Sumário aPResentação, 7 Leyla Perrone-Moisés e Maria Elizabeth Chaves de Mello BaRthes MoDeRno e...

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De volta a RolanD BaRthes

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De volta a RolanD BaRthes

leyla PeRRone-Moisés

MaRia elizaBeth Chaves De Mello (Organizadoras)

Editora da Universidade Federal FluminenseNiterói, RJ - 2005

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Copyright © 2005 by Leyla Perrone-Moisés e Maria Elizabeth Chaves de Mello

Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense - Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-000 - Niterói, RJ - Brasil - Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: (21) 2629- 5288 - http://www.uff.br/eduff - E-mail: [email protected]É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.Normalização: Caroline Brito de OliveiraEdição de texto: Icléia FreixinhoRevisão: Tatiane de Andrade Braga e Rozely Campello Barrôco Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: José Luiz Stalleiken MartinsIlusração da capa: Retrato de Roland Barthes, de Robert Lajou Jude. Óleo sobre tela, 1965. Coleção Particular, Strasburg. Extraído do catálogo da Exposição do Centre Georges Pompidou. Edições do Centre Pompidou, Paris, 2002.Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo

Dados Internacionais de Catalogação-na-fonte - CIP

M714 Perrone-Moisés, Leyla De volta a Roland Barthes / Leyla Perrone-Moisés, Maria Elizabeth Chaves de Mello (organizadoras) — Niterói : EdUFF, 2005.

145 p. : il. ; 21 cm. —

Inclui bibliografias.

ISBN 85.228-0405-2

1. Linguagem. 2. Roland Barthes. I. Título.

CDD 400

Este livro, publicado no âmbito do programa de auxílio à publicação, contou com o apoio do Ministério Francês das Relações Exteriores.

Cet ouvrage, publié dans le cadre du programme d’aide à la publication, bénéficie du soutien du Ministère Français des Affaires Etrangères.

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Sumário

aPResentação, 7Leyla Perrone-Moisés e Maria Elizabeth Chaves de Mello

BaRthes MoDeRno e antiMoDeRno ou o RoManCe De RolanD BaRthes, 13

Antoine Compagnon

BaRthes, BReCht e MaRx, 29Philippe Roger

RetRato De RolanD BaRthes eM Don Juan, 47Françoise Gaillard

o hoRRoR à esteReotiPia e o DisCuRso PolítiCo, 63João Batista Natali

uM MunDo enClausuRaDo: a PolêMiCa entRe BaRthes e CaMus, 69

Manuel da Costa Pinto

a Paixão isenta (o “Pequeno BaRthes”), 81Evando Nascimento

o RuMoR Do autoR eM Fragmentos De um Discurso amoroso, 99

Marcelo Jacques de Moraes

o que existe PaRa MiM: fiChas, CoRes, fRagMentos, 113

Lúcia Teixeira

a PRátiCa Da aula nos CuRsos Do Collège De fRanCe, 131

Leyla Perrone-Moisés

ColaBoRaDoRes Deste livRo, 143

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aPResentação

É com grande prazer que apresentamos ao leitor este livro. Há cinco anos atrás, os 20 anos da morte de Barthes foram lembrados em colóquios realizados nos Estados Unidos e na França. Um pouco mais tarde, de dezembro de 2002 a março de 2003, o Centre Georges Pompidou de Paris homenageou-o com uma grande exposição. Na mesma ocasião, suas obras completas foram publicadas numa edição corrente, em cinco volumes, e os últimos cursos por ele ministrados, no Collège de France, começaram a ser editados. Vários números especiais de revistas lhe foram consagrados. Assim, depois de um período de relativo esquecimento, purgatório habitual por que pas-sam os famosos recém-falecidos, Barthes voltou aos catálogos das editoras, às pautas universitárias e às manchetes dos jornais. O livro que apresentamos ao leitor em 2005 faz parte desse movimento de volta a Barthes.

Por que voltar a Barthes? Porque mais de três décadas depois do es-truturalismo e da “aventura semiológica”, de que ele foi um dos mais famosos representantes, torna-se cada vez mais evidente que ele foi muito mais, ou coisa diversa, do que um estruturalista ou semiólogo literário. De fato, Barthes resiste a estas e outras etiquetas, porque sua carreira intelectual caracterizou-se pelo que ele chamou de “tática do deslocamento”, o que consistia em mudar de conversa logo que determinado discurso “pegava”, tornando-se estereotipado, repetitivo, morto. Assim, podemos distinguir em sua obra três etapas principais: a primeira, nos anos 50, de fundamentação sociológica e marxista; a segunda, nos anos 60, estruturalista e semiológica; e a terceira, a partir de O prazer do texto (1973), em que sua ética da linguagem se afirma plenamente e seus textos se libertam de todo constrangimento sistemático, para se assumirem como gozo pessoal da linguagem, isto é, escritura, escrita literária.

Embora a literatura tenha sido sua maior paixão, a obra de Bar-thes recobre uma vasta gama de temas, e interessa a especialistas

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de várias áreas. Suas Mitologias, análises dos mitos da socieda-de francesa dos anos 50 mantêm, quase meio século depois, sua extraordinária agudeza, seu humor, sua justeza, em suma, sua vitalidade. Essa crítica ideológica dos ícones da comunicação de massa tornou-se fonte de inspiração para determinado tipo de crítica cultural que só ganhou status universitário global depois de sua morte. Seus escritos sobre teatro, reunidos em recente edição, impressionam por uma coerência interna que não se percebia antes, quando estavam dispersos. Seus textos sobre a fotografia, em especial, A câmara clara, inspiram hoje numerosos ensaios dedicados a essa arte. Os Fragmentos de um discurso amoroso, comentário refinado e erudito das principais figuras do tema, alcançaram um enorme pú-blico, tornando-se um supreendente best-seller. Além disso, Barthes deixou textos sobre artes plásticas, moda, gastronomia e numerosos outros assuntos, todos caracterizados por sua maneira pessoal de nos mostrar as coisas como se nunca as tivéssemos visto antes.

Aqui no Brasil, Barthes tem sido referido na imprensa desde o fim dos anos 60 e editado desde 1970, quando foram traduzidos Crítica e verdade e uma seleção dos Ensaios críticos, por Leyla Perrone--Moisés. Depois disso, num ritmo ininterrupto, todos os seus livros têm sido traduzidos e publicados por diversas editoras. De 1988 a 1991, os Fragmentos de um discurso amoroso, numa bela adaptação teatral de Teresa de Almeida, protagonizada por Antônio Fagundes, foram vistos por milhares de espectadores através do Brasil.

Na universidade, as referências a Barthes têm sido intermitentes. Nos anos 60 e 70, período em que uma grande massa de estudantes brasileiros se deslocou para Paris, em busca de ares políticos menos repressivos e de novas fontes teóricas, grande parte dos professores universitários de literatura, atuantes nas décadas seguintes em várias partes do país, sofreu direta ou indiretamente a influência de Barthes. Na década de 1980, aquele Barthes estruturalista e semiológico foi rejeitado pela academia, como já havia sido abandonado por ele mesmo. As referências a ele nos trabalhos universitários tornaram-se mais raras. Em compensação, ele continuou a ser descoberto e lido

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pelas gerações mais jovens, independentemente das bibliografias universitárias.

O que faz com que Barthes continue exercendo esse interesse, que mais se parece com um encantamento? A influência de Barthes é sutil, manifesta-se mais numa postura diante do saber do que numa adesão conceitual. O principal de sua obra não contém uma teoria forte, nem modelos analíticos aplicáveis. Mas tem o charme de sua escritura e o atrativo de sua personalidade liberal, no sentido estrito dessa palavra. Apesar de todos os seus deslocamentos, Barthes se manteve sempre firme na luta contra as linguagens estereotipadas, a ideologia disfarçada em natureza, a arrogância e o autoritarismo discursivos. O saber presente em sua obra, embora vasto, nunca se tornou pesado, mas foi por ele explorado como fonte infinita de prazeres. Nos textos de Barthes encontramos essa coisa rara: a pre-sença da sensualidade, do afeto e do humor no discurso acadêmico. Um saber com sabor. Numa época como a que vivemos, de barbárie política e cultural, a inteligência e a delicadeza de Barthes aparecem como, ao mesmo tempo, anacrônicas e necessárias. E é por isso que, hoje, voltamos a ele.

O presente livro é uma coletânea de trabalhos apresentados em dois co-lóquios sobre o autor. O primeiro, intitulado Colóquio Roland Barthes com Saber e Sabor, realizado na Universidade de São Paulo (USP), de 29 de setembro a 10 de outubro de 2003, e o segundo, o Colóquio Roland Barthes, que aconteceu no dia 3 de outubro de 2003, na Uni-versidade Federal Fluminense (UFF/Niterói, Rio de Janeiro). Ambos resultaram de parceria entre as pós-graduações das respectivas univer-sidades e o Bureau du Livre da Embaixada da França, responsável pela participação, nos dois colóquios, dos professores franceses Antoine Compagnon, Françoise Gaillard e Philippe Roger, que apresentaram seus trabalhos nas duas universidades. É graças a essa parceria que este livro obteve os meios para ser publicado pela EdUFF.

O livro se abre com o texto da comunicação proferida por Antoine Compagnon, da Columbia University e Paris IV, “Barthes moderno e anti-moderno”, que propõe reflexões sobre a literatura, o romance

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e a própria obra de Roland Barthes, a partir do seu último curso, “A preparação do romance”, em que Barthes teria questionado todo o seu percurso teórico, em busca de outros caminhos.

Do mesmo modo, “Barthes, Brecht e Marx”, o texto de Philippe Roger, da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, apresenta o afastamento de Barthes do cientificismo e da militância, ao final da vida, como formas de tentar novas vias de reflexão sobre a literatura, a arte e a vida.

Ainda da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, o texto de Fran-çoise Gaillard, “Retrato de Roland Barthes em Don Juan”, persegue essa mesma via dos múltiplos Barthes, estabelecendo relações entre Barthes e Don Juan, pela colocação das razões do mundo longe de Deus e por um suposto donjuanismo de espírito, que teria levado Roland Barthes a flertar com inúmeros objetos e trocar de amor a cada livro.

Estudando essa troca permanente de amores, o jornalista João Batista Natali, ex-orientando de pós-graduação de Barthes, no seu texto, “O horror à estereotipia e o discurso político”, analisa a relação de Barthes com o discurso do poder e da política em geral, insistindo na “ausência ativa” barthesiana.

Por sua vez, o também jornalista e autor de um livro sobre Ca-mus, Manuel da Costa Pinto, no texto “Um mundo enclausurado – a polêmica entre Barthes e Camus”, apresenta reflexões sobre a questão do engajamento, que, em Barthes, adquire curiosos aspectos, quando se trata da ordem política e moral.

Ainda nessa linha, em “A paixão isenta (o pequeno Barthes)”, Evan-do Nascimento insiste no permanente autoquestionamento do autor, ao afirmar que, para Barthes, rever seus textos passados tratava-se principalmente de não restaurar uma suposta verdade anterior, mas ver-se como um sujeito que circula acompanhando a rotação per-manente do simbólico. Evando Nascimento nos remete a Barthes falando das múltiplas vozes que o habitam e que ele quer fazer ouvir em sua multiplicidade.

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Multiplicidade que se faz presente também no texto de Marcelo Jacques de Moraes, que apresenta uma reflexão sobre o modo como a simulação do discurso amoroso empreendida nos Fragmentos or-questra, com as vozes que os compõem, uma certa “experiência de rumor”, por meio da qual se “[desenha] uma inteligência”, um estilo, encenando e reconfigurando – com ou contra o próprio Barthes – a noção de autoria.

Na área da semiótica, Lúcia Teixeira, estabelecendo uma relação entre as fichas e a escritura plástica de Barthes, a partir de dois tex-tos, O Roland Barthes por Roland Barthes e o catálogo da exposição R/B: Roland Barthes, detém-se sobre a análise dos suportes dessas escrituras e um certo modo de organização, pensando na relação entre fragmentar e disciplinar, divagar e ordenar, brincar e conter, que se expressa nesses dois tipos de escritura, tendo sempre presente a idéia do que Barthes chama de “a estrutura como garantia de liberdade”.

Prosseguindo nessa questão da liberdade, encerrando o livro, o texto de Leyla Perrone-Moisés, “A prática da aula nos cursos do Collège”, apresenta os cursos como uma proposta da “linguagem refletindo sobre a linguagem”. Essa concepção do método, segundo a autora, estava expressa na Aula, quando Barthes dizia que, em seu ensino, o método não seria heurístico, isto é, visando produzir deciframentos e apresentar resultados, mas, como propunha Mallarmé, seria uma ficção. Assim, o projeto utópico de Barthes seria o de uma pequena comunidade móvel, na qual cada um dos membros pudesse viver ao mesmo tempo em companhia e em liberdade.

Nosso livro oferece, assim, não só aos pesquisadores da área de Letras, mas a todos os interessados em refletir sobre a linguagem, material rico e diversificado tanto em informações e reflexões que contém sobre Roland Barthes, quanto na rede teórica que o mobiliza.

Leyla Perrone-Moisés Maria Elizabeth Chaves de Mello

(Organizadoras)

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BartheS moderno e antimoderno ou o romance de roland BartheS1

antoine CoMPagnon

Em 23 de fevereiro de 1980, a última aula de Roland Barthes no Collège de France foi melancólica. Ele chegava a conclusões, após dois anos de ensino, sobre A preparação do romance, romance que não foi concluído. Dois anos mais tarde, Barthes foi vítima de um acidente perto do Collège, acidente que não poderia lhe ofe-recer risco de vida, mas do qual ele nunca se recuperou. Algumas pessoas não deixaram de atribuir um sentido a essa coincidência.

“Qual seria a conclusão desse curso? – A própria obra.”, questio-nava e respondia Barthes, em 23 de fevereiro (BARTHES, 2003, p. 377). Mas o curso terminava sem a obra: “Infelizmente, no que me diz respeito, isso não está em questão: não posso tirar nenhu-ma Obra do meu chapéu, e, com certeza, certamente não seria o caso do Romance cuja Preparação eu quis analisar” (BARTHES, 2003, p. 377). O advérbio infelizmente, que exprime o lamento, vale por uma confissão: Barthes não teria ficado contrariado se o curso tivesse terminado com um romance; um romance não teria sido uma conseqüência inoportuna do curso.

A isso se seguia uma passagem rasurada, ou melhor, duas, que Bar-thes não pronunciou em 23 de fevereiro de 1980. A primeira delas: “Será que eu conseguirei um dia? Não é evidente, nem mesmo para mim, hoje, quando escrevo estas linhas (1 de novembro de 1979), que ainda escreverei coisas que não sejam banais, adquiridas, re-petitivas. Nada na linha da Inovação, da Mutação” (BARTHES, 2003, p. 377). Barthes renunciou a fazer essa confidência amarga, a manifestar em voz alta sua insegurança quanto ao futuro dos seus trabalhos; não quis expor o embaraço que vivia, marcado, é bem verdade, três meses antes, por um dia pouco favorável a

1 Traduzido do francês por Maria Elizabeth Chaves de Mello.

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Antoine Compagnon

projetos, o feriado de Finados. Faltava-lhe a inspiração ou o vigor para continuar a inventar, para pôr em prática o que ele chamava há vários anos de sua Vita Nova, vida liberada da repetição, do “nhém-nhém-nhém”, vida inteiramente consagrada à escrita.

Ora, uma segunda passagem, entre parênteses, formulada de ma-neira análoga como pergunta e resposta, já havia sido rasurada num primeiro momento. Por ocasião da redação do feriado de Finados, a constatação da ausência de qualquer romance e a explicação pela incapacidade de inovação eram seguidas de um comentário ainda mais pessoal, demasiadamente íntimo, sem dúvida, para que Barthes tenha pensado por muito tempo em fazê-lo em público: “Por que essa dúvida? – Porque o luto que citei no início deste curso, há dois anos, mudou profunda e obscuramente o meu de-sejo do mundo” (BARTHES, 2003, p. 105). Barthes interpretava, nesse Dia de Finados de 1979, sua dificuldade em escrever um romance, ou mesmo qualquer coisa de novo, como conseqüên-cia do luto pela sua mãe, morta dois anos antes, em outubro de 1977. A escrita do romance exige generosidade, amor do mundo, vontade de abraçá-lo.

Entretanto, Barthes acabava de publicar La Chambre claire, lançado nas livrarias na semana da última aula do Collège, e o curso sobre A preparação do romance começara com energia, no outono de 1978, pela narrativa da decisão de Vita Nova. Barthes resumira suas primeiras aulas sobre o desejo de escrever numa das melhores conferências de sua vida, “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”, pronunciada no Collège de France, em outubro de 1978, depois na New York University, em novembro, na qual Proust servia como modelo para a vontade de mudar de vida e de escrever. E os dois anos do curso haviam sido marca-dos por sugestões sobre o prosseguimento da sondagem sobre A preparação do romance, sobre a frase ou o estilo, por exemplo.

Entretanto, após algumas aulas entusiasmadas, o curso havia se desviado rapidamente, a pretexto de uma reflexão sobre a notação prévia do romance, para considerações variadas sobre o haicai, antes de voltar rapidamente e como conclusão, para a passagem

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Barthes moderno e antimoderno ou o romance de Roland Barthes

da notação no desenvolvimento romanesco. E, no segundo ano, Barthes chegara rapidamente à constatação de seu fracasso, diante da primeira prova da iniciação ao romance – a escolha fundamental da forma a adotar, fragmentária ou orgânica: “Há, portanto, aqui, neste momento do Curso, uma lacuna .Eu não resolvi a primeira prova” (BARTHES, 2003, p. 266). Ele havia se engajado, naquele momento, numa descrição minuciosa da “vida metódica” do escritor (expressão de Chateaubriand): seu egoísmo, disciplina, horários, alimentação, farmacopéia, proxêmica, ritos, manias. Com que intuito, já que o obstáculo da forma romanesca não havia sido transposto: “[P]ensar demasiadamente no Quarto, na Casa, na Vita Nova, é preencher artificialmente, talvez, um certo vazio da Obra, uma certa esterilidade”, observava para si mesmo (BARTHES, 2003, p. 305). Se a vontade reside nisso, escrevemos em qualquer lugar e de qualquer maneira, no café, com uma Bic, e não comemos, nem dormimos.

Assim, nos dois cursos, a metade tivera ar de digressão, e podia se instalar a sensação de que o romance não seria feito, assim como a de que não haveria Vita Nova, nem Barthes romancista após o Barthes crítico. No segundo ano, após o seu inventário detalhado do quotidiano de um celibatário da arte, Barthes chegara a obser-vações amargas, inspiradas nas Memórias de além túmulo, sobre a literatura como arcaísmo e sua marginalização no mundo con-temporâneo, como se o romance com o qual sonhara – romance romântico, proustiano, total – estivesse irremediavelmente fora de moda no final do século XX. Daí a conclusão quase desencantada da última lição de 23 de fevereiro de 1980.

O romance de Roland Barthes II

Os cursos de Barthes no Collège de France haviam se tornado um tumulto, do qual ele se queixava. Transformado em vedete da mídia desde Fragmentos de um discurso amoroso, no momento em que a morte de sua mãe o deixava desamparado, ele pedia aos amigos para não virem escutá-lo e conseguia silenciar, a duras penas, uma multidão apaixonada que transbordava a sala. Não fui ouvir o seu

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curso sobre A preparação do romance, mas falávamos dele, e, durante a semana da sua última aula, ele fizera uma conferência na Escola Politécnica, na qual eu ensinava. Muitos anos antes, tendo conhecimento das notas manuscritas de seu curso colocadas na IMEC, eu descobrira a pasta que continha os papéis reunidos para essa conferência. Evidentemente, para mim era difícil conseguir separar a leitura de suas anotações de aulas de minhas lembranças das últimas semanas de sua vida, assim como as de minhas visitas ao hospital, inclusive a derradeira.

A leitura do manuscrito me deixara desolado. Pela sua escrita, pela grafia, principalmente a dos últimos acréscimos, era evidente que Barthes não ia bem. Como eu não fora capaz de ser mais sensível ao seu sofrimento? Meu ponto de vista foi certamente marcado por isso: ler o manuscrito de um amigo, 20 anos após sua morte, é como encontrar uma carta deixada em sofrimento. Pela cor da tinta, pelo traçado das letras, reconhecemos um corpo. Parecia-me que Barthes, muitas vezes, estava escrevendo arrastado, estican-do a linha, como nas páginas sobre o haicai ou sobre a vida do escritor. Eu achava que ele mesmo sabia quais eram os melhores momentos do curso, já que os havia preparado e incluído em se-parado – em alguns textos contemporâneos – entre os seus mais bem-sucedidos, como “Longtemps, je me suis couché de bonne heure” e “On échoue toujours à parler de ce qu’on aime”, deixado na sua máquina de escrever no dia do acidente (LE ROMAN..., 2002). Tudo isso eu escrevi. Mas a aula sobre La préparation du roman está atualmente publicada, como as dos dois anos anteriores, Comment vivre ensemble e Le Neutre. Impressas, elas tornam a leitura mais distante, menos envolvida, menos culpada. Será que a forma do livro modifica minhas impressões, redigidas após a leitura das notas manuscritas? Certamente.

Inicialmente, porque fica evidente que os quatro anos de cursos formam um todo. Barthes os preparou um após o outro, lendo, tomando notas durante o verão, redigindo às pressas no início do outono, e proferindo as aulas durante o inverno, sem muitas revisões nem improvisos. Sua bibliografia é sempre restrita e

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quase totalmente de segunda mão, sem preocupação de buscar as fontes. Assim, quase todos os exemplos de poesia francesa que ele confronta com o haicai são provenientes de uma curiosa Anthologie du vers unique, de Georges Schehadé (1977), pois ele se preocupa, antes de mais nada, com a repercussão dessa cultura compósita na sensibilidade.

E, mais importante do que isso, o projeto se revela o mesmo, do início ao fim: fantasmático, ético, existencial. Em Comment vivre ensemble, a decisão de Vita Nova já está implícita: a sondagem sobre a idiorritmia do monte Athos é inspirada pelo voto de mu-dar de vida. E Le Neutre, verdade do conjunto, a meu ver, o mais bem-sucedido, o mais bem acabado dos três volumes, enuncia, ao mesmo tempo, a intenção do Vivre ensemble, de regularizar uma vida disciplinada, e a ambição do haicai, de se unir à escrita do desapego. Lido como um prolongamento do curso sobre Le Neutre – um “grande mergulho”, segundo o termo empregado por Barthes para falar do retorno de temas e personagens em Proust –, o excursus sobre o haicai parece menos artificialmente relacionado a La Préparation du roman.

Assim, os quatro cursos do Collège são, na verdade, um só, vol-tado inteiramente para a busca de uma outra via de escrita. Hoje, relendo La préparation du roman, “a preparação do romance” me comove menos – é ela que me parece artificial e classificatória com suas três provas, suas duas formas, suas três separações do mundo – do que dois leitmotiv despercebidos da primeira vez. Sou especialmente sensível a dois temas pouco desenvolvidos por Barthes, mas recorrentes e essenciais: a morte da literatura e sua sobrevivência no poema. Então, o “embaraço” de Barthes no final do curso se explica facilmente. Esses dois temas, ligados dialeticamente, rompem de tal maneira com suas idéias habituais que ele hesita em assumi-los. La Préparation du roman não é uma “preparação do romance”, mas uma busca do poema como salvação da literatura.

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A morte da literatura

Logo à primeira vista, diante do “ramerrão” da sua vida, Barthes entrevê duas soluções: o abandono, o silêncio, o Neutro no sentido passivo, ou, então, a Vita Nova, um novo combate, um Neutro ativo. Ora, quando ele escolhe o segundo termo, apesar da sedução do primeiro, é por um “sentimento de perigo”, o “[s]entimento de que é preciso se defender, que é uma questão de sobrevivência” (BARTHES, 2003, p. 30). Qual seria o perigo iminente? O que estaria morrendo e precisaria ser protegido? Barthes ainda não o diz, mas o saberemos logo: “Alguma coisa ronda nossa História: a morte da literatura; ela está errando a nosso redor; é preciso encarar esse fantasma frente a frente” (BARTHES, 2003, p. 49). Se Bar-thes renuncia à tentação Zen da abstinência, se ele se decide pelo trabalho, trabalho “ao mesmo tempo inquieto e ativo, é porque “o Pior não é certo”, a morte da literatura talvez possa ser retardada.

São incessantes os retornos desse tema durante os dois anos de curso. Por exemplo, após a passagem sobre o haicai, Barthes, descrevendo a passagem das notas ao romance, aborda o que ele chama de processo da frase, da “Frase absoluta, depositária da literatura”, e é novamente sobre a sua fragilidade que ele insiste, sobre o seu ser-para-morrer (BARTHES, 2003, p. 150). Não so-mente se fala hoje menos bem o francês, mas a textualidade e a vanguarda destroem “as ‘leis’ da linguagem”. Estranho lamento essa defesa da língua francesa, da frase francesa, inesperada da parte de um homem de progresso, de um velho companheiro de viagem das vanguardas, e do campeão da textualidade que aca-bara de vir em socorro de Sollers écrivain (1979). E que evocara “Flaubert, artista e metafísico da Frase absoluta, [que] sabia que sua arte era mortal: “Escrevo [...], não para o leitor de hoje, mas para todos os leitores que poderão surgir, enquanto a língua for viva”. Oração – “enquanto a língua for viva” – que Barthes considera realista, ou mesmo pessimista. Se a literatura vai mal, é porque a língua e a frase estão se desmanchando; se Flaubert está ameaçado, é porque ele uniu seu destino (bem como o da literatura) à Frase (BARTHES, 2003, p. 150).

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Realista ou pessimista, o ceticismo de Barthes sobre o futuro da língua e da literatura já é inegável e volta, estrategicamente, no início do segundo ano: “A ameaça de enfraquecimento ou extinção que pode pesar sobre a literatura soa como uma exterminação da espécie, um tipo de genocídio espiritual” (BARTHES, 2003, p. 190), declaração tão grave, talvez tão excessiva, que Barthes a riscou no manuscrito e não ousou dizê-la em voz alta.

Mas sua queixa se refere a tudo: assistimos à “diminuição da quota da literatura”, “a literatura aparece como um objeto passado (em via de desaparição)” (BARTHES, 2003, p. 199). “Ele tem a im-pressão de que a literatura [...] está, não em crise (fórmula fácil demais), mas pode estar morrendo” (BARTHES, 2003, p. 353). Aqui vemos um Barthes desconhecido, arraigado às tradições, recriminando a dessacralização do livro – não o encadernam mais, nem mesmo o encapam com papel brilhante (BARTHES, 2003, p. 242) –, protestando contra a sua transformação em mercadoria, contra a sua coisificação: “O livro, espaço sagrado da linguagem, está dessacralizado, esmagado: compram-no [...] um pouco como pizzas congeladas” (BARTHES, 2003, p. 243). Os manuscritos que lhe enviam são desprezados, e ninguém mais ousaria começar um livro como Rousseau o fez em suas Confissões, com tanta coragem. Sob a influência de Chateaubriand, Flaubert, Mallarmé, Proust, Kafka, todos heróis e mártires do Livro, Barthes reconhece, no final: “Este curso é tão essencialmente arcaico, que seu objeto, em um certo sentido, não tem mais lugar nas letras: ou seja, a noção de Obra” (BARTHES, 2003, p. 355)”. Sem nem mesmo se lembrar do papel que ele mesmo representou na substituição da Obra pelo Texto.

Evidentemente, “A Literatura e a Morte” é uma antiga obsessão de Blanchot, ilustrada pelo “Mito de Orfeu”, presente em Bar-thes em Le degré zéro de l’écriture, mas, a partir daí, Barthes o entende num sentido realista, sociológico e político. Na escola, a “degradação da Figura do Professor de letras” é fato indiscutível (BARTHES, 2003, p. 354). Aliás, não se aprende mais a ler: “Re-jeição ‘modernista’ do ‘estilo’ como escolar”, observa Barthes, que

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denuncia Céline, que criticava o “estilo acadêmico” de Voltaire, Renan, France, e que recrimina até mesmo seu amigo Foucault, que não acredita na explicação de texto! Barthes é defensor da frase de Anatole France,2 da pedagogia da explicação de texto: dir-se-ia uma página de Le Figaro e isso é surpreendente. De-pois, percebemos que há todo um sistema nisso: “A Retórica se degradou, tecnocratizou-se” e foi substituída pelas “técnicas de expressão”; “não há mais ‘transmissão’, pois a aprendizagem não se fundamenta mais na imitação da tradição, nem nos ‘conselhos’ do mestre” (BARTHES, 2003, p. 356).

Barthes também fica consternado com o fato de que a França não tenha mais escritores como entre as duas guerras: Mauriac, Mal-raux, Claudel, Gide, Valéry não foram substituídos; Aragon é o último; Sartre permanece apenas como “a figura da auto-destruição do mito” (BARTHES, 2003, p. 355). E “os romances atuais, ou seja, uma poeira de romances e não ‘grande romance’, não mais parecem ser os depositários de nenhuma intenção de valor (BAR-THES, 2003, p. 363). “Não...mais”: a própria figura da nostalgia. Cúmulo da decadência, não sem um toque de ironia, apesar de tudo, “não há mais, na França, ‘Nobelizáveis’” (BARTHES, 2003, p. 355). Barthes não viu surgir Claude Simon. Enfim, resumindo, a degradação da escola e da literatura está relacionada à “perda do sentimento de que a escrita está ligada a um trabalho” (BAR-THES, 2003, p. 357). Com efeito, “o trabalho não está na moda!” (BARTHES, 2003, p. 357). Antes da lei das 35 horas, dir-se-ia já Raffarin, mas um Raffarin dando a voz aos pequeninos – um quê de populista? – e clamando que “a literatura não é mais sustentada pelas classes ricas”, mas sim por uma “clientela de desclassifica-dos”: nós, os últimos (BARTHES, 2003, p. 365).

As páginas redigidas para as duas últimas lições do Collège, muito sacrificadas à linguagem oral – por falta de tempo, mas talvez também por pudor – multiplicam as queixas e atingem o cerne da

2 A preocupação com a língua francesa já se manifestava em Le Neutre (2002b, p. 136): “Les Paradis artificiels são um dos livros mais bem escritos do mundo, assim como os Pensamentos de Pascal, e talvez também Montaigne”. Era no tempo em que o mundo falava francês.

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inquietação de Barthes: é a língua francesa que está desaparecen-do. Ele toma como testemunhas as dificuldades de expressão dos franceses (o cabeleireiro, o porteiro) (BARTHES, 2003, p. 370), ou os “inúmeros erros de francês no Rádio” (BARTHES, 2003, p. 373). E não é só a língua falada que está em causa: “o ‘escrever bem’, arrastado pela decadência estética da burguesia, não é mais ‘respeitado’ [...] tende a se tornar uma língua bem minoritária e excluída” (BARTHES, 2003, p. 373). Do mesmo modo, os que falam ou escrevem ainda na bela língua tornam-se excluídos: “É possível que 95% dos livros escritos hoje escapem aos problemas de que tratei” (BARTHES, 2003, p. 352).

Inútil insistir, a não ser para lembrar que essa angústia do abandono se manifestava em cada envio de crônica que Barthes mantinha no semanário Le Nouvel Observateur durante o mesmo inver-no (uma delas tinha como título: “Enquanto a língua viver”). O estado da língua e da literatura dá a Barthes um sentimento de solidão, de exílio interior e de nostalgia: “Eu não amo nem entendo nada atual, amo e compreendo o ultrapassado; vivo o Tempo como uma degradação de Valores” (BARTHES, 2003, p. 360), decreta Barthes, que chama de “Policarpismo” sua atitude, numa referência a Flaubert, que queria adotar como divisa o grito de São Policarpo: “Meu Deus! Meu Deus! Em que século você me fez nascer?” (BARTHES, 2003, p. 361). Nas últimas lições, Barthes identifica-se também com Flaubert, protestando contra o seu tempo, enquanto Chateaubriand atravessa todo o segundo ano do curso, desde a epígrafe sobre “as melancolias das saudades, da ausência e da juventude” (BARTHES, 2003, p. 184), até as últimas páginas, citando longamente das Mémoires d’outre-tombe seu “Prefácio testamentário”: “Eu fico para enterrar o meu século” (BARTHES, 2003, p. 361).

Desde então, a “vida melancólica” do escritor que Barthes se com-praz em descrever constrói um refúgio, pois “é preciso lutar até a morte contra inimigos” (BARTHES, 2003, p. 267). O escritor que entra em resistência – primeiro gesto: ele não abre a sua corres-pondência – torna-se um herói. Barthes admite de bom grado que

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sua “casuística do egoísmo”, segundo uma expressão de Nietzsche em Ecce Homo (BARTHES, 2003, p. 297), testemunha “um certo passadismo” (BARTHES, 2003, p. 303), mas o desejo passadista e arcaico de escrita se converte em heroísmo, assumindo o passado contra “um mundo que fez da Inovação (desde o século XVIII: a Neomania) um mito” (BARTHES, 2003, p. 199).

Tomando partido contra a Inovação ou a Neomania, contra o dogma do progresso que arrasta a literatura para a morte, Barthes adota, uma a uma, as características do antimoderno.3 A violência da modernidade contra a literatura o atinge, e ele defende os clássi-cos, enquanto um haicai lhe inspira esse fantasma reconciliado: “Trabalhar textos clássicos (sem a agressão da modernidade) aconchegado, no inverno” (BARTHES, 2003, p. 96). Para além dos clássicos, românticos e modernos, buscando uma reconciliação, ele “imagina um ‘Clássico moderno’”, como Gide no início da NRF (BARTHES, 2003, p. 229).

A marginalidade não é um privilégio da juventude ou das vanguar-das (BARTHES, 2003, p. 351). Numa sociedade cuja maioria é jovem, em que o vanguardismo tornou-se uma moda ou um mito, é o apego ao passado que, por uma inversão dialética, constitui uma marginalidade ou mesmo uma clandestinidade e, como tais, um heroísmo. Defender hoje a língua clássica, isso se torna novo, pois – frase que Barthes guardará no bolso – “o que é frágil é sempre novo” (BARTHES, 2003, p. 374). “Porque a escrita literária não é mais durável”, porque ela está ameaçada de desaparição, “ela perde o seu peso conservativo” – Barthes não diz “conservador” –, e torna-se “algo leve, ativo, embriagador, fresco”. A condi-ção minoritária e o estado frágil da tradição são suficientes para resgatá-la. Decadentes, quase morrendo, os clássicos tornam-se novamente atraentes.

