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EDITORIAL

1Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010

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ENIO PAULO GIACHINI

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3Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010

SCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLA REVISTREVISTREVISTREVISTREVISTA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVALALALALAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 1-257.jul./dez. 2010

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSBSociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR2010

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Reitor: Nelson José HillesheimDiretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos SiarcosPró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendePró-reitor administrativo: Regis Ferreira NegrãoDiretor do Instituto de Filosofia São Boaventura: Drndo. Jairo FerrandinEditor: Dr. Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorialDr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJDr. Orlando Bernardi, IFANDr. Luiz Alberto de Boni, PUCRSDr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFGDr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSCDr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España)Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College

Estocolmo (Suécia)Dr. Ulrich Steiner, FFSBDr. Jaime Spengler, FFSBDr. João Mannes, FFSB

b) Conselho editorialDr. Vagner Sassi, FFSBDr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEGDra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJRDr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PRDr. Joel Alves de Souza, UFPRDr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ

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Catalogação na fonteScintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia SãoBoaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro UniversitárioFranciscano, v.1, n.1, 2004-SemestralISSN 1806-65261. Filosofia – Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.3. Mística – Periódicos.

CDD (20. ed.) 105 189

189.5

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SUMÁRIO

EDITORIAL ...........................................................................7Enio Paulo Giachini

ARTIGOS ............................................................................... 11Apocalittica come retorica: Continuità e metamorfosi ....... 13

Gian Luca PotestàA fundamentação sociológica da teoria sobre a pobrezados espirituais em Pedro de João Olivi.O. Min. (1274/1248-1298) ............................................. 31

Johannes Karl Schlageter OFM, FuldaJoaquim de Fiore, apocalipticismo e escatologia nosséculos XIII e XIV ............................................................. 65

Nachman FalbelO Alter Christus: Cristocentrismo e construção daimagem de Francisco na Arbor vitae crucifixae Iesu,de Ubertino de Casale (1305) ........................................... 87

Ana Paula Tavares MagalhãesLos espirituales y la política imperial ................................. 127

Celina A. Lértora Mendoza

COMENTÁRIOS ...................................................................... 147Da verdadeira à perfeita alegria, uma e(in)volução? ............. 149

Aldir Crocoli

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Os espirituais, hoje? .......................................................... 181Hermógenes Harada

TRADUÇÕES .......................................................................... 227Comentário ao Apocalipse (Extrato) ................................. 229

Joaquim de Fiori

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EDITORIAL

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EDITORIALEnio Paulo Giachini

Temos a satisfação de apresentar aos leitores de Scintilla um nú-

mero voltado especialmente ao movimento dos espirituais franciscanos.

Insistimos na coleta e publicação de trabalhos voltados ao tema por

vários motivos. Dentre estes, podemos destacar: Trata-se de um perío-

do e de pensadores de extrema importância para o pensamento medi-

eval e franciscano. O estudo dos espirituais mereceria o empenho de

mais pesquisadores, visto guardar uma riqueza e um veio de pensa-

mento inusitados. Com isso, estamos afirmando também que o “mo-

vimento” dos espirituais é ainda pouco estudado, apesar de sua impor-

tância e riqueza.

Dois pontos podem ser destacados no confronto com esses pensa-

dores. A força radical de renovação, rumo às raízes de si mesmo. Na

contracorrente da massificação e padronização da ordem, esses homens

buscavam com valentia entusiasmante o rejuvenecimento de suas raízes:

o espírito de pobreza do Poverello de Assis e seu amor ao Cristo po-

bre. E, em segundo lugar, a grandeza de sucumbir com nobreza sob a

pressão da autoridade do poder tanto da Ordem quanto da Igreja.

O espírito de Francisco, que encantou o mundo a ponto de em

poucas décadas já ter conquistado mais de 40 mil seguidores pelo mundo

a fora, como qualquer outro evento originário, requer ser reinaugurado

por inteiro em cada época, em cada um que se sinta por ele convoca-

do. Desde o princípio, onde se dá, é uma irrupção de vitalidade, que

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ENIO PAULO GIACHINI

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ENIO PAULO GIACHINI

rompe com as convencionalidades mornas e estáticas do tempo.Não será diferente em qualquer tentativa de atinar e dar espaço à origi-nalidade de todo si-próprio em qualquer época.

Ainda no fulgor dos clarões vindos do pensamento fulgurante de

Joaquim de Fiore, os espirituais franciscanos buscaram interpretar o

espírito de sua época com a força radical das origens e devem ser para

nós um ponto de salto para a clarividência dos desafios próprios de

nossa época: massificação, despotenciação absoluta do pensar, subju-

gação ao poderio impessoal e avassalador do mercado e igualitação de

valores e modos de vida. O predomínio do mercado, ancorado pelos

tentáculos da mídia, felizmente, ainda, precisa de sangue originário

para sua sobrevida. Para isso, varre todo antro e gruta buscando sugar o

originário e novo, onde e como quer que surja. As carcaças que deixa

atrás de si são a facilitação de tudo, a promessa de colocar o que quer

que seja ao alcance de mão, olho e mente, a sanha ao novidadeiro e

sobretudo a instauração, no pleno sentido da palavra, do vazio; um rio

só corredeira.

Quem sabe, como apregoava Joaquim de Fiore, não estejamos na

iminência do ponto de salto para um novo devir, apenas que

despreparados por falta de tirocínio de esperança e de espera do Deus

vindouro? A era do “Espírito Santo”, a transformação que chega “sua-

ve como os passos de pombo” pode estar à porta. Nossos sentidos e

nosso pensar, porém, parecem estar despotenciados e por demais dis-

traídos com os alaridos barulhentos e borbulhantes de nossa época

tresloucada.

Joaquim de Fiore, Pedro de João Olivi, Ângelo Clareno, Ubertino

de Casale e tantos outros, mas, sim, sobretudo Francisco,

embrenhando-se em grutas e matas, batido e chicoteado por um sen-

timento estranho, doce e terrível ao mesmo tempo, buscando uma

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nesga de luz para absorver e organizar minimamente a invasão dessenovo, são para nós pontos de referência distantes.

A espera do inesperado precisa que agucemos olhos e mente, disci-plinando o sentir e o pensar, o viver e o morrer nessas épocas assoladaspelo apelo rápido e fácil, superficial e passageiro.

Nossos agradecimentos aos colaboradores, em sua maioria estudi-osos devotados a essa época dos espirituais, que se dispuseram pronta-mente em colaborar.

Desejamos a todos uma boa leitura.

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ARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOS

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APOCALITTICA COME RETORICA...

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APOCALITTICA COME RETORICA:CONTINUITÀ E METAMORFOSI

Gian Luca Potestà *

Negli Stati Uniti, luogo di incontro di credenze, culture e societàche ribollono di fermenti apocalittici, si distingue già da molti anni fraapocalissi (i testi riportabili a un genere letterario determinato),apocalittica (i linguaggi, le dottrine, le prospettive improntate a testiapocalittici) e apocalitticismo (soggetti, chiese e movimenti che sicaratterizzano per credenze e orientamenti apocalittici). Vorrei offrirequalche spunto di riflessione lungo queste tre piste: in quest’epoca dibagni apocalittici, vale forse la pena conoscere meglio la composizionedel liquido in cui siamo immersi, e la sua temperatura.

1 I testi apocalittici e le loro funzioni di propaganda

Innanzi tutto: che cosa si intende propriamente per testi apocalittici?Nel canone biblico fissato dalle grandi Chiese compare una solaapocalisse. Per questo a volte si pensa che di apocalissi ce ne sia appuntouna sola, quella attribuita al Giovanni autore del quarto vangelo. Inrealtà ogni tradizione religiosa ha le sue apocalissi, anzi generalmente sifonda su di un’apocalisse nel senso originario greco del termine:Rivelazione come disvelamento. Giudaismo e cristianesimo contano

* Atualmente professor de História do Cristianismo na Facoltà di Lettere e Filosofiadell’Università Cattolica del S. Cuore, Milão.

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GIAN LUCA POTESTÀ

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numerose apocalissi, in parte inserite nel canone biblico (sia ebraico,sia cristiano), in parte rimaste fuori di esso, nella maggior parte prodottedopo la definizione del canone.

Le apocalissi si presentano in genere come trascrizioni di una visioneo di una serie di visioni. La più antica arrivata fino a noi è quella diEnoch, in cui si racconta che il veggente, il patriarca Enoch, sarebbestato rapito in cielo, dove gli sarebbero stati mostrati i luoghi riservatial giudizio divino sui morti. Fra le altre apocalissi giudaiche,giudeocristiane o gnostiche attribuite a personaggi biblici, generalmenteprofeti dell’Antico e apostoli del Nuovo Testamento, si contano almenotre apocalissi di Elia, un’ascensione di Isaia, una sezione del libro diDaniele, un’Apocalisse di Pietro (la più antica e prestigiosa dopo quellacanonica), un’Apocalisse di Paolo, altre Apocalissi di Giovanni … Leattribuzioni sono tutte false.

Non tutte le apocalissi consistono in resoconti di viaggi e diricognizioni dei luoghi ultraterreni. Esistono anche apocalissi orientatein senso storico, per noi forse le più interessanti. Il veggente raccontauna sequenza di avvenimenti che presenta come gli eventi finali dellastoria del suo popolo, della sua Chiesa o addirittura del mondo.Prendiamo la sezione apocalittica del libro di Daniele. Il centro dellanarrazione è rappresentato dalle drammatiche vicende avvenute inMedio Oriente intorno al 168 a.C., quando il sovrano Antioco IVEpifane compì una fortunata campagna militare che lo condusse dallaSiria all’Egitto, e ritorno. A Gerusalemme Antioco fu protagonista diatti gravissimi nei confronti della religione del popolo giudaico. Standoa Daniele, le azioni più terribili furono compiute contro il Tempio,luogo per eccellenza del culto divino. Antioco lo profanò, lo imbrattò,lo contaminò: destituì il sommo sacerdote, alterò la successionesacerdotale e osò far innalzare – “abominio della desolazione” – unapropria statua “nel luogo santo”.

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La sezione apocalittica di Daniele rappresenta un modello, che cometale verrà esplicitamente assunto e ripreso nell’Apocalisse di Giovannie in numerose altre apocalissi successive. Innanzi tutto per il suo caratterepseudoepigrafico. La falsa attribuzione è fondamentale non solamenteper dare lustro all’opera. In questo caso, chi racconta le vicende delprofanatore è un individuo – forse un testimone oculare – molto beninformato delle malefatte di Antioco e della resistenza oppostagli davalorosi giudei osservanti della Legge, animati dall’eroico esempio diGiuda Maccabeo e dei suoi fratelli. Raccontare quest’episodio in presadiretta avrebbe naturalmente avuto ben minore forza evocativa e portatamobilitatrice. Per i fini che si prefiggeva l’autore, risultò invece efficaceattribuire le visioni a un celebrato profeta vissuto al tempo delladeportazione dei Giudei a Babilonia, il quale avrebbe previsto conaddirittura quattro secoli di anticipo le oscenità perpetrate da Antioco.

Un primo tratto da sottolineare nell’apocalisse di Daniele (e nelleapocalissi in genere) è che si tratta dunque di un testo di propaganda. Ilsapere che patimenti, sofferenze, martirii sono quelli eternamenteprevisti per gli ultimi giorni da Dio, che per tramite di un veggente liha comunicati anzi tempo agli eletti perché si preparino a soffrire e aresistere, nella certezza che alla fine verranno la liberazione e il riscatto,se non addirittura la vendetta, è propagandisticamente molto più efficaceche invitare a resistere al buio, senza prospettive certe. Come per altritesti dell’Antico Testamento, anche per Daniele i cristiani siimpegnarono a rileggerlo dal proprio punto di veduta. La sua sezioneapocalittica venne così reinterpretata in riferimento agli attesi eventifinali, le allusioni ad Antioco furono viste come allusioni allapersecuzione ultima dell’Anticristo, e questo garantì un supplementodi interesse duraturo per quelle visioni.

Ma viene subito da chiedersi: come è possibile che, primadell’avvento dei metodi interpretativi della Scrittura progressivamente

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affermatisi a partire dalle grandi scuole esegetiche europee della finedell‘800, nessuno si fosse accorto del meccanismo di Daniele? In effetti,se ne era accorto già il filosofo platonico Porfirio, che in Sicilia scrisse,verso il 270, un trattato in cui smontava l’intero congegnopropagandistico. Come notò nel 1897 lo studioso francese J. Lataix,«Porfirio diceva di Daniele all’incirca tutto ciò che i critici modernihanno pensato di scoprire. Secondo lui, il libro non era stato scritto daDaniele. L’autore viveva in Giudea, al tempo di Antioco Epifane; piùche annunciare l’avvenire, racconta il passato». Ma conosciamo lapotenza della propaganda: non basta mostrare che una cosa è falsa persmontarla! Il falso ripetuto infinite volte diventa vero, mentre il veroviene fatto morire: il trattato di Porfirio venne fatto sparire - ad operadi cristiani, si suppone –, al punto che oggi ne conosciamo i contenutisolo indirettamente, dalle citazioni dei suoi avversari.

Dai tempi delle apocalissi attribuite a profeti e ad apostoli, laproduzione delle apocalissi non è mai cessata, ma è stata sempre guardatacon una certa diffidenza dalle gerarchie ecclesiastiche. Strumentiformidabili di mobilitazione religiosa, sociale e politica, alimentanospinte non facilmente governabili dalle istituzioni: depositari delmessaggio sono infatti il veggente con il suo carisma divinamentecertificato, ovvero la comunità che lo gestisce o che dispone dellarivelazione. Negli Stati Uniti, dove fin dall’inizio le forme dicristianesimo dal punto di vista istituzionale sono state e restanocomplessivamente più leggere rispetto a quelle europee, le piùimportanti comunità religiose che hanno preso piede dai primi decennidel 1800 si fondano su rivelazioni apocalittiche, dalla Chiesa di Cristodei Santi degli ultimi giorni (i Mormoni) alla Chiesa degli avventistidel settimo giorno, nata sulla base di un calcolo riguardante il ritornodi Cristo sulla terra, compiuto a partire da un rinnovato studio dellibro di Daniele.

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Per quanto riguarda la Chiesa cattolica e le Chiese nate dallaRiforma, dopo l’ultima esplosione di testi e personaggi apocalittici fraTardo Medioevo e prima Età Moderna, le gerarchie hannotendenzialmente cercato di disinnescare l’Apocalisse, e soprattutto dievitare che se ne scrivessero di nuove. In ambito cattolico il generetornò alla ribalta tra fine ‘700 e inizi ‘800 in occasione della soppressionedell’Ordine dei gesuiti e del crollo dell’Ancien Régime. Alcuni cercaronodi spiegare quelle vicende riportandole nella luce superiore delcomplotto anticristiano, cui i gruppi dirigenti restauratori tentaronodi opporsi dando vita alla “Santa Alleanza” (l’espressione è presa dalLibro di Daniele, dove originariamente si riferisce al patto stretto fra isovrani unitisi contro Antioco).

Al di fuori di queste cerchie reazionarie, in ambito cattolico leuniche apocalissi che davvero hanno tenuto banco negli ultimi duesecoli, raggiungendo strati ampi di popolo, sono state quelle mariane(capaci di stimolare la fede, senza peraltro pretendere di alterare ildepositum fidei custodito dalla gerarchia). Le più celebri sono lerivelazioni di Fatima, avvenute tra maggio e ottobre 1917. Laparticolarità di Fatima, rispetto ad altre apparizioni mariane, sta nelfatto che l’apparizione originaria venne arricchita grazie alla progressivarivelazione di ulteriori segreti via via comunicati dalla Vergine all’unicasopravvissuta, Lucia dos Santos. Fatima è un’apocalisse in progress. Lapiena pubblicazione dell’ultima parte del suo segreto è avvenuta nel2000 (esso presentava in forma appena velata il conflitto fra ilcomunismo ateo e la Chiesa cattolica, l’attesa di una tribolazionegenerale del clero e la speranza nella conversione futura della Russia).Nella fase attuale la Chiesa cattolica appare priva di significativiriferimenti apocalittici, e questo è un tratto che la distingue fortementedalle Chiese e sette che al di fuori dell’Europa risultano in rapida crescitaanche grazie al proliferare incontrollato di profezie e visioni apocalittichedei loro leader carismatici.

