entrevistaultrapassa o mbito qualitativo (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 135).

    A pesquisa bibliogrfica, como foi visto, teve como abrangncia obras de

    vrias reas do conhecimento: Estudos Curriculares, Filosofia e Filosofia do Direito,

    Sociologia e Antropologia Jurdicas, Histria da Arte, exemplos extrados da

    dogmtica jurdica, entre outras.

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    2.3 APESQUISA COMO ESTUDO DE CASO

    A constatao de que o currculo, assim como a relao pedaggica no

    ensino do direito produto da cultura humana, sociolgica e economicamente

    condicionada, aproxima esta investigao dos estudos culturais, por isso concordo

    com Bogdan e Biklen (1994, p. 61) quando afirmam:

    Em primeiro lugar, a perspectiva dos estudos culturais insiste que todas asrelaes sociais so influenciadas por relaes de poder que devem serentendidas mediante a anlise das interpretaes que os sujeitos fazemdas suas prprias situaes. Em segundo lugar, defendem que toda ainvestigao se baseia numa perspectiva terica do comportamento

    humano e social.

    Por todo o exposto, a pesquisa qualitativa desenvolvida configura-se em um

    estudo de caso, o qual consiste na observao detalhada de um contexto, ou

    indivduo, de uma nica fonte de documentos ou de um acontecimento especfico

    (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 48). Para esses autores:

    O plano geral do estudo de caso pode ser representado como um funil [...]

    O incio do estudo representado pela extremidade mais larga do funil [...]Os investigadores [...] comeam pela recolha de dados, revendo-os eexplorando-os, e vo tomando decises acerca do objectivo do trabalho.Organizam e distribuem o seu tempo, escolhem as pessoas que iroentrevistar e quais os aspectos a aprofundar. Podem pr de parte algumasidias e planos iniciais e desenvolver outros novos. medida que voconhecendo melhor o tema em estudo, os planos so modificados e asestratgias selecionadas. Com o tempo acabaro por tomar decises noque diz respeito aos aspectos especficos do contexto, indivduos ou fontede dados que iro estudar. A rea de trabalho delimitada. A recolha dedados e as actividades de pesquisa so canalizadas para terrenos, sujeitos,materiais, assuntos e temas. De uma fase de explorao alargada passampara uma rea mais restrita de anlise dos dados coligidos (BOGDAN e

    BIKLEN, 1994, p. 90).

    Os captulos seguintes, portanto, visam conceder o embasamento terico e

    prtico para esse estudo de caso a fim de que, ao contrapor o entendimento dos

    diversos autores analisados com os dados da pesquisa de campo e documental por

    mim realizada, eu pudesse alcanar uma compreenso mais aprofundada sobre a

    prtica pedaggica efetivada tanto por mim e meus colegas quanto por nossos

    alunos.

    A intencionalidade inicial da proposta dessa pesquisa jurdica foi a deproporcionar aos alunos a elaborao de um conceito de direito qualitativamente

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    mais complexo e inclusivo atravs de mudanas de poder e controle no campo do

    ensino do direito visando construo conjunta de um conhecimento emancipatrio

    e multicultural. Se tal objetivo foi alcanado, o que ser visto na anlise dos dados

    empricos do presente trabalho.

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    3AS DIFERENTES CONCEPES DO DIREITO

    As pessoas acreditam estar salvas quando se orientam conforme regrascientficas, obedecem a um ritual cientfico, se cercam de cincia. Aaprovao cientfica converte-se em substituto da reflexo intelectual dofatual, de que a cincia deveria se constituir. A couraa oculta a ferida. Aconscincia coisificada coloca a cincia como procedimento entre si prpriae a experincia viva. Quanto mais se imagina ter esquecido o que maisimportante, tanto mais procura-se refgio no consolo de se dispor doprocedimento adequado (ADORNO, 2000, p. 70).

    A citao acima se relaciona concepo de direito que, em maior ou

    menor grau, acompanha a todos ns: aes e procedimentos estabelecidos pela

    legislao que devem ser observados tanto pelos cidados, independentemente de

    sua situao individual, quanto pelos juristas, no momento da interpretao e

    aplicao da lei, o que ser feito de maneira igualitria a toda a sociedade. O direito,

    muitas vezes, reduzido fonte normativa escrita e a uma aplicabilidade

    distanciada da vida real da comunidade, valendo o que se encontra descrito na

    norma jurdica. Tal entendimento do direito, entretanto, no nico, apesar deexercer muita influncia sobre o ensino jurdico.