É isso que autoriza Barthes a classificar como “Trágica” a condição de quem deseja e defende hoje a língua e a literatura, comparando

3 Na via do antimoderno, em Le Neutre, as provocações mais intolerantes de Joseph de Maistre eram inocentadas, pois ele foi “um puro escritor, sem influência, e, aliás, defasado”, “um entusiasta, um intrépido, mas não um arrogante” (BARTHES, 2002b, p. 203, 207).

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“aquele que quer escrever” com Cassandra: “Escritor: espécie de Cassandra do passado e do presente; verdadeiro e nunca acredi-tado, vão testemunho do Eterno recomeçado” (BARTHES, 2003, p. 376). “Inútil Cassandra”, como Chateaubriand se qualificava em agosto de 1830, após a queda de Charles X, no momento de se recusar a prestar juramento de fidelidade a Louis-Philippe e antes de pedir demissão da Câmara dos pares.

Ainda como Chateaubriand, o escritor tira uma força paradoxal – a energia do desespero, ou a “vitalidade desesperada” de Pasolini, que Barthes citava em Le Neutre (BARTHES, 2002b, p. 106) do “estatuto trágico da literatura hoje” (BARTHES, 2003, p. 376). Sempre como Chateaubriand, ele pode nomear sua constatação implacável do fim do mundo, não “um pessimismo – ou um derrotismo, ou abstencionismo”, mas “uma forma intensa de otimismo: um otimismo sem progressismo” (BARTHES, 2003, p. 377).

Sem dúvida, Barthes terminou como verdadeiro antimoderno, “mantenedor” (como dizia Paulhan): “uma coisa difícil de as-sumir”, confessava ele na última página do curso (BARTHES, 2003, p.184).

A presença do poema

Nessas condições, qual poderia ser o romance da Vita Nova? Barthes duvida logo da sua possibilidade. Escrevem-se romances, é lógico, e “eles têm uma certa dificuldade para serem vendidos”, mas, desde Proust, nenhum “parece ‘transpor’, alçar à categoria do Grande Romance” (BARTHES, 2003, p. 38). Embora Barthes chame o romance de uma “terceira forma”, covarde, heterogênea, a morte da literatura parece arrastar consigo o fim do romance. Ele intitulou o seu curso de La préparation du roman, e não voltará atrás nesse título, mas a leitura reserva uma surpresa – ou a relei-tura, uma vez que vimos que a palavra “romance” era um engano e que as reflexões sobre o romance contavam entre as páginas mais decididas –, pois a preparação do romance se revela, aos poucos, uma busca do poema: “Poesia = prática da sutileza em um

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mundo bárbaro” (BARTHES, 2003, p. 82). Essa é, após a curva anti-moderna, a segunda novidade do curso: Barthes, que nunca falou muito de poesia e que não parecia, até então, muito sensível a ela, descobre, no poema, o destino da literatura.

Só o poema pode, ainda, resgatar a literatura, devolver-lhe vida e salvar o mundo. Assim se explica, longe de qualquer artifício, que Barthes consagre tantas páginas ao haicai. Discreto, particu-lar, contingente, circunstancial, defasado, efêmero, o haicai é a encarnação do Neutro. E, sobretudo, ele se apresenta como um resíduo, um depósito do real, um fragmento errático, um relevo do tecido quotidiano” (BARTHES, 2003, p. 91); ele divide, individu-aliza, atenua o mundo, em vez de abstraí-lo ou conceitualizá-lo. E encerra um instante frágil entre a vida e a morte, tomado pela morte; abraça uma vida ameaçada: “Dizem que, para os japoneses, não é propriamente a flor da cerejeira que é bela; é o momento em que, totalmente desabrochada, ela vai murchar. Tudo isso diz o quanto o haicai é uma ação (de escrita) entre a vida e a morte” (BARTHES, 2003, p. 93).

É por essa razão que Barthes pode aproximá-lo do Incident – “dobra fina”, “rachadura insignificante numa superfície vazia” (BARTHES, 2003, p. 111) –, conforme o praticou no Marrocos, ou da fotografia, cujo poema ele expõe (“Ça a été”) em La Cham-bre claire (BARTHES, 2003, p. 114). É ainda por essa razão que Barthes pode assimilar Proust ao haicai, embora isso possa parecer curioso: “Proust e o haicai se entrecruzam” na sua relação com a sensação, o afeto e a morte (BARTHES, 2003, p. 99). A redenção do mundo pelo poema, não é isso que acontece na Recherche? Esse “grande drama do Querer-escrever” só poderia ter sido concebido em “um período de recuo, de enfraquecimento da literatura: talvez a “essência” das coisas apareça quando elas vão morrer” (BAR-THES, 2003, p. 198). Graças a Proust, a literatura conseguiu um sursis. E hoje, que sursis podemos lhe conceder?

Junto ao filão antimoderno, ligado a ele como sua trama dialética, progride, ao longo do curso, um filão poético, totalmente inédito em Barthes, que reabilita a poesia e redime a literatura pela poesia.

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Assim, ele proclama a “necessidade hoje de lutar pela Poesia: a Poesia deveria fazer parte dos ‘Direitos do Homem’; ela não está ‘decadente’, ela é subversiva: subversiva e vital” (BARTHES, 2003, p. 82). A inversão é a mesma para os clássicos: minoritá-rios, marginalizados, ameaçados, o antigo e o poético tornam-se subversivos, novos, vitais.

O poema tem a faculdade de salvar o mundo porque é adesão – discreta, particular, residual – ao ser. Mesmo se isso não espanta um leitor de Bonnefoy ou de Jaccottet, é o que o haicai ensina a Barthes: “O haicai é adesão ao que é” (BARTHES, 2003, p.110), ou seja, presença à beira da ausência, presença destacada da ausên-cia. Satori (Zen), kairos (os céticos), epifania (Joyce), momento de verdade (Proust), instante pleno (Diderot), incidente, esses são os nomes que Barthes dá ao poema, cuja intencionalidade é – belas expressões – a de “despojar a realidade” (BARTHES, 2003, p. 110), de “captar um fragmento de presente” (BARTHES, 2003, p. 137). O poema “capta ao vivo” a vibração do mundo, como um “pacto instantâneo entre o que é visto, observado e o que é escrito”, ou, pelo menos, ele dá essa sensação, pois é sempre produzido pela Memória (BARTHES, 2003, p. 139), nem que seja por uma “memória imediata”, no caso do hacai (BARTHES, 2003, p. 86):

Descascando uma pêra Ternas gotas Escorregam ao longo da faca

Citando esse haicai – “muito bonito”, segundo ele –, Barthes vê a “divisão do real” ao máximo, que define o poema como “o cúmulo do particular” (Proust): a presença do fruto na gota ao longo da faca não seria a abstração, mas sim a expressão. E conclui: “Isso poderia ser a definição da Poesia: ele seria, em suma, a linguagem do real, no que ele não [pode] mais se dividir ou não se interessa em se dividir mais” (BARTHES, 2003, p. 119).

O mais curioso, talvez, nesse reconhecimento da poesia como pre-sença, é que Barthes se aproxima de Claudel, escritor (embora ele pensasse no dramaturgo) de quem ele falava muito mal nos anos 50, e cuja frenesia assertiva parecia-lhe ainda típica da arrogância

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moderna em Le Neutre (BARTHES, 2002b). “Isso me parece ter sido dito por Claudel”: “Só o poeta tem o segredo desse instante sagrado em que a picada essencial se introduz de repente [...] a solicitação de uma forma” (BARTHES, 2003, p. 119-120). Fór-mula que, doravante, Barthes considera uma “admirável definição de haicai”. Ele até encontra em Claudel o único verso ocidental que define, sem reservas, como um haicai, após tê-lo dividido em três (BARTHES, 2003, p. 76):

A chuva Cai Nas florestas de seis horas

Perfeita ilustração do poema como “co-presença”, ou como “li-gação instantânea” (BARTHES, 2003, p. 121). Assim, o poema, no não-romanesco da presença, é assunção do ser num “deslum-bramento de linguagem” (BARTHES, 2003, p. 188), ou ainda “apagamento da linguagem em prol de uma certeza de realidade” (BARTHES, 2003, p. 113). Em Proust, isso seria a madeleine suspensa, deixada tal como é, sem fazer dela a sedução de toda uma história, sem mergulhar os “pedacinhos de papel” japoneses na água para extrair Combray inteiro.

A preparação do romance se revela uma propedêutica do poema, ou de uma “terceira forma” poética levada ao sinal da pura presença, para a captura da “própria coisa”: “Ah, essa violeta”, como um haicai faz surgir a flor, sem nada dizer dela, a não ser essa indica-ção, principalmente sem interpretar (BARTHES, 2003, p. 123). O poema se contenta em dizer que não se pode dizer (BARTHES, 2003, p. 125):

“Que coisa, que coisa” É tudo que pude dizer Diante das flores do monte Yoshino

Enquanto o romance, pela narração, interpretação, generalização e abstração, pela relação entre as epifanias ou os momentos de verdade, introduz o falso e a mentira (p.161), Barthes chama esse movimento do poema de “retorno da letra”, ou seja, a redenção da língua: “O haicai (a frase bem feita, a poesia) seria o término

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de caminho, a assunção em direção da letra” (BARTHES, 2003, p. 126).

O romance de Barthes não teria sido, não era um romance, e, princi palmente, não era um Texto, mas sim um poema: “Por roman- ce deve-se entender, pouco a pouco, Romance Absoluto, Romance Romântico, Romance Pórtico, Romance da Tendência-a-Escrever; em outras palavras, toda obra”, sugeria ele em seguida (BARTHES, 2003, p. 203). Depois, bem no final do curso, retomando por sua conta a reflexão de Mallarmé sobre o Livro, não mais hesitava em afirmar: “A Prosa essencial é Verso” (BARTHES, 2003, p. 372).

*

Ao final da sua última aula, após lamentar não ter nenhuma obra para produzir, Barthes esboçava, mesmo assim, como dizia, o “perfil da Obra que eu queria – ou escrever, ou que alguém escreva hoje para mim” (BARTHES, 2003, p. 377). Essa obra desejada, ele a definia com três adjetivos: simples, filial e desejável, três qualidades que desconcertam ou parecem uma provocação, se percebermos que todo o curso, durante quatro anos, aproxima-se, aos poucos, de uma poética antimoderna da presença.

Simples, a obra seria legível, não irônica, sem aspas nem dobras, toda no primeiro grau, ao contrário dos textos modernos, difíceis, retorcidos, que Barthes elogiara até então. Seria como um desses haicai ou poemas cuja clareza até o limite da linguagem e do silêncio ele louvará daí por diante.

Filial, ela se filiaria à tradição, transmitiria os antigos, marcando diferença em relação às obras de ruptura valorizadas pelas van-guardas; ela reconheceria sua dívida para com Pascal, Chateau-briand, Proust, evocados incessantemente por Barthes, que não mais teme retomar as palavras de Verdi em 1870: “Voltemo-nos para o passado, isso será um progresso”, nem dizer adeus aos seus aliados: “A filiação deve ocorrer por deslizamento. [...] O deslizamento opõe-se a uma palavra de ordem vanguardista, da qual precisamos recuar lucidamente (pois as vanguardas podem se enganar): a desconstrução” (BARTHES, 2003, p. 381).

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Desejável, enfim, a obra, contrariamente ao texto “escrevível”, ao texto de prazer, faria com que a língua francesa fosse amada: “Parênteses das Obras da modernidade contemporânea. Espécie de Fixação, de Regressão ao Desejo de um certo passado”, afirmava Barthes (BARTHES, 2003, p. 384).

“Prazer dos Clássicos”, não era esse o título de um dos primeiros textos de Barthes em 1944? “É preciso ir ao essencial: não é uma questão de moral, é questão de prazer, e não existe maior prazer do que uma disciplina frutuosa”.

Referências

BARTHES, Roland. La préparation du roman: notes de cours et de séminaires au Collège de France, 1978-1979 e 1979-1980. Texto estabelecido, anotado e apresentado por Nathalie Léger. Paris: Seuil; Imec, 2003.

______. Comment vivre ensemble. Paris: Seuil; IMEC, 2002a.

______. Le neutre. Paris: Seuil; IMEC, 2002b.

______. Sollers écrivain. Paris: Seuil, 1979.

LE ROMAN de Roland Barthes. Revue des sciences humaines, [S.l.], n. 266-267, 2002.

SCHEHADÉ, Georges. Anthologie du vers unique. Paris: Ramsay, 1977.

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BartheS, Brecht e marx1

PhiliPPe RogeR

Em 2 de dezembro de 1978, Roland Barthes inicia seu curso anual no Collège de France – curso este sobre “a Preparação do romance”, que terminará 15 meses mais tarde (e cujo texto será publicado pela Editora Seuil, em novembro de 2003). Não se sabia, naquele momento, que se tratava de seu último curso.

À guisa de introdução ao que se apresenta a partir de então, menos como uma “pesquisa” do que como uma “busca”, Barthes toma o auditório como testemunha de um desejo de renovação de seu trabalho: ele quer se libertar do retorno (e do cansaço) do Mesmo. Ora, esse desejo ou essa necessidade de ruptura ele introduz (e justifica) com um breve auto-retrato intelectual:

Eu sou de uma geração que sofreu demais a censura do sujeito, tanto pela via positivista (objetividade requisitada na história literária, triunfo da filologia), como pela via marxista (muito importante, mesmo se não parece ser mais em minha vida) (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 25).

E dando continuidade a Dante: “Nel mezzo del cammin di nostra vita”, incipt da Divina Comédia, usado por Barthes como a fórmula propiciadora de seu projeto de ruptura literária.

A cena parece simples: Barthes se afasta do cientificismo (não é a primeira vez desde O prazer do texto) e toma distância do “mi-litantismo” (o que também não é novidade). Em Roland Barthes por Roland Barthes, confessava, sob a forma ambígua de uma constatação falsamente impessoal: “numa situação histórica dada – de pessimismo e de rejeição –, toda a classe intelectual é, se não milita, virtualmente dandy” BARTHES, 2002b, t.4, p. 682). Mas o anúncio, então, se faz, ao mesmo tempo, mais íntimo e mais teatral. Barthes acredita assumir, sem remorsos, seu imaginário de sujeito (“mas valem os enganos da subjetividade que as imposturas da

1 Traduzido do francês por Maria Ruth Machado Tellows.

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Philippe Roger

objetividade”) (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 19); e anuncia (com uma palavra tomada de empréstimo a Blanchot) uma “virada de escrita” (BLANCHOT, 1969, p. xii).

Mas essa cena é realmente tão simples? Colocando em nível de igualdade o “positivismo” (que ele sempre amaldiçoou) e o “marxismo” (do qual ele se alimentou por muito tempo), como faria ele o mesmo gesto? Em O prazer do texto, quando “mostra-va seu traseiro ao Pai político” e gozava tanto a polícia marxista quanto a polícia psicanalítica, tudo se passava, afinal, em família: a vasta “família sem o familialismo” do pós-Maio de 68. Afastar o marxismo é uma coisa; outra é afastá-lo como o positivismo, pelo mesmo motivo. Barthes, aliás, não deseja que nós (seus au-ditores ou leitores) confundamos, na mesma rejeição, o que esteve muito próximo dele com o que lhe foi sempre estranho: ele logo acrescenta este inciso (conforme as leis da Figura Moussu, é entre parênteses que se trabalha o essencial). A modalização temporal está equivocada: “em minha vida” quer dizer: em minha vida “anterior” (como: “fiz grandes besteiras em minha vida”)? Ou é preciso entender: “muito importante em minha vida”, assim como essa vida, depois de tudo, prossegue seu curso, em suma: muito importante ainda em minha vida hoje, apesar das aparências, mesmo se o marxismo não é mais manifesto?

É em torno desse equívoco, deliberado, acredito eu, que vão se organizar minhas reflexões.

Comecemos, então, nós também, por um retorno ao passado, por um flash back dos anos Marx de Roland Barthes. Percorramos, rapidamente, outra vez, essa “via marxista” cuja metáfora ele opõe, em 1978, à do cammin da Divina Comédia, mas também à do tao – a Via por excelência – cuja referência onipresente vale por: saída do impasse, retomada da escrita e da vida. Ora, houve um tempo, justamente, no qual este “indo” do pensamento, Barthes o encontrava precisamente no “marxismo”. Vejamos, então, em que esse marxismo, “seu” marxismo, foi para Barthes um “caminho que anda”: um discurso importante, mas sobretudo transportante; poderíamos dizer, de uma expressão banalizada pelo marketing:

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um discurso “portador”, mas este, não no sentido banal, no qual Barthes encontra uma alavanca eufórica de inteligência do mundo.

Ser ou não ser (marxista)?

Em plena Guerra Fria, um crítico que se assina André Guérin, e que não é outro senão Jean Paulhan, o influente diretor da Nouvelle Revue Française, pressiona Roland Barthes para dizer se, afinal, ele é marxista ou não. Ira de Barthes, que trata o questionador de macarthista.

Nesse meado dos anos 50, compreende-se, entretanto, que a questão procedia.

O grau zero da escrita não é certamente o livro de um marxista ortodoxo; ele fere levemente os romancistas comunistas franceses, como A. Stil e R. Garaudy, que copiam o realismo jdanoviano; mas, apesar disso, no coração do livro, há a idéia de que somente uma transformação revolucionária da sociedade poderá fazer a escrita moderna sair do impasse no qual ela se encontra. Para toda revolução poética possível, Barthes atribui, como prioridade, uma necessária revolução política. O escritor sofre a “divisão das linguagens”. Descrevendo esta divisão com um vocabulário e de acordo com um imaginário que devem muito a Maurice Blanchot, Barthes concede a essa “divisão das linguagens” (e, conseqüente-mente, à dilaceração do escritor moderno) uma origem claramente sociopolítica.

Paralelamente, durante toda a década de 1950, a paixão predo-minante de Barthes é pelo teatro. Essa paixão toma formas bem militantes, particularmente na revista Théâtre populaire: denúncia do teatro “burguês”, corrompido e aviltado; chamado à sua “re-generação” por esse “teatro popular”, do qual Jean Vilar e outros construíram os tablados, mas ao qual Berliner Ensemble, repre-sentando Brecht, em Paris, em 1954, confere-lhe o modelo ideal.

Quanto às “pequenas mitologias”, cuja publicação em livro, em 1957, valem a Barthes uma repentina notoriedade, elas funcio-nam claramente sobre um pressuposto marxista ou marxiano: a

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convicção de que a sociedade burguesa destila permanentemente ficções ideológicas para encobrir a realidade das relações sociais. É claro que as Mitologias são também uma brilhante coletânea de besteiras, atravessada por intuições e humores pessoais; e são infinitamente mais saborosas que os pesados artigos da Nova Crítica denunciando as mentiras ideológicas capitalistas. Mas mesmo sendo frutos mais refinados, eles brotaram do mesmo solo, sustentados pelo mesmo tutor – a crítica marxista da Ideologia como reflexo e mistificação.

Até o sartrismo de Barthes, naqueles anos, o impulsiona a sus-tentar posições facilmente identificáveis por seus adversários àquelas dos “companheiros de estrada” do PCF. Quando Sartre, no momento mais forte de seu breve idílio com os comunistas, apresenta Nekrassov (uma comédia sobre um falso dissidente sovi-ético extremamente favorável às teses comunistas), um dos únicos artigos totalmente positivos, numa imprensa parisiense agitada e, às vezes, enraivecida, é assinado Roland Barthes...

Então? Pode-se concluir que o mau humor de Barthes, ao responder (ou melhor, ao se recusar a responder) a André Guérin, aliás, Jean Paulhan, é o do partidário desmascarado? Não creio.

É, antes de tudo, a impaciência de alguém que detesta a etique-tagem. A imagem que os outros lhe impõem, o Imago, Barthes experimenta-a como uma injustiça e como um sofrimento. Nada é pior para o intelectual do que ser reduzido “como uma cabeça de Jivaro”? (Espero não ter melindrado ninguém com essa metáfora amazonense.)

Mas é também a indignação do franco-atirador, em quem queremos vestir um uniforme. Barthes irrita-se com um clichê dele mesmo, que sabe ser, ao mesmo tempo, verossímil e inexato. Barthes, é preciso lembrar, é quase o único dos grandes intelectuais de es-querda, daquele período, a nunca ter aderido ao Partido Comunista. Conseqüência lógica: não o encontramos também entre o número de arrependidos ou em processo de arrependimento, famosos nos anos 70. Essa não-adesão não é uma particularidade histórica: ela

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sinaliza uma certa maneira de Barthes habitar sistemas conceituais ou ideológicos, sem aderir e, ainda menos, se identificar com eles.

Barthes foi iniciado no pensamento de Marx, no final da guerra, por um companheiro de doença, antigo voluntário e trotskista, na Espanha. Primeiro contato decisivo, reforçado por diversos encontros posteriores: Pascal Pia, Maurice Nadau, marxistas crí-ticos ou trotskisantes. Barthes será, num primeiro momento, um “dissidente”, no sentido que esta palavra possuía na França nos anos 50 e que não é o mesmo dos anos 70: chamavam-se, então, dissidentes os marxistas heterodoxos ou “críticos”, que se esforça-vam a volver as armas da crítica marxista contra o stalinismo. De maneira que podia-se dizer, sem paradoxo, que Barthes adquiriu, ao mesmo tempo, o gosto do marxismo e a dissidência intelectual. Neste sentido, esses anos de aprendizagem (e de aprendizagem do métier de crítico entre outros) esclarecem vivamente a continuação do percurso.

Vacinado, portanto, o jovem Barthes, por seus próprios inicia-dores; o que não quer dizer imunizado, como mostra o episódio do apoio a Nekrassov: se a peça é sobretudo boa, sua estética de “boulevard panfletário” é completamente contrária ao que Bar-thes defende, e sua mensagem política é um pouco fraudulenta. Daí a importância de Brecht: pois pode-se dizer, sem piada nem paradoxo, que Barthes foi salvo do stalinismo que rasteja por seu brechtismo que salta.

O que é Brecht para ele? É, primeiramente, um “deslumbramen-to” de teatro: uma fulguração de prazer diante de uma maneira de representar, de interpretar, de usar a palavra, da qual ele não tinha idéia – ele que sempre amou o teatro, que fez parte do grupo de teatro antigo da Sorbonne, antes da guerra, que escreveu seu primeiro artigo sobre “Nietzsche e a tragédia”. Diante dos atores do Berliner, Barthes apaixona-se por uma forma; não fica obcecado por uma teoria. O famoso distanciamento brechtiano não é para ele um dogma; é uma técnica de teatro que funciona, e que funcio na tão bem que sugere a idéia de uma “moral”, que Barthes chama de “moral da forma”. O que ele descobre e aprova em Brecht e

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nas técnicas de interpretação do Berliner é um teatro não “libe-rado” (Barthes detesta, no teatro, mais do que em outro lugar, a espontaneidade, a improvisação, o happening), mas libertador, visto que permite ao público decifrar por si mesmo a charada das relações sociais; um teatro engajado, mas não didático, posto que não é uma aula, mas “desengessa” o espectador.

De quê? Em princípio, e sobretudo, de todo naturalismo. Assim, o teatro pode, melhor que qualquer outra arte, imunizar contra a grande mistificação burguesa do “natural”. (Sabe-se que, para Barthes, a maior mentira ideológica consiste em fazer passar por natural o que é intrinsecamente cultural, ou seja, histórico). Mas também, sem o gesso da pregação, da doutrinação, do moralismo, da “moralina”. (Este neologismo humorístico vem do Sang Noir, de Louis Grilloux, secretário do Primeiro Congresso dos escrito-res antifascistas, em 1935, e romancista bastante esquecido nos dias de hoje). Desengessado, então, de duas mortais “moralinas”: a convencional, do teatro burguês que confunde valor e dinhei- ro; a autoritária e sacrificante da doutrinação revolucionária. A essas mistificações concorrentes o teatro brechtiano, tal como Barthes o erige como modelo, opõe a “moral de sua forma”: a justeza de seus gestus, ao mesmo tempo justo como gesto e justo como signo, pelo qual o corpo do ator traduz diretamente uma situação social, assim como um afeto pessoal. Foucault falará mais tarde de “verdade-explosão”; Barthes, desde então, situa a verdade estético-política nesse arco elétrico do teatro brechtiano que curto-circuita todo desejo de doutrinação, como toda tentativa de mistificação social. Tal teatro é capaz de driblar a naturalização burguesa e, ao mesmo tempo, frustrar o dogmatismo político.

Descoberta decisiva, portanto. Recusar em política a distinção entre o fundo e a forma (do fim e dos meios) não é um detalhe: é uma verdadeira linha divisória entre responsabilidade e demissão do intelectual. O “brechto-marxismo” de Barthes é, portanto, muito mais que teatro (ou ideologia): é o laboratório de uma reelaboração das relações entre formas artísticas e gestos ideológicos. Barthes preza a idéia de teatro político; detesta a de teatro didático: contra-

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riamente a um clichê muito difundido, o teatro de Brecht não lhe aparece como um teatro pedagógico, mas como um teatro da busca, do questionamento. E também do prazer. (Barthes retorna freqüen-temente ao gosto pronunciado de Brecht pelos Havanas – esses charutos que não são ainda um símbolo “castrista”, mas, ao con-trário, o atributo estereotipado do perfeito capitalista). O “prazer teatral” é o de uma inteligibilidade do mundo, de uma apreensão de suas relações; é também o de uma encarnação materialista em corpos portadores da fala e de materiais, luzes, coisas portadoras de sentidos. (Sabe-se que Barthes se interessou intensamente por todos os aspectos materiais do teatro e que escreveu, entre outros, um artigo sobre as doenças do traje do teatro, um outro, também, sobre as implicações ideológicas da maquiagem). Enfim, Barthes, nos anos 50, enfeita o teatro com todas as qualidades que recusa à Literatura, que lhe parece prisioneira de si mesma, alienada por seu próprio mito, escrava do “Signo que se tornou vazio” da Literatura.

Barthes, a partir de então, jogará Brecht contra todos os “realis-mos”, inclusive “socialistas”, da mesma maneira que joga Marx contra todos os “positivismos” e “historicismos”. É neste sentido que é preciso dizê-lo “brechto-marxista”: na medida em que ele não cessa de esfregar um contra o outro, como dois sílex; e de cujo entrechoque espera uma centelha.

Mas esse “brechto-marxista” não é apenas uma arma crítica apontada contra os próprios dogmatismos dos quais ela passa por inseparável. É também, e talvez sobretudo, uma “atopia intelectual”: um espaço de onde se pode falar livremente, uma zona intimamente liberada no interior de um “grande discurso”. Arrisquemos uma outra imagem: inventando esse espaço, Barthes encontra o que se pode chamar de seu “nicho ético” (como se fala em etologia de “nicho ecológico”): uma biosfera intelectual protegida por um “grande sistema tutelar” (aqui o marxismo, mais tarde a psicanálise, o estruturalismo etc.) das agressões do meio (burguês); mas também uma bolha de oxigênio privada, uma bolsa de ar respirável para o Sujeito decidido – custe o que custar – a salvar sua “particularidade” (o tema do “particular” está no

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centro dos últimos escritos e cursos; mas ele já está secretamente no coração do dispositivo organizado nos anos 50). O que Marx, Brecht, Sartre, o teatro e a lição dos “dissidentes” trouxeram para Barthes no pós-guerra foram menos “idéias” e “teorias”, enfim, “conteúdos”, do que uma “postura”: a do elétron livre no campo de um “grande sistema”. Postura que permanecerá como sua situação intelectual de predileção.

A silhueta do Barthes dos anos 50 que acabo de esboçar não é a do típico “companheiro de estrada”, então, muito prezado (e desprezado ao mesmo tempo) pelos militantes comunistas. Des-ses marxistas declarados Barthes mantém-se bem próximo; mas continua sendo (se ouso reproduzir um título famoso de Maurice Blanchot): “aquele que não os acompanhava”. Da mesma forma, nas escadarias em dupla espiral do castelo de Chambord: mesmo se subimos por elas no mesmo passo, subimos, entretanto, sepa-radamente.

O que esse passado de um pensamento esclarece das últimas fases da obra?

Primeira observação: enquanto abundam, nos escritos e cursos dos últimos anos, as referências a uma “ruptura” ardentemente dese-jada, notamos que a única ruptura brutal e definitiva no itinerário intelectual de Barthes foi a ruptura com o teatro: ou seja, não so-mente com a freqüentação do teatro, a volúpia do teatro, o interesse apaixonado pelos problemas do teatro, mas ainda com o “modelo” estético-ético forjado a partir do teatro. Não insisto na radicalidade dessa desafeição (Barthes comentou-a muitas vezes); gostaria, de preferência, de sublinhar um efeito dessa desafeição (Barthes também fez alusão a esse efeito, porém, mais discretamente): esse abandono repentino, essa cortina cerrada deixaram para sempre intacta “a iluminação do Berliner” como programa ou utopia de uma estética política justa. O “brechtismo” (tal como Barthes dele se apropriou) tira sua força fantasmática, como modelo, do fato de que ele reconduz a uma experiência única (as representações do Berliner em Paris), não reiterável (Barthes é muito duro com as

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representações francesas de Brecht), inalterável, portanto, como cena primitiva erigida em tipo-ideal.

Segunda observação: o “marxismo” de Barthes, além de se be-neficiar dessa espécie de imunidade imaginária que lhe conferia sua ligação indissolúvel com a revelação brechtiana, nunca foi o objeto, para Barthes, de uma “renúncia” com seu cortejo de consciên cia pesada e de excesso em compensação. E isso, por uma dupla razão (ou por duas razões que se encaixam): a primeira é que Barthes sempre recusou a descrição do marxismo como uma Igreja (ele se insurgiu contra essa metáfora, num curioso artigo de 1951: “O marxismo é uma Igreja?”); a segunda é que dessa não-Igreja, já foi dito, ele nunca foi membro, nem adepto, nem mesmo postulante.

Mas, se essa “inocência histórica” do sujeito Barthes esclarece em parte a serenidade de suas referências constantes a Marx e ao socialismo, até o final de sua vida (no momento em que “o efeito Soljénytsine” está mudando profundamente a paisagem intelectual francesa), é preciso acrescentar também que, contrariamente a outros “sistemas fortes” adotados e depois rejeitados, o “brechto--marxismo” permanecerá, em Barthes, como uma referência sempre disponível, freqüentemente evocada (muitas vezes ainda no último Curso no Collège de France), enfim: uma postulação (se não uma convicção) intacta. Por que esse privilégio? Não, creio eu, porque o “brechto-marxismo” seria um sistema “mais forte” que os outros (ao contrário); mas porque ele é a matriz formal da crítica indissoluvelmente semiológica e social que Barthes adotou, “inventada” nos anos 50, e à qual ele, de fato, jamais renunciou. Molde originário dessa Crítica, o “brechto-marxismo” de Barthes não pode se tornar seu objeto. Protegido da insipidez e da “de-tumescência”, pelo congelamento súbito do desejo (visto que o Novo Romance, por exemplo, terá o tempo de “apodrecer” como uma fruta velha, a psicanálise de se repensar, a narratologia de disparatar e a Teoria do texto de exceder), o “brechto-marxismo” de Barthes guardará para ele, até o fim, seu frescor fundador e o atrativo “adâmico” da língua materna crítica de Barthes.

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Os anos “Teoria” que sucedem os anos Marx exigiriam uma des-crição minuciosa. Digamos, bem rapidamente, que uma figura os rege, que retorna (é, aliás, sua natureza) cada vez mais valorizada nos textos de Barthes: a figura da espiral. Sem me deter na espiral (falei sobre ela no catálogo R/B, da exposição que se deu este ano (2003) no Beaubourg), gostaria de lembrar sua insistência e, sobretudo, propor uma interpretação.

Sabe-se que Barthes toma de empréstimo, de Vico, a sua espiral, via Michelet (desde 1959), e que a investe de uma dupla carga pós-moderna, superpondo-a ao “eterno retorno” nietzschiano, através da releitura deleuziana de Nietzsche.

Sabe-se, pelo menos, que essa figura da espiral é impulsionada por Barthes, como uma contribuição/alternativa às proposições do marxismo. (Sua primeira aparição se dá ao final de uma homena-gem a Lucien Goldmann; uma das últimas glosas, em RB por RB, confronta o “retorno como farsa” marxista e o “retorno pelo alto” vichiano e nietzschiano). Essa figura-chave do imaginário teórico barthesiano está, portanto, amarrada à questão de Marx, de uma maneira particularmente ambígua e interessante. Por um lado, ela opõe à escatologia progressista marxista (linha implacável, apesar dos “ziguezagues”, como diz Engels) um outro esquema: tempo cíclico e, todavia, exonerado da repetição pelo “retorno a um outro lugar”. Mas, por outro lado, e mais secretamente, a es-piral barthesiana opõe seu princípio de conservação ao princípio de transformação (pela síntese dos contrários) próprio à dialética hegelo-marxiana.

(É preciso, aqui, desenvolver e mostrar que o estranho “brechto--marxismo” de Barthes se desvencilha rapidamente da dialética; se, nas Mitologias, Barthes evoca uma visão dialética do mundo, para melhor combater o monstro da tautologia ou a impostura essencialista, ele multiplica, em seguida, os distanciamentos em relação a uma forma que reflete um modelo belicoso, pugilístico do mundo, desde a dialética socrática como cerco do adversário, até o “terrorismo” do discurso militante, em relação ao qual, Barthes adverte, em Cerisy, em 1978, que esse prospera sobre o adubo

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“gaulês” de uma cultura do afrontamento verbal permanente; como pano de fundo dessas críticas filosófico-fantasmático-políticas da dialética, irrigando-as secretamente, seria preciso, ainda, evocar a recusa “selvagem” da dialética pelo sujeito amoroso, em FDA, pois o amor, sublinha Barthes, é por natureza “indialético”).