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2 Un linguaggio simbolico e oscuro

Un fattore certo non secondario della perdurante fortuna dei testiapocalittici è rappresentato dal loro linguaggio e dalle loro dottrine.Daniele si esprime in termini allusivi e oscuri, facendo massicciamentericorso a una simbolica dei numeri e degli animali. Il trionfo dellefigure e dei misteri si registra nell’Apocalisse di Giovanni, compostaintorno alla fine del I secolo, o ai primissimi del II, in un ambientegiudeocristiano dell’Asia Minore polemico nei confronti sia di Romaimperiale sia della Sinagoga.

A proposito del linguaggio allusivo e misterioso dell’Apocalisse,da sempre suo motivo di forza, lasciamo la parola a un acuto criticodel XII secolo, il bavarese Gerhoh di Reichersberg, che in un’ampiaIndagine sull’Anticristo mirante a demitizzare una serie di credenzesull’Anticristo affastellatesi in dieci secoli, definisce l’Apocalisse diGiovanni “un libro pieno di passi oscuramente simbolici, del quale giàprima di noi si è detto che contiene tanti misteri quante sono le parole,anzi che in ciascuna parola sono nascosti significati molteplici”.L’Apocalisse di Giovanni, come già quella di Daniele, si fonda su diuna visione forte della storia come teatro di un grandioso conflitto,giunto ormai alla scena finale, tra forze del bene e forze del male. Leprime sono sottoposte a una serie di persecuzioni del drago, cioè delDiavolo, messe in opera dai suoi agenti terreni, il principale dei quali èla duplice bestia, che sale dal mare e che sale dalla terra. La bestia vinceràla resistenza di due profeti e predicatori che oseranno opporsi ad essa,li ucciderà e ne farà esporre i cadaveri sulla piazza grande diGerusalemme; ma – sul modello di Gesù – i due martiri risorgerannodopo tre giorni.

Ognuno di questi passaggi si presenta ambiguo e aperto a molteinterpretazioni possibili. Consideriamo un solo punto, la tanto discussa

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questione dell’identità della seconda bestia. Che cosa vuol dire che labestia ha un marchio, imposto a tutti coloro che la seguono, e il marchioè il 666? La questione ha intrigato gli interpreti a partire da Ireneo,l’inventore dell’Anticristo come nemico dei tempi finali. Ireneo cercòdi decifrare il numero della bestia applicando i principi della gematria,la scienza che faceva coincidere a ogni lettera dell’alfabeto (greco) unvalore numerico (alfa = 1, beta = 2, ecc.), e in questo modo arrivò astabilire che il 666 potrebbe equivalere in cifra a “Teitan” oppure a“Lateinos”. Gli interpreti antichi e medievali si sono sbizzarriti neitentativi combinatori.

Tentativi ingenui propri di un mondo premoderno ormai mortoe sepolto? Niente affatto. Nel 1993 presso le Edizioni del celebremonastero della SS. Trinità e di S. Sergio di Sergiev Posad, sededell’Accademia ecclesiastica moscovita, è apparso un volume dal titolo:La Russia dinanzi al secondo avvento (inteso come la Parusia di Cristoalla fine dei tempi), un’antologia di scritti apocalittici dai Padri fino altempo presente. Stampato in una tiratura iniziale di 100.000 esemplari,il libro è stato più volte ripubblicato. Il testo è un concentrato dellerappresentazioni apocalittiche e demonologiche, con cui alcuni fra isettori più combattivi e oltranzisti dell’Ortodossia russa cercano difronteggiare la secolarizzazione, esaltando i caratteri nazionalistici,antigiudaici e antimoderni presenti nella tradizione culturale e religio-sa russa. Vi si legge fra l’altro che il sigillo dell’Anticristo è riconoscibilenei codici a barre, e che il numero della bestia apocalittica sta nellecarte magnetiche. In realtà l’idea non era affatto nuova. La si trovaampiamente diffusa fin dal decennio precedente negli Stati Uniti graziea due fortunati libri di Mary Stewart Relfe: When Your Money Fails:the “666 System” Is Here (1981, oltre 600000 copie vendute) e TheNew Money System (1982), in cui denuncia la presenza del 666 neicodici magnetici a barre e nelle numerazioni di determinate carte di

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credito americane. Ecco una semplice attestazione che l’apocalitticanon ha confini non solo temporali, ma neppure spaziali, sicchéaffermazioni germogliate sul suolo del fondamentalismo protestanteamericano possono attecchire facilmente anche su quello delfondamentalismo ortodosso russo. Di fatto, nel marzo 2000 il sinodoepiscopale del patriarcato di Mosca confermò che il codice a barrecontiene il 666 e chiese al Governo di introdurre, per riguardo ai credentidella Russia, un sistema di codice a barre differente da quellointernazionalmente in uso.

Il linguaggio cifrato dell’apocalittica si presta a moltepliciinterpretazioni, e in un certo senso le sollecita. Nel contempo, gliorizzonti entro cui queste sono ricercate appaiono sostanzialmentestabili. L’apocalittica trae forza dal ricorrere degli schemi e dalla longevitàdelle linee interpretative, che si radicano entro il terreno di una tradizionedi cui spesso non si riescono più a misurare profondità e consistenza.

È paradossale, ma quanto più il linguaggio apocalittico appareermetico e polimorfo, tanto più gli stilemi e i percorsi interpretativi sisnodano e si modificano lungo strade che sono però sempre le stesse:che si tratti di “Teitan” o del codice a barre, la procedura interpretativaapplicata al 666 ci appare ingenuamente fondamentalista, quasi che iltesto contenesse davvero un segreto che ancora aspetta di esseredecrittato in re.

3 Gioacchino da Fiore e la ripresa critica del millenarismo

Come si legge nell’Apocalisse di Giovanni, Dio stesso porrà fine altrionfo ingannevole della bestia, la manderà in un abisso di zolfo e difuoco insieme a tutti i suoi collaboratori (gli “pseudoprofeti”), e allorafinalmente Satana sarà legato per mille anni. In quel tempo Satana saràdunque nell’impossibilità di nuocere; i santi (ovvero i martiri della

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fede) torneranno sulla Terra, e regneranno su di essa insieme a Cristorisorto. Nell’Apocalisse l’instaurazione del regno millenario è presentatacome l’ultima fase della storia terrena, immediatamente precedente lasconfitta definitiva di Satana, cui seguono il giudizio finale e la discesadella nuova Gerusalemme dal cielo. L’attesa di una nuova Gerusalemmeera in linea con le rivendicazioni nutrite in ambienti giudaici dopo itragici eventi del 70. Ma mentre nelle cerchie osservanti si vagheggiavala ricostruzione della Gerusalemme terrena e del suo Tempio,l’Apocalisse di Giovanni precisa che la nuova Gerusalemme scenderàdal cielo e non ci sarà in essa nessun tempio! Era una presa di distanzada quegli ambienti giudaici con cui l’autore dell’Apocalisse era inrapporto e in competizione. Quanto al millenarismo apocalittico,anch’esso si innestava sulla dottrina giudaica, che, sul modello delracconto della Creazione, suddivide la storia in sei giorni millenari,destinati ad essere seguiti dal settimo millennio di pace corrispondenteal settimo giorno del riposo divino. Anche per questo aspetto Giovannisi mantiene dunque entro un orizzonte giudaico; ma nel contempo neprende le distanze, in quanto il regno millenario non sarà quello delmessia futuro, ma quello dell’agnello già sacrificato, destinato aprendere la guida dei santi (cioè dei martiri) richiamati alla vita.

Agostino fu abile a disinnescare le proiezioni millenaristiche e leattese di una nuova Gerusalemme destinata a scendere dal cielo in ter-ra, che avevano animato diversi movimenti apocalittici dei primi secoli,e di cui egli stesso aveva inizialmente subito il fascino. Nel De civitateDei l’incatenamento del Diavolo è presentato non come un eventoimminente legato all’instaurazione terrena del Regno, bensì come lacondizione di cui la Chiesa già gode a seguito della prima venuta diCristo, per quanto l’intreccio umanamente inestricabile fra le due cittàimpedisce di comprendere pienamente ciò. In questo senso Agostinosi spinge ad affermare che «la Chiesa già ora è il regno di Cristo e il

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regno dei cieli, e dunque già regnano con lui i suoi santi, sia pure inmodo diverso da come regneranno allora», cioè nella condizione diquiete ultraterrena (De civitate Dei XX, 9.1).

Il tabù agostiniano resse fino a quando non lo infranse Gioacchinoda Fiore. Negli ultimi decenni del 1100 l’abate calabrese osòriconsiderare il ventesimo capitolo dell’Apocalisse in una nuova luce,riferendone l’annuncio allo stato sabatico dello Spirito in terra, la cuipiena instaurazione riteneva imminente. Qui l’apocalittica mostra tuttala sua forza di rottura, la sua capacità di additare spazi inesplorati entroun orizzonte che Gioacchino presenta come ancora pienamenteintramondano e intrastorico. Da allora la ripresa del millenarismo hacompiuto un lungo percorso, giungendo prima attraverso gli osservantiminoriti spagnoli in Messico e attraverso i gesuiti portoghesi (Vieira)in Brasile; poi, attraverso il puritanesimo inglese, fino al cosiddettopremillenarismo americano. Anche lungo questa via il ricordo diGioacchino – trasfigurato, trasformato, alterato – ha goduto di enor-me fortuna in età moderna e contemporanea.

Ma questo suo annuncio sarebbe rimasto forse lettera morta seegli non avesse avuto un’altra idea geniale, rimettendo in motol’interpretazione dell’undicesimo capitolo dell’Apocalisse, quello in cuisi parla dei due testimoni martirizzati e uccisi dalla bestia. Anche suquesto passo pesava una tradizione interpretativa molto antica, che neidue testimoni vedeva due personaggi biblici di cui abbiamo già fatto ilnome, il patriarca Enoch e il profeta Elia, originariamente risalenteall’Apocalisse di Elia (5.32), probabilmente uno scritto giudaico adattatoda un autore cristiano, la cui redazione finale va riportata fra II e IIIsecolo d.C.: si credeva che fossero stati rapiti da Dio, conservati in unmondo a parte e che di lì sarebbero stati rispediti a terra per contrastaresenza successo il trionfo dell’Anticristo. Gioacchino fu di fatto il pri-mo a intendere i due personaggi non come due singoli individui –

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un’identificazione che non aveva fondamento biblico, e non conducevada nessuna parte – ma come due soggetti collettivi, due ordini nuovidestinati ad agire nella storia e a diventare protagonisti degli attesiconflitti finali. Protagonisti nel senso di militanti e di martiri. Non èun caso che il suo messaggio sia stato fatto proprio dai nuovi ordinireligiosi affermatisi nella Chiesa romana a partire dal secolo XIII, inprimis dai frati minori (francescani) e dai frati predicatori (domenicani),che se ne avvalsero come se Gioacchino avesse profetizzato loro stessi(infinite metamorfosi della propaganda)!

Con Gioacchino noi vediamo portati al massimo livello tutti gliaspetti che abbiamo finora via via cercato di mettere in luce. Egli è nonsolo lettore e interprete di testi apocalittici, ma apocalittico egli stesso(lega le sue più importanti acquisizioni teoriche a visioni o rivelazionipersonali) e fautore di un movimentismo apocalittico che lo convinsea salire in una località impervia sulla Sila per prepararsi con pochicompagni agli eventi finali, all’assalto dell’Anticristo e alla successivairruzione del tempo dello Spirito, la breve epoca sabatica di cui i nuoviordini sarebbero stati i protagonisti.

Prima che venga il millennio di pace e di libertà tanto attesa, glieletti dovranno affrontare l’ultima tribolazione, quella dell’Anticristo.Disponendo le opere di Gioacchino lungo il suo percorso biografico,ci si rende conto della straordinaria duttilità con cui egli incessante-mente trasforma, senza quasi darlo a vedere, la materia apocalittica chemaneggia con impareggiabile abilità. Nelle sue opere più antiche, an-cora segnate dal colossale scontro fra Papato e Impero, l’abate calabresepare indicare, sempre con cautela e prudenza, l’Impero come il nemicoprincipale da cui guardarsi. Poi però mette la sordina alla polemica neiconfronti dell’Impero (spiegando anzi che la Chiesa deve passareattraverso la servitù nei confronti dell’Impero se vuole infine guadagnarsiuna libertà più vera e profonda). Siamo ormai al tempo della caduta di

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Gerusalemme (1187) e dell’adesione del Barbarossa e dei principalisovrani d’Occidente all’appello papale alla Crociata. Gioacchino mutaproprio allora quasi fulmineamente i propri bersagli polemici, e dànomi nuovi ad alcune delle teste del drago dell’Apocalisse. In questomodo punta a drammatizzare il conflitto con l’Islam, o meglio adavvertire il suo pubblico che è questa la vera e nuova frontiera delloscontro apocalittico.

Visto in genere come un utopista lontano dalla realtà, Gioacchinofu sensibilissimo al mutevole scenario di politica ecclesiastica dell’Italiadell’ultimo quindicennio del secolo XII, cercando di fornire strategiedi lunga lena alla Chiesa romana, proiettandone con perfetta scelta ditempo le vicende e le scelte (in parte fatte, in parte auspicate) sullosfondo di uno scenario apocalittico in continuo movimento. Alla finel’Anticristo sarà per lui un eretico sostenuto dall’Islam, destinatoaddirittura a salire sul trono di Pietro.

Un aspetto fondamentale della propaganda apocalittica è la suaestrema malleabilità, legata come abbiamo detto all’oscurità costitutivadel linguaggio apocalittico e all’ambiguità dei possibili riferimenti. Difatto predicatori, movimenti, sette, centri di informazione edisinformazione di matrice apocalittica continuano tuttora a darestupefacenti prove della loro capacità di trasformare continuamente ilproprio bersaglio. Manca ora il tempo per farlo, ma sarebbe interes-sante seguire i percorsi di alcuni predicatori apocalittici degli Stati Unitidell’ultimo ventennio, delle disinvolte acrobazie in cui negli anni diReagan pretesero di bollare l’Unione sovietica come l’Anticristo, salvopoi a indicare l’Anticristo in Saddam Hussein. In maniera analogamentedisinvolta, gli Ebrei, già bollati per secoli come agenti dell’Anticristo,in quanto fautori della ricostruzione del Tempio di Gerusalemme incui egli si insedierà come novello Antioco, nell’ultimo decennio sonostati pienamente recuperati come alleati nel conflitto apocalittico contro

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l’Islam. Interessante in questo senso la recente unione di settoriapocalittici cristiani con ambienti ebraici americani, in vista diun’alleanza a tempo contro il comune nemico islamico: alleanza a tem-po, dico, perché proprio quegli apocalittici cristiani per gli Ebrei loroattuali alleati non vedono altro destino finale che la conversione alMessia Gesù di Nazareth.

