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    vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 58-68Em pauta

    A criana e o sto

    Igor de Almeida Silva1

    Resumo

    Breve reflexo sobre recepo e pedagogia do teatro em contextos de mediao no espao escolar,a partir de dois dossis pedaggicos sobre os espetculos Os Efmeros (Les phmres) e OsNufragos da Louca Esperana (Les Naufrags du Fol Espoir), direo de Ariane Mnouchkine, peloThtre du Soleil.

    Palavras-chave: mediao; pedagogia do teatro; dossi pedaggico; Thtre du Soleil

    Abstract

    Brief reflection on reception and theater pedagogy in contexts of mediation at school, based on twoteaching dossiers prepared for the productions Les phmres and Les Naufrags du Fol Espoir, bothdirected by Ariane Mnouchkine, with the Thtre du Soleil.

    Keywords: mediation; theater pedagogy; teaching dossiers; Thtre du Soleil

    Saber orientar-se numa cidade no significa muito. No entanto, perder-

    se numa cidade, como algum se perde numa floresta, requer instruo.Walter Benjamin (1995, p. 73).

    Pice (d)monte [Pea (des)montada], coleo de dossis pedaggicos sobre

    espetculos em cartaz na cidade de Paris, concebida como ferramenta didtica pelo

    Centro Regional de Documentao Pedaggica (CRDP) de Paris, com o apoio da

    Inspeo Geral Letras-Teatro e de Jean-Claude Lallias, conselheiro de Teatro no

    Centro Nacional de Documentao Pedaggica (CNDP). Estes dossis so direcio-

    nados s aulas dos professores dos Liceus que promovem a ida de seus alunos ao

    teatro. Trata-se de uma modalidade de mediao artstica na escola, no mbito da

    pedagogia do teatro, voltada particularmente para o estmulo da fruio esttica. De

    certa maneira, para a formao do espectador. Segundo o prprio site desta coleo

    (http://crdp.ac-paris.fr/piece-demontee/), seus objetivos so Facilitar a compreenso

    dos elementos especficos que esto em jogo no teatro, confrontando os textos s

    1 Igor de Almeida Silva possui mestrado em Letras pela UFPE e, atualmente, cursa o doutorado em Artes Cnicasna USP. autor do livro Rquiem infncia: um estudo sobre Um sbado em 30 e Viva o cordo encarnado, de

    Luiz Marinho (Recife: Bagao, 2009).

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    suas configuraes espaciais e vocais; analisar o texto teatral em suas relaes com

    a representao (Traduo nossa).

    Pea desmontada: Os Emeros

    O dossi Os Efmeros, preparado por Jean-Louis Cabet, com a colaborao de

    Batrice Picon-Vallin e Jean-Claude Lallias, estrutura-se em duas partes. Na primeira,

    Antes de ver o espetculo (Avant de voir le spectacle), em que a representao

    oferecida aos alunos em aperitivo (la reprsentation en apptit), h diferentes materiais

    de trabalho para professores e estudantes, distribudos em um ordenamento progres-

    sivo. De entrada, um retratodo Thtre du Soleil, com biografia de Ariane Mnou-

    chkine e cronologia do grupo. Em seguida, reproduzido um trecho de um encontro

    de Mnouchkine com estudantes de liceus em Avignon, no Sul da Frana, em 2006,

    na poca de lanamento do filme Oltimo Caravanar (Le Dernier Caravansrail).

    Tambm constam, nesta primeira parte, uma entrevista com a encenadora e algumas

    propostas de atividades a partir do programa, do ttulo e de imagens do espetculo.

    Na segunda parte do dossi, Depois de ter visto o espetculo (Aprs avoir vu le

    spectacle), em que se oferecem agora pistas de trabalho (pistes de travail), seu eixo

    basicamente a memria do aluno em torno do que foi assistido em cena. Se Os Efmeros

    foi fecundado pelas memrias de seus artistas, o trabalho pedaggico centra-se na

    memria dos prprios estudantes acerca do espetculo, buscando-se retomar em sala de

    aula vrios aspectos da narrativa, do dispositivo cnico, dos objetos de cena, do jogo dos

    atores, da encenao de modo geral. Sugere-se, portanto, o espao escolar como lugar

    de discusso e reflexo, de rememorao e compartilhamento da experincia sensvel.