A apologia sempre mais exaltada da espiral, em Barthes, durante uma quinzena de anos, está nesses “idiotismos teóricos” que as-sinalam as tensões ou contradições que pretendem resolver. Pré--moderna em sua concepção, pós-moderna em sua formulação, a espiral permite a Barthes sempre postular uma posição mais “avan-çada”, sem “abandonar” o que se encontrará em um outro lugar, em uma outra volta da espiral: instinto de conservação e de pulsão vanguardista encontram-se aí milagrosamente conciliados, ou seja, fantasmaticamente protegidos de sua própria incompatibilidade.

Máquina engenhosa; mas máquina infernal; é estranho que Barthes tenha demorado tanto a perceber. Assim como esses carros, tão “seguros”, em que seus motoristas, confiantes demais, se matam com mais segurança, a espiral, protegendo o sujeito de qualquer perda (visto que tudo se reencontrará – um dia), o impele a lances mais altos. A espiral permite, impunemente (sem soltar nenhuma amarra, sem cortar nenhum cordão umbilical), sempre mais “di-ferença”, sempre mais atopia, enfim, sempre mais radicalidade e distância entre o sujeito e si mesmo (um si mesmo que ele será o primeiro a denunciar como ficção).

Em 1971, Barthes colocava um de seus livros “sob a proteção” dessa figura, a espiral; mas o último paradoxo da espiral é que esse emblema protetor o terá levado sempre mais longe, não a descoberto (o que seria um mal menor), mas “sob a cobertura” de grandes sistemas bem mais constrangedores, apesar das aparências, do que aqueles (sartrismo, marxismo) nos quais sua juventude havia se abrigado. Ele que soube, nos anos Marx, se guardar de qualquer “adesão” encontra-se, em meados dos nos 70, prisio-neiro de uma rede de “solidariedades” com diversas misturas de vanguarda – “solidariedades” sobre as quais ele mesmo insinua, em 1975, em Roland Barthes por Roland Barthes, que elas nem

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sempre existem sem “hipocrisia”. (A confissão é dissimulada no breve fragmento “Hipocrisia?”, no qual Barthes faz alusão a um de seus textos sobre Sollers, sem nomeá-lo: contraponto esotérico aos elogios exotéricos dispensados aos “amigos de Tel Quel” em outros fragmentos, como aquele intitulado precisamente “Tel Quel” (BARTHES, 2002b, t. 4, p. 679, 747).

Pior ainda: consciente do jogo duplo que realiza sob a “proteção” da espiral, não estando enganado a respeito da radicalidade que anuncia, Barthes realiza, então, um tipo de aceleração na radicali-zação de posições de seus amigos pós-modernos. Helène Merlin--Kajman, num livro recente, La langue est-elle fasciste? (2002, p. 45-46), retoma a famosa frase de Barthes, tão criticada, de sua aula inaugural no Collège de France: “A língua, como performance de qualquer linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. Ela sugere, não sem razão, que esse ar-rebatamento teórico é o resultado de um duplo excesso: excesso em relação à articulação de Foucault entre o poder e o discurso, Barthes “dramatizando” a teoria foucaultiana, estendendo à língua a análise que Foucault limitava cuidadosamente ao “discurso”; e excesso em relação a Saussure, visto que a língua, essa parte so-cial da linguagem, sistema ao mesmo tempo arbitrário e racional, torna-se, na Leçon, o “código” da linguagem, mas, da linguagem na medida em que já é uma “legislação”, seu “ordo”,2 ao mesmo tempo, “partilha e cominação”. De fato, é de mais longe que esta formulação controvertida chega para Barthes: a convicção, pre-sente em O grau zero da escrita, de que a dimensão da língua é a de um obstáculo para qualquer fala.

Não é sem razão que os dois momentos-choque da Leçon, as duas “pequenas frases” intencionalmente sensacionalistas, sejam: de um lado, esse excesso de Barthes sobre as mais avançadas teses da pós-modernidade dos anos 70 (ao lado de Foucault, seria preciso colocar Deleuze, do qual Barthes ampliará livremente a oposição

2 Ordo: calendário litúrgico que compreende as diversas partes do ano litúrgico da Igreja universal e de uma Igreja ou de uma ordem particular (Traduzido do Dicionário Petit Robert 1, 1987).

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língua majoritária/língua minoritária, vinda de Kafka, e já “distor-cida”, é verdade, em Mille Plateaux, pelo próprio Deleuze e seu cúmplice Guattari); e, de outro lado, o famoso enunciado de seu credo literário: “se, não sei por que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas, menos uma, devessem ser expulsas do ensino, é a disciplina literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão apresentadas no monumento literário” (BARTHES, 2002a, t. 5, p. 433).

Pequena emoção de época (menos durável que a provocada pela língua “fascista”): uma parte do público entende essa “barbárie” como uma alusão ao livro de sucesso de B. H. Lévy (do qual sabe-se que Barthes é próximo): La Barbarie à visage humain, incriminação radical do socialismo. Mas como não pensar, numa outra repercussão, no grupo Socialismo ou Barbárie, que encar-nou, nos anos Marx, uma alternativa socialista não bárbara para o stalinismo?

Vemos, portanto: em pleno elogio do “monumento literário” (e não do movimento literário...), enquanto Barthes, a partir de então, orienta-se para uma semiologia impura guiada pelo “fantasma pessoal”, enquanto começa sua busca ativa de uma Forma em ruptura de metalinguagem, há um espectro que assombra ainda sua busca: o espectro do “brechto-marxista” fundador, do qual Barthes decididamente não abandonou nem a linguagem, nem o gesto. Assim, reencontramos, no desenrolar do último curso, o imutável gestus brechtiano, que se tornou o mais inesperado dos intermediários entre o haicai japonês e a narrativa ocidental (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 135); ou, ainda, mais inesperado, uma menção da peça eminentemente política de Michel Vinaver, Aujourd’hui ou les Coréens (defendida por Barthes, em 1956), que retorna, em 1979, para ilustrar, não um “engajamento” teatral (contra a guerra da Coréia), mas “a aquiescência do que é”, auge nietzscheo-zen dos novos valores barthesianos e a “rarefação do Ideológico”, que Barthes descreve (sempre em 1979) como uma volúpia “quase embriagante, tanto ela provoca euforia e pacifica” (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 110). Até o próprio “socialismo”

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é novamente evocado: “Seria o próprio sentido do Socialismo mudar esta natureza, esta Normalidade”, onde a vida humana é apenas a laboriosa rotina de sua própria recondução; “o que é preciso arrancar”, acrescenta Barthes, num léxico perfeitamente militante, “é o resto, o excesso, o luxo” – as rosas, dizia Marx, e não somente o pão.

Não é menos significativo que, nesse último curso, misturam--se solidariamente reminiscências marxistas e “reclamação” da Literatura. Tudo se passa como se Barthes, agitando o jugo auto--imposto das solidariedades vanguardistas, assumisse plenamente sua inapetência pela nova cultura pós-moderna, de que ele passa a suspeitar que seja reciclagem intelectual da cultura vendável de massa. Sua contra-ofensiva intempestiva não possui, hoje, nada de démodé. Ela se reencontraria, por exemplo, com a crítica amarga do pós-modernismo de um Slavoj Zizek (2002). Barthes (re)encontraria aí, ainda melhor, suas marcas, colocadas por ele discretamente, as estacas na margem de sua busca do Romance. O último Curso, de fato, não é uma busca egotista (“Como eu poderia eventualmente escrever alguns de meus livros futuros”...); é uma meditação sobre as novas condições de impossibilidade propostas à Literatura. Novas: quer dizer totalmente diferentes daquelas que eram objeto do Grau zero da escrita.

Nos anos do pós-guerra, a Literatura era descrita como tomada de impedimento, a “obra-prima moderna” decretada “impossível”. Ao menos, havia um culpado, claramente identificado: a sociedade de classes reconduzindo a “divisão das linguagens”. Portanto, um remédio: seu próprio desaparecimento. Toda ambigüidade do Grau zero da escrita é deixar entrever, na noite obscura da impossibilidade blanchotiana, escapes “adâmicos” em direção a uma linguagem entregue a seu “frescor”, pela revolução social. Esta postulação terá constituído o contínuo dos textos de Barthes durante 20 anos, a “Revolução de Maio” e, sobretudo, o discurso revolucionarista do pós-Maio trazendo-lhe uma caução inesperada.

Os Cursos de 78 a 80 são também assombrados pela Morte da literatura: “Alguma coisa ronda nossa História: a Morte da litera-

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tura; isto erra em torno de nós; é preciso olhar este fantasma de frente [...]” (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 49). Como prova a própria imagem empregada por Barthes, longe desse “fantasma” de sombra estimada, há, sempre ameaçada de desaparecimento, Literatura-Eurídice dos anos 50 – essa Eurídice que, justamente, conforme o mito grego, o escritor não podia, nem devia “olhar de frente”, salvo para vê-la desaparecer. Eis chegado (em 1978) o tempo dos assassinos. Eurídice não morre mais, não re-morre mais da inabilidade amorosa e trágica de Orfeu; ela é enviada, executada sem frases, como no canto de um bosque, nesta floresta de ban-didos que se tornou “nossa História”. À figura desconcertante de Orfeu e ao mito dilacerante de Eurídice sucede a silhueta patética e insignificante de Cassandra: “A literatura libera incessantemente uma Crítica dos Discursos que não é ouvida [...]”, nota Barthes (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 376) e acrescenta, lapidar, essa pedra sobre o túmulo do escritor: “Escritor: espécie de Cassandra do passado e do presente; verdadeiro e jamais acreditado; vã tes-temunha do Eterno recomeço.” Ao escritor-Cassandra a sociedade não opõe mais sua hostilidade; somente a obtusa indiferença de um: “fale sempre!”

Novo esquema, portanto, radicalmente diferente do primeiro. A Literatura não perece por causa dos escritores, paralisados por uma contradição que poderia acabar, que acabará, talvez, com a revolução – e que, por ser funesta, não deixa de ser fecunda (como atesta a obra de Blanchot). Ela é traída, vendida, ridicula-rizada, liquidada pela própria História. Ela morre vítima de uma mudança de direção da espiral que se tornou descendente. Não somente o melhor não aconteceu, mas o pior aconteceu: primo, desaparecimento do “proletariado” como idéia reguladora; se-cundo, “ascensão, desabrochar da pequena burguesia na cultura” (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 364); tercio, abandono definitivo da Cultura pela Burguesia (“a literatura não é mais mantida pelas classes ricas”, p. 365) e “delegação” do poder cultural à pequena burguesia, que a Burguesia “recompensa”, dessa forma, por aceitar sua hegemonia social.

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Assim, a batalha estava historicamente perdida há muito tempo. Desde quando, exatamente? Desde 1848, sem dúvida, março de 1848, precisa Barthes, esse último momento de aliança entre o proletariado e a pequena burguesia. A esta pequena burguesia, ressalta Barthes, “Marx havia designado o papel de pivô, a propó-sito da Revolução de 1848” (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 364). As voltas em torno desse pivô, desde 1848, foram quase sempre dadas para o lado ruim. Mas, doravante, nesse final do século XX, só poderão ser dadas para o lado ruim. Ou melhor, elas já foram efetuadas definitivamente para o lado da burguesia, pela simples e boa razão de que o proletariado nos países capitalistas avançados é sociologicamente evanescente e ideologicamente decadente. (Esse proletariado anulado como chave da nova situação de clas-se encontra-se, também, em Zizek: “o proletariado de Marx não pode mais ser definido positivamente, a partir de uma posição na relação de produção, mas, de preferência, a partir de uma relação fundamental de privação [...ele] tornou-se concretamente um princípio negativo, a ‘não-classe dentre as classes’, mais que um grupamento de indivíduos com qualidades semelhantes”.3

Daí a estranha paisagem do último Curso e sua iluminação cre-puscular.

Por um lado, uma carga excitada, quase maníaca, contra o mundo tal qual ele é; um furor de “policarpismo”; uma violência verbal ra-ramente atingida por Barthes, mesmo pelo viés da citação (a “maré de merda”, da qual falava Flaubert e que Barthes aplica à cultura da mídia e da “eterna Reportagem”) (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 374); uma raiva, uma amargura que contrastam violentamente com a zombaria triunfante das pequenas mitologias, saídas da pena de um escritor “historicamente feliz”. O próprio Brecht, no Casa-mento dos pequeno burgueses, parece ingênuo ao lado de Barthes, obstinado em descrever a ignomínia do lupanar burguês, desde que a pequena burguesia tem, nele, função de sub-proprietária...

Por outro lado, uma meditação solitária, ou melhor, isolada, sobre a Literatura a prezar, salvaguardar, perpetuar: que é preciso amar

3 Laurent Jeanpierre postface à SLAVOJ (2002, p. 121).

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Barthes, Brecht e Marx

porque é bela, que é preciso defender porque está só. Defender, portanto, Kafka, certamente, o solitário por excelência. Defender também Flaubert, clamans in deserto, não como misantropo, mas como “misocrono”, que odeia seu tempo. Defender Mallarmé, “republicano e grevista”, lembra Barthes, e “em literatura, aris-tocrata refinado” (BARTHES; LÉGER, 2003, p. 382). Defender Pascal, em quem, num retorno revelador, Barthes reconhece, a partir de então, a “verdade da forma” (p. 353) – o mesmo que fazia o preço e o valor de Brecht! Defender os Clássicos, não somente pelo prazer que eles dão (como escrevia o jovem Barthes num de seus primeiros artigos), mas porque a forma clássica é “uma forma que o desenrolar e a inversão da História estão tornando nova” e que, pelo mesmo movimento, o “escrever-bem”, a língua “respeitada” e “observada” tende a se tornar, paradoxalmente, a língua minoritária, excluída e humilhada.

Se esse Barthes pode parecer bem diferente do polemista impetuo-so dos anos ascendentes, ele não lhe é estranho, entretanto, nem por suas paixões, nem por suas repugnâncias. Mas, em “uma situação histórica de pessimismo e de rejeição”, a hora não é mais para a ofensiva, mas para a Resistência e para a Secessão, que é também uma forma de resistência. Os cursos precedentes, sobre o Neutro e o Viver-juntos já exploravam formas possíveis de autodefesa do Sujeito, modalizações históricas ou utópicas de resistência ou de depreciação – diversos cenobitismos em relação ao “não-querer--compreender”. Talvez, o segredo dessas últimas reflexões deixa-das por Roland Barthes seja associar seu “amor avassalador pela Literatura” a uma nova análise, crepuscular, das relações sociais, de maneira que o escritor, buscando a via da obra no “cume de seu particular” (como ele diz de uma fórmula muito bela a respeito de Proust), possa, então, fazê-lo não somente sem falsa vergonha, nem má fé, mas com a enraivecida convicção de que a Obra vindoura, recolhendo amorosamente os sofrimentos daqueles que viveram a fim de não “morrerem por nada”, e oferecendo asilo e santuário à língua molestada, assuma, de fato, uma só e mesma tarefa que pode resumir essa palavra, muito estranha, que está no centro da conferência sobre Proust, de 1978: a palavra Cáritas.

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Referências

BARTHES, Roland ; LÉGER, Nathalie. La préparation du roman: notes de cours et de séminaires au Collège de France, 1978-1979 e 1979-1980. Texto estabelecido, anotado e apresentado por Nathalie Léger. Paris: Seuil; Imec, 2003.

______. Le degré zero de l’écriture. Paris: Seuil, 1953.

______. Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973.

______. Leçon. In: ______. Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 2002a. t. 5.

______. Mythologies. Paris: Seuil, 1957.

______. Roland Barthes par Roland Barthes. In: ______. Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 2002b. t. 4.

BLANCHOT, Maurice. L’Entretien infini. Paris: Gallimard, 1969.

DEULEUZE, G.; GATTARI, F. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.

LÉVY, B.-H. La baraire à visage humain. Paris: Grasset et Fas-quelle,1997.

MERLIN-KAJMAN. La langue est-elle fasciste? Paris: Seuil, 2002.

SLAVOJ, Zizek. Le Spectre rôde toujours: actualité du Manifeste communiste. Paris: Nautilus, 2002.

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retrato de roland BartheS em Don Juan1

fRançoise gaillaRD

Uma das vaidades que o discurso acadêmico ou ensaísta inventou foi o adendo. O adendo tem um encanto erudito meio fora de moda, que não teria desagradado a Roland Barthes, embora ele mesmo só o tenha usado muito raramente. Mas o adendo possui ainda uma ou-tra virtude, bem mais barthesiana, a de demonstrar. “Demonstrar” é a expressão que Roland Barthes utiliza para pontuar os lugares do discurso nos quais a função sinalética é mais importante que a significação. O exemplo que ele dá dessa “demonstração” é o da retórica revolucionária do panfleto, do populista e enraivecido Hébert. Como vocês devem se lembrar, é na introdução do Grau zero da escritura: “Hébert nunca começava um número do Père Duchêne sem colocar alguns ‘diabos’ e alguns ‘bugres’”. Essas grosserias não significavam nada, mas elas sinalizavam. O quê? Toda uma situação revolucionária.” À diferença dos “diabos” e dos “bugres” de Hébert, a citação geralmente escolhida para ser-vir de adendo tem uma significação intrínseca. Ela significa. Ela até significa poderosamente. É a razão pela qual ele a escolheu. Mas o adendo é uma operação perversa que se apóia no sentido para transformá-lo em sinal. Em sinal de quê? Em sinal de uma conivência. Essa conivência aqui é filosófica. Meus dois adendos não fogem à regra. Eles assinalam. Assinalam o quê? Assinalam ao mesmo tempo uma posição filosófica e o lugar que, a meu ver, Roland Barthes aí ocupa. Em outras palavras, elas servem para demonstrar:

Para quem pergunta – “para que serve a filosofia?” – é preciso responder: a quem pode interessar, a não ser que seja para criar a imagem de um homem livre, para denunciar todas as forças que precisam do mito e da perturbação da alma para assentar seu poder? (DELEUZE, 1969).

Quando é que todas as sombras de Deus deixarão de nos obscurecer? (NIETZCHE, 1989).

1 Traduzido do francês por Maria Cristina Batalha

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Difícil falar de Roland Barthes. Nunca tomamos a distância correta. Estamos perto demais, em uma empatia que nos leva à paráfrase. Estamos longe demais, em uma incompreensão que beira a recusa. Estamos junto do homem que conhecemos e muitas vezes amamos, mas, doravante, nos sentimos ao mesmo tempo longe do pensador do qual rejeitamos certos compromissos intelectuais (seria melhor dizermos um certo excesso ou uma certa radicalidade teóricos, como o artigo – amplamente mal-interpretado – sobre a morte do autor, ou a análise da novela de Balzac – Sarrasine – o famoso S/Z, recentemente destruído por Thomas Pavel e Claude Brémond). Ou então nos sentimos longe do homem que permanece um es-trangeiro (o teríamos apreciado humanamente?), e, no entanto, com o qual continuamos a compartilhar a moral da inteligência que só conhece a busca permanente de significação. Lembremos desse fragmento do Roland Barthes par Roland Barthes, que eu aprecio particularmente, por encontrá-lo aí da mesma maneira que ele encontrou sua mãe na modesta fotografia do jardim de inverno: “Paixão constante (e ilusória) de acrescentar a qualquer fato, até o mais insignificante, não a questão da criança: por quê?, mas a questão do antigo grego, a questão do sentido, como se todas as coisas pulsassem de sentido: o que que isso quer dizer” (precisaríamos ler a totalidade do fragmento; eu vou oferecê-lo a vocês, como sobremesa, ao final de minha intervenção, como “o melhor da festa”, como costumamos dizer). A distância correta, tudo depende disso. Esse foi um problema para Berthold Brecht. Ele fez uma teoria a respeito. Foi uma preocupação para Roland Barthes. Hoje, é um desafio para o barthesiano. E, como que para complicar essa tarefa, Roland Barthes nos manifestou seu desa-grado a respeito de qualquer palavra que se associe a seu nome ou a sua pessoa. Portanto, toda vez em que me encontro na situação de ter de falar dele, não posso deixar de pensar naquilo que ele parece ter escrito, de propósito, para as pessoas que, como eu, ou-sam aventurar-se. O Fragmento tem como título: O adjetivo. Ele é muito conhecido. Vou, contudo, me permitir relembrá-lo a vocês:

Ele não pode suportar qualquer imagem de si mesmo, não gosta de ser nomeado. Considera que a perfeição de uma relação humana se deve a essa vacância da imagem: abolir entre si, de um para o outro, os adje-

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Retrato de Roland Barthes em Don Juan

tivos; uma relação que se adjetiva está do lado da imagem, do lado da dominação, da morte.

Ele gostaria, sem a menor dúvida, de abolir também o comentário, que é a forma distendida do adjetivo desprezado, uma maneira acadêmica de adjetivação e, por conseguinte, de uma morte erudita. Teria querido ele com isso condenar-nos ao silêncio? O oukase é um gênero pouco barthesiano. E, em última instância, não é dele que eu sempre falei, mas de um pensamento cuja força viva não deve temer o caráter mortífero da objetivação. Esse pensamento, eu teria a audácia – apesar de Roland Barthes e de sua discreta prevenção – de qualificá-lo com uma palavra (e, ainda por cima, um adjetivo): ateu. O termo é forte, talvez até violento, inesperado, sem dúvida, mas eu o arrisco. Eu arrisco sob a autoridade das duas citações colocadas em adendo, e cuja função de demonstração se esclarece agora.

Chamo de “ateu” um pensamento que, não contente em descrer de Deus (origem e fim de todas as coisas), tampouco acredita em seus substitutos metafísicos (que devemos às Luzes), como a Ra-zão, a Natureza, a Verdade que falam a favor de uma imanência de valores e de um convencionalismo do sentido. Esse ateísmo não está na moda hoje em dia, em tempos de absolutização dos valores. Entretanto, ele nunca foi tão necessário. É por isso que gostaria de escutar sua radicalidade tranqüila no texto e no discurso de Roland Barthes.

O Roland Barthes ateu não nasceu com a semiologia. Ele não saiu da leitura do Curso de Lingüística Geral de Ferdinand de Saussure, nem tampouco da leitura de “A estrutura dos mitos”, de Claude Lévi Strauss, embora tenha encontrado no paradigma estrutural e nas aventuras do signo matéria para alimentar seu ateísmo. Seu nascimento intelectual é mais antigo. Ele remonta aos primeiros escritos sobre o teatro, notadamente àqueles que ele dedicou ao repertório e às encenações do teatro nacional popular (TNP), dirigido, à época, por Jean Vilar. O Roland Barthes ateu é filho do Don Juan de Molière. Para esclarecer: do Don Juan de Molière montado e interpretado por Jean Vilar. Ele tem, na história

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do pensamento, outros ancestrais de prestígio, mas, se insisto no parentesco com Don Juan, é simplesmente porque a confissão (ou quase confissão) de sua filiação ao pensamento ateu, ele a fez em dois artigos escritos, ambos, na saída de uma representação da peça. Don Juan/Roland Barthes: a relação é surpreendente, devo admitir. Sobretudo não queiram ver nessa filiação longínqua uma possível alusão a um suposto donjuanismo de espírito, que teria levado Roland Barthes a flertar com inúmeros objetos e trocar de amor a cada livro. Seria fácil, mas falso. Fácil porque significaria nos contentarmos com a lista dos milhares de assuntos de seu inte-resse intelectual para concluir sobre sua inconstância propriamente donjuanesca. Falso, porque Roland Barthes, assim como Don Juan, é muito fiel, fiel aos princípios estruturantes de seu pensamento, que já estão colocados desde o início dos anos 50, anos do Grau zero da escritura, das Mitologias, do Teatro popular, do Michelet. Conheço poucos pensadores tão constantes...

A aproximação entre Roland Barthes e Don Juan não é um jogo mental. Ela se impõe na leitura desses dois artigos dedicados à representação da peça de Molière pelo TNP. (Confesso aqui minha dívida com relação ao editor da coletânea de textos de Roland Barthes sobre o teatro: Jean Loup Rivière). Os dois artigos em questão são intitulados respectivamente: “Os silêncios de Don Juan” e “Don Juan” (1954). Para o meu propósito, os dois têm valor emblemático. Interpretado por Jean Vilar, Don Juan, nos explica Roland Barthes, “volta a ser uma belíssima peça de Molière, uma obra forte, plena, admiravelmente coerente, deslumbrante em audácia, nua e metálica, um desses grandes textos que são ver-dadeiramente a honra dos homens”. Por quê? Porque “passamos enfim ao procênio verdadeiro, nu, aberto solenemente, onde um ateu total e totalmente responsável apresenta-se de frente.” (Os grifos são meus). Destacaria ainda que a palavra “ateísmo” aparece oito vezes em menos de três páginas. Don Juan é o ateu, o ateu encarnado, o ateu emblemático, e Jean Vilar dirige esse ateísmo como um escândalo no coração do público. Aí reside a força do espetáculo. E daí vem também o entusiasmo de Roland Barthes. O Don Juan de Jean Vilar é, nos diz ele,

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mais dotado de certeza do que privado de crença, e essa certeza é silencio sa porque ela sente-se justificada, forte por ter colocado as razões do mundo tão longe de Deus, e que o próprio prodígio participa de um desconhecido provisório e não de um mistério eterno. Já há um pouco de Sade nesse Don Juan... .

Um Sade que pensa que, depois de ter desdivinizado Deus, é preci-so desdivinizar a Natureza, e esta é apenas um avatar do primeiro. Um Sade que recusa colocar o bem e o mal na ordem natural. Um Sade que denuncia (como o Roland Barthes das Mitologias) o álibi da natureza. Um Sade que, debochando da moral, faz do jogo do desejo uma combinatória. Em suma, um Sade barthesiano. Um Sade do Sade, Fourier, Loyola.

Quem é Don Juan? É o homem, nos diz Roland Barthes, de uma certeza, uma certeza silenciosa e forte “por ter colocado as razões do mundo tão longe de Deus”. Tão longe de Deus, quer dizer, tão longe de todas as figuras da transcendência acariciadas pelo mito, a religião, a metafísica... Tão longe, portanto, da Razão, da Natureza, da Causa... Tão longe de todas as crenças, dos referen-tes transcendentes ou maiores nos quais o homem ocidental não pára de querer colocar sentido. Tão longe de todas essas formas dissimuladas do teológico ou de seus retornos mascarados e às quais não escapa uma semiologia incapaz de optar, como Roland Barthes, pela isenção do sentido. Roland Barthes é esse Don Juan que colocou as razões do mundo tão longe de Deus que elas fica-ram sem razão, destituídas de qualquer razão que lhes dê razão. Lembrem-se, à pergunta infantil: “por quê?” Roland Barthes preferia a pergunta do antigo grego: “o que isso quer dizer?”, porque ele a entendia, não como a pergunta do sentido, mas sim como a da significação, ou seja, como a manifestação do interesse dos homens pela fabricação de sentido, e não como a expressão da busca de um sentido, do sentido do mundo... Isso vale para o texto ao qual Roland Barthes recusa a fixação de um sentido, o certo. “Uma ciência da literatura terá por objeto a inteligibilidade do texto e não seu sentido”. Em outras palavras, sua tarefa será a de descrever segundo qual lógica os sentidos são engendrados, e não a de pronunciar-se sobre o sentido de seus sentidos. Sabemos

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o quanto esse agnosticismo em matéria de comentário ou de in-terpretação literária lhe rendeu inimigos. E ainda não acabou. A resposta aos detratores da época, nós a encontramos em Crítica e Verdade (1966). Roland Barthes afirma nesse texto o jogo infinito do sentido. Qualquer sentido capturado faz surgir um outro sentido, pois a linguagem do texto. Assim como a do mundo, é plural e o instrumento menos adaptado para apreender essa pluralidade é ainda a conotação. Ele procurou administrar a prova disso em sua leitura da novela de Balzac, Sarrasine, o que resultou na publicação de S/Z. A conotação agrada a Roland Barthes a despeito do pecado de colocação de sentido que a persegue: a denotação. A conotação agrada a Roland Barthes porque, com ou sem jogo de palavras, ela desenraiza a linguagem. E Raymond Picard não se recuperou disso. Ela a arranca de um eventual pedestal de verdade, de um possível fundamento referencial. Aliás, na roda do sentido, não há mais nem denotação, nem conotação, nem sentido primeiro, nem sentido segundo, mas uma circulação livre dos sentidos em que a significação ocorre.

A significação, essa redescoberta do mundo pelo sentido a fim de torná-lo habitável para nós, homens modernos, representa, para Roland Barthes, o objeto de uma atenção e de uma interrogação constantes, e isso desde os seus primeiros escritos. “Nós sabemos hoje muito bem, escreve ele, que aquilo que separa o homem do animal não é a comunicação (os animais se comunicam muito bem), é a significação; e esse importante fato antropológico, nos-so século explora com uma paixão muito particular”. Na idade clássica, a inteligibilidade vinha às coisas pela classificação, pela colocação em quadro (Michel Foucault mostrou isso em As pala-vras e as coisas); na aurora da idade moderna, a inteligibilidade começou a vir às coisas pela história; a partir daí, será preciso incluir em sua inteligibilidade o próprio processo da significação. Todo o pensamento de Roland Barthes parte desse postulado que ele tomou para si: “Ao lado das diferentes determinações (econô-micas, históricas, psicológicas), é preciso agora prever uma outra qualidade do fato: o sentido” (o sentido e não seu sentido; o senti-do, quer dizer, sua capacidade de fazer sentido; quer dizer ainda,

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de entrar no sistema geral da significação). E esse postulado que abre para a semiologia um espaço de exploração que se estende ao conjunto das práticas humanas (lembrem-se: “Se as tarefas da semiologia não param de crescer, é que, de fato, nós descobrimos cada vez mais a importância e a extensão da significação no modo de pensar do mundo moderno, um pouco como o ‘fato’ constituiu precedentemente a unidade da reflexão da ciência positiva”) não é destituído de conseqüência para o teórico, para aquele que ele prefere chamar modestamente, quando se trata de si próprio, “o amador de signos”. Uma questão “se apresenta incessantemente” para este último: “como os homens fabricam sentido? como o sentido vem aos homens?”.

A significação é um objeto de estudo para o Roland Barthes pensador, e eu ousaria dizer, filósofo. A significação é também o objeto de seu maior júbilo intelectual. A significação é a zona erógena de sua inteligência. Pois, trazidas à pura positividade dos signos, à pura positividade dos códigos, as coisas no mundo tornam-se também assim objetos de puro gozo, livres de qualquer inquietação metafísica; tornam-se objetos de alegria sensual livre, experimentada na exploração do diverso. Foi a significação que ele foi buscar no teatro. Foi ela que ele pensou encontrar na tragédia antiga (“a tragédia antiga trabalha para fazer com que signos de emoção sejam lidos, mais do que para representar a emoção em si mesma; nisso ela assemelha-se ao catch”). É ela, cujo processo lhe parecia encarnado pela dramaturgia de Brecht, “que busca, não a exprimir o real, mas a significá-lo”. Em Brecht, a significação trabalha na demonstração, isto é, mais no sinal do que no signo propriamente dito, ou então no signo produzido e tomado em uma sinalética. Essa concepção do signo só poderia estar sintonizada com as expectativas de Roland Barthes que confessou que, no fundo, a ciência que ele desejava, na qual ele acreditava, não era uma semiologia (sem dúvida porque esta última permanecia tributária demais de um idéia de um referente maior, de um Ur signo ou de um metassigno, garantia da semiosis), mas uma sina-lética, quer dizer, um jogo ou um sistema de signos sem o álibi referencial; no fundo, uma semiologia atéia. Sobretudo porque ele

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conhece os efeitos sísmicos que uma tal semiologia produz. “O teatro de Brecht é um teatro do signo, mas essa semiologia é uma sismologia”, e cabe a nós acrescentar que o teatro de Brecht é uma sismologia precisamente porque é um teatro do signo, o teatro de uma semiologia atéia. Don Juan, Don Juan encarnado por Jean Vilar e interpretado por Roland Barthes, teria gostado desse signo que não sinaliza nada senão ele mesmo, nada além dele mesmo e que limita-se – e não é pouco! – a “ser o princípio gerador de todas as relações, de todas as formas possíveis”.

Roland Barthes, de uma certa maneira, antecipa a reflexão de Gilles Deleuze para quem a sinalética teatral tem o poder de produzir um efeito, não mais no sentido causal, mas no sentido de “signo” saído de um processo de sinalização. O filósofo também vê nisso uma depreciação da metafísica que envolve o pensamento do signo.

A causa, ou melhor, a idéia da causalidade, essa necessidade de referir-se a uma instância original que seja, ao mesmo tempo, uma instância de verdade, é o inimigo do ateísmo do pensamento, do qual o Don Juan de Molière é uma das encarnações mais fortes. Mas, antes dele, os sofistas Górgias e Protágoras; mas também Lucrécio; mas também Spinoza; mas também Hume; mas também Nietzche – e sobretudo Nietzche a quem devemos essa confissão em O prazer do texto: “J´avais la tête pleine de Nietzche –; mas também Barthes... Deleuze..., a lista não é exaustiva, mas de qualquer maneira, ela não seria assim tão longa... O ateísmo do pensamento é uma coisa rara. Para essa filosofia, chamada clas-sicamente de “anti Natureza” e que permanece eminentemente racional, o signo é um objeto ideal, pois, no dizer de Roland Barthes, “é possível denunciar-lhe ou celebrar-lhe o arbitrário; é possível desfrutar dos códigos e imaginar, com nostalgia, que um dia eles serão abolidos: tal um outsider intermitente, eu posso entrar ou sair da socialidade pesada, conforme meu humor – de inserção ou de distância”.

Em um breve artigo publicado no Corriere della Sera, em 1969, Roland Barthes enumera dez razões para escrever. Elas são, como já era de se prever, ecléticas, passando do humor aos humores,

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da frivolidade à reflexão filosófica. Em primeiro lugar na lista, é claro, o prazer, mas, na décima e última posição (lugar de eleição tanto quanto o primeiro), ele escreve: “Para desmascarar a idéia, o ídolo, o fetiche da Determinação Única, da Causa (Causalidade e “boa causa”) e credenciar assim o valor de uma atividade pluralista, sem causalidade, finalidade, nem generalidade, tal como o próprio texto.” “Sem causalidade, nem finalidade”, essa é uma tomada de posição filosófica. Eu já havia indicado que essa tomada de posição tinha predecessores ilustres. Aqui, Roland Barthes limita, como sempre, seu alcance, ou sua validade, simplesmente ao texto. Devemos então falar a respeito de um ateísmo reduzido ao único pensamento do texto? Seria não compreender nada do horizonte filosófico sobre o qual se pode tirar sua reflexão sobre o texto.