4 Persecuzioni e martirio, violenza e vendetta divina

I testi storico-apocalittici assolvono tanto più efficacemente allaloro funzione di propaganda, quanto più risultano capaci di inserire levicende di un popolo, di una Chiesa, di un gruppo o movimentoentro uno scenario che dia ragione delle persecuzioni e sofferenze subiteinserendole in un quadro più ampio e mostrandone il caratteretransitorio. Le apocalissi sono dunque testi consolatori nel senso piùalto del termine: chi li legge è chiamato a pazientare, ovvero a resistere,sul modello dei martiri. Spingono in questo senso, oltre alla visionefortemente polarizzata di bene e male, l’enfasi posta sul presente comemomento della scelta, la rappresentazione accelerata dello scorrere deltempo che manca e la pretesa di computarlo in vista della liberazionefinale. D’altra parte, le apocalissi mirano a rinserrare le fila, a consolidaregli incerti, a motivare i dubbiosi, a rafforzare i deboli, a impedirel’abbandono delle antiche certezze e posizioni, in una parola: a fermarel’apostasia. Per ottenere questo, devono evitare l’insorgere di qualsiasifenditura nel proprio corpo, sia esso ecclesiastico, sociale o politico. Laforza dell’apocalittica non sta nella lucidità dell’analisi, ma nella capacitàdi mantenere unito un soggetto collettivo.

Interpretando in riferimento a due ordini militanti il capitolodell’Apocalisse relativo ai due testimoni destinati al martirio,Gioacchino prefigurava un lato terribilmente moderno dell’apocalittica:

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essa richiede schiere di martiri, e dà ragione del loro martirio.Tranquillizziamoci: si tratta certo di un martirio che non prevede altramorte che quella dei testimoni stessi, di martirio subito, che escludeassolutamente che sia inferto ad altri. E tuttavia, nelle rappresentazioniapocalittiche la violenza subita potrà essere riscattata solo da unintervento divino altrettanto violento contro le forze del male.

Come si legge nell’Apocalisse di Giovanni, “quelli che non sononé caldi né freddi, i tiepidi, li vomiterò dalla bocca”. L’Apocalisse invocatensione, passione, ma anche martirio, fuoco, zolfo, violenza. A benvedere, nel nostro Occidente religioso e politico tutti questi elementisono ampiamente mancanti nell’attuale dibattito ideale. Se c’è violenza,salvo casi eccezionali non la si pratica in nome e in forza di satanismi e/o apocalitticismi. Se volessimo arrischiarci a definire in una battuta lacondizione religiosa, politica e culturale dell’Europa di oggi, ladefiniremmo semmai di tiepido letargo nel suo desiderio di quiete esicurezza. E chi da noi prenderebbe oggi sul serio in considerazione leparole della Prima Lettera di Paolo ai Tessalonicesi: «Quando infattidiranno: “Pace e sicurezza”, allora la distruzione li assalirà improvvisacome le doglie in una donna incinta, e non avranno scampo» (1 Ep.Thess. 5,1-3)?

Gli apocalittici, con il loro carico ambiguo di minacce e diricompense celesti, con le loro letture avvincenti quanto semplificatricidi processi storici che richiederebbero invece di essere considerati construmenti critici capaci di restituircene le tonalità chiaroscurali, con illoro approccio ingenuo e fondamentalista sono invece ben presentinelle culture religiose e nello stesso panorama cristiano extraeuropeo.Si tratta di fenomeni vastissimi, che in larga parte sfuggono allo sguardofrettoloso e marginale di chi, in Europa o in Italia, continua a credersiancora al centro del mondo. Philip Jenkins ha scritto due libri moltointeressanti al riguardo. Nel primo (The Next Christendom: The Rise

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of Global Christianity, Oxford University Press, 2002, tradotto anchein portoghese) mostra che il cristianesimo è in espansione nel mondo,come l’Islam e più dell’Islam. Ma spiega anche che il cristianesimo checresce, fuori dall’Europa, è soprattutto profetico, visionario,apocalittico. Rispetto ad esso, la Chiesa romana si trova in una posizioneben più marginale di quel che si potrebbe credere guardando le nostretelevisioni.

Soprattutto perché, come documenta il suo più recente The NewFaces of Christianity: Believing the Bible in the Global South (OxfordUniversity Press, 2006; trad. italiana: I nuovi volti del cristianesimo,Vita e pensiero, 2008), nei cristianesimi extraeuropei i testi biblici sonomolto letti, generalmente secondo prospettive fondamentaliste: evi-tando cioè la fatica della mediazione interpretativa, nella convinzioneche i testi siano applicabili in maniera diretta e immediata ai bisogni ealle urgenze dei lettori di oggi. Quelli apocalittici rappresentano unaproduzione prelibata per questi gusti e stili di lettura. Ci si accosta adessi come se dovessero svelare un segreto: lungamente celato per noi,perché fosse infine comunicato proprio a noi.

Se nell’Occidente europeo tutto appare tiepido e sonnolento, al difuori dell’Europa le religioni e lo stesso cristianesimo paiono invececapaci di accendere nuovi entusiasmi e passioni. E non a caso lì legrandi Chiese storiche paiono in genere inadeguate al compito,teologico e pastorale insieme, di incanalare e orientare le nuove formereligiose entro orizzonti culturalmente non fondamentalisti. Per quantoriguarda in particolare il cattolicesimo, la condanna e lo sradicamentodella teologia della liberazione, voluti dalla Chiesa romana per evitarel’infiltrazione marxista e respingere la politicizzazione della sferareligiosa, ha in realtà prosciugato uno spazio più ampio di criticità e dilibertà di ricerca di nuovi linguaggi teologici e di nuove retorichereligiose, che era stato tentativamente aperto grazie all’incontro di alcuni

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teologi latinoamericani con la criticità della teologia e della culturadell’Occidente europeo. Quello spazio non è stato per oraadeguatamente colmato. Fossimo davvero apocalittici, dovremmochiederci se vi è ancora il tempo di farlo.

Per approfondire:

Su apocalissi, apocalittica e apocalitticismi dalle origini ai giorninostri: G. L. Potestà, Escatologia, apocalittica, millenarismo, in Atlantedel cristianesimo. Volume I, Dalle origini alle chiese contemporanee, Utet2006, pp. 314-335.

Per il conflitto interpretativo intorno al Libro di Daniele nei primisecoli del cristianesimo cfr. P.F. Beatrice, Pagans and Christians on theBook of Daniel, «Studia Patristica» 25 (1993), pp. 27-45. Per l’operaperduta di Porfirio, P. F. Beatrice, Le traité de Porphyre contre lesChrétiens. L’état de la question, «Kernos» 4 (1991), pp. 119-138. Ilpasso citato di J. Lataix sta in J. Lataix, Le Commentaire de SaintJérôme sur Daniel, «Revue d’histoire et de littérature religieuses» 2(1897), pp. 164-173 (165).

Per le interpretazioni antiche del 666, a partire da Ireneo, cfr.L’Anticristo. Volume I. Il nemico dei tempi finali, a cura di G. L. Potestàe M. Rizzi, Fondazione Lorenzo Valla / Arnoldo Mondadori Editore2005. Per l’apocalitticismo statunitense: P. Boyer, When Time ShallBe no More. Prophecy Belief in Modern American Culture, HarvardUniversity Press 1992. R. C. Fuller, Naming the Antichrist. The Historyof an American Obsesssion, Oxford University Press 1995. Per la retoricadell’Anticristo nella Chiesa ortodossa russa nella fase attuale: M.Hagemeister, Das Dritte Rom gegen den Dritten Tempel – Der Antichristim postsowjetischen Russland, in Der Antichrist. Zur Wirkungsgeschichteeines apokalyptischen Motivs in Judentum, Christentum und Islam, edd.

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M. Delgado – V. Leppin, Academic Press Fribourg 2010 (in corso distampa).

Per il profilo e l’opera di Gioacchino da Fiore, G. L. Potestà, Iltempo dell’Apocalisse. Vita di Gioacchino da Fiore, Laterza, Roma-Bari2004 (ed. spagnola: El tempo de l’Apocalipsis: Vida de Joaquin de Fiore,Trotta 2010). Per l’interpretazione gioachimita di Enoch ed Elia comedue soggetti collettivi, ovvero due ordines della Chiesa, si vedaL’Anticristo. Volume II. Il figlio della perdizione, a cura di G. L. Potestàe M. Rizzi, Fondazione Lorenzo Valla / Arnoldo Mondadori Editore(in corso di stampa). Per gli aggiornamenti via via apportati daGioacchino al proprio quadro apocalittico in relazione al mutare dellecontingenze politico-ecclesiastiche, G. L. Potestà, Apocalittica e politicain Gioacchino da Fiore, in Endzeiten. Eschatologie in denmonotheistischen Weltreligionen, hrsg. von W. Brandes u. F. Schmieder,Walter de Gruyter, 2008, pp. 231-248.

Su fondamentalismi a apocalitticismi negli Stati Uniti d’Americadopo l’11 settembre 2001: V. Schwediauer, Der Kreuzzug im Irak.Christian Right und Neokonservatismus als symbiotischeHerrschaftsideologien für den US-Krieg im Irak, Peter Lang 2006 (conampia bibliografia).

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A FUNDAMENTAÇÃO SOCIOLÓGICADA TEORIA SOBRE A POBREZA DOS

ESPIRITUAIS EM PEDRO DE JOÃOOLIVI. O. MIN. (1274/1248-1298)

Johannes Karl Schlageter OFM, Fulda1

1 O abismo social entre pobres e ricos em Olivi, visto a partirdo ponto de vista sociológico?

Com a questão de uma fundamentação supostamente sociológicade sua teoria espiritual sobre a pobreza, o franciscano medieval Pedrode João Olivi não deverá ser enquadrado na história da sociologiamoderna. O que o separa dessa forma moderna de ciência social, de-senvolvida apenas a partir do século XIX, não é apenas o espaço detempo de mais ou menos 600 anos. Olivi compreendia a si mesmoprimaria e essencialmente como um teólogo cristão, que queria servirsobretudo à sua Ordem, na época ainda jovem, como mestre de teo-logia e espiritual2. Nesse contexto, Olivi colocava a mensagem bíblica

1 O autor Johannes Karl Schlageter OFM: Nasceu em 1937, Franciscano desde 1957;Concluiu Doutoramento em teologia em Munique em 1970; professor universitáriodos franciscanos e capuchinhos em Munique de 1970 a 1986; exerceu funções noâmbito da formação na província da Turíngia e editou textos de Olivi 1986-2003;desde então vem realizando trabalhos sobre a história da província e da ordem. Tradu-ção de Enio P. Giachini.2 Em relação à forma de pensar e à importância social, cf. sobretudo as contribuiçõesem: BOURREAU, Alain; PIRON, Sylvain (eds.). Pierre de Jean Olivi (1248-1298). Penséescolastique, Dissidence spirituelle et Societé. Actes du colloque de Narbonne mars1998. Paris, 1999 (Études de philosophie médiévale, 79).

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no ponto nuclear de seu pensamento; isso porque eram precisamenteos textos bíblicos que deviam ser explicitados, interpretados e coloca-dos em aberto em sua força de atuação prática. Por isso, a maior partedas obras de Olivi foi dedicada à explicitação teológica e à interpreta-ção espiritual de escritos bíblicos, tendo em vista sempre seu significa-do prático para seu tempo3. Assim, os fenômenos e problemas sociaisnão poderiam passar despercebidos para ele, uma vez que, à época, elestinham uma forte influência sobre a efetivação prática da mensagembíblica, especialmente na Igreja e na Ordem4. Abordando aquelas ques-tões que ele trabalhou escolasticamente como sendo as bases da vidada ordem, Olivi pesquisou, já bem cedo, a prática de vida de sua pró-pria Ordem franciscana na sociedade de então. Nessas questões quemais tarde foram compiladas sob o título Questiones de perfectioneevangélica (Questões sobre a perfeição evangélica), as questões volta-

3 Cf. de modo especial, VIAN, Paolo. L‘Opera esegetica di Pietro di Giovanni Olivi. In:Pietro di Giovanni Olivi, Opera edita et inedita. Atti delle Giornate di StudioGrottaferrata (Roma) 4 – 5 Dicembre 1997. Ed. ARCHIVUM FRANCISCANUM HISTORICUM

– COLLEGIO S. BONAVENTURA. Grottaferrata (Roma) 1999, p. 395-454.

4 Cf. especialmente BURR, David. Apokalyptische Erwartung und die Entstehung derUsus-pauper-Kontroverse; SCHLAGETER, Johannes. Die Entwicklung der Kirchenkritikdes Petrus Johannis Olivi von der „Quaestio de altissima paupertate“ bis zur „Lecturasuper Apocalypsim“; FLOOD, David. Politik und Theorie im Franziskanerorden amEnde des 13. Jahrhunderts. In: Wissenschaft und Weisheit [WiWei] 47 (1984) 84-99;100-131; 140-163; PIRON, Sylvain. Parcours d`un intellectuel franciscain. D`une théologievers une pensée sociale. Paris, 1999. Mas Olivi não se restringia aos fatores sociais quecodeterminam a efetivação da mensagem bíblica. O aspecto da alma e do espírito deuma decisão a favor da mensagem bíblica, sobretudo do Evangelho de Jesus Cristo,ocupava o centro de seus interesses e cunhou sua imagem de homem e de liberdadehumana de decisão. Cf. SCHLAGETER, Johannes. Die Auseinandersetzung zwischengriechischem und biblischem Menschenbild im franziskanischen Freiheitsverständnisdes Petrus Johannis Olivi. In: WiWei 60 (1997) 65-86; SCHMUCKI, Albert. Selbstbesitzund Hingabe. Die Freiheitstheologie des Petrus Johannis Olivi im Dialog mit demmodernen Freiheitsverständnis Mönchengladbach, 2009 (Veröffentlichungen derJohannes-Duns-Scotus-Akademie für franziskanische Geistesgeschichte undSpiritualität, 27).

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das a um ser-pobre no sentido do Evangelho de Jesus Cristo, tinhamuma grande importância, mas ao mesmo tempo uma importânciacontroversa, tanto dentro quanto fora da Ordem5. Isso porque a reali-dade social na Igreja da época havia se afastado muito do ser-pobre deJesus e de seus primitivos companheiros de caminho, como vem tes-temunhado nos escritos do Novo Testamento. É verdade que Francis-co de Assis comprometera renovadamente a Ordem franciscana como ser-pobre de Jesus Cristo, compreendido como “pobreza suprema” eimagem diretriz de todo caminho de Jesus6. Mas a realidade social daOrdem quase não mais correspondia à finalidade firmada originaria-mente. Foi contra essa discrepância que Olivi investiu, com especialardor, em suas discussões sobre a “pobreza suprema” em conformidadecom o Evangelho. Na discussão teorético-escolástica sobre a compre-ensão franciscana da pobreza, Pedro de João Olivi, seguiu quiçá am-plamente seus predecessores franciscanos, tais como Boaventura deBagnoregio e João Peckham. Olivi, porém, queria orientar essas dis-cussões teóricas marcadamente na realidade social de pessoas pobres, afim de que, frente ao abismo social entre pobres e ricos, a compreen-são teórica da pobreza dentro da Ordem pudesse estar conectada coma situação e autocompreensão dos pobres. Isso fundamenta o modode ser próprio da teoria da pobreza de Olivi; isso porque, diversamen-

5 Cf. SCHLAGETER, Johannes. Armutsstreit. In: Lexikon für Theologie und Kirche. 3. ed.[LThK³]. Vol. 1, Freiburg/Basel/Rom/Wien, 1993, 1014s.

6 Cf. ESSER, Cajetan. Die Armutsauffassung des hl. Franziskus. In: FLOOD, David (ed.).Poverty in the Middle Ages. Werl/Westf. 1975, p. 60-70 (Franziskanische Forschungen.27); SCHLAGETER, Johannes. Wurde die Armutsauffassung des Franziskus von Assisivon der „offiziellen“ Kirche schließlich abgelehnt? Francisci Armutsverständnis undder Streit über „dominium Christi“ und „paupertas Christi“ unter Papst JohannesXXII. (1316-1334). In: Franziskanische Studien 60 (1978) p. 97-119. Sobre a reali-dade e a compreensão da pobreza na Idade Média, cf. sobretudo LINGREN, Uta. ArmutI. Soziologie; SCHLAGETER, Johannes: Armut II. Theologie. In: Lexikon des Mittelalters[LMA], vol. 1. München/Zürich, 1980, p. 984-986; 986-987.