    Neste primeiro momento terico, portanto, se faz necessrio o

    desenvolvimento de um breve estudo sobre algumas concepes de direito que

    influenciaram, e ainda influenciam, nossa percepo do sistema jurdico estatal.

    Procuro apresentar, em rpida exposio, alguns fundamentos da escola positivista

    do direito, especialmente os estudos de Hans Kelsen na sua obra Teoria Pura do

    Direito.Em seguida, busco desenvolver a compreenso do direito como instrumento

    de manuteno do sistema econmico de mercado. Para isso, utilizo as lies de

    Karl Marx em diversos textos e de Hans-Georg Flickinger, no livro Em Nome da

    Liberdade, ambos realizando crticas teoria hegeliana.

    Ao fim, proponho uma nova viso do direito, mais ampla e solidria, tendo

    por base, principalmente, a Dialtica do Esclarecimento, de Theodor W. Adorno e de

    Max Horkheimer, conjugada com a Teoria Tridimensional, de Miguel Reale e com oPluralismo Jurdico, o qual analiso atravs da teoria de Norbert Rouland, na obra

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    Nos Confins do Direito, e de Boaventura de Sousa Santos, na Crtica da Razo

    Indolente.

    3.1DIREITO COMO GARANTIA DE PAZ E LIBERDADE SOCIAL

    As faculdades de direito, em sua maioria, logo no primeiro ano do curso

    procuram demonstrar que o direito est, intrinsecamente, ligado norma jurdica

    escrita, positivao estatal e sano. A teoria positivista, da qual Hans Kelsen

    (1996) foi um dos grandes pensadores, nos diz que o direito oriundo de um fato

    ocorrido no do mundo do ser, onde os fenmenos encontram-se pr-determinados

    por uma relao de causa e efeito, regida pelo princpio da causalidade1. Uma vezescolhido o fato a ser normatizado, devido sua importncia e valorao pela

    sociedade, ou seja, pelo legislador, ele torna-se previsto na lei positivada,

    transferido, portanto, ao mundo jurdico. Importante ressaltar que a escolha do fato

    realizada de maneira aparentemente neutra, partindo do pressuposto de que todos

    os cidados so iguais perante a lei.

    Em decorrncia, a cincia do direito deve ser vista como cincia autnoma e

    independente, com um objeto prprio: a norma jurdica. Esta se situa no mundo dodever ser, sendo regida pelo princpio da imputao, ou seja, as relaes jurdicas

    so estabelecidas pela vontade humana normativa, a vontade estatal (enquanto

    representante da sociedade), que escolhe o que ser, ou no, proibido, prevendo

    uma sano em caso de descumprimento2.

    Resta clara a diferenciao entre os dois princpios e as cincias por eles

    regidas. Kelsen agrupa cincias tais como a Fsica, a Qumica, a Psicologia e a

    Histria sob o mesmo princpio da causalidade, conforme pode ser observado aseguir:

    Uma vez conhecido o princpio da causalidade, ele torna-se tambmaplicvel conduta humana. A Psicologia, a Etnologia, a Histria, aSociologia so cincias que tm por objeto a conduta humana na medida

    1O exemplo dado pelo autor o seguinte: se aquecermos um determinado metal at um certo grau,ele dilatar. Tal evento no pode ser modificado pelos seres humanos uma vez configurada acausa, o efeito ocorrer. Como exemplos de fatos que do origem norma jurdica podem ser citadoso nascimento, a morte ou algum evento da natureza, como uma enchente.2Temos a liberdade de escolha nas condutas sociais. No entanto, segundo este princpio, assumimosa possibilidade de nos ser imputada uma sano uma vez descumprida a ordem normativa. Porexemplo, o art. 121 do Cdigo Penal Brasileiro Matar algum. Pena: de seis a vinte anos derecluso.