Mallarmé desejava que o mundo se realizasse em um livro. Roland Barthes pensa que o texto é como o mundo, e ele pensa neles, tanto num como no outro, fora de qualquer metafísica da causa e da finalidade, fora de qualquer metafísica da origem e do fim. Isso pode desagradar. Mas aí reside sua maior subversão. Aí reside o lugar daquilo que chamei de radicalidade tranqüila de seu ateísmo. Aí está também o sentido do lugar de seu (único?) verda-deiro compromisso: o signo. Alguns dirão que, sobre o texto, ele enganou-se, pois este tem uma origem que se chama autor, e um fim, que se chama intencionalidade, mas não são essas evidências que Roland Barthes combatia. O desafio filosófico de seu traba-lho de desconstrução era de um outro alcance. Da mesma forma, qualquer processo que pudéssemos levantar contra ele na base de uma leitura tão ingênua, não iria muito longe. Infelizmente, isso foi feito muitas vezes! Roland Barthes só se levantava contra a crença da crítica, clássica na ocasião, em uma relação de transparência entre o sujeito e a linguagem. Ele teve a audácia de afirmar que, já que era o sujeito que entrava na linguagem, e não o contrário, o sujeito estava sempre destinado a não dar certo, nem na, nem pela linguagem, e que a literatura era a marca escrita desse encontro im-possível. Ideologema de época? Não estou certa. Eu tenderia, mais uma vez, para uma manifestação de seu ateísmo do pensamento.

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Mas, voltemos a Don Juan. Aquilo que ele recusa é menos este ou aquele objeto de crença (no caso, Deus), do que a crença em si mesma, e se seu catecismo reduz-se a dois e dois são quatro, é que se trata de um dado fundado na convenção, e não em uma profissão de fé, mesmo que esta estivesse assentada na razão. Don Juan é um descrente na crença. Ele se recusa a crer que deve (ou que possa) haver crença. Roland Barthes também recusa não esse ou aquele conteúdo da crença (por exemplo, a crença na pos-sibilidade de que o sabão Omo lave mais branco), mas a crença como forma não crítica de adesão a um pensamento, a um mito, a um objeto. Ele sabe, o que já sabia Hume quando criticava as Luzes por ter substituído Deus pela Natureza e a Providência pelo Progresso, que, como toda crença se define, não por um conteúdo, mas por um modo de envolvimento, pode-se prever que qualquer destruição de crença levará à substituição de uma crença nova que terá a ver com um novo conteúdo/objeto, uma mesma maneira de crer. (Quantos intelectuais de renome nos deram a prova disso, trocando uma crença pela outra e mudando de causa, não ao sabor das modas como poderíamos facilmente concluir, mas ao sa- bor de sua novas certezas). É a razão pela qual Roland Barthes não procura jamais destruir, mas sim subverter, impedir que ela “pegue”, que se coagule, que se cristalize. A burrice, seu proble-ma, não é um caso de falta de inteligência, ou de conteúdos de pensamento burros, não, é um caso de modo de adesão. Um caso de consistência, assim como a verdade. “Então, aquele que não suporta a consistência, fecha-se em uma ética da verdade; solta a palavra, a frase, a idéia, assim que eles a captam, e passam ao esta-do sólido de estereótipo (stereos quer dizer sólido). Compreende-se por que um tal ateísmo tenha sido incompatível com a militância. E como a época pensava o engajamento político sob o signo da militância, entendemos porque ele escreveu – não sem malícia, em um dos fragmentos do Roland Barthes por Roland Barthes – que, politicamente, ele amargou dificuldades a vida toda.

Isso leva a desenvolver uma outra estratégia: nunca entrar em confronto direto com os objetos de crença de uma sociedade, pois a crença ficaria salvaguardada, mas sim abalar seus modos de re-

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presentação. Atacar a crença como reflexo, e não como conteúdo. Roland Barthes dedicou-se a essa tarefa desde muito cedo. Ao con-trário de Voltaire, cujo combate contra a infâmia contribuirá para instalar (e substituir) a ilusão metafísica que se chama Natureza. A Natureza é a outra guerra de Roland Barthes, que vê nessa ilusão filosófica a recondução do teológico. É preciso sublinhar que não se trata da natureza em seu sentido ordinário de: simples estado das coisas (embora essa afirmação já seja em si mesma suspeita, pois ela supõe a crença na idéia que as coisas são dotadas de um estado), mas em sentido metafísico (muitas vezes mascarado pela aparente simplicidade ou banalidade dos pretextos para reflexão como nas Mitologias); de: razão de ser o que é; razão de ser o que é como é. Em outras palavras, a Natureza como crença na idéia que as coisas têm uma razão da qual a Natureza é precisamente a razão. Tradução popular: é assim porque é assim, argumento de autoridade de qualquer pensamento que se funde na natureza como princípio e que reforce o sentimento da evidência dos valores, dos usos, das crenças. Contra essa Natureza/álibi do pensamento preguiçoso (do lado oposto ao do pensamento crítico) um único método: praticar a desnaturação, e nós sabemos quanto Roland Barthes levou a sério essa tarefa em todos, insisto, todos os seus escritos. Desde os artigos sobre o teatro, ele louvava Brecht por praticar uma dramaturgia, não da imitação da natureza (pseudo-physis), mas da convenção (antiphysis). Tratava-se então de seu tratamento dos signos no teatro, mas esse elogio assenta-se, para Roland Barthes, na denegação silenciosa da idéia de natureza cujas raízes filosóficas remontam aos Sofistas. Protágoras, assim como Górgias, como se sabe, trocaram a idéia de natureza pela de convenção, substituindo a filosofia da physis pela de nomos. No sentido social, que é o que interessa a Roland Barthes porque ele trabalha sobre os objetos doutrinários e sobre os produtos da cultura, a convenção é a ordem institucional e habitual, em suma, é o depósito de sentido constituído ao longo da história. “Sob a Natureza, repetia incessantemente Roland Barthes, descubram a História” ou, “não devemos nada à natureza, tudo é histórico”, ou ainda, a respeito da máxima: “ela é um enunciado do qual se

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subtrai a História: fica o bluff da Natureza”. Como pano de fundo do trabalho de Roland Barthes, um ateísmo, o de Lucrécio, do qual todo o De natura rerum visa provar que não há uma natu-reza das coisas. Afirmação que desautoriza de antemão qualquer pensamento da natureza como princípio e como referente maior. Todo discurso de desmistificação do processo de naturalização dos valores ou dos objetos de crença, todo discurso então de desnatu-ração de uma visão de mundo é, por definição, ateu.

Nada de natureza! Somente a ordem habitual, é exatamente o que pensava Montaigne, criticando a idéia de natureza e a substituindo pela de costume. É exatamente o que pensava Pascal: “O que são os nossos princípios naturais senão nossos princípios costumei-ros?”, acrescentando para reforçar: “[...] eu tenho muito medo que a natureza não seja, ela própria, senão um primeiro costume, como o costume é uma segunda natureza”. O costume, o nome é fora de moda na era da semiologia; é preferível a noção de código cultural. Não importa. Costume ou código cultural enfeitaram-se com as bandeiras da Natureza. Uma tarefa se desenha então para o intelectual crítico: “quebrar o costume”, em primeiro lugar, revelando sua verdadeira natureza de costume por uma inversão natureza/história (foi o que ele fez em Mitologias); em segundo lugar, abrindo uma fissura no discurso que o enuncia (foi o objeto de seu trabalho crítico e semiológico, pois, não nos deixemos en-ganar, ele fez apenas um!). “Quebrar o costume é primeiramente quebrar a máxima ‘o estereótipo’: sob a regra, descubra o abuso; sob a máxima, descubra o encadeamento; sob a Natureza, descu-bra a História”. Trata-se de desfazer nosso real, sobretudo onde ele “pega”: no discurso da doxa; sobretudo onde ele se constrói; na ordem da língua. Já fiz alusão à lição inaugural no Collège de France, onde isso se enunciou de forma intencionalmente provocante. Compreende-se que o contato com uma língua des-conhecida por ele, como o japonês, o tenha encantado, pois ela impõe outros recortes, outras sintaxes, outras posições do sujeito capazes de fazer vacilar em nós todo o ocidente, toda uma cultura, a nossa, que, ao longo dos tempos, transformou-se em natureza. O Japão lhe agrada também porque ele pratica o abalo do sentido e

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sabemos que gostaria que o semiólogo se tornasse, como Berthold Brecht, um sismólogo. Além disso, o Japão lhe oferece um signo que não deve mais nada aos resquícios teológicos da lógica de Port-Royal; um signo saído da metafísica da presença; um signo que exibe seu caráter convencional, sem maquiagem, sem engodo, sem máscara; um signo liberto de qualquer garantia de sentido; um signo proposto à única inteligência que Roland Barthes sabe (privilégio do ateu) que não penetrará na ordem do mundo, mas precisamente (e somente), na ordem dos signos; um signo que trabalha na imanência indicativa e que, por isso mesmo, está mais próximo do sinal, como na tragédia grega, como no teatro de Brecht, como se pode constatar: “O travesti oriental não copia a mulher, ele a significa: ele não se embebe em seu modelo, ele se destaca de seu significado: a feminilidade é mostrada para ser lida, e não para ser vista” um signo que trabalha na imanência como na utopia barthesiana de uma semiologia desteologizada, quer dizer, que saia da Norma, do Código, da Lei, e assim, como ele diz expressamente no texto que dedica ao livro de Jean-Louis Scheffer, Cenografia de um quadro, que seja oriundo da teologia.

O Japão lhe agrada porque, na contramão do movimento da metafísica ocidental, o imaginário se desenvolve nas voltas e contravoltas ao longo de um assunto vazio. O Japão lhe agrada porque tudo parte do vazio e para ele volta: “encontrar o objeto que está misturado ou o significado que está no signo é jogá-lo fora”. O Japão lhe agrada porque, no centro, não existe nada; pouco importa que esse Japão seja uma construção barthesiana, sua função no pensamento torna-se ainda mais significativa; pois Roland Barthes sonhou com uma semiologia que não tenha centro; uma semiologia, não do desvio, mas da variação; uma semiologia sem referência à Norma, ao Código, à Lei; uma semiologia que faça gravitar a significação em torno de um vazio. Não devemos esquecer que aquilo que interessou a ele no estruturalismo não foi a estrutura, mas sim a estruturação.

O vazio em torno do qual se desenvolve o jogo dos signos, em torno do qual se organiza o sentido, em torno do qual se tece a

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significação é ainda o Japão, no seu Japão imaginário, na sua utopia do pensamento ateu que ele o encontra. E esse vazio é um vazio feliz sobre o qual não se estende a sombra de um Deus mor-to. Pois esse vazio não é uma falta, falta de um grande referente escondido ou mudo; não o vazio metafísico cuja necessidade de preenchimento está na origem de qualquer pensamento religioso. Não, é um vazio cheio de signos imanentes, que encantam, porque aí se combinam o sentido e a sensualidade, o entendimento e o prazer. Essa combinação se chama significância. É uma erótica da inteligência, uma inteligência, se preferirmos, erotizada, mas também estetizada.

Evidentemente, em matéria de erotismo e de estética, Don Juan, que recusa a transcendência, condena-se a ignorar o gozo e o subli-me, mas cultiva, até transformá-los em uma arte maior, o prazer e o gosto. Roland Barthes também. E se Don Juan tivesse escrito, ele teria escolhido o fragmento e optado, para a apresentação desses fragmentos, pela organização arbitrária, por ser convencional, que a ordem alfabética oferece. Roland Barthes fez isso. Uma coisa, no entanto, os separa. Roland Barthes nunca rompeu indiscrimi-nadamente com a religião, a sua chama-se amizade, mas ela vale pelo rito, não pela fé:

Às vezes, na literatura antiga, encontramos esta expressão aparentemente boba: a religião da amizade (fidelidade, heroísmo, ausência de sexuali-dade). Mas, já que da religião apenas a fascinação do rito subsiste, ele gostava de guardar os mínimos ritos da amizade: festejar com um amigo a liberação de uma tarefa, o afastamento de uma preocupação: a celebração valoriza o acontecimento, acrescenta a ele um suplemento inútil, um gozo perverso. Assim, por magia, esse fragmento foi escrito por último, depois de todos os outros, à maneira de uma dedicatória (3 de setembro de 1974).

Referências

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Retrato de Roland Barthes em Don Juan

______. Michelet. Paris: Seuil, 1995.

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______. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975.

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o horror à eStereotipia e o diScurSo político

João Batista natali

Brevemente eu iniciaria pela constatação meio óbvia de que somos, individualmente, uma espécie de síntese dinâmica das linguagens que nos irrigaram ao longo da vida. Tive o privilégio de ter sido, entre 1972 e 1977, orientado por Roland Barthes em minha dissertação de mestrado (A Estereotipia do Humor Político no Brasil)1 e em minha tese de doutorado de 3o ciclo (Robespierre e o Discurso da Exclusão).2 Carrego marcas constantes e profundas daquele período. Como jornalista, a linguagem para mim se tornou algo constantemente problematizável, um ponto de chegada, e não um simples ponto de partida para que a cultura, a administração pública ou a política se tornem objetos autônomos em relação ao que as constituem como sistemas de significação. Trago dentro de mim a tatuagem do signo.

Em nenhum momento, considerei que existiria um “barthesia-nismo” como corpo doutrinário ortodoxo. Se é que a palavra “barthesianismo” faz algum sentido, ela vale pelo que possui ao mesmo tempo de coerente e difuso, como postura enriquecedora porque crítica. É em nome dessa postura que procurarei alinhavar aqui algumas idéias.

Uma primeira ressalva deve ser feita: Roland Barthes demonstrava um interesse pela política meramente periférico. Considerava en-fadonho o discurso produzido pela militância ou pelo Estado. Não foi uma angulação da significação sobre a qual ele se debruçou. As exceções – citaria o teatro de Brecht, Charles Fourrier, Maio de 68 – valiam pelo que expunham de densidade semântica, de

1 Natali, João Batista. L’humour politique brésilien: analyse structurale des stéréotypes. 1973. 147 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 1973. mimeo.

2 NATALI, João Batista. Une approche sémiologique du discours révolutionnaire (Robespierre). 1976. 197 p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 1976. mimeo.

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inovação ou de transgressão. Roland Barthes, em definitivo, nunca correu atrás do signifié ou daquilo que poderia se assemelhar a uma preocupação com conteúdos.

Mas, no início de seu percurso como autor, ele flertou com algo que aguçaria a curiosidade dos interessados. O ano de publicação de Mitologias, 1957, é provavelmente também a data a partir da qual Roland Barthes passa a ser objeto de uma incessante demanda. Sua forma de cercar teoricamente certos temas (o modelo da conotação, no final dos anos 50) estimulava pesquisadores que acreditavam que a ideologia não era um simples emaranhado de representa-ções ou de significados (signifiés). No final dos anos 60 e início dos anos 70, esses pesquisadores foram em parte marcados pela procura legítima e quase obsessiva de um arcabouço teórico capaz de dissecar a ideologia fora das pertinências econômicas e socio-lógicas, mesmo porque economistas e sociólogos se mostravam ingênuos ou incapazes de pensar o significante. A filosofia estava capacitada a compreender o inter-relacionamento de significados dentro de um mesmo sistema. Mas seu interesse – a começar por Althusser, para quem a ideologia é uma forma de conhecimento pré-científico – estava voltado para outras pertinências.

Em suma, os que se interessavam pelo político (ou pela “supe-restrutura” dos mecanismos sociais de dominação de classe) se aproximavam de Roland Barthes e não o encontravam no local em que acreditavam que ele estivesse. Algo muito semelhante ao desejo do histérico. Dele havia apenas pistas, indícios. Eram, no entanto, indícios tão absurdamente enriquecedores e inovadores que algum tipo de encontro chegava fantasmaticamente a ocorrer, apesar de, insisto, Roland Barthes nele não estar presente como corpo, como voz, como texto. É um primeiro paradoxo.

Roland Barthes tinha, a meu ver, muitas razões para se manter nessa posição de “ausência ativa”. Ele desprezava a linguagem enunciada sob a ilusão da funcionalidade, do mero “comunicar-se” (a “função fática”, de Jakobson, nunca o atraiu) ou da suposta ins-trumentalidade destinada a abastecer o interlocutor de conteúdos informativos. Se o discurso chegava a esse plano, ele já estava em

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O horror à estereotipia e o discurso político

definitivo contaminado pela estereotipia ou pela verossimilhança travestida de realidade histórica. A relação de Barthes com a este-reotipia era de pura e incontível aversão. Seus objetos discursivos de prazer (desde Michelet e Racine) são de espessura semântica bem maior, singular. Noto também que Barthes foi despudorado ao enunciar e teorizar em torno de seu próprio tédio. O entusias-mo simplório do militante era-lhe epidermicamente insuportável.

Temos então, de um lado, a linguagem espessa, polissêmica, aquela em que se entrecortavam os “códigos” identificados com um valor puramente indicativo (Barthes nunca quis que ela se tornasse um modelo “teórico” de análise discursiva) por “S/Z” na novela de Balzac. De outro lado, a linguagem medíocre do estereótipo que provocava nos medíocres a auto-satisfação a partir de muito pouco.

Por conta disso, Barthes não se envolveu na dicotomia empobre-cedora que permeava a França de seus últimos dez anos de vida – com a esquerda e a direita digladiadoras e um Programa Comum de Governo que socialistas e comunistas apresentavam como a chave partidária para a felicidade social.

Pode parecer esquisito de minha parte evocar o Programa Comum neste recinto. Nos anos 70, ele estava presente nos jornais franceses com uma insistência quase obscena. Digamos, para enterrar de vez o assunto, que se trata do tema sobre o qual Roland Barthes também se mostrava ausente. Era-lhe algo despido de qualquer acesso a formas de hedonismo que a literatura, ao contrário, poderia for-necer. No seminário que ele fazia, na rue de Tournon, as eleições presidenciais de 1974 foram um tema de “eloqüente ausência”. Era então preferível se debruçar sobre o Werther de Goethe. Ou então recorrer mais uma vez a Proust. Em verdade, escapava-se da “opinião corrente” (Flaubert) e da doxa (Aristóteles) que pura e simplesmente o enojavam. Tanto quanto lhe era repulsiva a idéia de inexistência de algo intermediário entre o sim e o não, entre o masculino e o feminino, oposições nas quais se fundamentam justamente as representações ideológicas e dependentes, portanto, do verossímil.

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Surge aqui, a meu ver, um segundo paradoxo. O discurso do poder político é hegemônico na esfera pública. Rejeitá-lo enquanto tal pressupõe a adoção de uma postura interessante, “aporística”, para usar uma palavra que Barthes apreciava, e que, a meu ver, consistiu em reivindicar um “local” de convivência com a utopia. O discurso político se tornava atraente à medida que ele não transportasse em seu ventre a ilusão de uma referenciação na história real. O poder do libertino em Sade e a ausência de poder em Fourrier (ou melhor, sua disseminação quase absoluta) são justamente locais de enunciação discursiva de certa esquizofrenia. O real é aquele construído como um objeto literário e não aquele que os líderes partidários carregam em seus estandartes como uma realidade virtual que poderá materializar-se no futuro.

A estereotipia não é apenas o chavão linguístico (que diz respeito ao herói, ao corajoso, ao vidente dos horizontes históricos). Ela é também um jogo sempre estratificado e estreito de oposições paradigmáticas. Oposições entre o velho e o novo, entre o pas-sado e o futuro, entre a mesquinharia burguesa e a generosidade das classes oprimidas e outras tantas oposições constitutivas de um quadro de representações absolutamente empobrecedor. Esse quadro é pobre – e suponho que Barthes concordaria – não porque seja montado pela “mentira” (não tem uma ramificação histórica consistente), mas porque é limitado do ponto de vista discursivo.

Apesar de tudo, política e prazer não se excluíam para Roland Barthes em toda e qualquer circunstância. Havia um campo de exceções. Em alguma região do político poderia ser encontrado aquilo que Susan Sontag chamou de “a taxinomia da jubilação”. Mas o político apenas deixava de ser enfadonho quando a estere-otipia deixava de constituí-lo. Ele então dava lugar, no discurso, a uma espécie de virtualidade ficcional, como é o caso do “povo”, tal qual Barthes notou que ele emergia como agente da palavra e do sonho republicano na historiografia de Michelet.

De certo modo, Barthes estimulou e, ao mesmo tempo, frustrou aqueles que procuraram sua cumplicidade para a laboração de uma teoria social da significação bastante ampla. Essa cumplicidade

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inexistiu porque, volto a insistir, não há um “barthesianismo” como doutrina formada por preceitos e capaz de gerar modelos. E também porque, a meu ver, Roland Barthes, um dos homens mais refinados de seu tempo, de certo modo, sabia que esbarra-ria em formas enfadonhas de convivência com estereótipo caso aceitasse essa parceria. Ele quis ser um crítico, um escritor. Não um ideólogo.

Referências

NATALI, João Batista. L’humour politique brésilien: analyse structurale des stéréotypes. 1973. 147p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 1973. mimeo.

______. Une approche sémiologique du discours révolutionnaire (Robespierre). 1976. 176p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – École dos Hautes Études en Science Sociales, Paris, 1976. mimeo.

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um mundo enclauSurado: a polêmica entre BartheS e camuS

Manuel Da Costa Pinto

Vou tentar resumir, em seguida, a polêmica que envolveu Barthes e Camus em 1955, a propósito do romance A Peste, e fazer alguns comentários sobre o significado da interpretação que Barthes fez do livro de Camus. Antes de fazê-lo, porém, acho que é necessário salientar que essa polêmica teve uma importância relativa muito diferente na obra desses dois escritores.

No caso de Barthes, a polêmica traz as marcas de uma tentativa de “politizar” uma reflexão sobre a literatura até então marcada pela ênfase na linguagem, como podemos ler em O Grau Zero da Escrita. De certo modo, Barthes parece utilizar a polêmica com Camus para tingir sua própria obra com uma coloração engajada, sintonizando-a com os acirrados debates políticos dos anos 50.

No caso de Camus, a polêmica em torno de A Peste é, na verdade, uma espécie de rescaldo, de efeito secundário de uma polêmica muito mais violenta e marcante: a polêmica que levou a sua rup-tura com Sartre após uma troca de cartas publicadas na revista Le Temps Modernes, em 1952.

Na minha opinião, existe uma clara relação de continuidade entre as duas polêmicas. Antes de falar da polêmica Barthes-Camus, por-tanto, seria interessante falar um pouco da polêmica Sartre-Camus.

Como se sabe, o estopim da ruptura Sartre-Camus fora o lançamen-to, em 1951, de O homem revoltado, um longo e exaustivo ensaio em que o autor de A peste procura mostrar que todo movimento político tem como substrato uma revolta metafísica contra nossa condição mortal e que o esquecimento dessa injustiça primeira – que deveria criar a solidariedade entre os homens – faz com que as revoluções degenerem em tirania, ou seja, numa injustiça

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secularizada, encoberta pela divinização da história e pelo mes-sianismo político.

Esse tipo de abordagem ia na direção oposta à das posições políti-cas adotadas pelos existencialistas, que – nesse momento marcado por guerras imperialistas na Indochina e na Coréia e pelos rumores sobre os processos de Moscou e os campos de trabalhos forçados na União Soviética – se aproximavam dos comunistas como uma das alternativas mutuamente excludentes da Guerra Fria.

Francis Jeanson (biógrafo e colaborador de Sartre em Le Temps Modernes) escreveu, então, um longo artigo sobre o livro, afir-mando que Camus negava qualquer papel às forças históricas e à economia na gênese das revoluções, e detectando, em O Ho-mem Revoltado, uma espécie de “moral de Cruz Vermelha”, um “humanismo vago”, uma aversão à história que fazia com que Camus recusasse qualquer forma de participação política ou de engajamento.

Não vou entrar nos detalhes da polêmica propriamente dita, que ocorreria em seguida à publicação do artigo de Jeanson, numa carta que Camus endereçou a Sartre e na resposta deste a Camus – ambas publicada no mesmo número de Les Temps Modernes, em agosto de 1952.

Basta dizer aqui que, em resposta, Camus escreveu uma carta dirigida não a Jeanson, mas a Sartre, em que invoca seu passado na resistência: “Estou cansado de ver velhos militantes que nunca recusaram nenhuma das lutas de seu tempo receberem sem trégua lições de eficácia por parte de censores que nunca colocaram nada além de suas poltronas no sentido da história”, escreve ironica-mente, aludindo ao fato de que Sartre dormia em seu assento na Comédie Française, no momento da Libertação, em 1944.

Além disso, referindo-se aos alinhamentos da Guerra Fria, Camus se recusa a aderir de modo automático a um dos pólos ideológicos do momento: “Não se decide sobre a verdade de um pensamento conforme ele seja de direita ou de esquerda. Se, enfim, a verdade me parecesse estar à direita, lá estaria eu”, diz Camus.

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A réplica de Sartre retoma alguns dos pontos de Jeanson e bate na tecla do moralismo e do idealismo camusianos: “Instalou-se em você uma ditadura violenta e cerimoniosa, que se apóia numa burocracia abstrata e pretende fazer reinar a lei moral.”

E, refutando a acusação de Camus de que a eficácia política leva-va aos campos de trabalhos forçados na União Soviética, Sartre responde: “Sim, Camus, tal como você, acho esses campos inad-missíveis: mas igualmente inadmissível é o uso que a chamada ‘imprensa burguesa’ faz deles a cada dia.” E Sartre assume – algo inaceitável para Camus – que é preciso escolher uma das forças que se oferecem na engrenagem da história: “A cortina de ferro, diz Sartre, é apenas um espelho e cada uma das metades do mundo reflete a outra metade. A cada volta da porca aqui corresponde uma volta do parafuso lá, e afinal, aqui e lá, somos os parafusadores e os parafusados.”

Enfim, não quero ir muito longe nessa polêmica Sartre-Camus, já que nosso assunto é o debate, muito mais ameno, entre Barthes e Camus. Mas o fato é que as críticas de Jeanson e Sartre ao ensaio de Camus, de certo modo, se projetaram também na leitura que Barthes faz do romance. E isso não se deve apenas à enorme reper-cussão que aquela polêmica teve na intelectualidade francesa do pós-guerra, mas também ao fato de que é impossível desvincular O Homem Revoltado do romance A Peste.

Essa continuidade entre A Peste e O homem revoltado é algo afir-mado pelo próprio Camus. Como é sabido, Camus desenvolvia al-guns temas onipresentes em sua obra, tanto em narrativas ficcionais quanto em ensaios filosóficos. Assim, o tema do absurdo aparece tanto nas aventuras de Meursault, em O Estrangeiro, quanto em O mito de Sísifo, no qual Camus afirma ser o sentimento do absurdo aquilo que define a condição do homem, dilacerado entre o desejo de compreender a realidade e a opacidade indiferente do mundo, entre seu desejo de durar e seu destino de morte.

E essa noção existencial (mas não “existencialista”) de absurdo vai encontrar um desdobramento político, coletivo, na idéia de revolta,

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que ele desenvolve primeiramente em chave romanesca em A Peste (livro de 1947 que trata de uma cidade, Orã, que é sitiada por uma epidemia e que, grosso modo, é uma alegoria da resistência ao nazismo) e, quatro anos depois, em chave ensaística, em O Homem Revoltado. Por isso, logo no início de O Homem Revoltado, Camus afirma que a revolta nada mais é do que a cumplicidade no absur-do: “O mal que apenas um homem experimentava torna-se peste coletiva” – uma frase capital, que revela o caráter concêntrico, repetitivo, da obra de Camus; uma frase que faz referência tanto a O Mito de Sísifo (“o mal que apenas um homem experimentava”, ou seja, o absurdo vivido individualmente) quanto ao romance A Peste, já que O Homem Revoltado seria uma reflexão sobre o absurdo como “peste coletiva”, fazendo do ensaio uma espécie de contrapartida teórica do romance (da mesma maneira que O Mito de Sísifo fora a contrapartida filosófica de O Estrangeiro).

Nesse sentido, portanto, essa continuidade ou complementaridade entre as diferentes obras de Camus faz com que muitos dos reparos violentos de Jeanson e Sartre a O Homem Revoltado reapareçam na crítica de Barthes à Peste.

Retomando a citação acima, para Jeanson e Sartre, a aversão de Camus à história fazia com que ele se apoiasse numa burocracia abstrata, fazendo reinar a lei moral. E é mais ou menos isso que Barthes fala de A Peste. Para Barthes, no texto publicado em 1955 na revista Club, Camus criou nesse romance um mundo estático e enclausurado, em que a história é uma soma de acontecimentos sem ordenação intrínseca e na qual – na falta de uma lei, de uma mecânica ou de uma transcendência – só resta como recurso uma “ética da amizade”, uma solidariedade, enfim, uma cumpli-cidade diante da desrazão.

Como no Brasil essa polêmica só foi publicada em jornal (numa edição do caderno Mais, da Folha de São Paulo, em 5 de janeiro de 1997), vou destacar aqui os pontos principais da argumentação de Barthes.

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Barthes começa seu texto discutindo o conceito de ‘’Crônica”, ao qual o romance de Camus será associado. Segundo o dicionário de Littré, o termo crônica pode ser definido como “1) Registro segundo a ordem do tempo, por oposição à história, na qual os fatos são estudados em suas causas e suas conseqüências; e 2) Relato de pequenas histórias corriqueiras.”

E é exatamente dessa oposição entre crônica e história que vai derivar a moral implícita no romance. Diz Barthes:

A Peste não é um romance, mas uma crônica. Isso quer dizer que todos os temas habituais do romance – o homem, o amor ou o sofrimento – são vistos aqui através da transparência e do distanciamento de uma história coletiva, acompanhada dia a dia sem jamais se deixar penetrar por uma significação propriamente histórica. A meio caminho entre a História e o Romance, A Peste poderia ainda ter sido uma tragédia [mas, conclui Barthes, ela é] o ato de fundação de uma Moral.

A Peste [continua ele] também é crônica à medida que Orã, submetida à epidemia, constitui um mundo “sem causas e sem conseqüências”, conforme a definição de Littré – ou seja, um mundo privado de História. Os homens de A Peste não enxergam mais que a “ordem do tempo”: eles vivem, depois a peste chega e depois a cidade é isolada, e depois eles morrem, e depois a peste se afasta; não saberiam dizer outra coisa, e tudo o que são capazes de pensar sobre a vida, a morte, o sofrimento ou a solidariedade, seus erros ou seus deveres não lhes ocorre senão segundo essa ordem anódina da peste que chega, golpeia e depois parte. Não há qualquer estrutura ou causa na peste, nenhuma ligação entre a peste e um alhures, que poderia ser o passado, um outro lugar ou um fato qualquer; numa palavra, nenhuma relação.

Como resultado dessa descrição de um mundo estagnado, corri-queiro, subitamente assolado pela epidemia, a peste não tem um sentido purificador, transformador. Diz Barthes:

Na verdade, esse encadeamento sem ênfase não é fortuito: está encarregado de substituir o valor de conhecimento que o argumento poderia evocar (como Tragédia ou como História) por um valor de sentimento e assim impregnar a crônica de uma substância que em geral lhe é desconhecida: a Moral.

A frase de Barthes certamente ecoa a de Sartre, que acusava Ca- mus de querer fazer reinar a lei moral na história. A “ética da ami-zade” de Camus seria assim uma espécie de imperativo categórico da não-violência e um projeto antiutópico: contra um Mal absoluto

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e abstrato, só nos resta recorrer aos valores humanos, às “armas do médico – armas modestas, mas ao menos pacientes, objetivas, forjadas em comum e sobretudo jamais mortíferas”.

Entretanto, sugere Barthes, essa “ética da amizade”, supostamente mais concreta e realista, mais à medida do homem, é ela mesma uma abstração – por isso Barthes pergunta: qual o sentido dessa analogia entre o resistente e o médico quando o mal tem um rosto humano? A peste pode ser um símbolo da ocupação; mas, diante dos nazistas, não somos e não fomos obrigados a optar por uma violência libertadora contra uma violência aniquiladora? Um opressor com rosto não nos obriga a sermos carrascos, já que nos recusamos a ser vítimas?

Enfim, escreve Barthes,

a História não exibe apenas flagelos inumanos: há também males bastante humanos (guerras, opressões) e igualmente mortíferos, se não mais. Basta-rá então ser médico e, por medo de converter-se em carrasco, contentar-se em tratar de ferimentos sem atacar a arma que os inflige?

Por isso, ao final de sua resenha de A Peste, Barthes vê na “ética da amizade”, personificada na amizade silenciosa de personagens como Rieux e Tarrou, uma forma de resistência passiva que, em nome da preservação moral, da conservação da inocência, acaba por recusar os compromisso de seu tempo, refugiando-se na solidão.

A resposta de Camus, publicada numa outra edição da revista Club, certamente tem mais interesse para os leitores de Camus do que para os leitores de Barthes. Basicamente, Camus diz que a prova da concretude e, portanto, da historicidade de sua alegoria está no fato de que todos os leitores reconheceram que o conteúdo evidente do romance era a luta da resistência européia contra o nazismo. Segundo Camus, “A Peste é mais do que uma crônica da resistência; em todo caso, não é menos que isso”. Ao mesmo tempo, diz o escritor, o fato de essa alegoria transcender a experi-ência localizável da Ocupação não cancela o nexos históricos, os riscos e as violências da resistência, mas amplifica seus efeitos e sua ética de compromisso. E por isso Camus diz a Barthes:

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Um mundo enclausurado: a polêmica entre Barthes e Camus

O que esses combatentes, cuja experiência parcialmente traduzi, fizeram, eles o fizeram justamente contra os homens e a um preço que o senhor conhece bem. Eles o repetirão, sem dúvida, frente a qualquer terror e qualquer que sejam suas feições – pois o terror tem várias feições, o que justifica uma vez mais a escolha de não nomeá-lo precisamente a fim de poder melhor atingir a todos.