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te de seus predecessores, ele entrou na abordagem de fenômenos eproblemas sociais que marcaram o ser-pobre de pessoas pobres e quetinha algo a ver com o abismo social entre pobres e ricos. E uma vezque ali surgem impostações de problemas, análises, tentativas de com-preensão e discussões crítico-teóricas que lembram as diversas formasda sociologia moderna, permito-me expor um discurso que intentauma fundamentação sociológica da teoria da pobreza de Olivi; issoporque, do mesmo modo que as diversas correntes da sociologia mo-derna problematizam, analisam, interpretam ou criticam procurandocompreender os nexos sociológicos7, assim também Olivi procurouproblematizar, analisar, interpretar e criticar o abismo entre pobres ericos que ele já conhecia a partir da Bíblia. A partir dali ele chegou a suateoria da pobreza, ligando-a com uma interpretação “espiritual” da his-tória. Essa teoria se apoiava, propriamente, na visão futurista de umanova era do Espírito Santo, ao modo como foi desenvolvida pelo aba-de cisterciense Joaquim de Fiore (circa 1135-1203)8. Foi isso que cu-nhou de maneira especial a teoria da pobreza de Olivi, a qual pode sercompreendida por isso como teoria espiritual da pobreza.

2 O abismo social em seus efeitos

Se a fala de um abismo social entre pobres e ricos correspondepropriamente falando à realidade social, isso é coisa que precisa seruma vez fundamentado. No próprio Olivi não encontramos esse modode falar de maneira expressa, embora, para ele, muitas palavras e ima-gens bíblicas apontem para uma separação, quase que insuperável, en-tre pobres e ricos. Assim, ele lê no Eclesiástico: “Por acaso a hiena vive

7 Cf. para isso, a descrição dos diversos métodos da sociologia moderna em: HELLE,Horst Jürgen. Soziologie. I. Disziplin. In: LThK³ 9, p. 799-801.

8 Cf. SPEER, Andréas. Joachim vom Fiore. In: LThK3 5, p. 854s.

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em paz com o cachorro / e o rico em paz com o pobre? A presa do leãoé o asno selvagem no deserto; assim os pequenos são o pasto dos ricos.A humildade é um tormento para o orgulhoso,/ um tormento para orico é o pobre”9. Por fim, na história edificante tirada do Evangelho deLucas, que conta sobre um homem rico e o pobre Lázaro10, acontraposição entre um pobre e um rico, no além se transforma “numabismo profundo e insuplantável”11. Aquele afastamento e indiferençapelos quais o rico, em seu gozo de vida, não tomava conhecimento donecessitado frente à sua porta, e não pôde ajudá-lo, acaba agora exclu-indo-o para sempre daquela proteção que consola o pobre Lázaro noseio de Abraão, retirando-o da miséria sofrida. Uma tal visão do abis-mo que separa pobres e ricos parece intensificada e capaz de chamarpara a conversão apenas na medida em que os ricos, num falso cami-nho de busca de si-mesmos, aqui no aquém, se fecham totalmentepara a necessidade dos pobres. Essas palavras e imagens da Bíblia, co-mentadas muitas vezes por Olivi, parecem não ter muito a ver com arealidade social de muitas pessoas. É possível ver tal realidade na medi-da em que, numa sociedade, não se consegue ver essa nefastacontraposição entre pobres e ricos, mas antes se supõe haver passagensgraduais e transponíveis da camada ínfima dos pobres para a camadasuperior dos ricos e super-ricos. Por isso, diversamente do que emOlivi, são problematizadas palavras e imagens bíblicas da contraposição

9 Cf. Eclo 13,18s. Cf. para isso, SCHLAGETER, Johannes (Ed.). Das Heil der Armen unddas Verderben der Reichen. Petrus Johannis Olivi – Die Frage nach der höchsten Armut.Werl/Westfalen 1989, p. 86 (Franziskanische Forschungen, 34). Die „Quaestio deperfectione evangelica octava: De altissima paupertate“, publicada e comentada ali, é otexto diretriz da teoria oliviana de pobreza.

10 Cf. Lc 16,19-31. Cf. para isso, PETRUS IOHANNIS OLIVI: Lectura super Lucam etLectura super Marcum. Critice editae a Fortunato IOZZELLI. Grottaferrata (Roma) 2010,p. 521-540 (Collectio Oliviana, 5).

11 Lc 16,26; cf. SCHLAGETER, Das Heil, 97.

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entre pobres e ricos, porque muitas pessoas em nossa época acreditamter alcançado outro ocular em relação à realidade social. Mas tambémOlivi não se contentou em interpretar e decifrar palavras e imagensbíblicas. Ele problematizou e analisou a realidade social de sua época,lançando mão de percepções que evidenciavam, de certo modo socio-logicamente, um abismo profundo entre pobres e ricos. Escreveu en-tão de forma fundamental: “Imagina-se que os incapazes(Vermögenslosen) nada podem temporalmente nas coisas econsequentemente nada podem junto às pessoas, nem para si nempara os outros, e não se imagina que detenham poder,correspondentemente ao mundo, de fazer o bem a alguém, de impingirprejuízos a alguém, e o que é pior, são considerados como total eabsolutamente incapazes de se defenderem contra acusações de ricos epoderosos”12. Olivi referia-se à observação e à opinião cotidiana emseu tempo e mundo. Àqueles que, como pé-rapados (Habenichtse),não tinham poder, não se atribuía nenhum poder e nenhuma faculda-de, tanto no âmbito das coisas, na realidade material, portanto, quan-to no âmbito pessoal e social, portanto no universo humano e na rea-lidade. Bem outra era a situação junto aos ricos: “reputava-se que osricos e poderosos, ao contrário, tudo poderiam fazer, tanto a si mes-mos quanto aos outros, tanto fazendo o bem quanto impingindo da-nos. [...] Por isso, os ricos não só gozam de grande reputação mas sãotambém adulados subservientemente e honrados”13. Todavia, Olivi nãoavalia de imediato o que ele próprio descreve como uma percepção e

12 Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 86: „inopes nihil reputantur temporaliter posse in rebusac per consequens nec in hominibus nec sibi nec aliis, nec reputantur secundummundum habere potestatem bene faciendi alicui aut aliquem damnificandi, et quodplus est, omnino reputantur impotentes ad defendendum se a calumniis divitum etpotentum.“

13 Ebd.: „divites et pecuniosi reputantur per contraria omnia posse tam sibi quam aliistam in benefaciendo quam in damnificando. […] Unde divites non solum ab aliisplurimum reputantur, sed etiam valde adulatorie subserviuntur et honorantur.“

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opinião geral e cotidiana. Todavia, ele deixou claro que essa observaçãoe opinião geral só é correta na medida em que as pessoas admitemcomo válidos apenas valores temporais e poder mundano. Mas, paraele, esse era o padrão de medida de sua época, com predomínio quaseque genérico, segundo o qual riqueza e poder, de um lado, e pobreza eimpotência do outro eram considerados de certo modo como idênti-cos, fazendo surgir assim, em sua plena atualidade, o abismo socialentre pobres e ricos. Isso porque o que separa pobres e ricos tem a ver,é verdade, com a constituição econômica de uma sociedade; mas é sóa percepção e opinião generalizada que transforma os ricos em todo-poderosos e os pobres em inúteis, uma vez que esse modo de ver olhaapenas para as possibilidades e habilidades temporais e terrenas. Issopode ser uma visão grosseira e questionável da realidade social. Toda-via, na época de Olivi determinava a ordem social de forma decisiva,permanecendo até os dias de hoje seus efeitos. Também em sociedadesmais igualitárias é comum ouvirmos a expressão: “Se tens algo, és algo”.Nesse sentido, o abismo, testemunhado na Bíblia e descrito por Olivi,entre pobres e ricos, mesmo na percepção em vigor dentro de nossasociedade, e sobretudo na realidade social de nosso mundo dividido,parece ainda não estar superado.

Para Olivi, isso vem ligado com a estrutura sensório-geral da per-cepção humana:

imagina-se que eles (os pobres) não possuem ornato esplêndido epomposo e a cortesia de companhias do mundo – como apareceno aparato esplêndido das vestes, dos vasos, e outros acessórios, debandejas, de palácios, de cavalos e cavaleiros, de séquitos, núnciose servos. Mas esse aparato é avaliado como admirável pelos sentidoshumanos e pelas afeições sensíveis, de tal modo que reflete comoreverenciável, agradável e admirável também uma pessoa deforma-da e de costumes vis. O contrário disso tudo pode transformartambém os que são ornados pela ética e os hábeis de corpo emdesprezíveis e abomináveis. [...] Assim, do mesmo modo que opobre aparece no modo de ver dos outros como impotente e

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desprezível, o próprio pobre aparece para si mesmo intima-mente como ainda mais impotente e desprezível. Isso porquesente a si mesmo mais intimamente como impotente para tudoaquilo que não consegue fazer sem o auxílio das posses tempo-rais. Sente a si mesmo também mais íntima e constantementedestituído de todo ornato, pompa e séquito (comitatus). Tam-bém percebe claramente que na visão de todos aqueles que esti-mam essas coisas, é quase nada. [...] Por isso, a não-posse é amelhor oportunidade para experimentar-se como alguém que nadaé, tanto em sua existência quanto em sua aparência14.

Portanto, aquilo que alguém pode gerar para si mesmo em dis-pêndio e pompa, na percepção sensorial, em vista dos homens, queassim avaliam as coisas, irá ter para ele um reconhecimento social tãoalto que já nada terá a ver com suas qualidades pessoais físicas e morais.Mas aquele que não pode dispor para si desse dispêndio e pompa difi-cilmente encontrará o reconhecimento social que mereceria em virtu-de de suas qualidades pessoais. Segundo Olivi, nos pobres, esse me-nosprezo e depreciação sensório-exterior, essa negativa de reconheci-mento social são internalizados. Isso porque os próprios pobres se apro-priam amplamente daquela percepção e avaliação sensorial que se defi-ne pelas exterioridades, pelo dispêndio e pompa externos. SegundoOlivi, isso leva a que os pobres não só em sua aparência externa e em

14 Ebd. 86s: „Cernuntur enim non habere splendidum et pomposum ornatum etcomitatum mundi – qualis apparet in splendido apparatu vestium, vasorum et aliorumsupellectilium, ferculorum, palatiorum, equorum et equitum, sociorum et nuntiorumet ministrorum. Hic autem apparatus miro modo reputatur ab humanis sensibus et asensualibus affectibus, ita quod hominem etiam deformem et moribus vilem redduntreverendum, gratum et admirabilem. Contraria vero praedictis reddunt etiam moribusornatos et corpore aptos abiectos et viles. […] Sicut autem in aspectu aliorum pauperapparet impotens et abiectus, sic ipsemet pauper sibimetipsi apparet multo magisintime impotens et abiectus. Sentit enim intime omnino se impotentem ad omne illud,ad quod sine adiutorio temporalium facultatum perveniri non potest. Sentit etiamintime et continue omni ornatu, pompa et comitatu se destitutum. Cernit etiam clarein aspectu omnium talia appretiantium se fere nullum. […] Unde inopia summa estoccasio sentiendi se esse nihil tam secundum existentiam quam secundum apparentiam.“

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seu reconhecimento social, mas internamente em sua própria existên-cia, se sintam quase como um nada. Esse autodesprezo dos pobres quealcança até o mais íntimo era para Olivi a última consequência doabismo social entre pobres e ricos. Isso nem sempre pode ser visto deforma assim tão nítida na realidade social. Todavia, até os dias de hoje,pessoas, por exemplo, que não têm trabalho e só conseguem sobrevi-ver com o auxílio dos outros, são atingidos por um tal menosprezosocial e por tal autodepreciação, como se fossem supostamente associais.Se Olivi vê isso em sua concepção como oportunidade e chance paraque, nesse menosprezo e autodepreciação social, os pobres encontrema via para a virtude da humildade cristã, então até hoje não haverámuitos pobres que queiram segui-lo. Em sua época e em seu mundoisso pode ter sido diferente, porque ali, apesar de tudo, os valores cris-tãos estavam em alta, e foram revivificados na convocação para a con-versão e a renovação de vida não apenas do ponto de vista franciscano.Era isso que compunha o plano de fundo daquela esperança bíblico-cristã, para dentro da qual Olivi fez desembocar definitivamente suaanálise do abismo social entre pobres e ricos.

3 O abismo social em sua origem

O próprio Olivi percebeu que o Ascenso para a humildade nadescoberta dos valores cristãos e da esperança cristã não é autoevidente.Mas, segundo ele, isso se aplicava sobretudo aos ricos e mesmo paraaqueles que, nas igrejas e comunidades cristãs, têm acesso ao poder e àriqueza: “Naqueles que possuem um bem comum, mesmo não sendopróprio, não falta o poder e os aparatos, a partir de cuja falta, segundose fundamentou acima, pode nascer a humildade. Ao contrário, hoje,os que em sua maioria possuem abundância de poder, de aparatos efama são mais aqueles que ostentam os bens comuns de igrejas e mos-teiros do que aqueles que os têm como próprios. E vemos surgir quase

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mais ambições e presunções daqueles do que destes”15. Essa visão críti-ca de Olivi em relação às Igrejas e monastérios de sua época via suasposses comuns sob a insígnia do poder e da riqueza. Assim, segundoele, as pessoas que mantinham essa posse comum sob suas mãos quasenão tinham motivos e chance para a humildade, mas antes para a ambiçãoe a arrogância, quase mais do que outros ricos. O abismo social entrepobres e ricos, portanto, não foi superado pela posse comum das igrejas emonastérios. Segundo uma visão crítica difundida (videmus – vejamos),aqui quase mais que noutros lugares, ele aparece em sua corruptibilidadenefasta. Foi precisamente essa visão crítica que fez com que Olivi bus-casse questionar a respeito da origem desse abismo social.

E ele acreditava encontrar uma resposta, uma vez que precisamen-te os bens comuns das igrejas e dos monastérios tinham em vista origi-nariamente uma comunalidade, fundamentada, filosófica e biblica-mente, no trato com os bens terrenos, que a Igreja abandonou injusta-mente. Uma palavra apócrifa, atribuída ao bispo romano Clemente I eque encontrou um meio de permanecer até o direito eclesiástico daIdade Média, aponta para a filosofia platônica: “o uso comum de tudoque está neste mundo deveria pertencer a todas as pessoas. Mas porcausa da iniquidade um diz que isso é o seu e o outro que aquele é oseu. E assim surgiu a divisão entre os mortais”16. Ademais, atesta-se a

15 Ebd. 89: „Non enim in habentibus communia, etsi non propria, est omnis defectuspotestatis et apparatus ex quo secundum primam rationem surgere potest humilitas,immo utplurimum plus hodie abundant in potestate et apparatu et gloria ex eis surgentequi tenent communia ecclesiarum et monasteriorum quam habentes propria; et maio-res ambitiones et praesumptiones ex eis fere surgere videmus quam ex aliis.“

16 Citado em op. cit. 98 nota 19. Cf. [PSEUDO-CLEMENS:] Recognitiones lib. 10 nr. 5. In: DieGriechischen Christlichen Schriftsteller der ersten drei Jahrhunderte, vol. 51, 327. Cf. especi-almente Corpus Iuris Canonici, C 12 q 1 c 2 § 1. In: Ed. Emil FRIEDBERG, Leipzig ²1879,Pars I, 676: „Communis usus omnium, que sunt in hoc mundo, omnibus hominibus essedebuit, sed per iniquitatem alius hoc dixit esse suum, et alius istud. Et sic inter mortalesfacta est divisio“. O próprio Olivi refere-se a esse texto do Corpus Iuris Canonici.