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    que ela determinada atravs de leis causais, isto , na medida em que seprocessa no domnio da natureza ou da realidade natural [...] Uma distinoessencial existe apenas entre cincias naturais e aquelas cincias sociaisque interpretam a conduta recproca dos homens, no segundo o princpioda causalidade, mas segundo o princpio da imputao; cincias que no

    descrevem como se processa a conduta humana determinada por leiscausais, no domnio da realidade natural, mas como ela, determinada pornormas positivas, isto , por normas postas atravs de atos humanos, sedeve processar (KELSEN, 1996, p. 95-96).

    Aps a estipulao das normas positivas, a inteno humana criadora

    abstrada, por ser objeto de outros estudos, tais como os realizados pela Cincia

    Poltica ou pela Sociologia. A valorao do fato, da conduta tipificada em lei, apenas

    interferiu no momento da sua criao, no mais sendo levada em considerao. Ou

    seja, a concretizao da norma jurdica, a unio entre a prtica do ato e a previsoabstrata do direito, ocorrer, para este autor, independentemente de sua valorao

    atual pela sociedade.

    Kelsen procurou especificar o objeto do estudo do direito, desconectando-o

    de qualquer interferncia externa. A ns, juristas, caberia estudar apenas a validade

    formal da norma jurdica e o dever de atuao de acordo com o estipulado no

    comando legal. A pirmide kelseniana explicita que normas infraconstitucionais

    somente sero formalmente vlidas e, portanto, obrigatrias a todos os cidados, seno confrontarem as normas constitucionais, hierarquicamente superiores e

    situadas, portanto, no topo da pirmide. A questo da justia resta comprometida,

    conforme citao a seguir:

    Normas valem. Sua existncia especfica sua validade. Para que umanorma valha, a vontade do autor apenas uma condio, mas no a razoessencial. Esta se localiza na competncia normativa do autor, competnciaesta conferida por outra norma e assim por diante [...] Cada norma vale no

    porque seja justa, ou porque seja eficaz a vontade que a institui, masporque est ligada a normas superiores por laos de validade, numa sriefinita que culmina numa norma fundamental [...] Kelsen, neste sentido, foium ardoroso defensor da neutralidade cientfica aplicada cincia jurdica.Sempre insistiu na separao entre o ponto de vista jurdico e o moral epoltico (grifos no original) (COELHO, 1997, p. 16-17).

    A citao deixa claro que, para a Teoria Pura do Direito, uma norma jurdica

    no justa ou injusta, mas vlida ou invlida. Na pirmide kelseniana, a

    estrutura de competncias da Constituio Federal deve ser respeitada - o

    ordenamento jurdico uma construo hierrquica de regras que mantm entre si

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    uma relao de subordinao. A irregularidade da norma conduz declarao de

    sua invalidade.

    A neutralidade cientfica, calcada na descrio imparcial, portanto, baseia-se

    em duas delimitaes: uma, de carter epistemolgico, impondo o estudo exclusivo

    da norma, sem a sua conexo com outras cincias. A outra, primeiramente fundada

    na elaborao da lei pelo Estado de maneira eqidistante dos diferentes grupos

    sociais e, aps, na no-valorao da lei ou da deciso judicial no momento da

    interpretao do direito, abstradas da sociedade e de seus meios de produo.

    Basil Bernstein (1996), autor ingls que trabalha com noes de poder e

    controle nas relaes pedaggicas, conforme veremos adiante, expe uma

    teorizao que pode ser utilizada neste momento. O autor entende que relaes depoder realizam classificaes entre grupos (e mesmo no interior deles) e que quanto

    mais fortes essas diferenciaes, mais individualizados seus componentes ficaro

    em relao aos demais. Exemplos que podem ser indicados so as separaes

    entre o conhecimento cientfico e o conhecimento do senso comum ou entre o

    conhecimento oriundo da cultura popular e o da cultura erudita eles, a princpio,

    no se misturam, vivem independentemente uns dos outros, devido s suas

    especificidades. O autor afirma que:

    Se as categorias [...] so especializadas, ento cada categorianecessariamente tem sua prpria identidade especfica e suas prpriasfronteiras especficas. O carter especial, especfico, de cada categoria criado, mantido e reproduzido apenas se as relaes entre as categorias,das quais uma dada categoria faz parte, so conservadas. O que deve serconservado? O isolamento entre as categorias. a intensidade doisolamento que cria um espao no qual uma categoria pode se tornarespecfica. Se uma categoria quiser aumentar sua especificidade, ela temque se apropriar dos meios de produzir o isolamento necessrio, que acondio prvia para adquirir sua especificidade. Quanto mais forte oisolamento entre categorias, mais forte ser a fronteira entre uma categoriae outra e mais definido o espao que qualquer categoria ocupa em relaoa qual ela especializada (itlico no original e sublinhado meu)(BERNSTEIN, 1996, p. 42).