    Alm disso, h ainda, nesta segunda parte do dossi, uma alentada entrevista com o

    msico do espetculo Jean-Jacques Lemtre e um substancioso estudo da pesquisa-

    dora Batrice Picon-Vallin. Ao final, so sugeridas outras referncias literrias e teatrais

    que tambm tratam da memria e do cotidiano (por exemplo, peas e contos de Anton

    Tchkhov e poesias de Arthur Rimbaud e Pablo Neruda) como forma de continuidade e

    transbordamento desta experincia ao mesmo tempo esttica e pedaggica.

    Este dossi orgnico em sua orquestrao, alm de estar em harmonia com

    as propostas cnicas do espetculo em questo. Toda sua primeira parte tem como

    foco o tema da memria, dos pequenos tesouros invisveis do cotidiano e da brevidade

    da vida. Temticas centrais do prprio espetculo, abordados no dossi de diferentes

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    maneiras, desde a conversa de Mnouchkine com estudantes de Avignon, passando

    por texto de Marcel Proust em resposta a uma questo sobre o que ele faria se o

    mundo fosse acabar (este foi o mesmo mote que iniciou os ensaios de Os Efmeros),

    at a entrevista da encenadora em que ela discorre sobre aspectos importantes da

    montagem e de suas temticas veiculadas. A partir dessa contextualizao, as ativi-

    dades propostas, nessa primeira parte do dossi, giram em torno desses mesmos

    temas. Por exemplo, so sugeridos jogos e dinmicas nos quais os alunos tentariam

    responder por escrito a mesma pergunta dirigida a Marcel Proust, sendo as respostas

    compartilhadas posteriormente. Outro jogo, contar uma lembrana vivida, inspirado

    no trabalho do ator e encenador Didier Lastre, codiretor do Thtre de lphmre.

    Mais ao final dessa primeira parte propem-se atividades em torno do programa, do

    ttulo e de imagens do espetculo, procurando estimular o aluno a formular indagaes e

    hipteses acerca do espetculo, como se, antes de ir rcita, ele j tivesse uma represen-

    tao imaginria, em busca do confronto criativo no qual ele iria confirmar ou reformular

    suas especulaes iniciais. Estas atividades tambm so contextualizadas com imagens

    e intertextos, que vo de um trecho de OPequeno Prncipe, de Antoine de Saint-Exupry

    (no qual se compara a efemeridade de uma flor eternidade de uma montanha) at a

    transcrio do verbete da palavra Efmero, disponvel em Le Robert mtodique.

    Pea desmontada: Os Nuragos da Louca Esperana

    No dossi dos Nufragos da Louca Esperana, de autoria de Galle Bebin, sua

    primeira parte, Antes de ver o espetculo, se divide em cinco sesses: na primeira, em

    torno do ttulo e do tema dos nufragos; na segunda, sobre as questes do cinema

    no incio do sculo; na terceira, sobre a literatura de Jules Verne; na quarta, a histria

    europeia do final do sculo XIX e incio do sculo XX, especificamente os fatos que

    servem de pano de fundo das narrativas de Os Nufragos da Louca Esperana e, por

    ltimo, o prprio trabalho do Thtre du Soleil. Na segunda parte, Depois de ter visto

    o espetculo, sua estrutura tambm se divide em cinco sesses: na primeira, pistas

    de trabalho, abordando as particularidades do espao, da Cartoucherie, do prlogo do

    espetculo, do roteiro de contrarregragem (feuille de regie); na segunda, as relaes

    entre as diferentes temporalidades do espetculo e da criao da trupe; na terceira,

    relaes da cenografia e do jogo dos atores com o cinema mudo; na quarta, sobre a

    msica, e na quinta, novamente em torno do prprio Thtre du Soleil, as relaes

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    do espetculo com a histria e o presente, semelhanas entre este espetculo e os

    demais da trajetria do Soleil.