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origem platônica desse pensamento: “Sobre isso um grande sábio den-tre os gregos, que sabia disso, disse que todos os bens deveriam sercomuns dos amigos”17. Mas os bens comuns das Igrejas e monastériosjá não mais correspondem a esse modelo de um uso comum de todosno mundo: “Ele não disse que o uso comum deveria pertencer a esseou àquele colégio, mas a todos os homens em comum. Assim seria,então, no estado de inocência”18. Essa possibilidade paradisíaca de evi-tar toda partição dos bens e assim superar o abismo entre pobres ericos, foi aniquilada através da queda original e através da iniquidadedos homens. Para Olivi, porém, essa oportunidade originária tornou-se no modelo permanente de comunidade de bens. Ali, pareceu-lhemodelar sobretudo a imagem da comunidade originária de Jerusalém,como foi apresentada na história dos Atos dos apóstolos. Em virtudede uma decisão livre, definida pela força do amor, surgiu entre oscristãos primitivos uma comunidade na qual tudo pertencia a todos:“A comunidade dos fieis era um só coração e uma só alma. Ninguémconsiderava sua propriedade o que possuía. Tudo entre eles era co-mum. Com grande força os apóstolos davam testemunho da ressur-reição do Senhor Jesus e todos os fieis gozavam de grande estima. Nãohavia entre eles indigentes. Os proprietários de campos ou casas ven-diam e iam depositar o preço do vendido aos pés dos apóstolos. Re-partia-se então a cada um segundo a sua necessidade” (At 4,32-35).Olivi compreendia essa imagem ideal no sentido de um modelo origi-nário paradisíaco de uma comunidade universal de todos os homens:“correspondentemente a essa imagem pode-se admitir uma comuni-dade [...] da qual a história dos Atos dos apóstolos diz que “tinhamtudo em comum”. Mas se quisessem reivindicar algum direito sobre

17 Citado por SCHLAGETER, Das Heil 99 Anm. 20. cf. Corpus Iuris Canonici, C 12 q 1c 2 § 2. In: Ed. FRIEDBERG I, 676: „Denique Grecorum quidam sapientissimus, hec itaesse sciens, communia debere, ait, esse amicorum omnia“.

18 SCHLAGETER, Das Heil 98: „non dixit quod communis usus debuerit esse isti vel illicollegio, sed omnibus hominibus generaliter. Sic enim fuisset in statu innocentiae“.

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aqueles bens comuns, como fazem hoje os membros dos colégios ecle-siásticos e monásticos, não se poderia afirmar com pleno sentido que“eram um só coração e uma só alma”19. Mais tarde, Olivi pôde funda-mentar mais em detalhes essa imagem ideal da originária comunidadede Jerusalém em uma interpretação expressamente franciscana20. To-davia, o que lhe interessa aqui é apenas arrolar essa imagem ideal frentea um abismo social mesmo em comunidades eclesiais e monásticas:

Mas hoje, seguramente, luta colégio contra colégio, pois reivin-dicam algum direito sobre seus bens comuns, uma vez que alinão há aquela comunidade universal que se estende a todos oshomens. Assim, o que pertence a um colégio não pertence aoutro. Há também uma experiência infame que ensina quantosprocessos e intrigas há, quanta inveja e contendas por prendasentre os detentores e os que as pleiteiam. Isso não se daria se alinão houvesse reivindicação de direito, pelo menos no que dizrespeito à partição, ou se não houvesse apropriação, pelo menosem relação ao necessário sustento. [...] Abreviando: se não extir-parmos totalmente do coração do homem o amor à jurisdiçãotemporal e às coisas temporais, não poderá haver qualquer co-munidade destituída do predito mal21.

19 Id. loc. cit. 99: „secundum hunc modum est accipienda communitas, […] de qua etin Actibus dictum est ‘erant illis omnia communia´. Si enim aliquid iuris vellent sibi inillis communibus, sicut faciunt hodie membra collegiorum ecclesiasticorum etmonasticorum, non plenarie dici posset Actuum IVo. quod ‘erat illis cor unum et animauna´“ (Cf. At 4,32).

20 Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 178s. Cf. especialmente PETER OF JOHN OLIVI: On theActs of the Apostles, Edited by David FLOOD. St. Bonaventure, New York, 2001, 90-94; 124-137.

21 Id. loc. cit.: „Certum est autem quod collegium hodie pugnat contra collegium, quiaaliquid iuris sibi vendicant in suis communibus et quia non est ibi communitas illageneralis quae est ad omnes homines. Unde quod est unius collegii, non est alterius.Praebendati etiam et praebendandi quot causas et litigia, quod invidias et contentionespro praebendis inter se habeant, celebris experientia docet; quod non esset, si nullaesset ibi iurisdictio saltem ad dispensandum aut si nulla appropriatio saltem quantumad necessarium sustentamentum. […] Et breviter: nisi totaliter tollatur amor iurisdictionistemporalis et temporalium a cordibus hominum, non potest esse aliqua communitassine praedictis malis.“

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Assim, segundo Olivi, aquilo que os próprios embates e

afrontamentos sociais fizeram surgir nas comunidades eclesiais e mo-

násticas foi o amor a bens terrenos e temporais, que provocou as mais

diversas reivindicações de direito, dos quais de um modo ou de outro

se quereria se apropriar. O próprio Olivi já deixara claro que ali não

estava em questão partilha justa ou o necessário sustento para a vida,

mas na maioria das vezes poder e riqueza, pompa e luxo para alguns

poucos22. Isso porque o amor aos bens temporais do qual fala Olivi

aqui, para ele, era idêntico com o pecado originário da cobiça, que

coloca o elemento tereno-temporal, como ídolo, no lugar de Deus e

da plenitude eterna prometida por ele. Aqui não vamos aprofundar

mais esse plano de fundo teológico da crítica social de Olivi. Isso por-

que para uma fundamentação sociológica da teoria espiritual da po-

breza oliviana basta de início chamar a atenção para seus princípios de

uma teoria crítica da sociedade. Baseado na figura de uma comunida-

de de todos os bens e de todos os homens, universalmente unida,

fundamentada em Platão e na Bíblia mas por ele desenvolvida e am-

pliada, Olivi submeteu a sociedade vigente de sua época, adentrando

inclusive nas Igrejas e Ordens, a uma dura crítica; isso porque, para ele,

a origem da divisão social entre os homens e o surgimento do abismo

entre pobres e ricos jaz no coração do homem, que está possuído por

um amor distorcido ao terreno-temporal.

4 A realização espiritual de uma sociedade universal unida

Como será possível realizar uma sociedade, universalmente unida,de todos os bens e de todos os homens, frente a uma história da hu-

22 Cf. nota 14.

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manidade determinada pelo pecado? Nessa questão, entre outros, Olivilevou a sério um argumento crítico tirado de Aristóteles contra a con-cepção platônica da comunidade dos bens:

Aristóteles demonstra na política: Se tudo fosse comum, have-ria no mundo desordens e dissensões infinitas. Seria impossívelaos homens, cheios de várias cupidez e corrupção, entrarem emacordo na distribuição e aceitação de coisas comuns e se porta-rem ordenadamente, maximamente quando às vezes, mais pre-cisam aqueles que menos servem à comunidade, e de outros quese dedicam a tarefas mais nobres do que as tarefas da agriculturae do que outras pelas quais se adquirem diretamente as coisastemporais. Também seria difícil encontrar pessoas que se preo-cupassem cuidadosamente da agricultura e de outras coisas ne-cessárias ao sustento da vida; pois ninguém cuida tão bem docomum como cuida do próprio, sobretudo quando se consideraesse cuidado menos nobre. Da distribuição diversificada de ta-refas mais e menos nobres iria surgir também inevitavelmenteinveja, contendas e discórdias; assim como da outra distribui-ção de coisas feita respectivamente de acordo com o status e atarefa e segundo o que exigem a necessidade e a indigência. Issoaconteceria mais do que quando nem tudo fosse comum; poisem virtude dessas comunalidades todos se sentiriam iguais emtudo. Se agora se multiplicam os enganos, o roubo e o latrocí-nio, então seria pior; pois alguém deseja mais facilmente algu-ma coisa onde tem alguma parte, como um homem que temparte nas coisas comuns, do que alguém que nada tem, comoum homem que nada tem em coisas que são próprias dos ou-tros. Em coisas que se guarda com menos cuidado poderia ocorrermais engano e latrocínio do que nas coisas que se guarda comcuidado. Mas qualquer um cuida de modo mais dedicado emais cuidadoso do próprio do que do comum. Na distribuiçãodo comum também poderia facilmente multiplicar-se as prefe-rências pessoais, por exemplo, aqueles que presidem as distri-buições poderiam dar mais aos amigos do que aos outros. Pode-riam facilmente multiplicar-se então as ficções e simulações devárias necessidades. É portanto melhor e mais propício para a

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totalidade dos homens e para o bem comum que as coisas se-jam próprias, do que se fossem comuns23.

Enquanto resume a fundamentação aristotélica tradicional da pro-

priedade privada, atualizando-a no sentido da sociedade feudal e seu

status social, Olivi faz referência àqueles perigos que ameaçavam uma

comunidade de bens através da ambição e corrupção humanas. Se já a

fundamentação aristotélica de propriedade privada fora talhada de acor-

do com a antiga sociedade patriarcal escravocrata e sua regulamentação

problemática, a argumentação, como foi referida por Olivi, pressupõe

23 Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 74f: „Aristoteles probat in Politicis quod si omnia essentcommunia, infinitae essent in mundo deordinationes et dissensiones. Impossibile enimesset homines cupiditatibus variis et corruptionibus plenos in distributione et acceptionererum communium concordare et ordinate se habere, maxime cum aliquando pluribusindigerent qui minus communitati prodessent, et plus illi qui vacarent officiis nobilioribusquam sint officia agriculturae et quaecumque alia quibus temporalia directe acquiruntur.Difficile etiam esset invenire qui de agricultura et de aliis ad victum necessariis curamdiligentem haberent, quia nullus ita curat de communibus sicut de propriis, et maximequando cura huiusmodi ignobilis aestimatur. Ex distributione etiam varia officiorumnobiliorum et ignobilium necessario orirentur invidiae, lites et discordiae; sicut et exalia distributione rerum facta secundum decentiam status et officiorum et secundumexigentiam necessitatum et indigentiarum, et magis quam si omnia non essent communia,quia ratione talis communitatis magis reputarent se omnes in omnibus pares. Si etiamnunc multiplicantur fraudes et rapinae et furta, multo magis hoc fieret tunc, quiafacilius quis concupiscit id in quo aliquid habet, sicut habet homo in rebus communibus,quam id in quo nihil habet, sicut homo nihil habet in rebus aliorum propriis. In rebusetiam minus diligenter custoditis facilius possent fraudes et furta committi quam indiligenter custoditis. Fortius autem et diligentius custodit quilibet propria quamcommunia. In distributionibus etiam communium facilius possent multiplicariacceptationes personarum, utpote quod qui praeessent distribuendis, plus darent amicisquam aliis. Multiplicarentur etiam tunc de facili fictiones et simulationes variarumnecessitatum. Ergo melius et expedientius est universitati hominum et bono communiquod res sint propriae, quam si essent communes.“ Cf. ARISTOTELES: Politica lib. 2 cap.2-4. In: Opera (cum Averrois Commentariis), Tomus III. Venetiis 1562 NachdruckFrankfurt / Main 1962, 234b-238a; Opera, Edition der ‚Academia Borussica’ vonImmanuel BECKER / Otto GIGON, Bd. 2. Berlin ²1979, 1262b-1267b.

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a ordenação de uma sociedade feudal e de classes que nem sequer co-

nhecia fundamentalmente e do ponto de vista da base da lei uma igual-

dade de direitos e oportunidades. Em sua crítica desse argumento

escreveu então Olivi:Tudo isso que se toca nesse raciocínio encontra lugar junto àquelesque abandonam o que lhe é próprio, obrigados ou não totalmentelivres e de boa vontade, e com tal defeito da vontade e da imperfei-ção, nesse defeito, se dedicam ao que é comum ou à comunalidade.Por isso, o raciocínio de Aristóteles é bom, em parte contra Platão,que simplesmente decidiu que tudo deveria ser comum, tambémas esposas, e que tudo deveria ser trazido para essa comunidade,tanto o perfeito quanto o imperfeito, tanto o voluntário quanto oinvoluntário. Mas isso não encontra lugar naqueles que professamvoluntariamente essa comunidade, amam-na, sobretudo naquelesque amam a altíssima pobreza24.

É só a entrega perfeita e voluntária e amorosa a uma comunidade

com intenção universal que irá realizar aquela sociedade modelar de

todos os bens e de todos os homens, que Olivi tinha em mente como

alternativa curativa, primeiramente na imagem da comunidade origi-

nária, e agora no amor franciscano pela altíssima pobreza. O decisivo

para Olivi, portanto, não era a comunidade exterior de posses e direi-

tos, mas o ser-pobre espiritual internalizado, era vivido sobretudo no

amor à altíssima pobreza de Jesus Cristo como a imagem diretriz de

seu caminho e de seu anúncio do Reino de Deus e assim se expressa

24 Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 167: „omnia ista quae in hac ratione tanguntur, locumhabent in illis qui coacte aut non plene voluntarie propria relinquerent et cum talidefectu voluntatis et imperfectionis in hoc defectu inclusae communibus seucommunitati se darent. Unde ratio Aristotelis bona est in parte contra Platonem quisimpliciter censuit debere omnia esse communia etiam uxores, et quod omnes ad istamcommunitatem traherentur tam perfecti quam imperfecti, tam voluntarii quaminvoluntarii. In voluntariis autem professoribus et amatoribus communitatis locumista non habent et maxime in amatoribus altissimae paupertatis.“

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decisivamente na vida e no anúncio de seus discípulos e apóstolos e

como alternativa frente à ordem social vigente.

Com isso, Olivi está se referindo ao texto da Regula bullata dosfrades menores, onde no 6. capítulo se diz:

Essa é aquela sublimidade da altíssima pobreza / que vos insti-tui a vós, meus caríssimos irmãos, / em herdeiros e reis do reinodos céus, / feitos pobres em coisas, mas ricos em virtudes. / Essadeve ser a vossa porção, que vos conduz à terra dos viventes. /Pertencendo total e plenamente a ela, / por causa do nome denosso Senhor Jesus Cristo, buscai / nada mais querer possuirpara sempre debaixo do céu25.

Na medida em que aderiu a isso, Olivi definiu claramente a reali-zação alternativa da sociedade exemplar em sua época como projetoespiritual franciscano. Descreveu-o de forma ainda mais precisa:

O mais excelso louvor da altíssima pobreza, pelo menos no modode uma reivindicação de direito, não se volta mais para essaterra do que para aquele, não se volta mais para essa do que paraaquela casa. E quem o observa integralmente será mais solícitoem cuidar dessa pobreza para si do que para os outros; e assim,inevitavelmente, irá desaparecer qualquer motivo de divisão e

25 Cf. Regula Bullata cap. 6, 4-6: „Haec est illa celsitudo altissimae paupertatis, quaevos, carissimos fratres meos, heredes et reges regni caelorum instituit, pauperes rebusfecit, virtutibus sublimavit (cfr. Iac 2, 5). Haec sit portio vestra, quae perducit in terramviventium (cfr. Ps 141, 6). Cui, dilectissimi fratres, totaliter inhaerentes nihil aliud pronomine Domini nostri Iesu Christi in perpetuum sub caelo habere velitis.“ In: ESSER,Cajetan: Die Opuscula des hl. Franziskus von Assisi. Neue textkritische Edition. Zweite,erweiterte und verbesserte Auflage, besorgt von Engelbert GRAU (SpicilegiumBonaventurianum, 13). Grottaferrata (Roma) 1989, 369 [A seguir citada como: ESSER

/ GRAU, Opuscula] – Para a tradução em alemão cf. Franziskusquellen. Die Schriften desheiligen Franziskus, Lebensbeschreibungen, Chroniken und Zeugnisse über ihn undseinen Orden, Im Auftrag der Provinziale der deutschsprachigen Franziskaner,Kapuziner und Minoriten herausgegeben von Dieter BERG / Leonhard LEHMANN.Kevelaer 2009, 98 [A seguir citado como: Franziskus-Quellen]. Cf. para isso Tg 2,5; Sl142,6. Português: SILVEIRA, I. OFM; REIS, O. (Orgs.). Escritos e biografias de São Fran-cisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis:Vozes; cefepal; Família Franciscana do Brasil, 1981.