    Essa individualizao impe uma classificao forte ao campo do direito,

    individualizado em relao s demais categorias, tais como a Histria, a

    Antropologia ou a Economia, como observamos no pensamento kelseniano. Esse

    isolamento determina uma voz especfica para cada campo, e sua particularizao

    construda atravs das diferentes caractersticas de uns e outros.

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    A total separao entre o reconhecimento da validade da norma jurdica e o

    substrato social , portanto, um instrumento utilizado pela teoria positivista para

    manter o isolamento do direito em relao aos demais campos, excluindo de sua

    interpretao qualquer outro elemento que no decorra da leitura formal da regra ou

    do sistema jurdico sob anlise. A interpretao da norma privilegiar mtodos

    abstrados da moral ou da poltica, tais como o gramatical e o sistemtico, atravs

    de regras tcnicas de linguagem e de remisses s demais normas constantes no

    sistema jurdico.

    Uma vez elaborada a norma jurdica, reconhecida sua validade e realizada

    sua interpretao pelos profissionais do direito, nos moldes expostos acima, a sua

    imposio garantida pelo monoplio da fora fsica pelo Estado, visando asegurana coletiva e a paz na comunidade. A vingana pessoal, por conseguinte,

    vedada em nosso sistema jurdico, apesar de serem mantidas algumas excees,

    como a legtima defesa. O ente estatal detm em suas mos a possibilidade de

    aplicao do sistema de sanes e coeres, tal como a efetivao da sano

    restritiva de liberdade por intermdio do sistema penitencirio ou a aplicao da

    pena de multa por descumprimento contratual. Para isso, utiliza-se da violncia se

    assim entender necessrio para a manuteno da regra de direito e da ordempblica.

    Por tudo isso, o antroplogo jurdico Norbert Rouland (2003, p. 108), em seu

    livro Nos Confins do Direito, entende: o que o Estado modernoerradicou no foi a

    violncia nem a vingana, mas o sistema vindicativo3 (itlico no original). Nesse

    sentido, a afirmao de Kelsen (1996, p. 41):

    A paz do Direito, porm, uma paz relativa e no uma paz absoluta, pois oDireito no exclui o uso da fora, isto , a coao fsica exercida por umindivduo contra o outro. No constitui uma ordem isenta de coao, talcomo exige um anarquismo utpico. O Direito uma ordem de coero e,como ordem de coero, conforme o seu grau de evoluo umaordem de segurana, quer dizer, uma ordem de paz.

    Podemos notar, assim, que o direito tem-se estruturado sobre certos

    paradigmas: classificao forte do direito frente aos demais campos do

    conhecimento, neutralidade na escolha dos fatos a serem considerados pelo direito

    3 Por sistema vindicativo o autor entende a organizao social da vingana, como a prtica dasvendettas ou a estipulao de penalidade pela prpria comunidade, independentemente doordenamento jurdico estatal (p.ex., o linchamento).

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    e neutralidade, novamente, no momento de sua elaborao e aplicao, validade

    formal da norma jurdica e monoplio da fora fsica pelo Estado. A esses

    fundamentos positivistas some-se a igualdade formal de todos os cidados perante

    a lei e a atribuio da cidadania a todas as pessoas, reunidas por aquilo que tm em

    comum (territrio, linguagem e etnia, por ex.). Stephen Ster, Antonio Magalhes e

    David Rodrigues (2004, p. 78) alertam para esse entendimento: [...] essa

    construo da incluso com base naquilo que as pessoas partilham, no que tm em

    comum, conduziu inevitavelmente a diferentes formas de excluso ecmica, social,

    poltica e cultural.