    Apesar de aparentemente coerente em sua estrutura interna e semelhante ao

    dossi sobre Os Efmeros, todos esses tpicos do dossi so desprovidos de uma

    significao e articulao prprias, de motivos e fins aos quais se destina e, sobretudo,

    de interconexes com o espetculo que possam alimentar o desejo pelo teatro (Cf.

    PUPO, 2009). Detendo-se em cada atividade proposta, difcil para o leitor compre-

    ender os princpios e as escolhas que nortearam o trabalho da autora, principalmente

    na primeira parte, Antes de ver o espetculo. So atividades aleatrias e artificiais.

    Parece que a autora se apoiou em tudo que parecia mais concreto, apreensvel (ex:

    ttulo e cartaz do espetculo, resumos das obras de Jules Verne, fatos histricos, etc),

    sem despertar interesse ou vnculo do aluno por uma encenao ainda por acontecer.

    Sem contextualizar previamente as atividades propostas, transforma o espetculo

    em um quebra-cabea, a ser reestruturado, remontado, mas sem uma possibilidade

    efetiva de resignificao. Os textos e as imagens espalhados por todo o dossi so

    mera decorao, sem possuir de fato uma funo. Muito restrito ao texto e a uma viso

    compartimentada do conhecimento em arte.

    Na segunda parte do dossi, atenua-se esse aspecto. Suscita-se, de certa

    maneira, a memria do espectador (como no primeiro dossi) sobre o espao (a Cartou-

    cherie), o prlogo, as constantes mutaes da cena (roteiro de contrarregragem), as

    narrativas do espetculo, a msica e a cenografia. Alm disso, h uma quantidade

    razoavelmente generosa de entrevistas e depoimentos dos artistas do espetculo que

    enriquecem o dossi. No entanto, tudo pretexto para se propor tarefas aos alunos,

    cujos resultados j so previstos e exigidos pelo professor.

    O espectador e a especializao

    Que concepes de formao estes dossis possuem? Quais as origens dessa

    prtica de mediao na escola? Por que formar o espectador? Quais os fins dessa

    prtica? Como form-lo? Eis algumas questes que surgem diante destes dois dossis.

    Trata-se de uma concepo de pedagogia do espectador que procura formar uma

    espcie de espectador especialista, fornecendo-lhe informaes acerca da pea enfo-

    cada que possibilitem uma compreenso/decodificao de seus cdigos. Essas informa-

    es recaem sobre o tema abordado, o texto, certas particularidades da criao cnica etcnicas teatrais. Possivelmente, as origens dessa forma de mediao teatral se encon-

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    tram nos anos 1960 e 1970, especificamente na Frana e na Blgica, entre outros pases,

    que consistiam em visitas de trupes teatrais nas escolas para propor atividades dram-

    ticas s crianas, com o objetivo de formar os espectadores das geraes futuras. Nesse

    momento, essas prticas de mediao eram denominadas de animaes teatrais.

    Conforme Flvio Desgranges, existiam duas modalidades de animao: anima-

    es teatrais autnomas e animaes teatrais perifricas. Esta ltima se estruturava

    em torno de um espetculo especfico e se concentrava basicamente no trabalho de

    fruio da obra teatral:

    Elas se estruturavam tanto com base em atividades que forneciaminformaes complementares a respeito do espetculo que seria vistopelos participantes, quanto pela aplicao de exerccios que, explorandoa linguagem teatral, se destinavam a capacitar o espectador iniciante auma leitura mais aguda da encenao. Eram tambm utilizadas para avaliar

    o grau de compreenso e interesse do pblico sobre o espetculo emquesto. As animaes teatrais perifricas aconteciam antes ou depois daapresentao do espetculo. As atividades propostas antes da pea tinhamo intuito de preparar os alunos espectadores para a leitura da pea que seriavista e, quase sempre, sublinhavam algum aspecto artstico do espetculoque, assim, poderiam ser mais bem observados pelos alunos no ato derecepo da obra. Essas animaes, por vezes, ensinavam aos participanteso funcionamento de alguns artifcios e elementos de cena do espetculo,tais como: utilizao dos refletores, criao da sonoplastia, construode determinados materiais cenogrficos, etc. Com esse procedimento, osanimadores queriam desmistificar a mquina teatral, estimulando os alunosa lanar um olhar distanciado, crtico, encenao que seria posteriormente

    apresentada (DESGRANGES, 2003, p. 50-51).