Camus escreveu A Peste sob o impacto da Segunda Guerra e do nazismo. Mas, ao responder a Barthes, após a publicação de O Homem Revoltado e a polêmica com Sartre, sua preocupação se volta para outra espécie de totalitarismo. Em sua réplica, ele procura mostrar como o romance se projeta também como uma espécie de fábula cautelar, cujo caráter simbólico ou alegórico se aplica a outras formas de hipnose ideológica. Daí a pergunta que ele lança: em nome de qual moral, mais completa, ele, Barthes, considerara insuficiente a moral de A Peste?

A resposta de Barthes a essa pergunta de Camus me parece decisiva para entender a polêmica. Em sua tréplica, na verdade um peque-no bilhete de resposta a Camus, Barthes diz: “O senhor me pede que declare em nome do que eu julgo insuficiente a moral de A Peste. Não faço nenhum segredo disso: em nome do materialismo histórico, uma vez que considero uma moral de explicação mais completa que uma moral da expressão.”

Essa afirmação, que soa, para usar a imagem de Stendhal, como um tiro no meio de um concerto, me parece conclusiva. O materia-lismo histórico, o materialismo dialético marxista seria então o fiel da balança no veredicto de Barthes sobre A Peste de Camus?

O remate dessa polêmica causa um grande estranhamento. Quem teria mudado mais: Camus ou Barthes? O Camus de O Estrangeiro seria tão estrangeiro em relação ao Camus de A Peste, transitando de uma tragédia solar “opaca aos significados e transparente às coisas” (segundo a expressão de Sartre) para uma moral de Cruz Vermelha? Ou foi o Barthes de O Grau Zero da Escrita que se tornou se estrangeiro para si mesmo ao ponto de não perceber ne-nhuma continuidade entre a escrita neutra de O Estrangeiro (fonte primeira de O Grau Zero) e a monotonia concertada de A Peste, transitando assim ele, Barthes, de uma “metafísica da escrita como

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enfrentamento com a Forma essencializada” (segundo expressão de Philippe Roger) para uma forma maquiada de realismo socialista?

Como avaliar, enfim, essa polêmica? Existem dois pontos que me parecem fundamentais.

Em primeiro lugar, é necessário compreender que esse Barthes de 1955 é atraído, segundo expressão de Philippe Roger no livro Roland Barthes: Roman,

por dois pólos antagônicos [...]: de um lado, um “sentimento trágico” da escrita (e, podemos acrescentar, do mundo); de outro, a sedução intelec-tual que exercem sobre ele os princípios de “explicação” colocados a seu alcance pela análise sartriana e por uma sociologia marxizante.

Entretanto, é possível perceber um certo desequilíbrio entre esses dois pólos. Analisando as versões iniciais dos ensaios de O Grau Zero da Escrita, tais como publicados originalmente no jornal Combat, nos anos 40, e depois as versões publicadas em livro, Philippe Roger mostra que

é preciso reconhecer que o livro de 1953, longe de marcar, ao cabo de correções e acréscimos, um maior “militantismo” e uma “politização” mais franca, assinala ao contrário, uma insistência mais patente do que nos artigos de Combat sobre a “essencialidade” do drama da escrita, assim como uma distância muito mais espetacular em relação às formas atuais, observáveis, de engajamento da literatura.

Ou seja, ao mesmo tempo em que se vê obrigado pelo clima da época, pela aproximação de Sartre aos comunistas, a tomar partido, a obra crítica de Barthes se torna mais radical em sua defesa da escrita como uma moralidade da forma, uma escrita neutra que recusa as determinações históricas e naturais da língua e do estilo – e que se transforma, assim, em ato de solidariedade histórica justamente por seu caráter perturbador da ordem vigente, por causa do não-sentido que a obra sustenta, por causa do silêncio e dessa voz neutra (presente em autores como Queneau, Blanchot ou o próprio Camus) que é a única que está de acordo com a aflição irremediável que sucede à fratura do mundo burguês.

Portanto, todas a tentativas que Barthes fez, em entrevistas e testemunhos, de “esquerdizar” seus escritos, de (nas palavras de

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Roger) “remeter seus textos do pós-guerra à órbita de um projeto intrinsecamente político”, seriam assim uma espécie de “ficção do intelecto”, além de uma “ficção cronológica” – já que, como diz Roger, a presença do marxismo e de Sartre nos textos iniciais de Combat, em 1947, é muito volátil.

Nesse sentido, podemos dizer que Barthes viu na polêmica com Camus a oportunidade de “mostrar serviço”, de reparar essa contradição, ou seja, de dar provas de um engajamento também teórico que já vinha acontecendo em suas leituras de Brecht e em sua aproximação da revista Théâtre Populaire, proclamando o materialismo histórico justamente contra aquele autor que estivera na gênese da noção de um “grau zero da escrita”.

Entretanto, como observa ainda Philippe Roger, podemos distin-guir nitidamente dois registros na crítica de Barthes: o estético e o moral. Ou seja, mesmo que a polêmica tenha sido uma oportu-nidade para Barthes absorver tenuamente o jargão da militância, ainda assim se percebe uma clara separação entre sua avaliação estética e sua condenação ética. Tanto isso é verdade que Camus se limitou a responder à segunda parte, reivindicando o caráter participativo da alegoria contida em A Peste, sem contudo ques-tionar a leitura “literária” de Barthes.

Nesse sentido, essa polêmica de 1955 entre Barthes e Camus sofre diante do leitor de hoje uma curiosa inversão: a conclusão negativa do crítico em relação à moral contida no romance A Peste pode soar um tanto obsoleta, ao passo que a análise que Barthes faz da narrativa, para justificar sua condenação, torna-se preciosa do ponto de vista da crítica literária.

Barthes está rigorosamente certo: Camus criou no romance um mundo estático e enclausurado, em que a história é uma soma de acontecimentos sem ordenação intrínseca. Barthes procura em A Peste uma estrutura, um epicentro organizador da narrativa, que permita estabelecer uma tensão entre a realidade interna do romance e a realidade histórica. Entretanto, ele encontra ali uma ordem meramente aditiva de fatos “sem causas e sem seqüências”,

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um mundo “privado de história”, que serve de cenário para o “ato de fundação de uma Moral”.

Mas isso não me parece ir fundamentalmente contra a idéia de literatura e de ética que percorre a obra de Camus. Como disse anteriormente, a obra de Camus se articula ao redor de um “sen-timento do absurdo” que é construído a partir de imagens que reduzem a experiência geral e abstrata à dimensão concreta da individualidade, constituindo, nas palavras do próprio Camus, um “ponto zero” (expressão curiosa, que faz pensar imediatamente em O Grau Zero da Escrita).

Esse enclausuramento – produzido pela própria circulação de imagens que existe na obra de Camus, em que encontramos referências a O Estrangeiro dentro de A Peste, em que o enredo de O Mal-Entendido aparece nas páginas de O Estrangeiro, em que o narrador de A Queda comenta um trecho de A Peste – tem um sentido preciso: assinala o caráter atemporal do absurdo, que equivale assim a uma espécie de condição humana assimilável aos lugares-comuns ao pessimismo clássico francês, como observou Sartre em seu prefácio a O Estrangeiro.

Ao mesmo tempo, o absurdo é uma recusa de todo conhecimento (Camus escreve em O Mito de Sísifo: “O método aqui definido confessa o sentimento de que todo verdadeiro conhecimento é impossível. Só se pode enumerar as aparências”). Portanto, se há um “ato de fundação de uma moral” em Camus, não é uma moral prescritiva, mas, justamente, uma moral no sentido da anatomia da condição humana dos moralistes do século XVII; no caso de Camus, uma anatomia da condição absurda.

Da mesma maneira, a “moral de explicação” que Barthes (na carta que encerra a polêmica) diz considerar mais completa do que uma “moral da expressão” não faz sentido diante da própria descrição desse mundo fundado (como o próprio Barthes nota) sobre a equi-valência total das coisas e seres, sua desesperante insignificância, sua falta de epicentro e de estrutura. Conforme Camus escreve nos seus Carnets: “O Estrangeiro descreve a nudez do homem em face

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do absurdo. A Peste, a equivalência profunda dos pontos de vista individuais em face do mesmo absurdo. É um progresso que será precisado em outras obras. Mas, além disso, A Peste demonstra que o absurdo não ensina nada.”

Nenhuma experiência, portanto, é mais significativa do que outra dentro desse mundo homogêneo, regido por um pluralismo irredu-tível (segundo a expressão de Sartre). E se em Camus a experiência, às vezes, nos ensina algo é porque, por uma pedagogia negativa, ela sempre nos reconduz, em sua circularidade mítica, a esse universo elementar em que aguçamos nosso desejo de unidade e duração e no qual entrevemos incessantemente nosso destino de morte.

E é essa circularidade, determinada pela intuição do absurdo que está na base da moral da revolta de Camus, que foi perfeitamen-te captada por Barthes na leitura de A Peste – a despeito de seu veredicto ético e político.

Referências

BARTHES, R. Política. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Iné-ditos, 4)

______. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CAMUS, A. Actuelles II. In:______. Essais. Paris: Bibliothéque de la Plêiade, 1981.

______. A peste. Rio de Janeiro: Record, 1997.

______. Caligula suivi de Le Malendendu. Paris: Gallimard, 1981.

______. O estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2004.

______. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996.

______. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

JEANSON, F. Albert Camus ou L’âme revoltée. Les Temps Mo-dernes, Paris, maio 1952.

ROGER, P. Roland Barthes: Roman. Paris: Grasset, 1986.

SARTRE, J.-P. Situations IV. Paris: Gallimard, 1964.

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a paixão iSenta (o “pequeno BartheS”)

evanDo Nascimento

Não apenas a razão dos milênios – também a sua loucura rompe em nós

É perigoso ser herdeiros Nietzsche

O signo é uma fratura que nunca se abre senão sobre o rosto de um outro signo

Barthes

O legado de Barthes

Quando fui convidado por Leyla Perrone-Moisés a participar dos colóquios sobre Roland Barthes, na USP, e por Maria Elizabeth Chaves, na UFF, indaguei-me de imediato o que ainda tinha a falar sobre o crítico, teórico, escritor, intelectual e semiólogo francês. Tendo escrito uma dissertação de mestrado sob inspiração barthesiana, e mais tarde, um ensaio intitulado “Lição de signos: A Semiologia literária de Roland Barthes”,1 sentia-me como que quitado em relação à imensa dívida que contraí muito cedo em minha formação universitária para com essa obra. E, por isso mesmo, os usos possíveis desse texto já teriam cumprido seu ciclo na preparação intelectual. A inspiração para retornar a Barthes veio com a releitura de um dos fragmentos de Roland Barthes por Roland Barthes, quando ele fala justamente em voltar a tratar de um assunto sobre o qual já se escreveu. Para Barthes, rever seus textos passados tratava-se principalmente de não restaurar uma suposta verdade anterior, mas ver-se como um sujeito que circula acompanhando a rotação permanente do simbólico (2003, p. 69-71). Do mesmo modo, para o leitor que já escreveu sobre um crítico-escritor, há sempre algo a ser dito como suplemento

1 Publicado inicialmente na revista Contexto da UFBA e republicado no livro Ângulos: literatura & outras artes (NASCIMENTO, 2002).

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interpretativo, que relança o giro contínuo da linguagem para além de qualquer referente absoluto.

Começo, portanto, indagando o que resta hoje do legado de Roland Barthes. Creio que cada um dos participantes dos dois colóquios tentou corresponder à natureza e à intensidade desse legado. Não diria à sua “legitimidade”, que não precisa ser demonstrada diante da evidente importância de Barthes para a teoria e a crítica literárias, confirmada pelas inúmeras referências que foram feitas e que ainda se fazem a seu pensamento. Estatisticamente, a meu ver, Barthes está bem protegido, como evidenciam a publicação póstuma de suas aulas no Colégio de França e a reedição de seus livros no Brasil.

Pode-se então dizer que há um “retorno a Barthes”, mas esse retorno deveria ser como o que importava para Lacan em seu “re-torno a Freud”: a possibilidade de reler intensivamente os textos do criador da psicanálise, a fim de lhes dar uma interpretação inova-dora, não se limitando a uma mera atitude exegética. De modo tal que, com relação a Barthes, leituras mais e mais singulares podem ser propostas, de acordo com o desejo e a perspectiva de cada um.

Desse modo, o ponto seria: diante do Barthes que está aí, publicado e reeditado, exposto, o que me toca particularmente nesse lote? Qual seria meu Barthes, o Barthes que escolheria trazer para este mundo que é o meu – lembrando uma famosa fórmula na abertura do S/Z?2 Em outras palavras, o que Barthes significa hoje para mim? Estou me reportando igualmente a uma das inúmeras refe-rências ao pensamento de Nietzsche na escritura barthesiana, no ponto em que explicita que o julgamento de um texto pelo critério de prazer se inscreve sob o signo do para-mim nietzschiano, “é isso para mim!” (BARTHES, 1996, p. 20-21).

Gostaria então de encaminhar a reflexão de duas maneiras, que espero convergentes. A primeira, como acabo de enunciar, diz respeito aos livros ou textos de Barthes que ainda, após tantas leituras, me dão grande prazer em ler e reler (O Grau zero da 2 “[...] que textos gostaria de desejar, de investir como uma força, neste mundo que é o

meu?” (BARTHES, 1980, p. 12).

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escritura, L’Empire des signes, O Prazer do texto, Roland Barthes por Roland Barthes, O Rumor da língua, inúmeros textos avulsos das Oeuvres complètes... a lista é relativamente fácil de ser feita e decerto arbitrária). A segunda diz respeito ao risco de uma certa mitificação de Barthes, ou seja, de ninguém menos que o autor das famosas Mitologias. Espero fazer convergir essas duas perspec-tivas, justamente numa visada crítica do que Barthes nos legou, sinalizando os paradoxos que daí emergem.

É preciso não esquecer que Barthes reinventou a possibilidade de herdar, de que o leitor assine nas costas do autor (contra-assine, portanto) o texto que ele teria passado à posteridade.3 Sem esta assinatura que vem do outro, dos ativos leitores, nada de texto nem de literatura em sentido forte. Quem assina de fato a escri-tura é o leitor. A sobrevida do texto depende desse endosso do público ledor, quer dizer, de todos nós. Afinal, Barthes foi um fomentador das genealogias descontínuas, do legado que deve ser permanentemente reelaborado, jamais recebido como um pacote no qual não se toca ou um monumento intangível. Seu modo de herdar não se prende mais às prescrições da “influência”, dogma absoluto da crítica oitocentista. Dentro dessa perspectiva, Roland Barthes por Roland Barthes fala de uma “evolução” do sujeito de acordo com os autores que lê, mas essa “evolução” acaba sendo uma auto-influência, a qual se faz, contudo, através do outro, “O objeto indutor não é entretanto o autor de que falo, mas antes aquilo que ele me leva a dizer dele; eu me influencio a mim mesmo com sua permissão: o que digo dele me obriga a pensá-lo de mim (ou a não pensá-lo) etc.” (BARTHES, 2003, p. 122-123).

Além disso, o legado de Barthes não é uno, nem homogêneo, ao contrário, distribui-se em períodos não estanques mas interpene-tráveis; e mesmo dentro de um único momento há a divisão, a multiplicidade. Por mais que se assemelhem, os escritos de Barthes – mesmo os contemporâneos uns dos outros – se distinguem, im-postando diferentemente o grão da Voz. Por esse motivo, os modos

3 Em todas essas questões de herança, assinatura e contra-assinatura (como endosso ou retificação), estou também dialogando com dois textos de Derrida: Otobiographies. (1984) e sua bela interlocução com Elisabeth Roudinesco, De quoi demain... (2001).

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de herdar esse legado heterogêneo são igualmente diversificados, podendo variar de sujeito para sujeito, ou em relação a um único sujeito, conforme os momentos distintos da recepção, os interes-ses, os humores, as disposições, resumindo, o Desejo. Em todo caso e momento, é preciso que o legatário saiba filtrar a herança, segundo suas inclinações. Quem tudo herda não herda nada, pois não expropria o legado paterno, ficando esmagado no conjunto dos bens deixados por esse pai dadivoso. Cabe ao herdeiro fazer a triagem, escolhendo as temáticas e forças que lhe dizem respeito.

Acrescente-se que, do ponto de vista intelectual e criativo, quem herda de um único pai corre o risco de ser um mero clone do genitor, nada tampouco acrescentando à herança. Vale então multiplicar os “pais” e as “mães”, a fim de que nenhum deles assuma a exclusividade da cena da escrita, embora evidentemente as ligações possam ser mais fortes com este ou aquele pai ou mãe. Exatamente como fez Barthes, escolhendo para cada momento de sua “evolução” um conjunto de pais intelectuais mais ou menos identificável: a) na fase pré-estrutural, que vai aproximadamente até 1957, a interlocução maior se faz com Brecht, Marx e Sartre; b) em seguida, Saussure – tendo como mediador Greimas – e, mais tarde, Lacan, são os pais da fase assumidamente estruturalista; c) por fim, no período dito pós-estrutural (que, a meu ver, começa em 1968 com “A Morte do autor”, se afirma em 1970 com a publicação de S/Z e L’Empire des signes, e se configura em definitivo por meio de O Prazer do texto, de 1973, até o final), o diálogo se intensifica com Nietzsche e Deleuze, Derrida, Kristeva, Lacan e Freud.4

“É perigoso ser herdeiro”, diz Nietzsche em Assim falou Zara-tustra, pois herdamos não só a razão, mas também a loucura dos milênios (BARBTHES, [1980], p. 91). Mas não há como atuar na cena intelectual ou criativa sem algum tipo de herança, e mesmo o mais louco dos legados pode conter um grão de razão, como bem entendeu Machado de Assis, ao multiplicar em seus textos o

4 Desnecessário dizer que todas as referências às leituras de Barthes devem ser desvinculadas aqui da categoria da influência, cujo descrédito está justamente em causa neste contexto. Por isso mesmo, esse diálogo ativo com seus pares mereceria mais de uma análise detida, visando pôr em crise finalmente a própria noção de “paternidade”.

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comércio entre loucura e razão, desdobrando, conseqüentemente, as genealogias literárias. Afinal, o importante é que razão e loucura, em vez de se excluírem, fecundem-se mutuamente, descentrando mas também orientando o sujeito que lê e, portanto, escreve. Ler--escrevendo é a herança potente por excelência e, dentre os traços da escrita barthesiana, é o que elejo como o que mais me estruturou até aqui, enquanto escrevente ou crítico-escritor pretenso.

Para mim, ler – ao menos desde que leio Barthes – traz embutida a possibilidade da escrita, de modo tal que inúmeras vezes me vejo interrompendo a mais urgente das leituras para anotar, com-por um esboço de texto ou mesmo desenvolver todo um ensaio a partir de alguns poucos parágrafos sofregamente decifrados. E ao final, nunca sei exatamente o que engendrou o que, se me ponho a ler para escrever algo, ou se escrevo porque li uma novela, vi um filme, analisei um ensaio, preparei uma aula. Leitura e escrita não se confundem, mas são como que “irmãs siamesmas”, para citar um jogo de palavras de Haroldo de Campos. O par está fortemente vinculado, é quase inseparável e, no entanto, cada um dos elemen tos tem sua singularidade, não se dissolve no outro. Entre leitura e escrita não há sinonímia, mas tensão, interpondo--se entre as duas um en découdre de que fala Derrida, na abertura de A Farmácia de Platão, devendo elas irem às vias de fato ou às últimas conseqüências (1991, p. 7). Desse atrito resultam as fagulhas criativas, os textos e as falas, o escritos falados, as falas escritas, paradoxalmente implicados.

Daí a famosa e polêmica frase que encerra A Morte do autor – não por acaso de 1968 – apontar para esse lugar de suplementação da escrita, ou seja, a leitura, sem a qual nenhuma fala, nenhum escrito pode ser sequer articulado: “o nascimento do leitor deve pagar--se com a morte do Autor” (BARTHES, 1988b, p. 70). Pois todo escrito já é produto de leituras anteriores, e tanto mais que ele se dá a ler no momento mesmo em que se escreve, oferecendo-se à interpretação de seu leitor primeiro, o escriptor (assim grafado de forma arcaizante), que corta, recorta, remaneja e enfim entrega à publicação o resultado dúplice de suas leituras, leitura de outros

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autores e leitura de si mesmo como autor-leitor. “Escrever a leitura” fala exatamente desse texto que se escreve mentalmente no ato da leitura e cuja escrita “real” é apenas conseqüência da “escrita” primeira, realizada no gesto de erguer muitas vezes a cabeça, tal como foi para Barthes a experiência de interpretar a novela Sarrasine de Balzac, que resultou no texto-leitura de S/Z (BARTHES, 1988b, p. 40-42). Uma leitura textualizada que se faz pelo recorte e comentário-avaliação de cada uma das frases do texto tutor, o qual oferece a pauta da interpretação. Sob esse regime, toda avaliação de um texto implica um grau maior ou menor de escrita,

o texto escrevível somos nós ao escrever, antes que o jogo infinito do mundo (o mundo como jogo) seja atravessado, cortado, interrompido, plastificado por qualquer sistema singular (Ideologia, Gênero, Crítica) que reprima a pluralidade das entradas, a abertura das redes, o infinito das imagens (BARTHES, 1980, p.12).

Entendido como categoria da avaliação-interpretação, e não como qualidade imanente de certos textos em oposição a outros, o es-crevível remete ao valor inventivo da crítica literária praticada por Barthes. Seria preciso lembrar nesta altura o que foi para alguns de minha geração, que começou a se formar nos anos 80, a leitura dos textos de Barthes que propunham uma forma inaudita de se fazer crítica literária. Sobretudo em sua última fase, ele desen-volveu um método crítico intransferivelmente pessoal, como se cada livro inventasse um novo procedimento, cercado de inúmeros dispositivos, com recurso freqüente aos aforismos, aos fragmentos ficcionais, aos grafismos romanescos, intempestivos.

Num de seus textos curtos, jamais publicados em livro, mas reu-nidos em suas Oeuvres complètes, em três magníficos volumes entre 1993 e 1995, Barthes sustenta uma hipótese que é subjacente a todos os seus escritos. “Não existe nenhum discurso que não seja uma ficção”, é este o título e a idéia do artigo (1995, v. III, p. 384-385). Não que se entenda por ficção um mundo falso, mo-ralmente falho, onde tudo seja possível. Essa ficcionalidade do discurso é suficientemente real para ter efeitos pragmáticos sobre a realidade material, só que ela não se faz mais a partir do lugar

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de um sujeito de todo consciente e controlador absoluto de seus atos. Exatamente por se dar num contexto, em que outras falas e gêneros atuam, todo discurso depende de respostas, ou seja, de leituras para provar sua eficácia. Nenhum texto é dotado de ver-dade prévia, que escape a qualquer avaliação por parte de seus intérpretes. Ao contrário, cabe sempre ao leitor decidir sobre os sentidos atribuíveis aos textos, levando evidentemente em conta a base sígnica de sua inscrição primeira, afirmando a utopia geral do Desejo.

O pequeno Barthes

Indagaria neste ponto: é também possível renegar um legado? O que seria uma herança cujos leitores abjurassem, deixando de se interessar e, conseqüentemente, levando-a a se perder? Em sua Aula inaugural, um dos manifestos críticos sobre a literatura mais importantes do século XX, Roland Barthes defendia o direito e mesmo a necessidade de um autor abjurar sua obra, caso ela se tornasse objeto de involuntárias mitologias. A referência imediata era Pasolini, que teria praticado tal gesto diante da apropriação de sua Trilogia da vida pelo poder. Ali onde havia grande força inaugural, uma parte da crítica e mesmo da mídia acabava por criar um monumento e tornar o cineasta-escritor mais um mito da cultura burguesa. O contexto dessa referência, em Aula, são as estratégias de teimosia e de deslocamento, relativas à segunda força de liberdade da literatura, a da representação impossível do “real”: “Deslocar-se pode pois querer dizer: transportar-se para onde não se é esperado, ou ainda e mais radicalmente, abjurar o que se escreveu (mas não, forçosamente, o que se pensou), quando o poder gregário o utiliza e serviliza” (BARTHES, [19—], p. 27).

A mistificação do autor é um risco tanto maior para quem, como Barthes, escreveu ainda nos anos 50 – ou seja, antes da produção que o tornaria mundialmente conhecido –, um livro-chave para entender a produção de mitos culturais, as já referidas Mitologias. Estamos diante de uma verdadeira aporia: por um lado, Barthes não se cansou de multiplicar gestos no sentido de desmontar es-

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tereótipos, seja por meio da leitura de ícones culturais, seja por uma fina teorização dos mecanismos de desejo e poder que se instalam ali onde deveria atuar uma força de liberdade, no caso mesmo do texto literário. Por outro lado, pode ocorrer o sobrelance dessa investida do estereótipo na própria atuação de Barthes como escritor, professor, semiólogo. Em outras palavras, desde quando, nos anos 60, o movimento estruturalista teve nele um de seus maiores articuladores, obtendo êxito internacional, Barthes passou a representar uma dessas figuras que ultrapassam os muros da Universidade, ganham o mundo, atingindo também, com maior ou menor felicidade, o espaço da mídia. A ambivalência se intensifi ca, pois, se sair do recinto acadêmico é ampliar seu público, aceitando a comunicação em seus mais diversos níveis, isso impli ca simul-tânea e inevitavelmente expor-se ao pior, tornar-se um objeto de culto. Lembro, de passagem, que os Fragmentos de um discurso amoroso estão entre os grandes best sellers da crítica universitá-ria, lido inclusive por um público não-universitário, tendo sido encenado no Brasil por Antônio Fagundes, no final dos anos 80.

Esse processo de mitificação se tornou mais arriscado sobretudo a partir dos anos 70 e 80, quando, por exemplo, no Brasil pratica-mente todos os livros importantes de Barthes estavam traduzidos, com exceção de sua belíssima viagem ao Japão, L’Empire des signes. Creio que o signo dessa mitificação foi o uso e o abuso que se fizeram da palavra écriture, traduzida na maior parte das vezes como escritura, quando em francês o termo corresponde também ao sentido elementar do texto escrito, à escrita simples-mente.5 Eu mesmo, em determinado momento, depois de abusar do termo escritura, senti a necessidade de me afastar dessa tradução e reintroduzir pedestremente a palavra escrita no campo do pen-samento francês recente, através de Foucault, Derrida e Deleuze, em diálogo intenso com Maurice Blanchot, e mais anteriormente com Nietzsche e Freud, sem esquecer o contemporâneo Lacan –

5 Ao propor de maneira lúcida, no posfácio de Aula, traduzir écriture como escritura – ao contrário dos portugueses que optaram por escrita –, Leyla Perrone-Moisés tirou o máximo proveito de uma palavra existente em nosso idioma. Os abusos daí decorridos por parte de muitos leitores-escritores se deram em função dos equívocos inerentes ao ato mesmo de herdar, ou seja, de interpretar. Cf. BARTHES, [19—], p. 74-79.

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personagem com o qual eles estabelecerão fortes relações, não desprovidas de conflitos. Hoje utilizo alternadamente, segundo o contexto e a necessidade, um ou outro termo, evitando o uso abusivo da “pura” escritura. Razão pela qual o referido retorno a Barthes, sem jamais tê-lo esquecido, se converte de fato em vê--lo de outro modo, deslocando seus inevitáveis mitos. Retornar significa relê-lo em sua materialidade textual, mas também em sua virtualidade significativa, como deriva das leituras prévias.

Na França, o processo de mitificação sofreu seu contraponto negativo com a publicação por Burnier e Rambaud, em 1978, do Le Roland Barthes sans peine (Roland Barthes sem esforço), ao que consta um medíocre pastiche que, mesmo assim, segundo os testemunhos da época, teria feito Barthes sofrer muito (CALVET, 1990, p. 274-275). Em seu depoimento no segundo dossiê do Ma-gazine Littéraire (1993) sobre Barthes, Umberto Eco se espanta com o fato de ele ter sofrido tanto, já que o tornar-se pastiche é o signo absoluto da consagração de um autor. Vale indagar se inte-ressava a Barthes qualquer tipo de consagração, principalmente por vias negativas.

É preciso, portanto, não monumentalizar Roland Barthes. Lem-bremos, para isso, os momentos distintos em que refletiu sobre os mitos de sua época e de sua classe social. Em primeiro lugar, estão as próprias Mitologias, isto é, os textos curtos que escreveu entre 1954 e 1956 nas Lettres Nouvelles como microexercícios de sociologia, a fim de desmontar as mistificações da pequena burguesia. De inspiração brechtiana e marxista, as Mitologias atuavam como estratégias de contra-ideologia em relação ao aparato ideológico montado pela mídia como determinação da classe burguesa em geral.

Exemplo por excelência dessa atividade desmistificadora é a contramitologia do “Escritor em férias” (BARTHES, 1982, p. 23-25). Para Barthes, ao ser apresentado em férias, o escritor encena uma contradição que só reforça o mito do gênio portador de uma consciência universal. Por um lado, ele assume sua condição mortal (entra de férias), o que, por outro, torna mais miraculosa ainda sua

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superioridade diante dos outros mortais (ser escritor). Além disso, mesmo de férias o escritor jamais está desocupado, seja porque continua escrevendo, seja porque lê algo próprio à sua condição. Tudo isso expõe a “vocação” como o atributo sobrenatural de seres que a burguesia eleva à condição de super-homens, dado reforçado pela aparente antítese entre a frivolidade das férias e a ininterrupção de seu ofício sagrado:

A aliança espetacular de tanta nobreza e de tanta futilidade significa que se acredita ainda na contradição: totalmente milagrosa, como cada um dos seus termos, perderia evidentemente todo o interesse num mundo em que o trabalho do escritor fosse dessacralizado a ponto de parecer tão natural quanto as suas funções vestimentares ou gustativas (BARTHES, 1982, p. 25).

Afirmava-se aí a luta de Barthes contra os estereótipos. Apren-demos com Nietzsche que é fundamental saber escolher seus inimigos (BARTHES, 1983, p. 64), e Barthes elegeu os clichês culturais como os inimigos de uma vida inteira. Valores consensu-ais que estavam biograficamente também nele, como se o Barthes pensador da cultura tivesse de lutar contra o Roland originário da pequena burguesia.

Mas o posfácio de 1957 ao livro Mitologias já se distanciava de uma crítica do conteúdo e passava a privilegiar o discurso da doxa como sistema de signos a serem interpretados em sua dupla face de significante e de significado. Como dirá o prefácio à edição de 1970, ou mais ainda o artigo “A Mitologia hoje”, de 1971, foi preciso substituir uma mitoclastia (destruição de mitos, como crítica do conteúdo) por uma semioclastia (destruição dos signos em sua complexidade, funcionando sintaticamente dentro da frase).

O momento da semioclastia coincide, em linhas gerais, com o período estruturalista, em que Barthes ainda acreditava numa positividade do signo, fundada no que ele próprio chamou poste-riormente de “sonho de cientificidade”. Sonho do qual despertará progressivamente no contato com os textos de Derrida, Kristeva e Lacan, até declarar na abertura do S/Z, em 1970, que os estrutu-ralistas tinham acalentado o desejo de – tal como certos budistas através de meditação conseguem ver uma grande paisagem numa

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fava – reduzir todas as narrativas do mundo, através de modeli-zações sucessivas, a uma única estrutura geral. Com isso, dizia Barthes, perdia-se a singularidade das narrativas, sua diferença.

A semioclastia barthesiana significava certamente um distancia-mento em relação à naturalidade dos signos: ali onde uma signifi-cação quer aderir naturalmente a um contexto, é preciso interferir, descolar, desarticular e, se necessário, destruir. A semioclastia se converteu na fase pós-estrutural num jogo com os significantes. Deslizamento sígnico exemplarmente trabalhado em Roland Barthes por Roland Barthes, quando, para se referir a si próprio, utiliza tanto o “eu” quanto o “ele”, num desdobramento de papéis que evita a adesão à subjetividade em estado puro, natural, mitoló-gico. Nesse contexto, Brecht ressurge como referência inevitável:

falar de si dizendo “ele”, pode querer dizer: falo de mim como se estivesse um pouco morto, preso numa leve bruma de ênfase paranóica, ou ainda: falo de mim como o ator brechtiano que deve distanciar seu personagem: “mostrá-lo”, não encarná-lo, dar à sua dicção uma espécie de piparote, cujo efeito é descolar o pronome de seu nome, a imagem de seu suporte, o imaginário de seu espelho (BARTHES, 2003, p. 186).

As referências a Brecht, nesse texto de 1975, demonstram que Barthes nunca abandonou seus pais intelectuais, precisou apenas se afastar de alguns deles estrategicamente para “evoluir”, mas um certo olhar ligado à herança nunca se perde, acompanhando a escritura de ponta a ponta. Identificam-se, assim, diversos olhares em Barthes, de acordo com as referidas fases: o olhar mitoclasta (Brecht-Marx), o olhar semioclasta ou estrutural (Saussure, Grei-mas, Lacan) e o olhar pós-estrutural, como deslizamento e jogo do significante (Derrida, Kristeva, Freud, Lacan, dentre outros). Esses olhares não se contradizem necessariamente, deslocam--se entre si, mas podem conviver num mesmo espaço, num mesmo livro. Daí ser complicado, tal fora dito anteriormente, e mesmo impossível, falar em fases de Barthes como períodos estanques, pois os olhares ora se contrapõem, ora se superpõem, dialogam, aliciam-se etc., num jogo permanente de resistência, ou seja, de teimosia e de deslocamento, abjurando estrategicamente se necessário.

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Tudo pelo desejo de baldar o estereótipo, o qual é definido lapi-darmente em O Prazer do texto:

O estereótipo é a palavra repetida, fora de toda magia, de todo entusiasmo, como se fosse natural, como se por milagre essa palavra que retorna fosse a cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitação: palavra sem-cerimônia, que pretende a consistência e ignora sua própria insistência (BARTHES, 1996, p. 57).