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inveja que pudesse surgir entre eles a partir de alguma apropri-ação ou jurisdição ou distribuição de pensões26.

De forma ainda mais clara que a Regula bullata, o próprio Oliviformula a “altíssima pobreza” como ideal espiritual, que não sófacticamente não conhece mais apropriação, mas que é amada, preza-da, protegida e observada acima de tudo e perfeitamente. Que issonem sempre é visto e realizado por aqueles que fizeram votos desseideal, isso Olivi deixou claro logo na sequência:

Se se afirma que, ao voto da altíssima pobreza não contradiz o amoràs coisas temporais, mas apenas a posse ou jurisdição exterior ilícitaa esse voto; mas que a causa dos males citados é mais o amor àscoisas do que propriamente a posse ou jurisdição exterior, devesaber então aquele que afirma isso que assim como o voto da casti-dade (não-matrimonial) ou da virgindade não se opõe apenas acoabitação factual mas também a afeição à coabitação e ao amor aoato conjugal, assim igualmente contradiz imediatamente ao votoda pobreza aquele amor à posse e à jurisprudência como são direta-mente excluídos pelo voto. Quem quer que seja que tenha profes-sado isso é de algum modo afeiçoado por um livro ou uma casa ouum terreno ou qualquer outra coisa, como se fosse próprio dele oudo colégio, não está livre de mancha que diminui ou destroi desdeo fundo a verdade desse voto27.

26 Cf. SCHLAGETER, Das Heil, 99: „Summa professio autem altissimae paupertatis nonest applicata saltem per modum iurisdictionis ad hanc terram plus quam ad illam necad hanc domus plus quam ad aliam. Et observator eius perfectus sollicitior erit sibicustodire hanc paupertatem quam alteri; et ita cessabit necessario inter eos omnis ratiodivisionis et invidiae quae surgere potest ex quacumque appropriatione vel iurisdictionevel pensionum distributione.27 Id. op. cit. 99s: „Si dicatur quod professioni paupertatis etiam altissimae non opponituramor temporalium, sed solum exterior possessio vel iurisdictio tali professioni illicita;amor autem rerum plus est causa praedictorum malorum quam ipsa exterior possessiovel iurisdictio: scire debet qui hoc dicit quod – sicut professioni castitatis seu virginitatisnon solum opponitur actualis concubitus, sed etiam concumbendi affectus et amoroperis coniugalis – sic voto paupertatis omnis amor possessionis et iurisdictionis pervotum exclusae sibi directe opponitur. Unde quicumque professor eius ad librum velad domum vel ad terram vel ad quodcumque aliud acsi ad proprium sibi vel collegioaliquo modo afficitur, non est sine aliqua macula aut diminuente aut funditus destruenteveritatem huius voti“.

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Olivi se contrapunha veementemente a um argumento, aparente-mente da própria ordem, que queria restringir a “altíssima pobreza” àrenúncia das posses e direitos exteriores. Parece estranho ali que elecolocasse o amor de desejo sexual, que sempre tem algo a ver com arelação entre as pessoas, no mesmo patamar daquele amor que desejaapropriar-se de coisas. Ali, Olivi partia da experiência de então, segun-do a qual o amor de desejo sexual era mais desaprovado junto a seusendereçados teológicos do que o amor às coisas, supostamente inocen-te. No entanto, o amor às coisas temporais-terrenas de modo algumparecia a Olivi ser assim tão inocente. O mal que ele via surgir nareivindicação de posse e direitos em relação ao bem comum eclesiásti-co e monacal28, para Olivi, tinha sua origem não tanto nas posses ejurisprudências exteriores mas muito mais no amor interior e na afei-ção às coisas temporais. Àqueles que viam isso de modo diverso, afir-mando coisas diversas, Olivi supunha estarem sob uma relação “car-nal”, de desejo de busca de si, em relação ao terrenal e temporal:

Se tivessem, pois, um olhar bem claro no espiritual comotenham talvez no carnal, veriam que não se destroi menos oespírito e o voto da pobreza pela afeição desordenada emrelação às coisas temporais, para se lidar com elas de algummodo ilícito ao voto, do que aquela afeição impura destroi acastidade e seus votos; quando se sopesa tudo, aquele é tãointenso e tão grande quanto esse. Por isso, em todo aqueleque professou essa pobreza torna-se perigosa toda afeição pelaqual um homem se afeiçoa a um terreno, como sendo pró-prio, ou a algum domicílio, livros ou quaisquer outras coi-sas, como coisas que seriam próprias dele, de seu colégio oude parte de seu colégio, sobretudo se elas (as afeições) jáestão enraizadas e habituadas por um costume freqüente.Mas são-lhe ainda mais perigosas quando chegam ao extre-mo de contender reivindicando aquelas coisas para si, paraseu colégio ou para parte de seu colégio, como propriedade.

28 Cf. acima, nota 20.

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Algo assim aqueles que são oriundos dessa terra afirmam equerem deter um direito maior em relação aos domicíliosdaquela terra, aos livros e esmolas, destinados a esses domi-cílios do que aqueles outros que não são oriundos de, nemhabitam nessa terra, e contendem sobre essas coisas entre sicom palavras a ações29.

Se alguém estivesse tão possuído pela vontade de posses como

alguém está possuído pelo desejo sexual, então, para Olivi isso tem o

mesmo grau de perigo. A exposição oliviana intensiva e extensiva gira-

va em torno do núcleo interno que, segundo sua opinião, era de im-

portância decisiva para o projeto espiritual franciscano de um modelo

de comunidade universal alternativa. A recusa a essa apropriação e à

jurisprudência em relação aos bens desse mundo e desse tempo, como

é exigida pela regra dos frades menores, não deveria esgotar-se numa

recusa externa à posse e à jurisprudência, mas deveria definir decisiva-

mente a atitude interior. Mas isso permaneceu nos quadros daquiloque determinou a Regula bullata, em seu capítulo 6, e o que precede otexto da regra acima citado:

Os irmãos não devem se apropriar de nada, nem de casa nem delugar nem de qualquer coisa. E como peregrinos e forasteiros nesse

29 SCHLAGETER, Das Heil, 100: „Si haberent isti oculos in spiritualibus multumilluminatos, sicut forte in carnalibus habent, viderent quod non minus labefaciatmentem et paupertatis professionem affectus inordinatus circa temporalia qualicumquemodo tractanda modo illicito professioni tali quam affectus ille morosus castitatem eteius votum, si tamen omnibus pensatis ille sit aeque intensus et aeque magnus sicut etiste. Unde in quocumque professore huius paupertatis periculosissimi sunt omnesaffectus, per quos homo afficitur ad aliquam terram sicut ad propriam aut ad aliqualoca vel ad aliquos libros vel ad quascumque alias res sicut ad proprias sibi vel suocollegio vel parti sui collegii, et maxime si sunt per multam consuetudinem radicati ethabituati. Tunc autem sunt periculosiores ei, quando exeunt usque ad contentionemvendicantem sibi illa aut suo collegio vel parti collegii acsi propria, utpote si hii qui suntde terra una reputant et volunt se maius ius habere in locis illius terrae vel in libris seuelemosynis illis locis deputatis quam alii qui non sunt origine aut inhabitatione de illaterra, et si pro huiusmodi inter se ore et opere contendant“.

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mundo, que servem ao Senhor em pobreza e humildade, podemseguir confiantes pedindo esmolas, e não devem se envergonhardisso, porque o senhor se fez pobre neste mundo por nós30.

De certo, que poderíamos compreender esse texto da regra de for-ma puramente jurídica, no sentido de uma recusa à propriedade mera-mente exterior. Contrariamente a isso, Olivi radicaliza a proibição daapropriação no espírito do voto da altíssima pobreza como negaçãoespiritual de todo e qualquer amor apropriador e afeição frente às coi-sas desse tempo e desse século. Importa para ele de modo central essaatitude interior de liberdade espiritual que não se liga com essa ouaquela terra, a esse ou àquele domicílio, a esse ou àquele livro ou aqualquer outra coisa com desejo de apropriação. Ali, Olivi sentiu queos laços “nacionais” em relação a esse ou àquele país, abordados demaneira própria por ele, seriam um perigo ameaçador, na época, parao projeto espiritual franciscano de uma alternativa comunidade uni-versal entre homens e bens. Ali não se tinha em mente ainda nenhum“nacionalismo” dentro das dimensões modernas.

Todavia, também as controvérsias entre o condado sulista daProvença, donde provinha Olivi, e o Reinado franco do norte, emcuja capital, Paris, ele continuara seus estudos, estavam muito acirra-das na época31. Olivi parece tocar ali também no fato de que essas

30 Regula Bullata 6,1-3: „Fratres nihil sibi approprient nec domum nec locum necaliquam rem. Et tanquam peregrini et advenae (cf. 1Ptr 2,11) in hoc saeculo in paupertaeet humilitate Domino famulantes, vadant pro elemosynis confidenter, nec oportet eosverecundari, quia Dominus pro nobis se fecit pauperem in hoc mundo (cf. 2Cor 8,9)“.In: ESSER/GRAU, Opuscula (como na nota. 24), p. 368-369. – Para a tradução emalemão, cf. Franziskus-Quellen (como na nota 24) 98. Cf., para isso, 1Petr 2,11 e 2Cor8,9. Português: SILVEIRA, I. OFM; REIS, O. (Orgs.). Escritos e biografias de São Franciscode Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis:Vozes; cefepal; Família Franciscana do Brasil, 1981.

31 Cf. COULET, Noel. Provence, Landschaft (ehemals Grafschaft) in Südfrankreich. B.Mittelalter. In: LMA 7, p. 276-280.

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controvérsias incomodavam também a vida e as relações entre osconfrades que provinham desse ou daquele país. Isso porque pode tersentido que essas ligações restritas ao “nacional” eram um tanto estra-nhas em seus irmãos. Em todo caso, segundo Olivi, em seu conjunto,é só a internalização espiritual da altíssima pobreza que irá levar o pro-jeto franciscano de uma comunidade universal alternativa àquela ple-nitude “espiritual”, buscada por ele, junto como outros irmãos e irmãsde mesmo ideal, dentro e fora da comunidade estrita dos irmãos me-nores. Nesse sentido, Olivi pode fazer referência à visão de Joaquimde Fiore, que tinha em mente uma terceira e última era, a era do Espí-rito Santo, que levaria à plenitude toda a história da salvação:

No Antigo [Testamento] refulge a autoridade da majestade e daseveridade do Pai, mas no Novo, a força da bravura juvenil e daengenhosidade sapiente do Filho. E uma vez que temos duaspartes célebres dessa imagem, a integridade da ordem e da ima-gem exige que se introduza uma terceira era no mundo, quedeve pertencer totalmente ao amor, à ebriedade espiritual e à ale-gria, de tal modo que, tanto quanto possível, também o corpo sejaabsorvido pelo espírito. E essa deve ser assim, que ela parece proce-der no modo do espírito dos dois povos e Testamentos, como quedo Pai e do Filho, e que ela não seja menos universal no mundo doque as que foram mencionadas antes, a fim de que a igualdadenas três pessoas seja claramente exposta nelas32.

32 Id. loc. cit. 158: „ideo etiam in Veteri refulget auctoritas paternae maiestatis etseveritatis, in Novo vero vigor iuvenilis strenuitatis et sapientialis ingeniositatis Filii.Cum igitur duas partes celebres huius imaginis teneamus, integritas ordinis et imaginisexigit statum tertium in mundo introduci qui totus sit amoris et spiritualis ebrietatis etiucunditatis, ita quod etiam – prout est possibile – absorbeatur caro a spiritu. Etoportet etiam quod talis sit, ut per modum Spiritus procedere videatur ab utroquepopulo et Testamento acsi a Patre et Filio, et quod sit non minus universalis in mundoquam praedicti, ut trium personarum aequalitas in eis clare praesentetur.“ Em relaçãoao posicionamento de Olivi frente à apocalíptica de Joaquim de Fiore, cf. integralmenteSCHLAGETER, Johannes. Apokalyptisches Denken bei Petrus Johannis Olivi. Versucheiner fundamentaltheologischen Wertung; In: WiWei 50 (1987). p. 12-27; OlivisSicht der Endzeit und Joachim von Fiore. Wie verarbeitete Olivi in seiner Konzeptioneiner endzeitlichen Erneuerung der evangelischen Armut die EndzeitvorstellungenJoachims von Fiore? In: Id. 150-163.

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A imagem de um tríptico, que por assim dizer deveria refletir atrindade das pessoas divinas na história da salvação, ainda não seriacompleta enquanto ainda faltasse a terceira asa da figura, com a apre-sentação do Espírito Santo. Olivi e também Joaquim de Fiore, po-rém, não pensavam que a era do Espírito Santo devesse pois dissolvere superar pois o Antigo e o Novo Testamento.

Assim como o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, mas é econtinua sendo igualmente um com eles, assim a era do Espírito surgedos dois Testamentos, e nela irá se mostrar seu sentido verdadeiro,espiritual, justo a partir e na letra do Antigo e do Novo Testamento.Por isso, em sua teoria da pobreza, a partir da letra e sobretudo doNovo Testamento, Olivi queria apresentar por fim o sentido verda-deiro, espiritual da vida pobre de Jesus e de seus consecutivos seguido-res e assim levar à profundidade espiritual a compreensão franciscanada pobreza. A força absorvente que na era do espírito Olivi atribuía ao“Espírito”, contra a “carne”, própria de um desejo egoísta, deveria tor-nar-se visível precisamente numa compreensão franciscana, espiritual-mente internalizada, da altíssima pobreza e da renúncia universal dequalquer apropriação. Nesse sentido, como que chamado, Olivi che-gou finalmente à visão joaquimita de uma era do Espírito Santo pró-pria do fim dos tempos. Com isso, pois, a teoria social crítica de Olivipoderia assumir uma esperança apocalíptica futura, embora para ele aesperada plenitude espiritual do fim dos tempos já havia se iniciadocom o projeto espiritual franciscano de uma sociedade modelar, reali-zada alternativamente, e assim, com Francisco de Assis.

5 Esperança para um mundo dividido hoje?

Com sua esperança apocalíptica do futuro, Olivi fracassou na re-futação das pessoas que detinham autoridade na Ordem e na Igreja e

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acabou condenado. Os “espirituais” na Ordem, na Igreja e no mundo,mais tarde, sob o pontificado de João XXII, no século XIV, acabaramse tornando uma pequena minoria perseguida, que nem sequer pôdeconservar da aniquilação suas relíquias de princípio tão veneradas33.Todavia, isso não inutiliza inteiramente e para sempre a herança dos ideaisde Olivi, como já demonstrou a retrospectiva do movimento de reformafranciscano no final da Idade Média e no começo da Modernidade, vol-tando a lançar mão da teoria da pobreza oliviana e da compreensão daregra dos frades menores34. O próprio Olivi tinha em mente uma reformada Ordem, sobretudo levando em conta a coerência prática de sua teoriada pobreza, com a qual exigia de seus irmãos o “usus pauper”, o “usopobre” das coisas35. Olivi não se contentou portanto em falar a linguagemda interiorização espiritual da altíssima pobreza. A altíssima pobreza deve-ria tornar-se atuante também na lida prática com as coisas, e quiçá de talmodo que essa lida, novamente, estivesse mais em consonância com aprática de vida de pessoas pobres. Isso porque a práxis de vida vivenciada

33 Cf. EHRLE, Franz. Die Spiritualen, ihr Verhältnis zum Franziskanerorden und zuden Fratizellen. In: Archiv zur Literatur- und Kirchengeschichte des Mittelalters 1 (1885)509-569; 2 (1886) p. 106-164. 249-336, 3 (1887) 553-623; BURR, David. Thepersecution of Peter Olivi. Philadelphia, 1976.