    As animaes teatrais perifricas se dividiam ainda em trs categorias: anima-

    es de integrao escolar, animaes de expresso e animaes de leitura. Esta

    ltima procurava especificamente

    [...] dinamizar a recepo do aluno-espectador, propondo atividades quepossibilitassem uma leitura mais apurada da obra. Fichas pedaggicas,contendo informaes sobre a pea e sugestes de atividades para seremaplicadas pelos professores, antes ou depois do espetculo, tambm eramutilizadas pelos grupos teatrais que promoviam essas animaes. Eram

    apresentadas em duas vertentes: animaes de leitura horizontal, queprocuravam destacar e pr em debate o tema da pea, ressaltando o contedoveiculado pelo espetculo; e animaes de leitura transversal, que buscavampropor atividades que capacitassem os espectadores iniciantes a decodificaros signos que constituam a encenao (DESGRANGES, 2003, p. 54).

    O momento histrico, marcado pelo estruturalismo e pelo advento da semiologia

    do teatro na Frana, determina essa concepo pedaggica, seus procedimentos e

    objetivos de aprendizagem: uma tentativa de escapar da leitura imediata e espontnea

    da obra teatral, de no permitir que o espectador se fixasse apenas nos elementos

    da fbula, mas pudesse seguir pistas que o levassem para uma compreenso mais

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    global do espetculo; de faz-lo perceber o discurso da encenao (ou texto cnico)

    para alm da mensagem do texto dramtico; de desnaturalizar a fruio da obra de

    arte, tornando-a um ato culturalmente construdo e complexo. Resumindo: um espec-

    tador especialista. Estas parecem ser as origens, os meios e os fins encravados na

    concepo pedaggica destes dois dossis.

    O espectador e a emancipao

    Mas ser que se precisa realmente formar o espectador? Para se compreender a

    cena contempornea, so necessrias explicaes? Diante destes dossis e da longa

    trajetria das formulaes de suas concepes artsticas e pedaggicas, tais indaga-

    es so inevitveis. No teatro, desde Meyerhold e principalmente com Brecht, a funo

    do espectador diante do fenmeno teatral substancialmente reformulada e valorizada.

    Um papel ativo diante da cena lhe conferido, em que seus sentidos e criticidade so

    chamados no processo de significao do espetculo. Dessa maneira, h uma coautoria

    do sentido da obra em que esta apenas se constitui na medida em que ativa a subjeti-

    vidade do espectador, sendo ao mesmo tempo nica e plural. Pluralidade e autoria que

    so radicalizadas a partir da ps-modernidade, em que o espectador torna-se o sujeito/

    protagonista do acontecimento artstico. No se trata apenas de conferir um sentido

    quela obra, mas escrev-la e reescrev-la infinitamente, num trabalho de Ssifo, no

    qual, muitas vezes, a constituio de um ou vrios sentidos no a grande questo a

    ser respondida. A experincia sensvel torna-se um labirinto para o qual o grande prazer

    perder-se; olhar uma, duas, trs vezes... e no reconhecer, estranhar... indagar!

    Ao se enfatizar a ideia de formao, de provimento de instrumental de anlise

    do espetculo ao espectador iniciante e, sobretudo, de explicitao da obra de arte,

    como se pode inferir nos dois dossis em questo (muito mais no segundo do que

    no primeiro), confere-se um carter demasiado diretivo fruio esttica do aluno.

    Configura o processo pedaggico como um ato autoritrio, que no parte da igualdade

    de inteligncias, mas de sua desigualdade. E sua tentativa de atenuar essa distncia

    provoca um efeito contrrio. Ao invs de emancipar o espectador, torna-o cada vez

    mais dependente de uma explicao. Penso em Benjamin, no seu ensaio O Narrador

    (1994); penso tambm em Rancire, no livro O Mestre Ignorante (2002) e no ensaio

    O Espectador Emancipado (2010). Em ambos, a necessidade de explicaes ques-

    tionada. Benjamin diz:

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    [...] quase nada do que acontece est a servio da narrativa, e quasetudo est a servio da informao. Metade da arte narrativa est em evitarexplicaes. [...] O extraordinrio e o miraculoso so narrados com a maiorexatido, mas o contexto psicolgico da ao no imposto ao leitor. Ele livre para interpretar a histria como quiser, e com isso o episdio narradoatinge uma amplitude que no existe na informao (1994, p. 203).