    Tal afirmao baseia-se no fato de que a igualdade formal no pressupe a

    igualdade material ao contrrio, para alguns crticos, o objetivo do princpio daigualdade jurdica o de ocultar a desigualdade real dos agentes econmicos. Paulo

    Freire (1981, p. 163-164) fala sobre o mito dessa igualdade:

    [...] o mito de que todos, bastando no ser preguiosos, podem chegar aser empresrios mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelasruas, gritando doce de banana e goiaba um empresrio tal qual o donode uma grande fbrica [...] O mito da igualdade de classe, quando o sabequem est falando? ainda uma pergunta dos nossos dias.

    Esses paradigmas traduzem o sistema jurdico como rbitro e garantidor da

    pacificao social, responsvel por organizar uma comunidade onde todos seriam

    iguais, impondo a paz atravs da fora. O culto lei, ao direito estatal e sua

    sano e coero, encontram-se fortemente presentes no pensamento jurdico

    ocidental. Nas palavras de Norbert Rouland:

    O direito no chega at a solicitar as cores para tornar-se mais imperativo?Preta a roupa dos magistrados e dos auxiliares de justia, escura asforas da polcia. Cores que fazem eco ao preto do uniforme do rbitro e dabatina do padre. Todas essas personagens esto a para lembrar a regra e,se preciso, forar sua observao. O fnebre no est longe. Mas tambmo vermelho, a cor de que gosta o poder (pensemos nos prpuras imperial ecardinalcio, nos diversos tapetes vermelhos): os magistrados das altasjurisdies se revestem dele; ele colore a capa da maior parte dos cdigosfranceses; deu seu nome aos sinais de trnsito que prescrevem parar [...]O direito se impe at nossa retina (ROULAND, 2003, p. 06-07).

    O estudo do sistema jurdico, com o tempo, me fez indagar sobre a garantia

    jurdica da igualdade e da paz social. De que forma um conjunto normativo estatal,

    em uma economia de mercado, poderia implementar tais objetivos? Estaria na

    essncia do direito a superao das diferenas entre as classes sociais? Como

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    observamos, a Teoria Pura do Direitodesconecta o conceito de direito da realidade

    econmica e social do territrio em que vigora determinado sistema normativo.

    Assim, para formular essas perguntas, meu marco de anlise dever retroceder,

    alcanando no a estrutura jurdica posta em nosso Estado, mas as finalidades e

    motivos pelas quais foi, de incio, elaborada.

    3.2 DIREITO COMO SISTEMA DE NORMAS GARANTIDOR DA ESTRUTURA ECONMICO-

    SOCIAL

    Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que teve forte influncia no pensamento

    kelseniano, afirma que o direito tem por fim a garantia da liberdade a todos oscidados. Nas suas palavras, o domnio do direito o esprito em geral; a, a sua

    base prpria, o seu ponto de partida, est na vontade livre, de tal modo que a

    liberdade constitui a sua substncia e o seu destino e que o sistema de direito o

    imprio da liberdade realizada (HEGEL apudFLINCKINGER, 2003, p. 15). Segundo

    Atlio Born (2003, p. 73), o autor alcana o seu objetivo de:

    [...] apresentar o Estado o Estado burgus e no qualquer Estado comoa esfera superior da eticidade e da racionalidade, como o mbito onde sedesenvolvem as contradies da sociedade civil. Em suma, um Estado cujaneutralidade na luta de classes se materializa na figura de uma burocraciaonisciente e isolada dos srdidos interesses materiais em conflito, tudo oque lhe faculta aparecer como o representante dos interesses universais dasociedade e como a encarnao de uma juridicidade despojada de todacontaminao classista (aspas no original).

    Note-se, entretanto, que por liberdade queremos dizer, sob as condies

    de produo burguesas atuais: mercado livre, venda livre e compra livre (MARX e

    ENGELS, 1998, p. 35). Percebendo o direito de uma forma mais crtica, diversosautores o compreendem como um intermediador de conflitos, estando sua mediao

    fundamentada em valores estabelecidos pelo legislador, sendo sempre parcial, por

    traduzir a ideologia do poder legiferante (AGUIAR, 1990, p. XVII).