Essa verdade instituída canoniza coercitivamente o significado, naturalizando a cultura, por um jogo de inversões diagnosticado no conceito de ideologia por Marx (BARTHES, 1988b, p. 79). Trata-se antes de tudo de uma coalescência lingüística, pois, como já dizia o posfácio das Mitologias, o mito é uma fala, uma fala enrijecida, a ser fissurada por meio de múltiplas estratégias.

Assim é que o último Barthes vai sempre em busca do plural do texto e não mais da redução estrutural, como propunha a semio-logia lingüística dos anos 60. Esta será deslocada pela semiologia literária, cátedra fundada para Barthes no Colégio de França, como saber com sabor, deslocando o cientista em proveito do semiólogo duplo de artista. Aí, então, não será mais preciso praticar nem a mitoclastia, nem a semioclastia, pois estas supõem e acirram os conflitos, a guerra das linguagens. Caberá ao semiólogo-artista, tal como a literatura, jogar com os signos, trapaceando a doxa, “ele joga com os signos como um logro consciente, cuja fasci-nação saboreia, quer fazer saborear e compreender” (BARTHES, [19—], p. 40).

No momento em que, foucaultianamente, Barthes percebe que o poder está em toda parte, não é mais possível praticar um discurso de denúncia e de simples desmistificação, pois, como dizem as crô-nicas escritas em 1978 e 1979, não existe mais um lugar tranqüilo de onde se possa praticar a denúncia, sem que o desmistificador esteja preso aos mecanismos que denuncia. Pode-se dizer, com Barthes, que a contra-ideologia, como seu próprio nome já diz, não se exime de ideologia como exercício de poder mistificador. Pois a ideologia é o que domina praticamente em todo discurso, em toda parte, constituindo uma redundância a expressão “ideologia

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dominante”. Logo: “A luta social não pode reduzir-se à luta de duas ideologias rivais: é a subversão de toda ideologia que está em causa” (BARTHES, 1996, p. 45).

É assim que as referidas crônicas, publicadas originalmente em Le Nouvel Observateur, se recusam a praticar, pelo menos de modo frontal, a atividade do mitoclasta e do semioclasta. Apesar de trabalhar ainda alguns dos signos-mitos mais potentes de nossa cultura, elas evitam a todo custo “moralizar” os quadros que des-crevem. Emblemática disso é a crônica “Chez le coiffeur” (“No Cabeleireiro”). Num ambiente de conversa, subitamente uma voz masculina enuncia “Eu tenho um método para adestrar os cães e as mulheres. Mas as mulheres são mais difíceis” (BARTHES, 1995, v. III, p. 970). Toda uma dupla cena cultural do ocidente se ilumina: por um lado, a mulher como fera a ser domada, como as bestas perigosas; e, por outro, o cão também como um outro a ser submetido ao poder humano, de preferência masculino. Mas o comentário de Barthes se resume a notar que a mulher da caixa e a manicure estão felizes com a frase de efeito, por três motivos prováveis (todos parecem vir ao caso): a) satisfação pelo dito engenhoso; b) lisonja por terem “temperamento” mais forte do que os cães; c) simples conforto do estereótipo. Ele observa ain-da o olhar triste do cão que acompanha o homem e indaga como um animal tão nobre não percebe a estupidez de seu mestre. Em seguida, comenta uma matéria publicitária lida dias depois do acontecimento no cabeleireiro e que trata jocosamente as mulheres como cadelas. Nesse texto curto, emaranham-se duas cenas: uma, retirada do cotidiano; a outra, da mídia.

Nessa e nas outras crônicas, Barthes evita um discurso de denúncia, como haviam feito amplamente as Mitologias, restringindo-se à mera exposição dos fatos. Mas é a desconfiança quanto a essas descrições não estarem isentas de certa moral que o faz dese-jar interromper a escrita e a publicação dos textos, publicados, não esqueçamos, num periódico não-acadêmico, o Le Nouvel Observateur. Escreve, então, uma crônica justamente intitulada “Pause” (“Pausa”), para explicar a seus leitores a necessidade da

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interrupção, ainda que provisória. Nesse miniartigo está “todo o Barthes”, constituindo uma súmula de seus gestos de distancia-mento, recusa, teimosia, deslocamento, abjuração. Ressaltam no fragmento os aspectos éticos, pedagógicos, estéticos e políticos de Roland Barthes, expostos por ele mesmo com todas as letras.

O grande legado de Barthes, hoje, estaria também nessas pequenas iluminações do cotidiano que são as crônicas, comparadas por ele aos haicais japoneses, às epifanias joycianas e aos fragmentos de diário íntimo; excertos deste último gênero tiveram publicação póstuma em Incidentes. Tem-se em “Pausa” um Barthes em tom menor, mas ainda intensamente apaixonado pelos temas literários e culturais que sempre abraçou: “as operações de decifração dos signos nas sociedades ou na literatura sempre me apaixonaram” (BARTHES, 1982, p. 155). Apóia-se em Borges para dizer que o “menor” não significa um rebaixamento, mas é um gênero como qualquer outro, afirmando a necessidade de um combate pela doçura. No entanto, teme que as crônicas sejam Mitologias me-nos bem realizadas, além de manifestar o receio maior de cair na tipicidade do gênero crônica, ou seja, o categórico imperativo de extrair uma moral dos relatos. “Talvez seja preciso, e na imprensa mesmo, procurar resistir ao prestígio das grandes proporções, de maneira a frear o entusiasmo da mídia (fato histórico novo) em criar ela própria o acontecimento” (BARTHES, 1995, v. III, p. 991). A mídia estava apenas ensaiando os passos de sua capacidade de engendrar fatos, em vez de informá-los...

Daí emerge um “pequeno Barthes”:6

Sei que minha linguagem é pequena [...], mas talvez essa pequenez seja útil; pois é a partir dela que sinto por meu turno, às vezes, os limites do outro mundo, do mundo dos outros, do “grand monde”, e é para declarar esse incômodo, talvez esse sofrimento, que escrevo: será que não devemos hoje fazer ouvir o maior número possível de “pequenos mundos”? Atacar

6 Durante o Colóquio na USP, Antoine Compagnon qualificou o livro Roland Barthes por Roland Barthes como o “pequeno Barthes”. Compagnon fez, no entanto, questão de precisar que a designação tem um sentido apenas literal, tal como se diz Pequeno Larousse ou, como diríamos, Pequeno Aurélio, para indicar a versão reduzida dos dicionários. Sirvo-me aqui da mesma expressão, porém em sentido metafórico, como instrumento teórico-crítico para evitar a mitificação de Barthes.

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o “grande mundo” (gregário) pela divisão incansável das particularidades? (1995, v. III, p. 991).

No interior mesmo da grandiosidade de um mundo midiatizado, dentro da mundanidade que não pára de produzir seus mitos, é preciso falar a partir de um lugar menor, tal como propõem Deleuze e Guattari em relação à literatura menor de Kafka.7

Barthes fala, então, das múltiplas vozes que o habitam e que ele quer fazer ouvir em sua multiplicidade: as crônicas constituindo pedaços de ensaio para um futuro romance. Mas insiste no risco de se tornarem “moralidades”, e isso o descontenta, pois tudo o que deseja via escrita é pluralizar o sentido até suspendê-lo. Por serem mais “escritos”, os livros dificultam a mitologia, a estereotipia, a imobilidade, enquanto a imediatez desses escritos jornalísticos podem facilmente conduzir à armadilha da denúncia, tanto des-mistificadora quanto re-mistificadora.

Estamos no impasse final da obra. Barthes jamais abriu mão de ser político, nem se trata de uma desistência, mas de dar-se um intervalo para tomar fôlego e recomeçar de outro modo. A tarefa político-pedagógica da escritura não tem fim e, se esses textos não mais retornaram, as aulas no Colégio permitiram ainda por algum tempo, bem pouco na verdade, ouvir o grão minúsculo da voz – confirmam-no as publicações póstumas desses cursos.

Lembraria que numa entrevista publicada com Jean Ristat, escritor do romance altamente inventivo L’Entrée dans la baie et la prise de la ville de Rio de Janeiro em 1711, Barthes se permite discordar de seu entrevistado quando este declara o cansaço em relação a certos procedimentos da vanguarda:

Não creio que esse gênero de recurso esteja ultrapassado. Hoje o trabalho do escritor é um trabalho dialético, tático, é produzido numa sociedade que não está liberada. É um procedimento profundamente progressista, no sentido próprio do termo, fingir apoiar-se nessa espécie de referência e de autoridade extremamente consistente, a literatura ou a história, precisa-mente porque elas nos vêm da infância, de nossa cultura escolar. Desferir sobre esse corpus bastante sólido operações de prevaricação, de roubo ou

7 Agradeço a Philippe Roger a informação de que Kafka: por uma literatura menor era um dos livros de Deleuze que Barthes mais apreciava.

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de arrombamento não é um trabalho ultrapassado. [...] Sabemos muito bem que um esforço importante da literatura contemporânea e, digamos, do texto de vanguarda ao qual sua obra está incontestavelmente ligada se imprime na destruição das tipologias antigas: ou seja, nessa separação das obras literárias em gêneros efetivamente distintos que reinou em nossa literatura (BARTHES, 1993, v. II, p. 1645, grifo nosso).

Nesse diálogo publicado em 1973 como posfácio ao livro de Ristat, Barthes continua falando desse suposto romance que expropria e esfacela cada um dos gêneros, tornando impossível, sobretudo, o reconhecimento do grande gênero narrativo. Percebe-se, assim, como certos procedimentos de escritura são empregados com o objetivo de esfacelar o monumento literário, evitando conseqüen-temente a mitificação do Autor.

Tal como essa prática de esfacelamento dos grandes gêneros literários, a crônica final de 1979 defende um recolhimento estra-tégico do semiólogo-escritor, em busca de uma cada vez maior “isenção do sentido” (BARTHES, 2003, 1995). O texto acaba por se converter numa despedida de seus leitores. Roland Barthes veio a falecer no ano seguinte, em conseqüência de um atropelamento defronte ao Colégio de França. Mas na “Pausa” ficou consignado o legado barthesiano, não, como visto, pela destruição dos signos, mas pela travessia dos signos de maneira apaixonada. Rumo ao Neutro, ele sustentou a necessidade política de distanciamento e jogo, em vez de conflito niilista, reafirmando dessa maneira a suave força de uma paixão isenta.

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o rumor do autor em Fragmentos De um Discurso amoroso

marcelo Jacques De moraes

Como o título proposto evidencia, explorarei particularmente aqui três textos de Barthes bem conhecidos entre nós: os ensaios A morte do autor, de 1968, O rumor da língua, de 1975, e, naturalmente, Fragmentos de um discurso amoroso, de 1977, obra difícil de ser enquadrada em um gênero, mas que, não sem razão, é por muitos considerada como um texto de ficção, como uma escrita que tende ao romance.

Retomarei primeiramente alguns aspectos dos dois ensaios, articulando-os aqui e ali com outros textos de Barthes – especial-mente o ensaio Durante muito tempo fui deitar-me cedo, de 1978 –, para, em seguida, introduzir uma reflexão sobre o modo como a simulação”1 do discurso amoroso empreendida nos Fragmentos orquestra, com as vozes que os compõem, uma certa “experiência de rumor”,2 por meio da qual – ou, mais barthesianamente dizendo, na superfície da qual – se “[desenha] uma inteligência”,3 um estilo, encenando e reconfigurando – com ou contra o próprio Barthes, às vezes me parece difícil dizer – a noção de autoria.

Em A morte do autor, Barthes buscara demonstrar que a conside-ração do autor como origem absoluta do texto literário e, portanto, como personagem em torno da qual seu sentido deveria ser busca-do, é histórica, e está ligada à emergência e ao prestígio crescente

1 “On a donc substitué à la description du discours amoureux sa simulation [...]” (1977, p. 7).

2 “[...] ce que l’on pourrait appeler des expériences de bruissement [...]” (1984c, p. 101).

3 “[...] le dessin d’une intelligence [...]” (1984c, p. 102).

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do indivíduo burguês após a Idade Média.4 O “escriptor moderno” teria alçado a linguagem ao lugar do Autor, “enterrando-o”,5 e

não pode senão imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu único poder é o de mesclar escritas, contrariá-las umas às outras, de modo a ja-mais apoiar-se sobre apenas uma delas; quisera ele exprimir-se, ao menos deveria saber que a “coisa” interior que tem a pretensão de “traduzir” é ela própria apenas um dicionário todo composto, cujas palavras só podem ser explicadas por meio de outras palavras, indefinidamente.6

O passo dado por Barthes foi, como é notório, precioso para a reflexão crítica, uma vez que pôs em primeiro plano a linguagem em toda a sua complexidade, problematizando as noções de in-tenção e de subjetividade e a relação da obra com o contexto de seu aparecimento, explicitando a dimensão intertextual intrínseca a todo texto e valorizando o papel criativo do leitor na construção de seu sentido.

Entretanto, Barthes contextualiza historicamente esse “abalo” do “império do Autor”7 com bastante precisão, e parece difícil, sem levar em conta tal contexto, ler e interpretar as obras de Mallarmé, de Valéry, de Proust e dos surrealistas, que são os autores por ele citados no ensaio como precursores desse escriptor moderno. Ou seja, não se pode ler o ensaio de Barthes sem se ter também a impressão de que o contexto em que esses escritores produziram e o modo particular como dele se apropriaram são determinantes de certa configuração de pensamento comum a todos eles e de certos sentidos que se podem atribuir à obra de cada um deles. O próprio vocabulário de Barthes aponta para uma convergência entre intenção e determinação contextual: Mallarmé “viu e pre-viu em toda a sua amplitude a necessidade de colocar a própria 4 “L’auteur est un personnage moderne, produit sans doute par notre société dans la mesure

où, au sortir du Moyen Age, avec l’empirisme anglais, le rationalisme français, et la foi personnelle de la Réforme, elle a découvert le prestige de l’individu, ou, comme on dit plus noblement, de la ‘personne humaine’” (1984b, p. 64).

5 “[...] le scripteur moderne, ayant enterré l’Auteur, [...] sa main, détachée de toute voix, portée par un pur geste d’inscription (et non d’expression), trace un champ sans origine – ou qui, du moins, n’a d’autre origine que le langage lui même [...]” (1984b, p. 67).

6 “[...] le scripteur moderne, ayant enterré l’Auteur, [...] sa main, détachée de toute voix, portée par un pur geste d’inscription (et non d’expression), trace un champ sans origine – ou qui, du moins, n’a d’autre origine que le langage lui même [...]” (1984b, p. 67).

7 “Bien que l’empire de l’Auteur soit encore très puissant [...], il va de soi que certains écrivains ont depuis longtemps déjà tenté de l’ébranler” (1984b, p. 64).

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linguagem no lugar daquele que dela era até então considerado o proprietário[...]”; Valéry “acentuou a natureza lingüística e como que ‘audaciosa’ de sua atividade, e reivindicou ao longo de todos os seus livros em prosa a favor da condição essencialmente verbal da literatura [...]”; Proust, “a despeito do caráter aparentemente psicológico do que chamamos suas análises, deu-se visivelmente por tarefa turvar inexoravelmente, por meio de uma sutilização extrema, a relação do escritor com suas personagens [...]”; os surre-alistas “[recomendavam] incessantemente que se decepcionassem bruscamente os sentidos esperados...” etc.8 Assim, Barthes não deixa de lhes atribuir consciência e intencionalidade na produção de suas respectivas estéticas, e indica que não se pode lê-los sem perceber tais ou quais elementos mais ou menos evidentes de suas obras; ou, em outras palavras, que, ao menos quanto a certos aspectos, a singularidade de tais obras se deve menos à singula-ridade da leitura que delas se pode fazer do que ao modo como se organiza e se impõe sua linguagem. As reflexões do próprio Barthes não permitem, pois, no limite, considerar o sujeito da escrita como mero efeito de linguagem, como ele mesmo parece fazer em algumas ocasiões.9

Sendo assim, quando mata o Autor – ou melhor, quando mostra que de fato ele nunca existiu, que não passa de uma mitologia, do produto de uma crítica marcada pelo individualismo burguês –, Barthes obriga, na verdade, a postular uma outra noção de autoria, fundada numa outra lógica de determinação, que não “[impõe] ao texto uma trava”, “um significado último”, que não “[fecha] 8 “Mallarmé [...] a vu et prévu dans toute son ampleur la nécessité de substituer le langage

lui-même à celui qui jusque-là était censé en être le propriétaire [...]”; “Valéry [...] accentua la nature linguistique et comme ‘hasardeuse’ de son activité, et revendiqua tout au long de ses livres en prose en faveur de la condition essentiellement verbale de la littérature [...]”; “Proust [...] se donna visiblement pour tâche de brouiller inexorablement, par une subtilisation extrême, le rapport de l’écrivain et de ses personnages [...]”; “Le Surréalisme [...], recommandant sans cesse de décevoir brusquement les sens attendus [...]” (1984b, p. 64-65, grifo nosso).

9 Em Roland Barthes por Roland Barthes, ele alude a essa tendência: “Sente-se solidário de todo escrito cujo princípio é o de que o sujeito é apenas um efeito de linguagem. Imagina uma ciência muita vasta em cuja enunciação o sábio enfim se incluiria – que seria a ciência dos efeitos de linguagem”. [Il se sent solidaire de tout écrit dont le principe est que le sujet n’est qu’un effet de langage. Il imagine une science très vaste, dans l’énonciation de laquelle le savant s’inclurait enfin – qui serait la science des effets de langage”] (1975, p. 82).

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a escrita”,10 mas que, de alguma maneira, implica um modo de funcionamento do texto que lhe é próprio e que o torna, até certo ponto, semelhante a si mesmo e a outros textos do mesmo autor ou de seus contemporâneos, por exemplo. Se, conforme a alusão de Barthes no final do ensaio às pesquisas de Jean-Pierre Vernant sobre “a natureza constitutivamente ambígua da tragédia grega”, o leitor-espectador não pode não ouvir a ambigüidade das pala-vras e a surdez das personagens,11 é porque esses elementos ali se encontram independentemente dele, implicando, portanto, uma “inteligência” que organiza e agencia tais elementos, e que, mais do que isso, se dirige a um leitor, implicando, portanto, também, minimamente, determinado alcance interpretativo de sua parte.

Como entender, então, a frase com que Barthes encerra seu artigo, e que, aliás, sela irremediavelmente, ainda que por uma formula-ção aparentemente excludente, a associação entre autor e leitor, entre escrita e leitura? “O preço que se paga pelo nascimento do leitor, escreve ele, é a morte do Autor”.12 Parece-me que o fundamental é notar que, mais do que demonstrar a importância capital do leitor na construção do sentido do texto, implicando uma revisão e uma expansão criativa da atividade crítica, este passo vai permitir a Barthes postular que, do ponto de vista lógico da própria produção da obra, o leitor precede o autor: toda escrita é, antes de mais nada, trabalho de um leitor. Em Durante muito tempo fui deitar-me cedo, Barthes afirmará, por exemplo, que “o próprio móbil da literatura” é a projeção do leitor naquilo que lê, sua identificação seja com o pathos das personagens seja com o

10 “Donner un Auteur à un texte, c’est imposer à ce texte un cran d’arrêt, c’est le pourvoir d’un signifié dernier, c’est fermer l’écriture” (1984b, p. 68).

11 “[...] des recherches récentes [...] ont mis en lumière la nature constitutivement ambiguë de la tragédie grecque; le texte y est tissé de mots à sens double, que chaque personnage comprend unilatéralement [...]; il y a cependant quelqu’un qui entend chaque mot dans sa duplicité, et entend de plus, si l’on peut dire, la surdité même des personnages qui parlent devant lui: ce quelqu’un est précisément le lecteur (ou ici l’auditeur)” (1984b, p. 69).

12 “[...] la naissance du lecteur doit se payer de la mort de l’Auteur” (1984b, p. 69).

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do próprio autor, em seu desejo de escrever.13 Escrever é sempre, portanto, escrever leituras, a partir de leituras, com autores, contra eles. E esse autor consciente de ser um leitor-que-escreve – que é o escriptor moderno de Barthes – é aquele que, antes de tudo, se sabe, a despeito de si, assombrado por outros autores, outros textos, outras palavras. Aquele que sabe que sua língua não lhe pertence inequivocamente, que seu dizer tem, irremediavel mente, as marcas do dizer do outro. Escrever é, pois, para ele, em solilóquio, tornar seu dizer consciente dessa alteridade constitutiva e dialogar com o outro, interrogar-se e interrogá-lo, e, assim, alterar-se, tornar-se, por sua vez, outro. A negatividade e a busca da impessoalidade que caracterizam a modernidade não deixam de ser um modo de atuação deste sujeito consciente de sua deriva subjetiva.

Mas não é apenas isso. Para Barthes, que, até o fim, se põe na po-sição de quem aspira ainda a se tornar um escritor – em 1978, já consagrado, ele se define sempre como “aquele que quer escrever” –, o escritor da “obra por fazer”14 é um leitor que não quer mais “[falar] sobre alguma coisa”, mas “[fazer] alguma coisa”.15 É por aí que Barthes pensa a passagem a uma vita nova,16 passagem da escrita de “natureza uniformemente intelectual”, a que até então se teria consagrado,17 para uma escrita sem metalinguagem, que ponha em cena a dinâmica subjetiva do desejo, o enigma da identidade deste eu permanentemente dividido, rasgado entre a vontade de “consistência (seu prazer) e a busca da própria perda

13 “[...] dans la littérature figurative [...] il me semble qu’on s’identifie plus ou moins (je veux dire par moments) à l’un des personnages représentés; cette projection, je le crois, est le ressort même de la littérature; mais dans certains cas marginaux, dès lors que le lecteur est un sujet qui veut lui-même écrire une oeuvre, ce sujet ne s’identifie plus seulement à tel ou tel personnage fictif, mais aussi et surtout à l’auteur même du livre lu, en tant qu’il a voulu écrire ce livre et y a réussi [...]” (1984d, p. 333-334). Mais adiante, nesta mesma conferência, Barthes alude novamente a essa projeção do leitor e afirma que “on reconnaît mal le pathos comme force de lecture [...]” (1984d, p. 344).

14 “[...] l’oeuvre à faire (puisque je me définis comme ‘celui qui veut écrire’) [...]” (1984d, p. 344).

15 “Je me mets en effet dans la position de celui qui fait quelque chose, et non plus de celui qui parle sur quelque chose [...]” (1984d, p. 346).

16 “[...] la recherche, la découverte, la pratique d’une forme nouvelle, cela, je pense, est à la mesure de cette Vita Nova [...]” (1984d, p. 343) .

17 “[...] l’oeuvre que je désire et dont j’attends qu’elle rompe avec la nature uniformément intellectuelle de mes écrits passées [...]” (1984d, p. 345).

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(seu gozo)”, como ele dissera em O prazer do texto.18 Para além da ressonância com a distinção entre escrita e escrevência, entre escrita intransitiva e escrita instrumental, postulada desde 1960,19 é num fragmento de Roland Barthes por Roland Barthes em que o escritor se indaga sobre “o que é a influência”, que colho mais um elemento para pensar o que está em jogo nessa passagem do “falar sobre” ao “fazer”: “É preciso distinguir os autores sobre os quais escrevemos [...] e os autores que lemos; mas destes, o que me vem? Uma espécie de música, uma sonoridade pensativa, um jogo mais ou menos denso de anagramas.” E Barthes prossegue exemplificando: “Estava com a cabeça cheia de Nietzsche, que eu acabara de ler; mas o que eu desejava, o que eu queria captar era um canto de idéias-frases: a influência era puramente prosódica.”20

Sonoridade pensativa que encontra, talvez, no fragmento, justa-mente, sua possível tradução em escrita: “O fragmento tem seu ideal: uma alta condensação, não de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade (como na Máxima), mas de música; ao ‘desenvol-vimento’ se oporia o ‘tom’, algo de articulado e de cantado, uma dicção: ali deveria reinar o timbre.”21 Sonoridade pensativa que pode, talvez, ser pensada como o que Barthes postula no ensaio sobre O rumor da língua como sendo da ordem da “música do sentido”,22 deste sentido “indiviso, impenetrável, inominável”, “posto ao longe como uma miragem”, e que seria “o ponto de fuga do gozo”.23

18 “[...] il jouit de la consistance de son moi (c’est son plaisir) et recherche sa perte (c’est sa jouissance).” (1973, p. 26).

19 Cf. 1964, p. 147-154.20 “Il faut donc distinguer les auteurs sur lesquels on écrit [...] et les auteurs qu’on lit; mais

ceux-là, qu’est-ce qui me vient d’eux? Une sorte de musique, une sonorité pensive, un jeu plus ou moins dense d’anagrammes. (J’avais la tête pleine de Nietzsche, que je venais de lire; mais ce que je désirais, ce que je voulais capter, c’était un chant d’idées-phrases: l’influence était purement prosodique)” (1975, p. 110-111). O grifo é meu.

21 “Le fragment a son idéal: une haute condensation, non de pensée, ou de sagesse, ou de vérité (comme dans la Maxime), mais de musique: au ‘développement’, s’opposerait le ‘ton’, quelque chose d’articulé et de chanté, une diction: là devrait régner le timbre” (1975, p. 98).

22 “[...] une musique du sens [...]” (1984c, p. 101).23 “[...] le sens, indivis, impénétrable, innommable, serait [...] posé au loin comme un

mirage, [...] le sens serait ici le point de fuite de la jouissance” (1984c, p. 101).

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Essas reflexões sobre a “impossível [mas não] inconcebível” noção de rumor da língua24 me parecem autorizar a formulação da noção – talvez não menos impossível – mas do mesmo modo conce bível – de rumor do autor. Se o rumor da língua é a uto-pia de uma “máquina” textual de funcionamento estável, de um “imenso tecido sonoro no qual o aparelho semântico se encontra-ria irrealizado”,25 ele não se faz ouvir, como qualquer máquina, sem que se lhe suponha “alguma coisa como uma meta”;26 não se faz ouvir sem “[fazer] ouvir uma isenção de sentido”, sem “[fa- zer] ouvir ao longe um sentido doravante liberto de todas as agressões de que o signo [...] é a caixa de Pandora”.27 Ou seja, o rumor da língua não se faz ouvir sem a suposição de um trabalho sobre a linguagem, sobre o sentido, sobre o corpo: no limite, sem a suposição de um sujeito que trabalhe, isto é, de um corpo-que--escreve. De fato, Barthes sabe bem que a utopia da isenção de sentido – que ele chama de “pós-sentido” em Roland Barthes por Roland Barthes – se constitui por travessia: “é preciso atravessar, como ao longo de um caminho iniciático, todo o sentido, para poder extenuá-lo, isentá-lo”,28 escreve ele. E sabe também que tal tra-vessia é impensável sem um trabalho de escrita. Uma experiência de rumor é, pois, sempre uma operação de leitura/escrita, e seus traços materiais – o tom, a dicção, o timbre – sempre pressupõem uma atribuição de autor.

Assim, o rumor do autor talvez pudesse ser definido como essa atmosfera provocada por uma máquina textual que afeta mais os sentidos do que a mente, que solicita mais a intuição do que a aná-

24 “Mais ce qui est impossible n’est pas inconcevable: le bruissement de la langue forme une utopie” (1984c, p. 100-101).

25 “[...] un immense tissu sonore dans lequel l’appareil sémantique se trouverait irréalisé [...]” (1984c, p. 101).

26 “[...] quelque chose comme un but [...]” (1984c, p. 102).27 “[...] reporté à la langue, [le bruissement] serait ce sens qui fait entendre, une exemption

de sens, ou – c’est la même chose – ce non-sens qui ferait entendre au loin un sens désormais libéré de toutes les agressions dont le signe, formé dans la ‘triste et sauvage histoire des hommes’, est la boîte de Pandore” (1984c, p. 101).

28 “[...] il ne s’agit pas de retrouver un pré-sens, une origine du monde, de la vie, des faits, antérieure au sens, mais plutôt d’imaginer un après-sens: il faut traverser, comme le long d’un chemin initiatique, tout le sens, pou pouvoir l’exténuer, l’exempter” (1975, p. 90).

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lise, permitindo-nos experimentar essa “libertação das agressões do signo”, mas que leva necessariamente, pela mobilização que opera, a supor uma pensatividade própria – tomo emprestado o termo a Michel Deguy. Experiência-limite que, como no cálculo infinitesimal, só se pode definir por aproximação, o que, no caso do texto, se faz por adjetivação. Como, por exemplo, a sonoridade pensativa nietzschiana de que falava Barthes.

Nesse sentido, Fragmentos de um discurso amoroso é exemplar. Como de uma partitura, o rumor que dele expande começa a se desenhar desde a disposição do texto na página em branco. Ao folhearmos o livro, vozes de autores, de personagens, de obras, de anônimos designados por iniciais, dispostas às margens dos fragmentos, prefiguram, qual o coro de uma orquestra afinando as vozes antes do concerto, sonoridades e pensatividades possíveis. Alinham-se e sucedem-se, pois, diversos outros, mais ou menos insistentes, vozes que se entoam de modo ainda indistinto, mas sem por isso se neutralizar. A seguinte passagem de O rumor da língua bem poderia servir para descrever a experiência inicial do leitor dessa máquina:

O rumor [...] implica uma comunidade de corpos: nos ruídos do prazer que “funciona”, nenhuma voz se eleva, conduz ou se desvia, nenhuma voz se constitui; o rumor é o próprio ruído do gozo plural – mas de modo algum maciço (a massa, ao contrário, tem uma só voz, terrivelmente forte).29

Entretanto, folheando mais atentamente a partitura, reconhecemos um ritmo, uma dicção, um timbre que de algum modo subsumem a pluralidade. Blocos de parágrafos isolados, notas, citações entre aspas, parênteses, itálicos, pontuação bem ritmada, travessões, bar-ras, reticências... “A escrita começa pelo estilo”, afirmara Barthes em Roland Barthes por Roland Barthes. Todas essas marcas, que podem ser repertoriadas entre o que ele chama de os “mil traços

29 “[...] le bruissement [...] implique une communauté de corps: dans les bruits du plaisir qui ‘marche’, aucune voix ne s’élève, ne guide ou ne s’écarte, aucune voix ne se constitue; le bruissement, c’est le bruit même de la jouissance plurielle – mais nullement massive (la masse, elle, tout au contraire, a une seule voix, et terriblement forte)” (1984c, p. 100).

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de [seu] trabalho do estilo”,30 não deixam dúvida: a máquina é barthesiana.

Num outro fragmento de Roland Barthes por Roland Barthes, em que celebra – é este o título do fragmento – “a fantasia, não o sonho”,31Barthes refere-se de outro modo à questão do “começo da escrita”:

O sonho me desagrada porque nele se fica completamente absorvido: o sonho é monológico; e a fantasia me agrada porque permanece concomi-tante à consciência da realidade (a do lugar em que estou); assim se cria um espaço duplo, desencaixado, escalonado, no seio do qual uma voz (eu não saberia dizer qual, a do café ou a da fábula interior), como no andamento de uma fuga, se põe em posição de indireto: alguma coisa se trança, é, sem pena nem papel, um começo de escrita.32

Talvez pudéssemos fazer uma analogia entre a consciência que tem o escritor, postulada por Barthes, desde A morte do autor, da presença de outras linguagens na sua e essa presença intermitente da realidade na fantasia, presença que se encontra velada tanto na ilusão monológica do sonho quanto na ilusão do Autor de que seriam dele próprio as vozes que se encontram na origem do que produz. O “começo de escrita” se daria justamente a partir do reconhecimento, sempre entre o real e o fantasmático, de que, ainda que indiscernível como tal, há sempre um outro em si, al-teridade no mesmo. A escrita partiria, então, em última instância, da fabulação dessa presença e do desejo de apropriar-se dela: a incorporação da voz do outro à própria voz, da “voz do café” à voz da “fábula interior”. Significaria, talvez, passar da monologia do sintoma – da histeria, a que Barthes tanto se referia – à dialogia de um estilo.

30 No fragmento intitulado “L’écriture commence par le style”, Barthes refere-se aos “mille traits d’un travail du style” presentes em sua obra. (1975, p. 80).

31 “Le fantasme, pas le rêve” (1975, p. 90).32 “Le rêve me déplaît parce qu’on y est tout entier absorbé: le rêve est monologique; et

le fantasme me plaît parce qu’il reste concomitant à la conscience de la réalité (celle du lieu où je suis); ainsi se crée un espace double, déboîté, échelonnée, au sein duquel une voix (je ne saurais jamais dire laquelle, celle du café ou celle de la fable intérieure), comme dans la marche d’une fugue, se met en position d’indirect: quelque chose se tresse, c’est, sans plume ni papier, un début d’écriture” (1975, p. 90).

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Mas voltemos aos Fragmentos. Ao explicar como é feito o livro, Barthes escreve: “Substituiu-se a descrição do discurso amoroso por sua simulação, e deu-se a esse discurso sua pessoa funda-mental, que é o eu, de modo a pôr em cena uma enunciação, não uma análise.”33 É interessante notar que neste prefácio, em que explica sua, digamos, filosofia de composição, Barthes emprega o pronome francês on, como que para prevenir o leitor da pluralidade que o eu da enunciação dos Fragmentos recobre. Afinal, como ele relata: “montaram-se pedaços de origem diversa. Há o que vem de uma leitura regular [...], o que vem de leituras insistentes, [...] o que vem de leituras ocasionais, [...] o que vem de conversas com amigos, [...] e enfim o que vem de [sua] própria vida.”34

Diferentemente do que ocorre na obra do Barthes ensaísta, que incita à reflexão teórica, as figuras propostas nos Fragmentos, desenvolvidas a partir de imagens episódicas, excitam de saída o imaginário amoroso do leitor. Longe de engajar seu espírito analítico, tais figuras despertam e desdobram suas lembranças amorosas, elas o convidam a instalar-se, num movimento retroativo de identificação, no “lugar de palavra” a que Barthes alude em sua introdução,35 conforme essas figuras lhe permitem retomar, não sem um arrepio de prazer, não sem mobilizar-lhe o corpo, seu próprio solilóquio amoroso mais ou menos recentemente interrompido. E levantando a cabeça (aquele levantar a cabeça de que Barthes falava a propósito de sua leitura de Balzac e que o levara a escrever seu S/Z),36 ele mergulha em reminiscências amorosas inscritas em sua memória, em seu corpo: “Como isso é

33 “On a donc substitué à la description du discours amoureux sa simulation, et l’on a rendu à ce discours sa personne fondamentale, qui est le je, de façon à mettre en scène une énonciation, non une analyse” (1977, p. 7).