    J Rancire: o explicador que tem necessidade do incapaz, e no o contrrio,

    ele que constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a algum , antes de mais

    nada, demonstrar-lhe que no pode compreend-lo sozinho (2002, p. 20). Nesse caso,

    a explicao a negao da possibilidade de o espectador ter acesso a sua inteligncia

    e subjetividade e, a partir delas, estabelecer suas prprias conexes, associaes ou

    dissociaes que permitem criar por si mesmo possveis leituras do espetculo, sua

    compreenso pessoal e nica, que no deixa tambm de ser um processo de cons-

    truo de conhecimento em teatro, sem esperar a autorizao do discurso competente,

    autorizado, mas pressupondo, nas palavras de Rancire, a igualdade de inteligncias.

    Nesse sentido, at que ponto, nestes dossis, h uma perspectiva de se traba-

    lhar com questes menos explcitas, mais ligadas subjetividade, ao inconsciente dos

    alunos, de modo no diretivo?

    No segundo dossi, sobre Os Nufragos da Louca Esperana, a perspectiva

    mnima. E, mesmo quando se tenta estabelecer uma abertura para a concepo de

    mundo dos alunos, esta se d de modo desconexo. No comeo do dossi, antes dos

    alunos assistirem ao espetculo, como forma de discutir seu tema e ttulo, surge a

    pergunta: Qual seria hoje sualouca esperana? E a autora Galle Bebin no d pros-

    seguimento, logo ela passa para uma atividade diferente, que catalogar obras literrias

    que tratam do tema do naufrgio. A autora tenta compartimentar racionalmente toda

    forma de conhecimento sensvel. Como blocos etiquetados, manufaturados, prontos

    para exportao. Neste caso, a perspectiva de formao de um espectador especialista

    demonstra ser problemtica. sempre necessrio um conhecimento externo para que

    se possa fruir a obra de arte? preciso tornar o pblico um especialista?

    Essas questes so relativizadas no primeiro dossi, sobre o espetculo Os

    Efmeros, de autoria de Jean-Louis Cabet. Aqui, a subjetividade dos alunos ampla-

    mente estimulada, sem deixar de lado os conhecimentos especficos em teatro. De um

    lado, possibilita-se o acesso do aluno sua experincia cotidiana e pessoal em uma

    leitura particular do espetculo; de outro, no lhe renegado o conhecimento vertical

    da rea (e da pea em questo), por meio de entrevistas com os artistas envolvidos,

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    comentrios e notas perspicazes e bem fundamentados de Cabet, e da arguio de

    especialistas (no caso, o ensaio de Batrice Picon-Vallin).

    Percebem-se concepes dspares de formao em teatro nos dois dossis. O

    dossi sobre Os Nufragos, fundado em uma educao depositria, tendendo ao embru-

    tecimento, no dizer de Rancire; o outro, sobre Os Efmeros, finca-se em perspectivas

    mais amplas e flexveis que tendem a friccionar e relativizar as duas modalidades de

    espectador discutidas neste ensaio: o especialista e o emancipado. No dossi de Os

    Efmeros, h um conhecimento a ser construdo sim; porm, o seu fim no comple-

    tamente premeditado ou controlado pelo professor, pois dada ao aprendiz a liberdade

    de empregar sua prpria inteligncia, gerando algo outro ao que o professor j sabe e

    revelando a si mesmo seupoder intelectual. Aqui, o que impera ento a concepo de

    formao como modo de colocar o espectador diante de diferentes experincias est-

    ticas, proporcionando espaos de troca e discusso, em busca da construo de um

    conhecimento coletivo e individual (de acordo com cada subjetividade), sem perder de

    vista a ideia de uma aprendizagem especializada em teatro.