    Michael Apple (2002, p. 03) ressalta essa contingncia histrica da

    construo da cultura hegemnica na citao a seguir:

    Devemos ter sempre presente que as lutas culturais no so umepifenmeno. Elas so importantes e so-no nas instituies em toda asociedade. Para que os grupos dominantes possam exercer a sualiderana, necessrio que um vasto nmero de pessoas acredite que as

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    representaes da realidade veiculadas pelas pessoas com mais podereconmico, poltico e cultural fazem mais sentido do que as restantesalternativas. Os grupos dominantes exercem a sua liderana relacionandoessas representaes com os elementos de bom senso das pessoas emodificando o sentido profundo de conceitos fundamentais e das

    respectivas estruturas de sentimentos que fornecem as referncias para asnossas esperanas, receios e sonhos na sociedade.

    Karl Marx realiza sua crtica ao pensamento hegeliano em sua obra Crtica

    da Filosofia do Direito de Hegel (1985),desconstruindo a idia de um Estado neutro

    e mediador de conflitos entre os cidados. A conexo entre estrutura e

    superestrutura o ponto de partida para a compreenso dessa anlise.

    A estrutura abrange duas relaes, a relao de propriedade e,

    conseqentemente, de domnio dos meios de produo e do trabalhador, e a deapropriao real, oriunda da combinao dos meios de produo e dos

    trabalhadores na produo econmica (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1994,

    p. 446-449). Por sua vez, a superestrutura formada por relaes sociais, jurdicas,

    polticas e culturais, oriundas do Estado Capitalista. Dentre as duas, a primeira , em

    ltima anlise, a instncia reguladora:

    [...] na produo social da prpria existncia, os homens entram emrelaes determinadas, necessrias, independentes de sua vontade; estasrelaes de produo correspondem a um grau determinado dedesenvolvimento de suas foras produtivas materiais. O conjunto dessasrelaes de produo constitui a estrutura econmica da sociedade, a basereal sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e poltica e qualcorrespondem formas sociais determinadas de conscincia. O modo deproduo da vida material condiciona o processo de vida social, poltica eintelectual. No a conscincia dos homens que determina a realidade; aocontrrio, a realidade social que determina sua conscincia (sublinhadomeu) (MARX, 2003, p. 05).

    O confronto com Hegel torna-se inevitvel. Marx liga, irreparavelmente, odireito estatal s relaes de produo. O Estado liberal, como representante das

    classes dominantes, organiza o sistema jurdico dentro de seus moldes, o qual seria

    garantidor de uma determinada organizao das foras de produo, no caso em

    anlise, do sistema de mercado. E, uma vez que a propriedade privada um dos

    pressupostos desse sistema, uma das grandes funes do direito seria preserv-la

    de quem quer que tenha interesse em sua violao. Nas palavras de Hans-Georg

    Flickinger (2003, p. 12-13):

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    Orgulhamo-nos de um sistema de direito que garante a todos a liberdade eigual chance de participar, tanto nos bens comuns e decises polticas,quanto na construo do espao social do mundo da vida. At hoje,nenhuma outra sociedade conseguira instaurar estrutura de liberdade toabrangente quanto a nossa. Por outro lado, inegvel que essa mesma

    sociedade alcana estgio de disparidade social extremo. Frente misriacrescente de vrios segmentos da populao, chega-se, por vezes, aolimiar de severos conflitos sociais na formao de movimentos que fogem integrao no corpo formal da sociedade na qual se observam,simultaneamente, processos globais de migrao de capitais e riquezas,aparentemente desenraizadas dos seus contextos naturais de produo(isto , dos lugares da criao de valores e bens materiais) (aspas nooriginal).

    Flickinger (2003) evidencia, na citao acima, a contradio entre o direito

    formalizado pelo Estado e a realidade scio-econmica na contemporaneidade. O

    autor demonstra que a liberdade de todos os cidados, fundamento do Estado

    moderno, e formalmente garantida pelo direito liberal, exclui a possibilidade de o

    mesmo direito regrar juridicamente o que ele denomina de jogo material-

    econmico. Dessa impossibilidade de conjugao, surge o paradoxo analisado pelo

    autor em sua obra Em Nome da Liberdade.