34 Cf. FLOOD, David (Ed.). Olivi´s Rule Commentary. Wiesbaden, 1972.(Veröffentlichungen des Instituts für Europäische Geschichte, 67)35 Cf. para isso, BURR, D. Apokalyptische Erwartung und die Entstehung der Usus-Pauper-Kontroverse (como na nota 3). In: WiWei 47 (1984), p. 84-99. Albertino deCasale (1259-1330), discípulo e posterior defensor de Olivi, tinha em mente demaneira especial essa consequência prática do “usus pauper”. A partir disso, os merosdireitos de posse e as jurisprudências significavam tão pouco para Ubertino que elepôde declará-las até como sendo espiritualmente limitadas, uma vez que se mantenhaconservado o “usus pauper”, o “uso pobre” das coisas. Cf. para isso DAVIS, Charles T.Ubertino da Casale and his conception of „altissima paupertas“. In: Studi Medievali 3.Series 22 (1981), p. 1-56. Cf. para isso, UBERTINO VON CASALE. Tractatus de altissimapaupertate. Wien: Nationalbibliothek, Ms. Palat. Lat. 897. Nesse tardio Tratado sobre aaltíssima pobreza, ainda não editado, importa a Ubertino decisivamente abordar asconsequências práticas do “usus pauper” na interiorização espiritual da altíssima pobre-za, que ele asseverava junto com Olivi.

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por muitos de seus irmãos já havia se tornado num problema existen-cial já desde bem cedo:

e visto que desde o começo eu ouvia os atos grandiosos daaltíssima pobreza, como ela se presta de modo supremo para oaperfeiçoamento abrangente das virtudes, comecei a admirar-me grandemente como poderia haver uma tal imperfeição devirtudes em tantos que professaram essa pobreza, uma tal tibi-eza em relação ao ócio na contemplação, na pureza do corpo, noexercício de atos penosos e do zelo amoroso do amor e da dedi-cação fraterna. Como ou de onde poderia haver neles uma talavidez tão ardente em providenciar seu sustento de vida atravésde múltiplas relações estreitas com pessoas mundanas, cheiosde adulações e métodos indecentes, assim como através de mui-tas intenções ocultas e dissimuladas, pelas quais fazem uso dosbens espirituais, como por exemplo, confissões, pregações, cele-bração da missa, com ostentação sensacionalista de venerar aDeus e de rigor penitencial, manipulando inclusive o direito deexéquias e semelhantes para alcançar tais ganhos? E como tam-bém e de onde há neles tal vontade de erigir casas e jardins,inventando diversos caminhos e diversos vínculos para criar co-letas temporais, como por exemplo, entrar em testamentos ecoisas do gênero? Então me admiro até que Deus mostre emmim mesmo através de uma experiência viva que tudo isso pro-vém do amor desordenado a um uso exorbitante36.

36 Cf. PETRUS IOANNIS OLIVI. De usu paupere. The Quaestio and the Tractatus, Edited byDavid BURR. Firenze/Perth (Australia) 1992, 25: „a principio audienti mihi magnaliapaupertatis altissime, quomodo videlicet ad virtutum universalem perfectionem altissimomodo valet, admirari vehementer cepi unde in multis professoribus eius tanta virtutumimperfectio esse posset tantusque tepor ad contemplationis otium et ad macerationemcorporum et ad exercitium laboriosorum operum et ad caritatis et pietatis fraternebenignum zelum; et quomodo aut unde in eis esse poterat tantus ardor procurandivictum, tam per familiaritates secularium multimodas multis adulationibus et modisindebitis plenas et per multas intentiones sub occulto enigmate bona spiritualia adprocurationem questuum huiusmodi varie retorquentes, ut sunt confessio, predicatio,missarum celebratio, divini cultus et penitentialium austeritatum celebris ostentatio,sepulturarum quoque iurisdictio et consimilia; quomodo etiam et unde in eis tantavoluntas edificandi domos amplas et ortos, et propter hoc excogitandi vias diversas etconiuncta varia ad procurationes temporalium elemosinarum ut sunt testamentis inte-resse et consimilia; usquequo ostendit mihi Deus per vivam in memetipso experientiamquod ex amore inordinato usus opulenti hec omnia proveniebant“. – Para a traduçãoem alemão, cf. SCHLAGETER, Das Heil, p. 17s.

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À imagem ideal da altíssima pobreza, à imagem guia da vida pobrede Jesus Cristo, professada na Regra pelos irmãos menores, na realida-de da Ordem franciscana, em muitos irmãos, contrapunha-se umapráxis de vida totalmente diversa. Frente aos valores espirituais, a sa-ber, a riqueza daquelas forças e virtudes do reino de Deus que deveri-am surgir da vida da altíssima pobreza, eram tíbios e indiferentes. Emvez disso, todo o zelo de muitos irmãos era colocado na criação dosustento da vida, que ultrapassava em muito o necessário para a vida, eque deveria ser conquistado através de métodos bastante questionáveis,com intenções ocultas, impuras, e até com atividades espirituais am-plamente perversas. Em tudo isso, para Olivi, tratava-se de um “ususopulentus”, um “uso opulento” das coisas deste mundo, que pode sercomparado muito mais com a vida dos ricos do que com a vida dospobres. Quando Olivi fundamenta sua visão crítica da Ordem comouma “experiência viva em mim mesmo”, presenteada por Deus, então,do ponto de vista estritamente existencial, isso pode ser levado a sério.Mas a discrepância entre ideal de ordem e realidade, vivenciada porOlivi, surgiu basicamente a partir do abismo social entre irmãos po-bres e ricos, entre uma ordem de mendicantes que se tornara rica e acamada mais pobre da sociedade. Esse abismo que então se abriu no-vamente na ordem franciscana de modo algum foi tomado por Olivido ar, sem fundamento37. Esse abismo e sua causa íntima parece já serconhecido de seus estudos do convento de estudos de Paris, grandiosoe ricamente aparamentado38. Ali ele via a decisiva ameaça demoníaca, epor assim dizer a ameaça do anticristo do fim dos tempos:

Assim como o diabo, através da riqueza e do domínio secular, en-feitou indizivelmente a Igreja na sujeira, enredando sua liberdade

37 Cf. por exemplo RAPP, Francis. Les Mendiants et la Societé Strasbourgoise à la fin dumoyen-âge. In: Poverty. Ed. FLOOD (como na nota 5), p. 84-102.

38 Cf. SCHLAGETER, Das Heil, p. 18, nota 3.

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espiritual nas intrincadas armadilhas, de tal modo que no fim dostempos, segundo Jó, os tendões dos testículos de Leviatam estarãoentrelaçados, e com ele deve gerar o erro do Anticristo na (Igreja).É por isso que eu pondero, sem qualquer dúvida, que através doexcesso do uso opulento e de sua múltipla criação, ele [o diabo] elepuxou indizivelmente o adorno da altíssima pobreza para a sujeirae através de uma admirável confusão de dúvidas escrupulosas e dearmadilhas, as mais embrulhadas, algemou-a com muita astúcia.E é isso que temo acima de tudo, que ele gere um escândalo indi-zível para a altíssima pobreza39.

Com essa visão do fim dos tempos da ameaça do Anticristo, queirá enredar os irmãos da Ordem junto com toda a Igreja, Olivi intentasobretudo admoestar seus irmãos para uma conversão, que deverá afastá-los do “uso opulento” para um “uso pobre”, e assim para uma proxi-midade maior para com os pobres. Isso porque é só assim que os ir-mãos poderiam fechar o abismo que se abriu entre irmãos ricos e po-bres na Ordem, assim como entre o modo de vida preferencialmenteopulento de muitos irmãos e a práxis de vida da camada baixa e pobreda sociedade. Frente a esse abismo, Olivi não propaga uma divisão daOrdem40, mas prefere propagar uma renovação, na medida do possí-

39 Cf. OLIVI, De usu paupere, Ed. por BURR (Como na nota 35), p. 25: „Undeindubitanter perpendo quod sicut diabolus per divitias et dominationes mundanasecclesie decorem ineffabiliter fedavit et eius spiritualem libertatem laqueis perplexissimisirretivit, ita ut in fine temporum nervi testiculorum Leviathan perplexi sunt, sicuthabetur Iob, per quos debet Antichristi error in ea generari; sic per opulenti ususexcessus et varios questus eius decorem paupertatis altissime ineffabiliter fedavit etmiranda perplexitate scrupulosarum dubietatum et laqueorum nodissimorum laquorum[!laqueorum] astutissime vinculavit. Et hoc est quod super omnia timeo paupertatialtissime scandalum ineffabile generari.“ – para a tradução alemã, cf. SCHLAGETER, DasHeil, 18, nota. 2. Cf. para isso Jó 40,12a Vulgata!40 Contra essas tendências de divisão entre os „espirituais“ franciscanos, que se iniciousobretudo durante o curto pontificado do Papa Celestino V, Olivi se contrapôs em suaEpistola ad Conradum de Offida, de 1295. Cf.. PETRUS IOHANNIS OLIVI. De RenuntiationePapae Coelestini V. Quaestio et Epistola, Ed. Livarius OLIGER. In: ArchivumFranciscanum Historicum 11 (1918) 309-373. Cf. aqui, p. 366-373, mas especial-mente p. 370-373.

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vel amplificadora. Um sinal para isso deveria ser uma maior proximi-dade para com as camadas mais pobres da sociedade. Essa atitudesurgiria, segundo Olivi, a partir da generosidade para com os pobres,recomendada pelo Evangelho de Jesus Cristo, que vende tudo parasocorrer aos pobres41, como foi adotado pelas regras dos frades meno-res42. Olivi descreveu essa generosidade do seguinte modo:

Totalmente generoso é quem doa rápida, alegre, abundante-mente, com razão, a partir de uma causa razoável doa por exem-plo a um indigente, e quem doa de modo irressarcível, semqualquer esperança de recompensa temporal. Mas quem quiserser e estar na altíssima pobreza e em constante indigência, ado-tando e observando uma tal pobreza, torna-se e é muito capaznão apenas de doar segundo as cinco condições acima descritas,mas também de desfazer-se, embora não encontre ninguém aquem possa doar43.

Já essa liberalidade poderia reconduzir a ordem a seu ser-pobreoriginário, para a altíssima pobreza. Com maior razão, isso deveria seraplicado para a dedicação amorosa (pietas) para com os pobres, daqual Olivi pensava:

A dedicação amorosa acrescenta algo à liberalidade. O generosoé movido propriamente pela largueza e amplidão de seu cora-ção, o amoroso ou misericordioso, porém, é movido pela com-paixão para com a pessoa, à qual faz o bem. Isso porque o pobrevoluntário tem um grandioso incitamento para dedicar-se amo-

41 Cf. a exigência de Jesus feita ao jovem rico em Mc 10,17-23; Mt 19,19; 16-22; Lc18,18-23.

42 Cf. Regula Bullata 1, 5-8; Regula non Bullata 1, 4-7. In: ESSER / GRAU, Opuscula(como na nota 24) p. 367; 378; Franziskus-Quellen (como na nota 24) p. 95; 71.

43 Cf. SCHLAGETER, Das Heil, p. 95: „Perfecte enim liberalis est qui dat celeriter, hilariter,abundanter, rationabiliter, ex causa scilicet rationabile utpote egenti, et qui dat irredibiliterabsque omne spe remunerationis temporalis. Qui autem vult esse in altissima paupertateet continua egestate tam in assumptione talis paupertatis quam in conservatione,potentissimus fit et est non solum ad dandum secundum quinque condiciones praedictas,sed etiam ad derelinquendum, quamvis non inveniretur aliquis cui dari posset.“

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rosamente e ter compaixão para com os outros por quatro ra-zões ou motivos, a saber, em virtude da experiência, em virtudede mútua conformidade, em virtude de condecência, em virtu-de do desprezo e do desfazer-se daquilo que deve ser doado44.

Essa dimensão totalmente pessoal da dedicação e da compaixãoera seguramente muito importante para Olivi. Mas infelizmente elepróprio não trouxe nenhum exemplo para isso a partir de sua experi-ência pessoal, mas, citando as Escrituras, remetia para a compaixão deJesus Cristo em consequência da experiência de sua fraqueza e de seusofrimento45, e pensava: “Não é de se admirar se alguém que profes-sou essa pobreza, em virtude da experiência de necessidade e indigên-cia, pode se compadecer mais dos indigentes”46. Olivi trata de modomais extenso a “mútua conformação”:

Não é de se admirar que alguém que professou essa pobreza, emvirtude da conformação com os pobres, possa ser mais miseri-cordioso”. A partir dali vemos que cada ser vivo ama aquilo quelhe é igual, e prefere estar ligado com o que lhe é igual [...]. Issoporque, numa propriedade maximamente amada e querida,muito evidente e que muito distingue dos outros – como é apobreza a quem a professa verdadeiramente – a semelhança e aconformidade causa muita sociabilidade e amabilidade entre osque são semelhantes entre si. É impossível, portanto, que o per-feito amante dessa pobreza não se deixe comover e voltar-se aabraçar os pobres assim como sentir junto com eles sua pobrezae suas calamidades. Do contrário, seguramente, ele não é um

44 Id. 96: „Addit enim pietas super liberalitatem. Liberalis enim movetur ad dandum exlargitate et latitudine cordis, pius vero seu misericors ex compassione personae cui benefacit. Voluntarius enim pauper habet incitamentum magnum habendae pietatis etcompassionis ad alios quadruplici ratione seu motivo, scilicet ratione experientiae, rationeconformitatis mutuae, ratione condecentiae, ratione contemptus et abdicationis reidonandae.“

45 (Hb 5,15).

46 SCHLAGETER, Das Heil, p. 96: „non mirum, si professor huius paupertatis rationeexperientiae quam habet de angustia egestatis, magis potest egenis compati.“

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amante e reconhecedor dessa pobreza. Essa conformação tam-bém dá oportunidade e facilidade aos pobres de, em qualquernecessidade, recorrer aos que professam essa pobreza, e a essespróprios dá maior ocasião e oportunidade de ter misericórdiacom tal gente47.

Essa proximidade pessoal para com os pobres em compaixão e mise-ricórdia, na oportunidade e capacidade de entrar em contato e solidarieda-de mútuos, e assim tornar-se em ponto de socorro em suas necessidades,isso deveria destacar aqueles que amam e professam verdadeiramente aaltíssima pobreza. Talvez tenha sido essa falta de prontidão para a compai-xão e para a misericórdia, que, no grande e rico convento de Paris, levouOlivi à visão, presenteada por Deus, no efeito escandaloso e catastróficodo “usus opulentus”, do trato opulento com os bens temporais48. Emtodo caso, algo assim lhe parecia extremamente indecente: “em razão dadecência, ela [a altíssima pobreza] possui um incitamento também para apiedade. Pois é extremamente indecente, querermos ser socorridos poroutros e não sentir igualmente compaixão com os necessitados ou o tantopossível socorrê-los com misericórdia”49.