    O espectador e a utopia

    Uma proposta pedaggica de mediao teatral deveria estar em comunho ou

    dilogo com a proposio artstica do grupo ou espetculo em questo?

    Em suas entrevistas, Mnouchkine sempre faz referncia aos seus processos de

    criao e aos espetculos do Thtre du Soleil como um retorno infncia, uma viagem

    ao maravilhoso, uma aventura, uma utopia. E, no que concerne ao pblico, ela diz: Ns

    mesmos, ns devemos ser os viajantes que conduzem o pblico em viagem e em explo-

    rao interior, ao interior de vidas, de nossas semelhanas (2009, p. 39, traduo nossa).

    Este princpio parece ter sido seguido exemplarmente por Jean-Louis Cabet em seu

    dossi sobre Os Efmeros. Encandeadas de modo coerente e sensvel, as atividades do

    dossi propostas aos alunos no se fecham em si mesmas. Pelo contrrio, abrem-se

    sensibilidade, inteligncia e imaginao, associando os processos de criao do grupo

    ao ato de fruio esttica dos alunos-espectadores. Em outras palavras: o autor retoma

    os mesmos princpios que nortearam a criao do espetculo, elegendo a memria, os

    mundos ntimos da subjetividade humana, como matria-prima de seu dossi.

    No entanto, em nenhum momento, o dossi sobre Os Nufragos possibilitou uma

    viagem semelhante. As atividades e informaes fornecidas mais confundem do que

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    permitem uma primeira abordagem do espetculo. Os materiais que serviram criao

    do Soleil (obra de Jules Verne, filmes do cinema mudo, contexto histrico) so oferecidos

    em fragmentos, descontextualizados, sem que os alunos tenham o tempo necessrio

    para reconhec-los, apreci-los, explor-los, descobri-los, como fez o Thtre du Soleil

    na criao do espetculo. Isto perceptvel pela sua prpria configurao e pela quan-

    tidade excessiva de atividades, muitas vezes sem interligao ou propsito aparente.

    A ideia de viagem e de aventura que caracteriza os espetculos do Soleil e sua

    relao com o pblico poderia no apenas estar presente neste dossi, mas tambm

    servir de inspirao no trabalho de mediao de modo geral. De certa maneira, ela

    est presente no dossi anterior, sobre Os Efmeros. Ou seja, a mediao teatral

    deve ser tambm uma viagem ou uma aventura rumo ao imaginrio, ao desconhecido,

    assim como o teatro. Seria isso uma utopia? Como nutri-la ento?

    Utopia uma palavra recorrente no vocabulrio de Mnouchkine, alm de ser uma

    palavra bastante significativa para se referir ao espetculo Os Nufragos da Louca

    Esperana: s vsperas da 1 Guerra Mundial, um grupo de artistas decide realizar

    um filme de educao e recreao popular no sto da guinguette A Louca Espe-

    rana. Metfora esta da trajetria e dos ideais do prprio Soleil. Mas o que significa a

    palavra utopia? Mnouchkine possui sua prpria definio:

    Eu li recentemente uma definio de utopia que enfim me satisfez, porquecada vez que se fala de utopia, ultrapassado, o sonho impossvel... Masesta definio [...] me convm: Utopia o possvel ainda no realizado[...]. Quando ns, meus amigos e eu, fundamos a trupe, e mesmo j umpouco antes, ns tnhamos uma utopia. Eu digo sempre que ns fundamos oThtre du Soleil para sermos felizes (2009, p. 21, traduo nossa).

    Infncia outra palavra solar no vocabulrio da trupe francesa. A infncia como

    a encenadora sintetiza em uma palavra e imagem as qualidades que ela exige de seus

    atores e os efeitos que pretende provocar no pblico, supe-se: um retorno infncia. Ou

    seja, a capacidade de se encantar e acreditar realmente no que se passa sobre o palco:V-se bem que na pesquisa teatral, quando os atores, as atrizes estorealmente onde devem estar, quer dizer, na infncia verdadeiramente, em umaimaginao que uma imaginao fsica no uma imaginao intelectual, uma verdadeira imaginao, isto tudo torna-se uma encarnao. umainvocao. E a verdade vem (MNOUCHKINE, 2009, p. 41-42, traduo nossa).