34 “Pour composer ce sujet amoureux, on a ‘monté’ des morceaux d’origine diverse. Il y a ce qui vient d’une lecture régulière [...] ce qui vient de lectures insistantes [...], ce qui vient de lectures occasionnelles [...], ce qui vient de conversations d’amis. Il y a enfin ce qui vient de ma propre vie” (1977, p. 12).

35 “[...] ce portrait [...] donne à lire une place de parole [...]” (1977, p. 7).36 “Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, de interromper incessantemente a leitura, não por

desinteresse, mas ao contrário, por afluxo de idéias, de excitações, de associações? Em uma palavra, nunca lhe aconteceu de ler levantando a cabeça?” [“Ne vous est-il jamais arrivé, lisant un livre, de vous arrêter sans cesse dans votre lecture, non par désintérêt, mais au contraire par afflux d’idées, d’excitations, d’associations? En un mot, ne vous est-il pas arrivé de lire en levant la tête?”] (1984a, p. 33).

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verdade! Reconheço essa cena de linguagem”,37 ele se dirá, cheio de prazer, alçando-se à dimensão de protagonista e preenchendo esse eu com suas pequenas ficções pessoais.

Não é exatamente uma “emoção” desse tipo que Barthes, aludindo a certas passagens de Guerra e Paz e da Recherche proustiana, descreverá como “momentos de verdade” de sua experiência de lei-tor em sua Vita Nova, como “os pontos de mais-valia da anedota” que caracterizariam o romance e que lhe inspiram a orientação da “obra por fazer”?38 Referindo-se a esta – quem sabe inspirando--se em seus próprios Fragmentos, à época desta conferência já publicados – ele diz:

Gostaria de um dia desenvolver este poder do Romance – poder afetuoso ou amoroso [...] Posso apenas lhe pedir que cumpra, a meus próprios olhos, três missões. A primeira seria a de me permitir dizer aqueles que amo. [...] A segunda [...] seria me permitir a representação de uma ordem afetiva, plenamente, mas indiretamente. [...]. Enfim e talvez sobretudo, o Romance não exerce pressão sobre o outro (o leitor); sua instância é a verdade dos afetos, não a das idéias.39

Parece-me que os Fragmentos já tinham de certa forma cumprido essas três missões...

À guisa de conclusão, na figura “Estou louco”, de Fragmentos, Barthes escreve:

Há cem anos, a loucura (literária) reputadamente consiste nisto: “Eu é um outro”: a loucura é uma experiência de despersonalização. Para mim, sujeito apaixonado, é exatamente o contrário: é tornar-me um sujeito, não poder me impedir de sê-lo, que me deixa louco. Não sou um outro: é o que constato com horror.

[...]

37 “Comme c’est vrai, ça! Je reconnais cette scène de langage” (1977, p. 8).38 “[...] les moments de vérité sont comme les points de plus-value de l’anecdote” (1984d,

p. 344).39 “J’aimerais un jour développer ce pouvoir du Roman – pouvoir aimant ou amoureux

[...] Je puis seulement lui demander de remplir à mes propres yeux trois missions. La première serait de me permettre de dire ceux que j’aime. [...] La seconde [...] ce serait de me permettre la représentation d’un ordre affectif, pleinement, mais indirectement. [...] . Enfin et peut-être surtout, le Roman [...] ne fait pas pression sur l’autre (le lecteur); son instance est la vérité des affects, non celle des idées” (1984d, p. 344-345).

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Marcelo Jacques de Moraes

Sou indefectivelmente eu mesmo, e é nisso que sou louco: sou louco porque consisto.40

Para o leitor nostálgico de grandes romances que se torna Barthes (“um grande romance como, infelizmente, não se fazem mais”, diz ele, por exemplo, falando de Guerra e Paz),41 a ficção, enquanto figuração do afeto, é figuração da consistência, de “momentos de verdade”. “A verdade está na consistência”, escreve em Roland Barthes por Roland Barthes, citando Poe.42 Como o apaixonado, o leitor dos Fragmentos pode se sentir louco, mas irremediável e deliciosamente aderido a si próprio, a seu passado tornado pre-sente, à sua própria vida, a seu próprio corpo.

Numa forma absolutamente compatível com a que Barthes postulou para o seu escriptor moderno, os Fragmentos produzem, de certo modo, o efeito que produziam aqueles romances que não se fazem mais. Seu rumor, seu pós-sentido, é, em suma, barthe-siano e seu protagonista é o leitor. Não foi à toa que se tornou um best-seller...

Referências

BARTHES, Roland. Écrivains et écrivants. In : _____. Essais critiques. Paris: Seuil, 1964. p. 147-154.

______. Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973.

______. Fragments d’un discours amoureux. Paris: Seuil, 1977.

BARTHES, Roland. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975.

______. Écrire la lecture. In : ______. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984a. p. 33-36. (Essais critiques, 4).

40 “Depuis cent ans, la folie (littéraire) est réputée consister en ceci: ‘Je est un autre’: la folie est une expérience de dépersonnalisation. Pour moi, sujet amoureux, c’est tout le contraire: c’est de devenir un sujet, de ne pouvoir m’empêcher de l’être, qui me rend fou. Je ne suis pas un autre: c’est ce que je constate avec effroi. [...] Je suis indéfectiblement moi-même, et c’est en cela que je suis fou: je suis fou parce que je consiste” (1977, p. 142).

41 “[...] un grand roman, comme, hélas, on n’en fait plus [...]” (1984d, p. 343).42 “La vérité est dans la consistance” (1975, p. 63).

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O rumor do autor em Fragmentos de um discurso amoroso

______. La mort de l’auteur. In : ______. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984b. p. 63-69. (Essais critiques, 4).

______. Le bruissement de la langue. In : ______. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984c. p. 99-102. (Essais critiques, 4).

______. Longtemps je me suis couché de bonne heure. In : ______. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984d. p. 333-346. (Essais critiques, 4).

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o que exiSte para mim: fichaS, coreS, fragmentoS

lúcia teixeira

Em A Câmara clara, Roland Barthes introduz sua “nota sobre a fotografia” com uma espécie de angústia do objeto: do “desejo ontológico” de querer saber o que seria a “fotografia em si” (BAR-THES, 1984, p. 12) à impossibilidade de produzir uma classifi-cação vinculada à sua “essência”, o pensamento do autor vagueia em busca não só de uma metodologia, mas de uma definição mais “científica” do objeto. Como se devesse ao leitor explicações que pudessem justificar a escolha que acabará por fazer, Barthes inicia sua reflexão pela impossibilidade: o que não se pode fazer, o que a fotografia não é, o que os estudos sobre fotografia não oferecem. Em um pequeno parágrafo expõe sua “resistência apaixonada a qualquer sistema redutor”, referindo-se a alguns modelos de crítica (o da sociologia, o da semiologia, o da psicanálise) e ao desconforto de oscilar entre uma linguagem “expressiva” e outra “crítica”. Estratégia astuciosa do discurso, que parece duvidar de sua própria possibilidade de pertencer a um universo que lhe confira sentido, a angústia de Barthes vai desembocar, afinal, na soberania do sujeito:

Resolvi tomar como ponto de partida de minha busca apenas algumas fotos, aquelas que eu estava certo de que existiam para mim. [...] Aceitei então tomar-me por mediador de toda a Fotografia: eu tentaria formular, a partir de alguns movimentos pessoais, o traço fundamental, o universal sem o qual não haveria Fotografia (BARTHES, 1984, p. 19).

Essa escolha não pode ser tomada como a única possível? Como falar do que não existe “para mim”?

As fichas

Em 2003, no inverno parisiense, a exposição R/B: Roland Barthes, no Centre Georges Pompidou,1 fartava o espectador de imagens e

1 Agradeço a Marcelo Jacques de Moraes por todos os comentários que trocamos, por todos os interesses comuns e diversos que nos dispersaram e juntaram entre as vitrines e paredes do Pompidou.

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de objetos, na tentativa de reconstituir ali, entre dispersão e acú-mulo, o universo de interesses de Barthes, mas não só isso: havia também obras de artistas contemporâneos, instalações visuais e sonoras que tentavam dar conta da “atualidade” do escritor. Como imagens distantes, revejo a projeção luminosa de palavras que constituiriam o léxico barthesiano, ou ouço ao longe a sonoridade do corredor destinado a dar eco à música de sua preferência. Era uma exposição sem janelas, sem vista para o exterior; fechados ali, naqueles corredores largos e salas escurecidas, os espectado-res viviam a plena experiência dos sentidos: a música na entrada e a voz de Barthes no interior, as instalações, os canhões de luz jorrando palavras, e o DS19, carro dos anos 30 – um carro dentro do museu! –, com a função didática de remeter às Mitologias; e mais as obras de Louise Bourgeois, Arcimboldo, Saül Steinberg, Cy Twombly, desenhos de André Masson e de Klee, fotografias da infância do homenageado, de sua presença na universidade, um Mondrian, a foto “de dois jovens adolescentes, de pé, nus, num cenário que evoca a Arcádia da Grécia Antiga”, de Wilhelm von Gloeden. Fragmentos de uma visita que, entretanto, distraiu-se das imagens mais grandiosas para fixar-se primeiro nos objetos de trabalho: os manuscritos, os arquivos, as fichas.

Numa parede ao fundo, uma espécie de vitrine rasa e comprida expunha, protegidas pelo vidro, algumas fichas de Barthes, a emoção de sua letra bonita e de sua disciplina: literatura, niilismo, democracia, burguesia, mas também bobagem, utopia, dispersão do sentido. Anotações em forma de verbetes, indicações biblio-gráficas, lembretes, roteiros de publicação – eram estes pequenos fragmentos, ao lado das aquarelas e guaches de Barthes, os objetos que “existiam para mim” naquele lugar de penumbra.

Percorre-se uma exposição como se entra num texto: de início, sensações ainda sem discurso, a pulsação de materialidades sig-nificantes, o sujeito imerso na inquietação do sentido ainda por vir; em meio a isso, uma repetição, uma ruptura, uma intensida-de, um descompasso – e o sentido começa a tomar forma. Numa exposição, como num texto, é preciso selecionar, associar, im-

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O que existe para mim: fichas, cores, fragmentos

primir descontinuidades, para compreender. Há uma ordem para o percurso, há seqüências e interrupções, o tempo do movimento marcado no espaço dividido em salas, núcleos, temas. Para chegar às fichas, passava-se pelos cadernos de anotações, exibidos em enorme mesa-vitrine, e dali, dessa mesa-vitrine, podia-se sentar em pequenas banquetas estofadas, colocar um fone no ouvido e ouvir as lições de Barthes, ou se podia, substituindo a profundidade pela lateralidade, observar os desenhos e pinturas em papel. Qualquer desses movimentos conferia uma direção a determinados sentidos e fazia outros se perderem. Rememorados, transformados em memória, apagados alguns, reforçados outros, os movimentos do percurso produzem agora já um novo sentido para a experiência irrepetível, a que não existe mais.

No entanto, as fichas estavam lá e me emocionavam – a lembrança delas ainda hoje, aqui, ecoando. Lá elas me pareciam apenas o contraponto de um espírito livre: a escritura desafiadora, obscura às vezes, sinuosa outras, em busca de um tom menos obediente às regras da academia (o esgotamento do saber, a explicação rigorosa, a produção de uma verdade), ancorava-se, enfim, no saber disciplinado, na ordem classificatória, na preocupação com a minúcia e o rigor. Foi também como contraponto, então, que pensei nas aquarelas, guaches, desenhos: associadas à escritura, seriam manifestações desse mesmo espírito livre que precisava, entretanto, da ordem, do método, da disciplina.

As fichas, o que mais poderiam ser? Em depoimento no catálogo da exposição, o historiador de arte Jean-Louis Shefer lembra o dia em que, muito jovem, entrou no ambiente de trabalho de Barthes, para lhe mostrar, por interferência de um amigo de família, alguns escritos. Conta o impacto do jovem de 19 anos diante do escritório sóbrio, a mesa, alguns livros, as canetas ordenadas, os tinteiros enfileirados, as caixas de sapato recicladas como arquivos de fichas. Pergunta o jovem: “como as organiza?” E Barthes: “Faço uma ficha por idéia” (SCHEFFER, 2002, p. 101).

Enganadora simplicidade! Uma ficha por idéia, a idéia adquirindo aqui seu sentido mais corriqueiro, um lampejo de pensamento,

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um conceito, um tema, um assunto. Das muitas idéias fichadas (fixadas, para repetir a associação do próprio Barthes) saíram seus livros, suas aulas. Louis-Jean Calvet conta que, para escrever seu livro de 100 páginas sobre Michelet, Barthes gastou 12 anos de trabalho e produziu mais de mil fichas (CALVET, 1993, p.133-134). O próprio Barthes assim explicava seu método:

Eu copiava nas fichas as frases que mais me agradavam, sob qualquer pretexto, ou as que, muito simplesmente, se repetiam; classificando essas fichas um pouco como quem se diverte com um jogo de cartas, não tive outro caminho a não ser esbarrar numa temática (CALVET, 1993, p. 15-16).

Calvet comenta ainda que Barthes gostava de exibir suas fichas aos visitantes, “dispondo-as sobre a mesa qual um jogo de cartas, separando-as por temas, exercendo manualmente uma pesquisa de estruturação que desenvolveria mais tarde na organização do livro” (CALVET, 1993, p. 82). O caráter lúdico se associa à disciplina, para introduzir o prazer no trabalho: “Meu corpo só está livre de todo imaginário quando reencontra seu espaço de trabalho. Esse espaço é, em toda parte, o mesmo, pacientemente adaptado ao pra-zer de pintar, de escrever, de classificar” (BARTHES, 2003, p. 50).

Esse comentário aparece ao lado de três fotos selecionadas para o livro Roland Barthes por Roland Barthes, em que o autor, em dois diferentes locais de trabalho, pinta, escreve e classifica o material. Aos prazeres de “pintar” e “escrever”, junta-se o de “classificar”, e as três ações não só têm o mesmo valor sintático, mas incluem--se também no mesmo espaço semântico e físico do trabalho, que vem associado ao prazer. Em todas as três fotos há – para usar uma palavra cara ao autor – uma inflexão do corpo na direção do trabalho, um movimento de concentração favorecido pela ordem dos ambientes. Essa gestualidade concentrada é percebida na coordenação entre olhos, mãos e cabeça; livre do imaginário que o constitui, concentrado apenas nos movimentos exigidos pelo trabalho, o corpo, essa presença do homem no mundo, não é só fisicalidade, é também afetividade e tensividade: pende para o objeto de desejo. Mas também pode ser que esse corpo que se deixa fotografar não passe de ilusão: pois, para posar, “fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipada-

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mente em imagem”, diz o próprio Barthes (1984, p. 22). Esse corpo que sofre a inflexão, que chama a atenção para a presença ativa do objeto, o que significa esse corpo na pose em que o contemplo? Entregue ao trabalho e ao prazer, incorpora-se pacientemente a uma certa ordem estética.

É de uma relação estética que se trata e, no entanto, ao contrário do que diriam os estudiosos de poética herdeiros do mesmo estru-turalismo do qual nasce o pensamento de Barthes, essa estetização não advém de uma ruptura, mas de uma repetição, não se faz de rompimento, mas de iteratividade. Quanto mais repetida a ação, mais carregada de sentidos: dizer de novo é sempre dizer de outro modo. Adensa-se o sentido a cada vez que o sujeito cataloga, es-creve, classifica, tocando no corpo da palavra como quem toca na madeira para lhe dar forma, como quem cuida de um artesanato:

Vem então o momento em que flutuo: nenhuma vontade de trabalhar; às vezes, faço um pouco de pintura, ou vou buscar aspirina na farmácia, ou queimo papéis no fundo do jardim, ou fabrico uma carteira, um escaninho, uma caixa para fichas; chegam assim quatro horas e novamente trabalho (BARTHES, 2003, p. 95).

Ainda uma vez, é a enumeração de ações ordinárias que indica a força perturbadora do cotidiano; aqui, parece que o trabalho se desvincula do prazer, mas não é assim que se deve ler Barthes, não na linearidade das sentenças. O trabalho só pode existir na vontade, é preciso cultivá-la, distraindo as idéias, deixando à de-riva o desejo: no fogo, na aspirina, nas caixas de fichas. Vagueia o desejo para, afinal, fixar-se no trabalho e buscar, também aí, no que se concretiza como escritura, a ordem estética. Esse ritmo entrecortado, esse andamento feito da retomada de movimentos repetidos, esse encaixe-desencaixe de fragmentos – é neles que está o sentido estético da existência.

O cotidiano então não é nem o tédio nem o transbordamento, mas a possibilidade de flutuar na ordinariedade das ações, para que a vontade acabe por contagiar todos os gestos. O mesmo Barthes que, ao piano, em vez de improvisar, era um “fiel decifrador de partituras” (CALVET, 1993, p. 131), também ao escrever, ao pintar

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(já veremos) faz da iteratividade das ações ordinárias o mecanismo de busca da perfeição (e, no entanto, com que consciência da im-perfeição!). Passar do silêncio à música é imprimir um corte num continuum, criar uma quebra na continuidade por meio da qual o sentido passa a existir. Era o próprio Barthes quem dizia que o barulho uniforme, contínuo, era a impossibilidade de sentido, porque impossível de estruturar. A estrutura – o sentido – exigia a escolha: silêncio ou fala (BARTHES, 2002, p. 134).

E, no entanto, além e fora da estrutura, ou para dentro dela, mas fora da escolha binária, é possível insistir na música, repeti-la, mo-dular essa nova continuidade por meio de tensões, relaxamentos, intensidades, paradas e retomadas – eis outro modo de fazer existir o sentido. De um lado, ruptura, de outro, adensamento. Como bem sabe todo pianista, é preciso repetir e repetir, executar à exaustão a música que se lê na pauta. Mas repetir não é adestrar, aprimorar, é mais, é sempre buscar, pois que dizer de novo é sempre dizer de outro modo.

A oposição entre a música e o silêncio é apenas o mínimo estrutu-ral a partir do qual se produz o sentido; o sentido além, o sentido que acontece como encantamento ou como susto, como enlevo ou como brutalidade, o sentido que me arranca da ordem rotineira e me projeta num outro quadro de valores e referências, este sentido estético que me põe em nova comunhão com o mundo, que reedita a conjunção inicial do homem no mundo, é dado aqui pela repe-tição, pela ordem, pela disciplina metódica que adensa o sentido.

Já Philipe Sollers dizia que a maneira de Barthes organizar sua vida era um “gesto estético” (CALVET, 1993, p. 277): a divisão das amizades em classes, os horários dedicados ao trabalho e à vida mundana, os ambientes adequados a essa ou aquela experiên cia, tudo na vida de Barthes tem a marca da classificação e da ordem, da disciplina. O homem que não sabia operar sem o binarismo, sabia, entretanto, manejar a estrutura como “garantia (modesta) de liberdade” (BARTHES, 2003, p. 134). Sabia que, entre um ponto e outro de uma oposição estrutural, há uma escolha a ser feita, mas sabia também explorar gradações e sinuosidades, para cultivar a

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possibilidade de fazer deslizarem os sentidos em variadas direções. O texto “bonito”, então, o texto “bem escrito” é a única forma de dar conta dessa deriva dos sentidos, o texto que parte da ordem das fichas para perder-se na desordem estética do corpo da palavra.

No Carnet de voyage en Chine, pequena caderneta azul em espiral, em que, com letra rápida e gesto apressado, registrou suas impres-sões da viagem à China, Barthes reanima-se com a descoberta da soberania do significante. Em viagem ao Japão, já havia percebido: “um sistema quase inteiramente imerso no significante funciona sobre um recuo incessante do significado” (BARTHES, 1995, p. 96-97). Na ocasião do lançamento de O império dos signos, dirá: “Este ensaio se situa em um momento da minha vida em que senti a necessidade de entrar inteiramente no significante, ou seja, de me desprender da instância ideológica como significado, como risco de retorno do significado, da teologia, do monologismo, da lei” (BARTHES, 1995, p. 98).

Essa inflexão para o significante talvez explique sua dispersão para o desenho, a pintura em guache e aquarela sobre papel. Nas cadernetas, nas folhas timbradas da École, nas cartolinas recor-tadas, nas pequenas folhas pautadas ou quadriculadas, em todos esses suportes, os traços que materializam a visualidade da lin-guagem escrita logo passarão pelo acréscimo da cor e das formas desenhadas, para alcançar a experiência plena da sensualidade dos materiais.

As cores

A relação entre desenho, pintura e palavra obedece, em Barthes, ao mesmo movimento de selecionar um ponto da dualidade estrutural, para, em seguida, atravessar a oposição (pela deriva, pelo deslize) e encontrar um terceiro termo, que empurre, por um tremor, um abalo, a coerção da estrutura para um lugar de liberdade, uma nova região de sentidos. Ainda uma vez, é a idéia da dispersão que permite falar em adensamento. Transitar de um significante a outro, testar diferentes experiências sensíveis de escritura, é eliminar uma certa idéia de escolha que implica a ou b e afirmar

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o desejo de soma, de acúmulo: a e b. Ao analisar os trabalhos de Cy Twombly, Barthes anuncia: “De repente, porém, surge algo novo, um desejo: o desejo de fazer a mesma coisa: dirigir-me à outra mesa de trabalho (não a mesa da escrita), e pintar, traçar” (BARTHES, 1990, p. 173).

Duas mesas, não importa se materialmente duas mesas, mas dois modos de trabalho, uma diferença, portanto; mas de que trata essa diferença? De duas gestualidades, de dois corpos que se concentram diferentemente diante do papel, de dois materiais, de dois modos de ocupar o suporte. No entanto, a cor interessa-lhe primeiramente pelo nome:

Quando compro tintas, guio-me apenas por seus nomes. O nome da cor (amarelo-indiano, vermelho-persa, verde-celádio) traça uma espécie de região genérica no interior da qual o efeito exato, especial, da cor é imprevisível: o nome é então a promessa de um prazer, o programa de uma operação: sempre há futuro nos nomes plenos (BARTHES, 2003, p. 146).

Sempre há futuro, sempre há promessa de sentidos na ausência de lugares fixos, na possibilidade de fragmentar, de separar, esse gesto de poder sobre o mundo: separo, divido, classifico para com-preender, para tomar posse. Depois posso distorcer, faço do nome uma centelha, um começo. Barthes trabalhava em duas mesas, executava dois trabalhos diferentes, mas juntava os materiais em sua nomeação. Ao permitir que a materialidade de um significante provocasse a outra materialidade, fazia do verbal um tremor e da cor uma surpresa: o acidente, o acaso.

As aquarelas e guaches que produziu na década de 1970, justa-mente quando começou a interessar-se como crítico pela pintura e pelo desenho, constituem um conjunto já algumas vezes exposto, não inteiramente, mas em amostragens bastante significativas. Na exposição de Paris, 30 desenhos e pinturas sobre papel estão reproduzidos no catálogo e é sobre essa amostra que me detenho.

Jean-Marie Floch, em seu estudo sobre a escritura e o desenho de Barthes (FLOCH, 1985), propõe que os traços e manchas de que se compõem seus desenhos sejam integrados ao conjunto de sua obra.

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Como bom estruturalista, Floch vai reduzir o sentido do trabalho de Barthes a duas oposições, uma axiológica, entre morte e vida, outra aspectual, entre iteratividade e duratividade. Observa que, em O Império dos signos, há uma oposição aspectual constante que organiza tanto os processos temporais quanto os espaciais, tanto os textos sonoros quanto os visuais e/ou gestuais: são sempre processos caracterizados pela iteratividade. Da mesma maneira, conclui que a escritura plástica de Barthes privilegia a disposição espacial, privilegiando a mesma organização iterativa.

É preciso dizer que, quando afirmo que Floch reduz o pensamento de Barthes a duas oposições, não uso a idéia de redução num senti-do depreciativo: reduzir, aqui, é ser capaz de disciplinar o universo de sentidos proposto por Barthes (e o que mais faz um analista?) e oferecer um mínimo de sentido a partir do qual se pode penetrar num universo rico, complexo e aberto, oferecer, portanto, a opor-tunidade de agir como Barthes: distinguir, diferenciar, ordenar e depois fazer deslizar o sentido, fazer provocações à disciplina do binarismo estrutural.

Se observarmos, por exemplo, as pinturas – e vamos chamar indistintamente de pinturas as aquarelas e guaches, uma vez que o catálogo não identifica a técnica de cada reprodução –, não fugiremos à tentação de estabelecer dois grupos de trabalhos: no primeiro, há uma massa multicolorida, constituída de manchas em contato, organizada como uma figura geométrica, em geral um retângulo de bordas irregulares, centralizada no suporte; as formas estão agregadas, as cores, agrupadas como volumes de cor. No segundo grupo, as formas coloridas se soltam umas das outras, o suporte aparece entre as manchas de cor, “respira” na composição, que vem, então, “aerada” pelo branco do papel. É Barthes (1990) que, ao analisar Twonbly, usa a idéia de “telas arejadas”, em que o suporte “respira” nos espaços que circulam em torno dos gestos do pincel.

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Figura 1 – Pintura nº 3 do catálogo. Extraida do catálogo da exposição do Centre Pompidou. Edições do Centre Georges

Pompidou, Seuil, Paris, 2002 (p. 140).

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Figura 2 – Pintura nº 17 do catálogo. Extraida do catálogo da exposição do Centre Pompidou. Edições do Centre Georges

Pompidou, Seuil, Paris, 2002 (p. 154).

Facilmente podemos identificar aqui uma oposição, no plano de expressão das obras, entre uma organização espacial concentrada e outra dispersiva, a que corresponde uma oposição de conteúdo entre disciplina e deriva. A riqueza do trabalho, entretanto, não está em aí se oferecer ao analista uma oposição que, num trabalho explicativo, minucioso, se poderia facilmente associar ao modo de o pensamento de Barthes manifestar-se em sua escritura. Era Barthes quem queria “desfazer, destruir, dispersar o discurso dis-sertativo em proveito de um discurso descontínuo” (BARTHES, 1995, p. 85). A riqueza do trabalho plástico de Barthes está em desfazer, pelo amadorismo do ato, tanto a formalização da com-posição plástica quanto a obrigação de analisá-la tecnicamente.

Comecemos por dizer: as pinturas de Barthes são belas e sensíveis. Ora, nada existe nessa frase de louvável do ponto de vista da escri-tura acadêmica. Digamos em seguida: as pinturas de Barthes não são manifestações plásticas de qualidade artística, que envolvam, por exemplo, as noções de sublime ou de ruptura. Segunda frase a

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ser menosprezada num texto acadêmico. E, no entanto, essas são as frases que me motivam a escrever, isso é o que “existe para mim”, é de onde posso começar.

Fiz o percurso: segui mesmo o método de Barthes, observei, fichei, anotei, procurei depois as reiterações, a afirmação de uma oposição, de uma idéia que pudesse servir de fio condutor do pensa-mento, da análise. Observei as formas sinuosas, circulares, as cores em combinações aparentemente aleatórias. Notei a diferença entre duas séries de pinturas, uma com as formas agregadas, contínuas, outra em que as formas, as manchas, os traços vão se soltando, se descontinuando, para produzir uma idéia de emaranhado, de arabescos às vezes. Identifiquei aí a oposição entre continuidade e descontinuidade, concentração e dispersão. Fui adiante, associando os procedimentos ao significado: a concentração corresponderia à disciplina, a dispersão, à deriva, ao deslizamento dos sentidos.

No entanto, alguma coisa me incomoda nessa objetivação da análise: é como se caísse numa armadilha. Como se destruísse o caráter lúdico desse trabalho, como se matasse o prazer. Não cairia aqui em outra armadilha, a do intelectual que recusa a função de seu trabalho e acolhe a voz do senso comum, que acha que vamos além do texto, para ajudar a destruir o prazer da leitura, logo nós que vivemos desse gosto! Mas é preciso desconfiar da seriedade da análise, dos óculos na ponta do nariz à procura de um traço que segmente um outro, uma mancha que se sobreponha a outra, um volume cromático que crie efeitos de sombra, uma margem maior que outra, uma irregularidade de contorno – é preciso desconfiar de Barthes. Tudo isso posso encontrar em suas pinturas, da mesma maneira que poderia usar o estudo que faz de Twombly para, apro-veitando as categorias com que opera, definir seu próprio trabalho plástico como um embate entre o Rarus e o pleno, esvaziamento e preenchimento, depuração e saturação.

Parece-me, entretanto, que Barthes brincava. Como posso obser-var o jogo cromático se as tintas eram compradas “pelo nome”? Como poderia analisar a utilização do branco do suporte como matéria significante se o timbre da École me mostra o aprovei-

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tamento acidental do papel? Como seria possível falar do efeito de experimentação desses trabalhos se eles são verdadeiramente experimentação? Prefiro então dizer que os trabalhos são belos, sensíveis, interessantes. Dizer nada. (Saberá o leitor que disse tudo e agora desdigo. Saberá, talvez, avaliar minha incapacidade, minha insegurança. Essa minha oscilação é, entretanto, a forma possível de falar desse trabalho plástico de Barthes: brincadeira, experimentação, mas também outra forma de escritura, outra forma de afirmar seu método, seu pensamento. Enquanto parava de escrever para pintar, Barthes continuava a trabalhar, enquan-to deixava o pincel aproximar-se do papel, tocá-lo, marcá-lo, preenchê-lo de cores, de arabescos, enquanto isso, era da vida dos signos que continuava a tratar, era disso que falava sempre, vivendo a experiência do corpo na palavra, no rabisco, na cor. Seu desafio permanente era o da escritura, era o de desconstruir o lugar penoso do trabalho pela introdução do prazer. Seus desenhos, suas pinturas são um modo de dizer de novo, mas de outra maneira, o que escrevia: corte e iteratividade. Ainda: pode ser que devesse desconfiar dos depoimentos de Barthes. Como na pose do retrato, ele constrói um personagem. Mas se é só desse personagem que podemos falar, sempre...)

Os fragmentos

Chantal Thomas, em texto publicado no catálogo da exposição do Pompidou (THOMAS, 2002), toma aquilo que na obra de Barthes é borda, margem, para analisar a função e o sentido do fragmento, para ela um corte que quebra o avanço retórico do discurso, sua tendência à ênfase. O corte abre abruptamente para uma dúvida, uma questão, uma falta: o momento em que se pensa em outra coisa, ou na mesma coisa, mas de outro modo; fragmentar, assim, é permitir uma mobilidade, uma escolha entre várias disposições. Romper a continuidade do ato de escrever com a ação de pintar, por exemplo, é impor uma quebra, para respirar, aerar o pensamento e retornar a ele de outro modo. Ao falar de sua pintura, dizia Barthes (2003, p. 109): “tenho o gosto [...] do pormenor, do fragmento, do rush”). Sobre o que escrevia: “a pertinência [...] vem apenas

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nas margens, nas incisas, nos parênteses, de viés: é a voz off do sujeito” (p. 87).

Não são a mesma coisa, o fragmento e as margens. Um se refere a um modo de se apropriar da escrita, da linguagem. Outro diz respeito ao que, lá no escrito, no pintado, está encoberto pelo principal, pelo que chama a atenção. O fragmento é a parada, a descontinuidade, as margens são a continuidade, o excedente. Ambos têm, entretanto, um caráter semelhante: são pouco nobres. Prefere-se a dissertação contínua ao texto interrompido, elíptico, pouco conclusivo. Prefere-se o centro, o principal, ao acessório. Barthes preferia o que não se prefere e é por isso que obriga ao gesto da oscilação, porque é preciso encontrar, para além ou para fora da linearidade, os muitos modos de produzir um pensamento. No entanto, há uma linearidade, fragmento e margem sendo apenas um tremor no texto, uma aeração, um Rarus na massa do discurso, dos volumes, dos traços. Mas é por esse espaço vazio, por esse corte que o corpo do texto respira. Logo, existe.

A obra de Barthes só pode ser lida e compreendida se seu méto-do de trabalho for reiterado na leitura. Ler e reler, anotar, fichar, marcar, separar, reler, juntar, então fragmentar e recomeçar. Não há fim, não há começo, há movimento, o tempo todo, em todas as direções. Por isso, talvez, a “palavra-maná” de Barthes seja corpo (BARTHES, 2002, p. 146): por saber que ali está a “semente do desejo” (p. 85), única possibilidade de insatisfação, de rebeldia, de procura. A fragmentação é esse gesto do corpo de recusar a profusão, a proliferação, o excesso.

Na exposição do Pompidou, o percurso se fazia entre fragmen-tos, não só do que fora produzido por Barthes (cadernos, notas, desenhos, voz, frases), mas também das partes dele e dos outros que ali estavam (Louise Bourgeois, Arcimboldo, Saül Steinberg, Cy Twombly, André Masson, Klee, Mondrian, von Gloeden), e ainda dos objetos de que se apropriara ou de que se servia, ali (o carro, as estantes, as vitrinas). A curadoria conseguia repetir, na montagem da exposição, o método de Barthes, sua visão larga e

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curiosa, dispersiva, submetida a um pensamento estruturante, a busca da concentração, e de novo o deslize e o retorno.

Já no título da exposição, a referência imediata ao título de uma das obras de Barthes, S/Z, soa como provocação: R/B, em letras grandes, volumosas, pretas, e, em vermelho, letras menores, abai-xo do B, Barthes, acima do R, Roland, toda essa disposição não poderia ser apenas “o demônio da analogia” (BARTHES, 2002, p. 56). Mas a analogia é inescapável, não há sentido sem ela: “assim que uma forma é vista, é preciso que ela se assemelhe a algo: a humanidade parece condenada à Analogia” (p. 56). Pois então o primeiro sentido do título da exposição é esse, o da analogia com o título do ensaio sobre a novela de Balzac (que também signifi-cava mais, claro, do que o jogo com o par opositivo de fonemas).2

Figura 3 – Reprodução da capa do catálogo. Extraida do ca-tálogo da exposição do Centre Pompidou. Edições do Centre

Georges Pompidou, Seuil, Paris, 2002.