    Segundo Flickinger, Hegel entende a expresso da vontade humana como

    pressuposto da liberdade, tal como pode ser visto em um acordo de vontades para a

    elaborao de um contrato de compra e venda, por exemplo. Uma vez que o direitoseria instrumento para a garantia da liberdade, onde no houvesse vontade humana

    consciente, no haveria possibilidade de imposio de regramentos jurdicos. Da os

    diversos vcios de vontade contratuais, previstos no Cdigo Civil Brasileiro (CCB)4.

    Nas palavras do autor:

    Em consonncia com o auto-entendimento da conscincia moderna, asociedade liberal pressupe que todos os indivduos, em princpio, sejam

    capazes de tomar seu destino nas prprias mos, impondo ao seuambiente os prprios interesses como fio condutor do agir.Conseqentemente, cada um deveria conquistar espao suficiente paraapropriar-se, livremente, do mundo material e social. Ao sistema do direitoliberal caberia, portanto, a funo de instncia estruturadora dessesespaos. Nada mais natural do que aceitar, imediatamente, asconfiguraes jurdicas como apoio por excelncia, por meio do qual cadapessoa poderia, no apenas reivindicar sua liberdade, mas tambm v-laassegurada (FLICKINGER, 2003, p. 18-19).

    4So eles: Erro ou Ignorncia (art. 138 a 144); Dolo (art. 145 a 150); Coao (art. 151 a 155); Estadode Perigo (art. 156); Leso (art. 157); Fraude Contra Credores (art. 158 a 165) e Simulao (art. 167).Aos vcios contratuais esto previstas as penas de nulidade (art. 166) e anulabilidade (art. 171 e 178)dos contratos realizados.

  • 7/25/2019 Ana Clara Correa Henning Dissertacao

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    A questo sob enfoque surge, assim, quando os homens encontram-se

    sujeitos a situaes que lhes retiram essa voluntariedade, tais como as regras do

    jogo material-econmico, arena onde desenvolvida a busca pela sobrevivncia. De

    que maneira ser possvel a conciliao do direito liberdade individual com o

    mundo da necessidade, na realidade social de um sistema de produo

    fundamentado nas diferenas entre classes e na formao das conscincias prpria

    de um sistema liberal, o qual exclui o desenvolvimento da autonomia e da crtica

    devido ao processo de alienao dos homens?

    A alienao do homem decorre da sua coisificao pelo processo de

    produo capitalista. O trabalhador igualado mercadoria, ambos sendo fonte de

    rendimento ao sistema. A unidade da coletividade manipulada consiste na negaode cada indivduo; seria digna de escrnio a sociedade que conseguisse transformar

    os homens em indivduos (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 62-63).

    Marx (2005) descreve essa alienao em trs nveis de aprofundamento. A

    mercadoria, aps sua produo pelo trabalhador, torna-se independente deste,

    colocando-se fora do seu alcance. O produtor no percebe na coisa produzida,

    inacessvel ao seu poder aquisitivo, traos que a conectem a ele, ela torna-se um

    ser estranhoa sua realidade.Em um segundo nvel, o trabalhador aliena-se da sua prpria atividade

    laboral:

    [...] o seu trabalho no voluntrio, mas imposto, trabalho forado. Noconstitui a satisfao de uma necessidade, mas apenas um meio desatisfazer outras necessidades. O trabalho externo, o trabalho em que ohomem se aliena, um trabalho de sacrifcio de si mesmo, de martrio [...]Finalmente, a exterioridade do trabalho para o trabalhador transparece nofato de que ele no o seu trabalho, mas o de outro, no fato de que no

    lhe pertence, de que no trabalho ele no pertence a si mesmo, mas a outro(grifos no original) (MARX, 2005, p. 114).

    O processo de reificao impe, inclusive, a alienao do homem da

    espcie humana. Ele perde a autonomia, a capacidade de pensamento crtico sobre

    o mundo em que vive. Uma vez entendida a liberdade como sinnimo de

    autoconscincia, ocorre uma desumanizao do trabalhador. por isso que Adorno

    e Horkheimer (1985, p. 30) afirmam que a venda sobre os olhos da Justia no

    significa apenas que no se deve interferir no direito, mas que ele no nasceu daliberdade.