    E essa volta ao tempo infantil tambm descer ao sto: retornar a um lugar de

    recordao, rico de informaes, de memria e de fantasia: Falava-se de infncia h

    pouco, mas verdade que os atores devem ter sua disposio como que um imenso

    sto, onde cada um pode procurar coisas para se fantasiar (2009, p. 60, traduo nossa).

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    Em Os Efmeros, h quase sempre uma criana em cena, que dirige um olhar parti-

    cular ao passado. So adultos que retornam poca da infncia. E, aqui, ser criana ou

    voltar a ser criana representa a imagem cnica da procura e do entendimento: de si

    mesmo, do outro, do que se desconhece. J em Os Nufragos, toda a sua narrativa se

    passa em um grande sto, tornando histria e experincia suas grandes protagonistas.

    E a voz do gravador que acionado no incio do espetculo (res)soa em cena como o

    estalar do graveto seco ao ser pisado (BENJAMIN, 1995, p. 71). O espectador a criana

    que se perde nas ruelas de uma grande cidade, o espetculo. Mas este, de quando em

    vez, libera alguns gravetos, cujo estalar liberta a criana (o espectador) de qualquer temor

    ao desconhecido, fazendo-a imergir em seu sto, em novas aventuras exploratrias.

    Benjamin, nos seus ensaios sobre a infncia, compara o seu olhar (o da criana) ao

    do artista ou ao do colecionador. No primeiro, esta inventa possibilidades; no segundo,

    um olhar que dedica ao objeto uma afetividade, buscando-lhe sua experincia, suas

    histrias. E, ao lidar com o brinquedo, desmontando-o e reconstruindo-o, a criana esta-

    belece uma relao afetiva e ntima com ele, resignificando-o sua maneira, tal como

    um espectador emancipado, na acepo de Rancire.

    Esta concepo do olhar infantil tambm parece similar de Mnouchkine quando

    ela fala da utopia, da infncia e do sto na potica de seu teatro e no trabalho do ator.

    Tambm no seria esta uma caracterstica que ela procura estimular, e mesmo solicitar

    do espectador? Como alimentar a utopia? Como despertar o nosso olhar infantil, que

    pleno de possibilidades ainda no concretizadas, diante do espetculo? Como mediar

    o desabrochar do olhar infantil do espectador diante da cena? Como descer ao sto?

    Discutindo o ensaio autobiogrfico Infncia em Berlim por volta de 1900, de Walter

    Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin faz a seguinte afirmao: No limiar do labirinto, a

    criana no manifesta medo; pelo contrrio, o desejo de explorao predomina como

    se soubesse, confusamente, que s poder se reencontrar se ousar perder-se (2004,

    p. 91). Talvez seja esta uma bela imagem para uma pedagogia do espectador: o desejo

    de explorao em que no se teme perder a si mesmo, pois apenas assim possvel

    reencontrar-se na cena, com uma imaginao disponvel, similar das crianas, permi-

    tindo-se ver, acreditar, sentir, indo para alm dos limites, procura do possvel ainda no

    realizado. Descer ao sto. Mas, para isso, necessrio instruo, ou melhor, mediao.

    Rancire e Mnouchkine falam de modo semelhante. Ambos pressupem um

    mesmo espectador. No entanto, o filsofo nos oferece conceitos e a encenadora imagens.

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    A criana: o retorno infncia, como estado de prontido e abertura, ponto de partida

    que pressupe a igualdade de inteligncias. O sto: o voltar-se a si mesmo, lugar de

    recordao e criao. Utopia: emancipao. O pensamento independente, o possvel

    no realizado ainda.

    A criana e o sto: utopia. Uma alquimia para uma possvel pedagogia do teatro,

    em que ser criana voltar ao sto: Eu digo frequentemente que os atores colocam

    suas mscaras, enquanto que o pblico retira a sua, quer dizer, suas tenses, e que

    ele se prepara para este momento que uma utopia, onde 600 pessoas vo viver

    juntas (MNOUCHKINE, 2009, p. 67-68, traduo nossa).

    Reerncias Bibliogrfcas

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