2 “Porque eu quis dar um monograma que emblematizasse toda a novela de Balzac, sendo S a inicial do escultor Sarrasine, Z a inicial de Zambinella, o travesti, o castrado. [...] de um ponto de vista muito balzaqueano, um pouco esotérico, deve-se ter em conta os malefícios da letra Z, que é a letra do desvio, a letra desviada” (BARTHES, 1995, p. 121).

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A barra, em lingüística, separa, opõe. R/B: R é consoante fricativa vibrante; B é oclusiva bilabial, diferem no modo e no ponto de articulação. Roland diferencia-se de Barthes? Aproximam-se os fonemas na sonoridade, ambos vibram, fazem vibrar o ar quando de sua passagem pelas cordas vocais. Roland é o mesmo Barthes? R e B são símbolos gráficos quase semelhantes, basta emendar uma curva fechada na perna do R e se fará um B: Barthes domina Roland?

Não chegando a ser 300, Barthes não eram dois. Não cabe nas questões em que a resposta deve ser necessariamente a escolha de uma posição. É preciso, então, abolir a barra, deixar que cada termo deslize para o outro lado, rumoreje nessa passagem, roce o corpo gráfico e sonoro do outro nesse deslizamento. Indo mais além, será preciso, na leitura da obra de Barthes, abolir todas as barras – mas não sem antes reforçá-las, recuperar seu valor de distinção, curvar-se à coerção que impõem. Depois, então, esgarçar a barra, forçá-la, fazê-la rota, frágil, mexer nela, acabar com ela.

Se falamos de uma obra que gira em torno de uma ética do signo, é preciso começar pela barra significante/significado. Abolir a barra, aqui, será expandir o signo em lateralidade, em profundidade, dar--lhe movimento, graça, algum peso, sinuosidade, soprar-lhe o ar da vida. Para isso, libertar o signo da relação naturalizada, analógica, explorar novas regiões de produção de sentidos. Barthes submetia--se à pulsação da matéria: a cor aderia ao suporte, tocar a página branca com o pincel embebido na tinta era já expressar-se; e a tinta era também a palavra que lhe dava nome; e a palavra, então, era o começo e o fim. Mas não há fim, não há começo, há movimento.

Não há origem nem finalidade nos textos, sempre o que há, para que se fale o novo, o nunca antes, é, só pode ser, experimentação – amadorismo, risco, audácia. R/B só existe como RB se a escolha é o salto. E o salto tanto pode ser... mas não é possível concluir com mais um binarismo! O salto é uma inconclusão.

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Referências

ALPHANT, Marianne; LÉGER, Nathalie (Dir.). R/B: Roland Barthes. Catalogue de l´exposition R/B. Paris: Seuil, 2002.

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

______. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

______. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

______. O grão da voz. Rio de Janeiro: F. Alves, 1995.

______. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

CALVET, Louis-Jean. Roland Barthes: uma biografia. São Paulo: Siciliano, 1993.

FLOCH, Jean-Marie. L´écriture et le dessin de Roland Barthes. In: FLOCH, J.-M. Petites mythologies de l´oeil et de l´esprit: pour une sémiotique plastique. Paris: Hadès ; Amsterdam: Benjamins, 1985.

DE LA FORTERIE, Maud. Roland Barthes: fragments savoureux. Art Actuel, Paris, p.30-31, janv./févr. 2003.

GUÉGAN, Stéphane. Roland Barthes: mystique mytologue. Beaux Arts, Paris, p. 35, févr. 2003.

SCHEFER, Jean Louis. Le bloc de crystal. In: ALPHANT, Ma-rianne; LÉGER, Nathalie (Dir.). R/B: Roland Barthes. Catalogue de l´exposition R/B. Paris: Seuil, 2002.

THOMAS, Chantal. L´orée de l´écriture. In: ALPHANT, Marian-ne; LÉGER, Nathalie (Dir.). R/B: Roland Barthes. Catalogue de l´exposition R/B. Paris: Seuil, 2002. p. 78-80.

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a prática da aula noS curSoS do collège De France

leyla Perrone-Moisés

Em sua Aula Inaugural do Collège de France,1 Roland Barthes traçava as linhas gerais do ensino que pretendia ministrar naquela casa. Infelizmente, pouco tempo de vida lhe restava para cumprir aquele programa. Apenas três cursos foram oferecidos por ele, de 1977 a 1980, anos que corresponderam ao auge de sua fama como escritor, mas também a uma fase depressiva de sua vida pessoal, caracterizada pelo luto por sua mãe e a perda do entusiasmo em sua escritura.

Dois desses cursos encontram-se agora publicados: Comment vivre ensemble e Le Neutre (Como viver junto e O Neutro).2 Os leitores podem então conferir, com mais de 20 anos de atraso, a realização prática dos princípios enunciados na Aula. É preciso lembrar, inicialmente, que o texto desses cursos é constituído por fichas preparatórias dos mesmos, apresentando variados estados de redação, desde a simples nota ou referência até trechos mais extensamente redigidos. A transcrição dessas fichas foi completada com o auxílio de gravações sonoras dos cursos. Assim sendo, se nesses dois volumes reencontramos pontualmente a inteligência, a originalidade de visão, o humor e a auto-ironia que caracteriza-vam o Mestre, não encontramos neles a plenitude de sua escritura.

A diferença entre o curso e o livro foi assinalada por ele mesmo. De fato, alguns de seus cursos da École Pratique des Hautes Étu-des haviam sido publicados, posteriormente, como livros: S/Z, Fragmentos de um discurso amoroso. A transformação em livro exigira uma reescritura das notas utilizadas nas aulas e, mais do que isso, uma reestruturação das mesmas, implicando tanto expansões como cortes e sínteses, em função do projeto geral de cada livro. Por isso, Barthes alertava os ouvintes de suas aulas do Collège: 1 Cf. BARTHES (1978, 1980).2 Cf. BARTHES (2002a, 2002b, 2003a, 2003b).

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“O livro sobre o discurso amoroso é talvez mais pobre do que o seminário, mas eu o considero mais verdadeiro” (BARTHES, 2002a, p. 178).

A Aula Inaugural tinha sido pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977. O primeiro curso, Comment vivre ensemble, começou logo em seguida, no dia 12 de janeiro, e corresponde ao ano letivo de 1976-1977. A proximidade temporal em relação à Aula faz com que esta seja freqüentemente evocada no curso. Sente-se mesmo, da parte de Barthes, a preocupação em honrar a obrigação assumi-da, e realizar os propósitos anunciados na Aula. Assim, a primeira aula opõe o método à paidéia ou cultura. O método é o “enca-minhamento para um objetivo”, “um caminho reto” em direção a resultados. A cultura, no sentido nietzchiano de “violência sofrida pelo pensamento sob a ação de forças seletivas” (DELEUZE, 1962), corresponde à paidéia dos gregos, educação, formação no sentido largo, percurso livre no campo do saber. O que Barthes explicita: “Trata-se pois, aqui, pelo menos como postulação, de cultura e não de método. Nada esperar acerca do método – a me-nos que se tome a palavra em seu sentido mallarmaico: ‘ficção’: linguagem refletindo sobre a linguagem” (BARTHES, 2002a, p. 34). Essa concepção do método estava expressa na Aula, quando ele dizia que, em seu ensino, o método não seria heurístico, isto é, visando a produzir deciframentos e apresentar resultados, mas seria, como propunha Mallarmé, uma ficção. Lembremos que o subtítulo do curso é: Simulações romanescas de alguns espaços quotidianos (grifo nosso).

Barthes dizia ainda, na Aula (1980), que “a operação fundamental desse método de desprendimento [seria], ao escrever, a fragmen-tação, e ao expor, a digressão ou, para dizê-lo por uma palavra preciosamente ambígua: a excursão”. Ora, o curso Comment vivre ensemble é constituído de fragmentos, e desenvolve-se por digressões, sem chegar (sem querer chegar) a nenhum resultado concreto. Isso porque o objetivo do curso é reconhecido, desde o início, como inalcançável ou irrealizável: a utopia da idiorritmia. O projeto utópico de Barthes seria o de uma pequena comunidade

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móvel, na qual cada um dos membros pudesse viver ao mesmo tempo em companhia e em liberdade. A questão seria a seguinte: “O grupo idiorrítmico é possível? Pode haver uma comunidade de seres sem Finalidade e sem Causa?” A resposta é evidentemente negativa. A vida em comunidade tende a se apoiar em crenças e regras comuns, anulando as diferenças individuais. Por isso, o cur-so se coloca de antemão como uma proposta romanesca, utópica.

Na escolha desse tema, Barthes realizou outra das propostas da Aula: a de que o assunto de cada curso correspondesse a uma fantasia (ou fantasma) pessoal. No início desse primeiro curso, ele remete os ouvintes à Aula: “Cf. Aula inaugural sobre o ensino fantasmático. Fazer partir a pesquisa (cada ano) de uma fantasia” (BARTHES, 2002a, p. 34). (Referência que será repetida no se-gundo curso: “Lembrar aula inaugural [...]” (BARTHES, 2002b, p. 38). Essa afirmação polêmica é então retomada: “a primeira força que posso interrogar, interpelar, aquela que conheço em mim, embora através do logro do imaginário: a força do desejo, ou para ser mais preciso (já que se trata de uma pesquisa): a figura da fantasia”. A fantasia estaria na origem da cultura, como geração de forças, de diferenças. A utopia da idiorritmia é apresentada como um fantasma pessoal do professor.

Se o curso não chega a nenhuma conclusão, ou à conclusão de que seu objeto é impossível, a “excursão” que ele faz é fascinante: so-mos levados a refletir sobre (ou a sonhar com) a vida dos eremitas e monges do Monte Atos, na alta Idade Média, os mosteiros budistas do Ceilão, a vida solitária ou comunitária, em textos literários tão diversos como Robinson Crusoé de Defoe, Pot-Bouille de Zola, A montanha mágica de Thomas Mann ou La Séquestrée de Poitiers de Gide. O caráter fantasmático da escolha é posto em evidência no que concerne aos mosteiros do Monte Atos:

É preciso entender que, para haver fantasia, é preciso que haja cena (roteiro), portanto, lugar: Atos (onde nunca estive) fornece um misto de imagens: Mediterrâneo, terraço, montanha (na fantasia, a gente oblitera; aqui, a sujeira, a fé). No fundo, é uma paisagem. Eu me vejo lá, num ter-raço, o mar ao longe, as paredes caiadas [...] (BARTHES, 2002a, p. 37).

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Não chegar a nenhuma conclusão é coerente com o desígnio prin-cipal, enunciado na Aula, lutar contra o poder que é próprio da linguagem. A preocupação então expressa é retomada no curso: “Por minha linguagem, quais são as linguagens que eu rejeito?” Trata-se, sempre, de neutralizar os poderes que se alojam nos dis-cursos, em especial no discurso magistral. Seu próprio discurso é situado na “perspectiva do desejo, e não da lei”, o mestre sendo um desejante, não um guru (BARTHES, 2002b, p. 61). Um dis-curso “à margem da margem, lá onde deve estar, infinitamente, o verdadeiro combate” (BARTHES, 2002b, p. 51).

A busca desse discurso desprovido de poder é, também, a renúncia ao domínio exercido sobre um tema ou sobre seus ouvintes:

Assim, quanto mais livre for esse ensino, tanto mais será necessário indagar-se sob que condições e segundo que operações o discurso pode despojar-se de todo desejo de agarrar. Esta interrogação constitui, a meu ver, o projeto profundo do ensino que hoje se inaugura (BARTHES, 1980, p. 10).

O despojamento do “desejo de agarrar”, que Barthes colhera no ensinamento oriental, taoísta ou zen, é um topos de sua obra tar-dia, servindo tanto para o tema do amor como para o do ensino. No caso do curso sobre o Neutro, ele reconhece que se trata de uma aporia: falar do Neutro num curso é transformá-lo em lei; não falar seria renunciar ao próprio curso. E ele lembra que, na Aula, é a própria literatura que é “a representação do mundo como aporética” (BARTHES, 2002b, p. 102).

A questão do método, colocada na primeira aula, é retomada no curso três meses mais tarde. O método é então considerado como dependente de “um psiquismo fálico de ataque e de proteção”, enquanto o não-método pertenceria ao “psiquismo da viagem, da mutação extrema (borboletear, sugar o pólen)” (BARTHES, 2002b, p. 180). A função do professor vê-se modificada, porque ele se apresenta apenas como o fabricante de um quebra-cabeças que os alunos devem montar: “O curso ideal seria talvez aquele em que o professor – o locutor – seria mais banal do que seus ouvintes, aquele no qual o que ele diz estaria em retração com

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respeito ao que suscita” (p. 181). No curso sobre o Neutro, ele definirá o seu lugar como “fora da maestria”, já que ele “não ensina o todo”, mas é “um artista” no sentido nietzschiano do termo (p. 97-98). A reflexão sobre a “relação de ensino” vinha de antes, na obra de Barthes. Desde os seminários da École, ele desenvolvia considerações sobre a maneira de “desmontar a maestria”, de criar com os alunos uma relação mais baseada nos desejos do que nos saberes, na produção do que na reprodução.3

O seminário consecutivo a esse primeiro curso, e que tinha por títu-lo Tenir un discours, também é posto em relação com as propostas da Aula, de modo explícito. No caso desse seminário, a fantasia desencadeadora seria de outra espécie. “Persigo a exploração de uma fantasia de irritação: a linguagem do outro [...], na medida em que ela irrita, isto é, na medida em que ela subjuga, a linguagem entrando [...] numa relação de força na qual me sinto ameaça-do” (BARTHES, 2002a, p. 188). Por outro lado, esse seminário corresponderia àquela nova semiologia anunciada na Aula, uma semiologia que é “a desconstrução da lingüística” (BARTHES, 1980, p. 30). O que é aí buscado é um novo tipo de análise de discurso, que levaria em conta as táticas, os subentendidos, em suma, os afetos ditados pelo inconsciente do locutor (BARTHE, 2002a, p. 211).

Nem a “excursão” através das diversas formas de viver, junto ou só, chega a uma conclusão, nem o novo tipo de análise de discurso praticado no seminário serve como método científico, pois ele se limita a jogar, de modo brilhante e prazeroso, com supostas unidades de sentido chamadas, não sem humor, de “tactemas” ou “explosemas”. O intertexto criado com Andromaque de Racine, assim como os recursos à retórica de Perelmann e aos princípios da psicanálise, agem como inspiradores da análise e não como verdadeiras referências “científicas” ou propostas de método. A psicanálise é comparada a “um grande véu pintado: a maia” (BARTHES, 2002a, p. 218). A maia, no budismo, representa o mundo como ilusão.3 Cf. “Écrivains, intellectuels, professeurs” (1971) e, sobretudo, “Au séminaire” (1974),

In: BARTHES (1984a, 1984b).

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Assim, outro ponto firmado na aula inaugural, e posto em prática nos cursos do Collège é o que se refere à negação da metalingua-gem:

A semiologia, embora, na origem, tudo a isso a predispusesse, não pode ser ela mesma uma metalinguagem. É precisamente ao refletir sobre o signo, que ela descobre que toda relação de exterioridade de uma lin-guagem com respeito a outra é, com o passar do tempo, insustentável (BARTHES, 1980, p. 37).

A recusa da metalinguagem corresponde, também, ao abandono da ambição totalizadora, da conclusão, da “última palavra”. A opção pela liberdade individual implica a aceitação da visão parcial e a adoção da forma fragmentária de exposição.

Em vários momentos dos cursos do Collège, Barthes se refere ao estruturalismo como uma fase que ele não renega, mas deixou para trás. Em Como viver junto, ele coloca lado a lado uma história medieval de eremita e um trecho da Busca proustiana, mostrando que ambos os textos têm a mesma estrutura, que ele chama da “loucura a dois” (BARTHES, 2002a, p. 106-110). Toda a prática da análise estrutural da narrativa é mobilizada para isso, mas sem a ambição estruturalista de chegar a um universal. Em outra aula do curso, ele lembra o “esquema atuacional” de Greimas, mas é para criar a categoria nova (e de certa forma derrisória) de “atuante dejeto” (p. 121). Na análise do “discurso Charlus” ele procede “à maneira estrutural”, mas observando, desde o início, que não se trata da “descrição de um tipo (de uma gramática)”, porque esse discurso é único, isto é, um Texto, no sentido forte do termo. Trata--se de “partir do conhecido [a análise estrutural] para abrir uma porta dando sobre o menos conhecido [o aparecimento da noção de força no campo da análise]” (p. 204-205).

Barthes teve de fornecer, ao Collège de France, o resumo de cada um de seus cursos (BARTHES, 2002a, p. 221-222). É curioso verificar como, ao fazer esse resumo burocrático, ele consegue tornar os cursos mais aceitáveis pela academia sem, no entanto, ocultar sua originalidade. Logo no início do resumo, Barthes chama a atenção para a realização daquilo que fora proposto na

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Aula, mas substitui a palavra “fantasme” por outra mais neutra, “imaginaire”: “Na aula inaugural desta cátedra, postuláramos a possibilidade de ligar a pesquisa ao imaginário do pesquisador. Desejamos, este ano, explorar um imaginário particular: não todas as formas de ‘viver junto’ (sociedades, falanstérios, famílias, ca-sais) mas principalmente o ‘viver junto’ de grupos muito restritos, nos quais a coabitação não exclui a liberdade individual”.

Quanto ao método, ele não diz aí que ele é “uma ficção”, mas apresenta-o de modo muito menos polêmico: “O método adotado foi, ao mesmo tempo, seletivo e digressivo” (BARTHES, 2002a, p. 221). “Seletivo” faz calar, de antemão, as restrições que se poderiam opor a “digressivo”. Também é sublinhado o aspecto “científico” do método: “Conforme aos princípios do trabalho semiológico, procuramos destacar, na massa de modos, hábitos, temas e valores do ‘viver junto’, traços pertinentes, por isso mes-mo descontínuos, e que poderiam ser subsumidos, um a um, sob uma palavra de referência” (p. 221). E a conclusão, esperada pela instituição, é assim explicada, e adiada: “Não retomamos esses temas numa síntese geral. [...] Este curso só podia desembocar num problema de ética da vida social, que será retomado sob outra forma no curso do próximo ano” (p. 222).

O seminário sobre o “discurso Charlus” também é mais conven-cional no resumo do que na prática do curso. De maneira muito clássica, Barthes começa por uma formulação de ordem geral, axiomática, para justificar a pertinência da pesquisa: “A linguagem humana, atualizada em ‘discurso’, é o teatro de uma prova de força entre parceiros sociais e afetivos. É essa função de intimidação da linguagem que quisemos explorar”. O texto se encerra pela referência de dois clássicos da literatura francesa: Proust e Raci-ne. Esse resumo demonstraria, se necessário fosse, o domínio da retórica clássica por Barthes.

O curso sobre o Neutro foi ministrado no ano letivo de 1977-1978. O resumo deste segundo curso, como o do primeiro, o torna menos esotérico. Esse resumo (BARTHES, 2003b, p. 261-262) se inicia, astutamente, pela expressão tão pouco barthesiana “é natural

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que”: “É natural que a semiologia literária se deixe guiar em suas pesquisas pelas categorias tratadas pela lingüística. Do Neutro, gênero gramatical, induzimos uma categoria muito mais geral à qual demos o mesmo nome mas tentamos observar e descrever”. Sem falsear a descrição do conteúdo do curso, Barthes o torna, entretanto, mais claro e assertivo do que na verdade ele foi. “Ten-tamos fazer entender que o Neutro não correspondia forçosamente à imagem chata, profundamente depreciada que dele tem a Doxa, mas podia constituir um valor forte, ativo”. Também é sublinhado que o professor dialogou com os ouvintes e levou-os a “participar ativamente do trabalho do curso”. As palavras “ativo” e “atividade” são, evidentemente, do agrado da instituição que solicita o resumo.

Na prática, trata-se ainda de realizar as propostas da aula inaugural, bem menos palatáveis para a Academia. Trata-se, como sempre e desde a primeira aula, da recusa do dogmatismo e, portanto, da própria fala magistral: “Instituição, aula ’‡preparam um lugar de maestria. Ora, meu problema constante: desmontar a maestria” (BARTHES, 2002b, p. 36). O próprio tema corre o risco de se apresentar de forma dogmática, se for tratado de modo sistemático. Por isso, ele se apressa a corrigir: o Neutro não se apresenta como oposto à arrogância; trata-se de desmontar o paradigma, e não de o reconstituir (p. 37). O modo de evitar que o Neutro se constitua em valor exemplar é agrupar os temas numa ordem aleatória, “para que o sentido não pegue”.

Como fora colocado na aula inaugural, o que Barthes procura, nessa última fase de sua vida, é, não o saber, mas uma sabedoria existencial: “O que eu busco, na preparação do curso, é uma introdução ao viver, um guia de vida (projeto ético): quero viver segundo a nuance” (BARTHES, 2002b, p. 37). E, como proposto na Aula e já realizado no primeiro curso, a pesquisa partirá de uma fantasia: “Lembrar a aula inaugural: promessa de que, a cada ano de aula, a pesquisa partiria abertamente de uma fantasia pessoal. Em síntese: eu desejo o Neutro, portanto, postulo o Neutro. Quem deseja, postula (alucina)” (p. 38). Mais do que o “viver junto”, o Neutro é insustentável como curso e invendável como livro.

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Trata-se, portanto, apenas de “agüentar treze semanas sobre o insustentável: em seguida, isso se abolirá” (p. 39).

Na abertura da quarta aula (11 de março de 1978), Barthes apre-senta um belo texto acerca do próprio curso (“Suplemento II”), mostrando de que forma os temas do mesmo se entrelaçam com sua existência cotidiana, e estão sempre presentes em sua mente como preocupação didática: “tenho a impressão persistente de que não expliquei bem”, e que será portanto necessário explicar melhor (BARTHES, 2002b, p. 79). A reflexão sobre o próprio curso prossegue, em contraponto, de aula em aula. No dia 18 de março, ele observará que se trata de uma aporia: “Falo do Neutro e faço dele uma lei: ou não faço dele uma lei, mas então não digo nada a seu respeito (e todo o curso desmorona)” (p. 102). Assim, o curso todo é percorrido por uma preocupação, um cuidado de natureza ética.

No fim da sessão de 11 de março, ele retoma uma das propostas da Aula, talvez a mais importante, que engloba todas as outras: a da moral da forma. Lembremos o que ele dizia na Aula: “O que tento visar aqui é uma responsabilidade da forma: mas essa responsabilidade não pode ser avaliada em termos ideológicos e por isso as ciências da ideologia sempre tiveram tão pouco do-mínio sobre ela” (BARTHES, 1980, p. 17). Um parêntese de O Neutro o reafirma: “(é disto que se trata neste curso: uma moral da linguagem)” (BARTHES, 2002b, p. 93). E é disso que sempre se tratou na obra de Barthes: de uma ética centrada não sobre a conduta em si, individual ou coletiva, mas sobre a linguagem na qual se fundamenta e na qual se efetiva toda conduta humana. Seu objeto de análise, nessas aulas do Collège, é o discurso acerca da vida em comum e do neutro, como anteriormente seu objeto fora, não o sujeito apaixonado, mas o discurso que produz e configura esse sujeito.

Todos se lembram da comoção provocada pela afirmação da Aula: “a língua é fascista”. Ora, o que conduz todo esse curso sobre o Neutro é a recusa do “fascismo da língua”:

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Lembro uma vez mais (porque criaram um caso a esse respeito) que é nesse sentido que se pode falar de um fascismo da língua: a língua faz de suas falhas nossa Lei, ela nos submete abusivamente às suas falhas [...] a língua é lei e dura lex. Ora, o sed lex, o discurso (a literatura) o “revira”, o desvia: é o suplemento, como ato de suplência: ’‡literatura = liberdade (BARTHES, 2002b, p. 237-238).

Exatamente como na Aula, quando a polêmica afirmação do fascismo da língua preparava o elogio daquela “trapaça salutar, [daquele] logro magnífico que permite ouvir a língua fora do po-der, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem: a literatura” (BARTHES, 1980, p. 16).

Chegando próximo ao fim do curso, ele reafirma o que já havia dito a seu respeito: que este é “perecível”: “Este curso é feito para perecer de imediato” (BARTHES, 2002b, p. 221, nota 32). Como ouvintes-leitores do curso, podemos entretanto dizer que ele perece como um haicai, como um satori (evocados, então, por Barthes): desaparece, mas permanece como momento luminoso. Embora não pretendendo ser textos de escritura, a escrita desses cursos apresenta várias passagens dignas do melhor Barthes, como a análise do “discurso Charlus”, em Como viver junto, ou a notável descrição das “ideosferas”, em O Neutro.

De fato, os cursos do Collège podem decepcionar quem busque métodos aplicáveis e resultados conclusivos. Mas eles contêm, mesmo na forma ainda virtual que é a das notas preparatórias, um poder encantatório que a voz de Barthes ajudava a criar, em momentos epifânicos de inteligência afetuosa. Apontá-los, aqui, seria tirar-lhes o encanto, que depende, em grande parte, da emer-gência dessas breves manifestações de afeto no fluxo discursivo em geral fosco, neutro. Apenas como exemplo, poderíamos evocar a observação comovente colocada no fim de uma aula: “Viver--Junto: somente, talvez, para enfrentar juntos a tristeza da noite. Sermos estrangeiros é inevitável, necessário, exceto quando cai a noite” (BARTHES, 2002a, p. 176). Ou no curso sobre o Neutro, um momento romanesco:

Saindo, à noitinha, ao crepúsculo, recebendo com intensidade detalhes ínfimos, perfeitamente fúteis, da rua: um menu escrito com giz no vidro

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de um café (frango com purê, 16,50 francos – rins com creme de leite, 16,10 francos), um padre baixinho com batina subindo a rue de Médicis, etc., tive a intuição viva [...] de que descer até o infinitamente fútil permitia reconhecer a sensação da vida (BARTHES, 2002b, p. 79).

“Delicadeza”, “Cintilação”, “Minúcia” – noções que ele tentava esclarecer naquele momento, características barthesianas que podemos reconhecer ao longo desses cursos.

A desejada sabedoria existencial, que lhe permitiria uma “vita nuo-va”, parece ter faltado a Barthes no final. Em vários momentos dos cursos, ele alude a uma falta de ânimo pessoal (a acídia, a xenitéia, a retirada, o desejo de silêncio). Ele declara que estava vivendo um momento de xenitéia, que ele qualifica como “um fantasma ativo: necessidade de partir, logo que uma estrutura pega”. Reco-nhecemos nesse “fantasma ativo” o impulso para o deslocamento que caracterizou a carreira de Barthes, sempre desconfiado dos discursos que se tornam senso comum, que se repetem sob forma de doxa e boa consciência. No fim de sua vida, o desejo de des-locamento era sentido por ele como desejo de retirada. E foi esse estado de espírito que acabou provocando o acidente fatal, à porta do Collège. Restam-nos esses cursos como últimos testemunhos, um pouco melancólicos, de seu inigualável charme.

Referências

BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone- Moisés. São Paulo: Cultrix, 1980.

______. Au séminaire. ______. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984a.

______. Comment vivre ensemble. Paris: Seuil; IMEC, 2002a.

______. Como viver junto. São Paulo: Martins Fontes, 2003a.

______. Écrivains, intellectuels, professeurs. In: ______. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984b.

______. Leçon. Paris: Seuil, 1978.

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Leyla Perrone-Moisés

BARTHES, Roland. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984c.

______. Le neutre. Paris: Seuil; IMEC, 2002b.

______. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003b.

DELEUZE, Gilles. Nietzche et la philosophie. Paris: PUF, 1962.

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colaboraDores Deste livro

Antoine Compagnon. É professor de literatura francesa na Sor-bonne (Paris IV) e em Columbia University (NewYork). Suas principais obras publicadas são La Seconde Main ou le travail de la citation, Paris, Éd. du Seuil, 1979, rééd., 1987, 1992, 1998. Trad. portuguesa (Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 1996) ; Nous, Michel de Montaigne, Paris, Éd. du Seuil, 1980, rééd., 1992; La Troisième République des lettres, de Flaubert à Proust, Paris, Éd. du Seuil, 1983, rééd., 1992; Proust entre deux siècles, Paris, Éd. du Seuil, 1989; Les Cinq Paradoxes de la modernité, Paris, Éd. du Seuil, 1990, rééd., 1997. Trad portu-guesa (Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 1996); Chat en poche. Montaigne et l’allégorie, Paris, Éd. du Seuil, coll. «La Librairie du XXe siècle», 1993; Connaissez--vous Brunetière? Enquête sur un antidreyfusard et ses amis, Paris, Éd. du Seuil, coll. «LUnivers historique»,1997; Le Démon de la théorie. Littérature et sens commun, Paris, Éd. du Seuil, coll. «La couleur des idées», 1998, 2000. Trad. portuguesa (Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 1999). Além das traduções para o português seus livros podem ser lidos em muitas outras límguas, tais como inglês, espanhol, italiano, grego etc. É autor, também, de inúmeros artigos em revistas acadêmicas. Publicou recentemente Les antimodernes, de Joseph de Maistre à Roland Barthes, Paris, Gallimard, 2005.

Evando Nascimento. É doutor pela UFRJ, com estágios na École des Hautes Études en Sciences e na Sorbonne, sob orientação de Jacques Derrida e de Sarah Kofman respectivamente. Em 2001, foi publicada pela EdUFF a segunda edição de seu livro-tese Derrida e a literatura. Publicou diversos outros livros, dentre os quais Ângulos: literatura e outras artes (EdUFJF/Argos) e Literatura e filosofia: diálogos (Org., EdUFJF e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), bem como Jacques Derrida: pensar a desconstrução, editada pela Estação Liberdade, com os textos do evento interna-cional homônimo organizado em 2004. É pesquisador do CNPq e professor adjunto de teoria da literatura na UFJF.

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Colaboradores

Françoise Gaillard. Ensina na Université de Paris VII. É autora de numerosos estudos da literatura francesa no século XIX, em seu contexto social, político, e cultural mais amplo. Interessa-se espe-cialmente pelas questões de ideologia e epistemologia na França. Durante muitos anos, foi colaboradora das revistas La Quinzaine Littéraire e Canal, e contribuiu para Le Monde des Débats. É as-sídua colaboradora dos seminários de Cérisy-la-Salle. Organizou uma série de debates sobre literatura e filosofia no centro Georges Pompidou e é membro de diversas equipes de pesquisa no CNRS.

João Batista Natali. É repórter do jornal Folha de S. Paulo, e acaba de lançar o livro Jornalismo Internacional, pela editora Contexto. Ex-editor de Mundo e ex-correspondente da Folha em Paris. Tanto a sua dissertação de mestrado “L’Humour Politique Brésilien: Analyse Structurale des Stéréotypes” (1973) quanto a sua tese de doutorado, “Une Approche Sémiologique du Discours Révolutionnaire (Robespierre)” (1976) foram orientadas por Ro-land Barthes, na École des Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris.

Leyla Perrone-Moisés. É professora emérita da Faculdade de Fi-losofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). Autora de vários livros de crítica literária (sobre Lautréamont, Roland Barthes, Fernando Pessoa etc.), tem lecionado em diversas universidades no Brasil e no exterior. Suas obras já foram tradu-zidas para várias línguas. Seu livro mais recente, Do Positivismo à Desconstrução – Idéias Francesas na América, foi publicado em 2004 pela Ed. USP. É co-organizadora deste livro, com Maria Elizabeth Chaves de Mello.

Lúcia Teixeira. É doutora em Lingüística e Semiótica pela Uni-versidade de São Paulo, com pós-doutorado na Universidade de Limoges, professora de Lingüística e de Semiótica na Universidade Federal Fluminense e pesquisadora do CNPq. Publicou As cores do discurso (Niterói, EdUFF, 1996) e vários artigos e capítulos de livros. Em co-autoria com Norma Discini, publicou a coleção de livros didáticos de língua Portuguesa para o ensino fundamental (5ª a 8ª série) Leitura do mundo (São Paulo: Ed. do Brasil, 2000.4 v.)

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Colaboradores

Manuel da Costa Pinto. É jornalista e doutorando em teoria literária na USP, colunista da Folha de S. Paulo, autor de Albert Camus – Um Elogio do Ensaio (Ateliê Editorial) e organizador e tradutor da antologia A Inteligência e o Cadafalso e outros ensaios, de Albert Camus (Editora Record).

Marcelo Jacques de Moraes. É professor de literatura francesa da UFRJ e pesquisador do CNPq. Fez estágio de pós-doutorado na Universidade de Paris VIII, em 2003, com bolsa da CAPES. É autor de inúmeros artigos em revistas especializadas.

Maria Elizabeth Chaves de Mello. É doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professora de literatura francesa da Universidade Federal Fluminense, e pesquisadora do CNPq. Lecionou literatura brasileira no Centro de Estudos Brasileiros da Université du Québec à Montreal, em 2002. Publicou A difícil comunicação literária (Rio de Janeiro, Achiamé, 1987) em co-autoria com Maria Helena Rouanet, Lições de Crítica (Niterói, EdUFF, 1997) e vários artigos e capítulos de livros. É co-organizadora deste livro, com Leyla Perrone-Moysés.

Philippe Roger. É professor e orientador de pesquisas do CNRS (Centro de Estudos da Língua e Literatura Francesa dos Séculos XVII-XVIII, Universidade de Paris IV), diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales e, desde 1996, é diretor da revista Critique. Além disso, é autor de Sade. La Philosophie dans le pressoir (Grasset, 1976); Roland Barthes, roman (Grasset, 1986; Livre de Poche, 1990); L’Ennemi américain. Généalogie de l’antiaméricanisme français (Seuil, 2002) e de uma centena de artigos. Participou de muitas obras coletivas: Sade. Écrire la crise (com M. Camus, Belfond, 1983); La Légende de la Révo-lution française au XXe siècle (com J.-Cl. Bonnet, Flammarion, 1988); L’Hommes des Lumières. De Paris à Pétersbourg, (Napoli, Vivarium & Paris, Maison des Sciences de l’Homme, 1995) e L’Encyclopédie: du réseau au livre et du livre au réseau (avec R. Morrissey, Champion, 2001).

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