47 Id. 97: „non est mirum, si professor huius paupertatis ex conformitate quam habetad egenos, magis potest esse misericors. Unde et videmus quod omne animal diligit sibisimile et ad sibi simile libentius associatur […]. Similitudo enim et conformitas etmaxime in proprietate multum dilecta et cara et multum evidenti multumque ab aliisdistinctiva – qualis est paupertas veris professoribus suis – multam causat societatem etdiligibilitatem inter sibi similes. Perfectus igitur amator huius paupertatis impossibileest, quin multum moveatur et afficiatur ad amplexum pauperum et ad compatienduminopiae et calamitatibus eorum. Conformitas etiam haec magnam dat occasionem etfacilitatem pauperibus recurrendi pro quibuscumque necessitatibus ad professoreshuius paupertatis, et eo ipso maiorem dat occasionem et facultatem talibus miserendi.“Sobre essa força de atração entre conformantes, cf. a indicação de Olivi Eclo, 13,19s.

48 Em relação a esse local biográfico da fundamental visão espiritual de Olivi, cf.SCHLAGETER, Das Heil, p. 18, nota 3.

49 Cf. loc. cit., p. 97: „Ratione etiam condecentiae habet incitamentum pietatis. Indecensenim est supra modum velle sibi ab aliis subveniri et consimiliter indigentibus noncompati aut, in quibus potest, nolle misericorditer subvenire“.

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Um tal abismo indecente em relação aos pobres pode surgir alionde falta uma postura espiritual, determinante para a altíssima po-breza, frente às coisas temporais, a saber, seu desprezo e o delas se des-fazer. Ao contrário disso, Olivi pode constatar pessoalmente: “o que que-ro doar ao outro não é nada de grandioso, o que desprezo desde o funda-mento através do voto da pobreza, sim, aquilo de que me desfiz plena etotalmente”50. Mas onde, em virtude de um trato opulento com as coisastemporais, esse voto não é mantido verdadeiramente, sim, de certo modose o faz retroceder, ali para Olivi se efetiva de novo o abismo social perni-cioso entre pobres e ricos, mesmo dentro da Ordem franciscana. A isso,Olivi precisou contrapor a máxima reformatória do usus pauper, de umtrato com as coisas temporais realmente pobre; pois na Ordem só atra-vés disso poderiam voltar a manifestar-se as forças e virtudes nobres doreino de Deus na altíssima pobreza.

A linguagem espiritual de então e a visão de Olivi podem parecemmuito afastadas da necessidade real do mundo de hoje e de nossa épo-ca, assim como do abismo social que encontramos hoje entre ricos epobres, entre abastados e carentes, entre o grande poder e a impotên-cia. No entanto, a opção pelos pobres tantas vezes asseverada na Or-dem e na Igreja, não pode ser vivida do lado dos ricos, nesse lado doabismo social entre ricos e pobres, entre abastados e carentes, entrepoderosos e impotentes. Nesse sentido, a máxima de Olivi do ususpauper, do ser-pobre vivido realmente do lado dos pobres, mostra adireção decisiva de um lugar de mudança premente dentro da Ordeme da Igreja, na direção de uma escolha feita que modifica o estilo devida não solidário, vigente em muitos países, em muitos lugares daOrdem e da Igreja. Ali não está em questão primeiramente a mudançadas relações de direito frente às coisas desse mundo e dessa época, elas

50 Id. „Non enim est magnum quid me velle dare alii quod per paupertatis professionemfunditus contempsi et a me penitus abdicavi“.

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irão só se configurar de modo diverso e ter nova regulamentação quandose modificar a atitude interior. Por isso, o amor que deseja e se apro-pria do mundo e da configuração temporal de agora, será modificadaa partir do fundamento. Mas isso se torna possível numa perspectivade esperança do novo mundo de Deus, de seu reino de amor e de paz,cujos herdeiros são os pobres e aqueles que, com Jesus cristo, se colo-cam ao lado dos pobres51. Que esse novo mundo de Deus é pressenti-do e vivido apenas por poucos, isso não diminui seu valor num mun-do dividido. O que se dá é bem contrário, como vêem claramentealguns pensadores. Assim, escreveu Carl Freidrich von Weizsäcker,certa vez: “uma configuração eticamente tão questionável, intelectual-mente tão embotada, completamente ambivalente, como é a socieda-de humana das culturas desenvolvidas, até os dias de hoje, só poderáfrear o escorregar para dentro da autodestruição se nela viverem algu-mas pessoas que se recusam radicalmente a participar de suas ativida-des, por causa da verdade. E foi praticamente só ali onde cristãosousaram fazer tal coisa que floresceu uma compreensão espontânea dosermão da montanha, foi assim em Francisco de Assis”52. Penso queaqui, como em Olivi, está em questão a “verdade” do novo mundo deDeus, que já pode ser pressentido em Jesus Cristo e que oferece forteresistência ao “escorregar para dentro da autodestruição”. Os espiritu-ais franciscanos, na medida em que seguiram realmente a Olivi, notempo e no mundo só se “recusaram radicalmente a praticar aquelasatividades” que na Ordem e na Igreja desembocavam numa divisão enuma destruição da comunidade e da sociedade, mas justamente atra-vés disso esses irmãos e irmãs queriam tornar-se espiritualmente livresnum serviço de amor desinteressado para com todos os homens e para

51 Cf. Tg 2,1-13; 5,1-8.

52 Cf. WEIZSÄCKER, Carl Friedrich von. Der Garten der Menschlichen. München/Wien,1977, p. 505.

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toda a criação de Deus, precisamente em sua mudança de lugar dehabitação e em sua dedicação para com os pobres e para com as irmãse irmãos especialmente ameaçados no tempo e no mundo. Tenho aesperança de que isso possa se renovar verdadeiramente, oxalá tambémnuma renovação da Ordem e da Igreja53.

53 Cf. SCHLAGETER, Johannes. Eschatologische Hoffnung als Hoffnung für die Welt;Eine Kirche mit weltoffener Spiritualität in einer säkularisierten Gesellschaft. In: Geistund Welt. Seminar Spiritualität 3, editado por Anton ROTZETTER. Zürich/Einsiedeln/Köln, 1981, p. 41-60; 69-90.

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JOAQUIM DE FIORE,APOCALIPTICISMO E ESCATOLOGIA

NOS SÉCULOS XIII E XIVProf. Nachman Falbel *

O apocalipticismo teve em Joaquim de Fiore um dos seus pensa-dores mais originais e influentes na Idade Média, período este queherdou do cristianismo antigo uma longa e rica tradição interpretativasobre o livro da Revelação, o último do conjunto de textos que com-põe as escrituras do Novo Testamento. No prefácio à sua obra “Visionsof the End, Apocalyptic Traditions in the Middle Ages”, o historiadorBernard McGinn afirma corretamente que o apocalipticismo fez par-te das três religiões monoteístas, a saber, judaísmo, cristianismo eislamismo. Na longa introdução de seu importante livro, o autor abordaa questão das tentativas de se fazer uma distinção entre apocalipticismo,profetismo, escatologia, milenarismo, fundamentada na bibliografiade estudiosos que se esforçaram em definir suas categorias conceituaise nuances teóricas bem como seus elementos diferenciadores1. Apesarda importância que a discussão possa ter frente às problemáticas defi-nições concernentes às associações e inter-relações entre os diversoscomponentes que se manifestam no que se convencionou denominarcomo “literatura apocalíptica”, estamos convictos de que dificilmentechegar-se-á a uma proposição unificadora que satisfaça a todos os estu-

* Universidade de São Paulo.

1 MCGINN, B. Visions of the End, Apocalyptic Traditions in the Middle Ages. New York:Columbia University Press, 1998, pp. XIV-XXV e Introduction, pp. 1-36.

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diosos2. Desde o surgimento dos primeiros textos apocalípticos nomundo judaico, a partir do terceiro e segundo século antes de nossaera, a sua inclusão no cânone da Bíblia Hebraica sofreu forte rejeiçãopor parte das autoridades religiosas judaicas, podendo se considerarcomo exceção as passagens existentes no livro de Ezequiel e mais aindanos capítulos 7-12 do livro de Daniel. Podemos supor que obras decaráter apocalíptico como 1 Enoque, 4 Ezra e 2 Baruque foram poste-riormente oficialmente marginalizadas e consideradas apócrifas devi-do a seu teor provocativo, ainda que fossem fruto de realidades histó-ricas e que seu conteúdo visasse tanto predicar uma mensagem salvíficacomo dar consolo ao povo de Israel sob o jugo e domínio de forçasopressoras estrangeiras3. Do mesmo modo, sabemos que a aceitação

2 Uma contribuição para a discussão a respeito da definição sobre o entendimento dogênero se encontra no artigo de F. Raphaël, “Esquisse d’une Typologie de L’Apocalypse”,in: GAUTHIER, P. L’Apocalyptique. paris, 1977, pp. 11-38. O autor recorre ao conceitode “ideal-tipo” de Max Weber e à estrita definição de “milenarismo” de Yonina Talmon,Millenarian movements, in: Archives Européennes de Sociologie, t. 7, 1966, pp. 159-200. Importantes para a compreensão do tema são os estudos de COLLINS, John.Apocalypse: The Morphology of a Genre, Semeia 14, Society of Biblical Literature,1979, e HELLHOLM, D., The Problem of Apocalyptic Genre and the Apocalypse ofJohn, Semeia, 36, 1986. Os dois primeiros volumes da The Encyclopedia ofApocalypticism, respectivamente volume 1: The Origins of the Apocalypticism in Judaismand Chritianity. Ed. por J.J. collins, e o volume 2: Apocalypticism in western Historyand Culture, Ed. Bernard McGinn, dão uma visão ampla sobre o tema. Desde apublicação da obra de Norman Cohn, The Pursuit of the Millenium, em 1957 (ediçãoampliada, London, 1970), vem se acumulando uma extensa bibliografia. NormanCohn complementaria seu trabalho com um estudo adicional “Cosmos, Caos and theWorld to come, the ancients roots of the apocalyptic faith”, em 1993, edição emportuguês: Companhia das Letras, São Paulo, 1996.

3 Os estudos iniciais sobre o apocalipticismo escatológico no judaísmo teve como marcopioneiro a obra de R.H. Charles, Eschatology, the doctrine of a future life in Israel, Judaismand Christianity, cuja primeira edição se deu em 1899. Em 1963 a editora SchockenBooks, New York, reeditaria a obra com uma importante introdução de George WesleyBuchanan na qual historiciza os debates havidos ao redor do tema naquele período. Parauma visão atualizada, vejam-se as importantes obras de Michael E. Stone, Jewish Writingsof the Second Temple Period. Philadelphia, 1984 e a de James H. Charlesworth, ed., The OldTestament Pseudepigrapha, vol. I, Apocalyptic Literature and Movements, New York, 1983.

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do livro da Revelação no cânone do Novo Testamento foi problemá-tica e nem sempre aceita com unanimidade pela Igreja nos primeirosséculos de sua existência, o que não impediu de ser amplamente difun-dido, apesar de seu teor enigmático, e por isso mesmo, objeto demúltiplas interpretações desde os seus primórdios. Seu conteúdo e seuextraordinário, e não menos desafiador, simbolismo acumulou atravésdo tempo inúmeros comentários e interpretações desde Victorino dePettau (f. c. 304), de Ticônio (séc. IV), de Agostinho, do assim deno-minado Beatus de Liebana e outros4. No período medieval os co-mentários e interpretações sobre o livro do Apocalipse iriam multipli-car-se com a crença de que em seu feérico simbolismo encontravam-sesignificados proféticos e escatológicos para o conhecimento do desti-no e da trajetória histórica da humanidade desde os primórdios da fémonoteísta bem como o anúncio da fé cristã e o que a esperava nofuturo. Por outro lado tais interpretações sobre o livro da Revelaçãoseriam não somente o reflexo das tensões e conflitos existentes na ins-tituição eclesiástica e na sociedade medieval em seus múltiplos mo-mentos de crise, mas também dos anseios e dos temores decorrentesda psique e da religiosidade dos homens daquele tempo.

Longa é a lista de autores medievais que fizeram a leitura doApocalipse, o extraordinário texto inspirador de motivos centrais nasobras teológicas desses autores impregnadas de uma espiritualidadeprofunda e que o nosso abade calabrês interpretou com o métodooriginal que se encontra na elaboração de grande parte de suas obras, o

4 V. artigos de Paula Fredriksen, “Tyconius and Augustine on the Apocalypse”, in: TheApocalypse in the Middle Ages, eds. Richard K. Emmerson and Bernard McGinn,Ithaca-London, Cornell University Press, 1993, pp. 20-37 e de E. Ann Matter, “TheApocalypse in Early Medieval Exegesis”, in: ibidem, pp. 38-50. O estudo, entreoutros, sobre o conteúdo milenarista do capítulo 20 do Apocalipse, de P. Prigent, “Lemillenium dans l’Apocalypse johannique” in: GEUTHNER, Paul. L’Apocalyptique. Paris,1977, pp. 139-156, aponta os paralelismos das fontes judaicas com as do cristianismoprimitivo.

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Liber Figurarum, o Liber Concordie Novi et Veteris Testamenti, o Expositioin Apocalypsim, o Psalterium Decem Chordarum, o Tractatus superQuatuor Evangelia, o De Articulis Fidei, o Adversus Iudaeos e demaisescritos. Neles podemos encontrar subjacentes os rastros das idéias econcepções de Agostinho, que se impôs e predominou durante grandeparte dos séculos medievais, bem como de Gregório Magno, Beda eoutros do alto medievo. Porém, posteriormente, no século XII, Rupertde Deutz (c.1075-1129/30), Honório de Autun (Augustodinensis),Anselmo de Havelberg, Hugo de S. Victor, assim como Bernardo deClaraval, mentor dos cistercienses, Ordem à qual Joaquim de Fioreesteve ligado no início de sua carreira monástica, e antes dele, já fazi-am uso de uma exegese tipológica peculiar que se distanciava pouco apouco da patrística tradicional em vários aspectos5. Caso aparte repre-senta a obra de João Scotus Erígena (810-877) que para o historiadorE. Gebhart teria tido uma influência sobre Joaquim de Fiore6. Pensa-dor original, Scotus Erígena, também formulou uma concepção detrês etapas na história da humanidade, assinaladas respectivamente porsacerdócios. O primeiro sacerdócio, o do Antigo Testamento, que viua verdade através das nuvens de mistérios ininteligíveis; o segundo sa-cerdócio, o do Novo Testamento, iluminado com alguns raios deverdade e com alguns símbolos obscuros; o terceiro sacerdócio, o daVida Futura, que deixará ver a Deus sem mediação. Ao primeiro,corresponderia a lei natural, ao segundo corresponderia o reino de Deus.O primeiro elevou a natureza humana corrompida; o segundo a eno-breceu pela fé, pela esperança e pela caridade; o terceiro a iluminariapela contemplação. O primeiro, figurado pela arca material, foi dadoa um povo carnal a quem só a letra comovia. O segundo, figurado

5 Sobre o vínculo de Joaquim de Fiore com os cistercienses, vide o artigo de ZIMDARS-SWARTZ, Sandra. “Joachim of Fiore and the Cistercian Order: A Study of De VitaSancti Benedicti”, in: Simplicity and Ordinariness, Studies in Medieval CistercianHistory, IV, Cistercian Publications, Kalamazoo, Michigan, 1980, pp. 293-307.

6 GEBHART, E. La Italia mística. Buenos Aires: Ed. Nueva, 1943, pp. 44-65.

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pelos símbolos tangíveis dos sacramentos, encaminha as almas à vidaespiritual que não se realizará plenamente senão no paraíso. Assim sedissiparia na luz da Igreja futura a aparência da Igreja presente. Scotus,em sua homilia sobre o primeiro capítulo de João, não teme dizer queo Espírito Santo, assim como Cristo, é o principio da vida divina7.Observa-se em vários de seus escritos, em que segue a tradiçãoneoplatônica através da patrística grega – cujos representantes maisconspícuos ele próprio traduziu –, o quanto ele se identificou comessa espiritualidade. Para ele, a Igreja do Novo Testamento não eramais que a imagem simbólica da Igreja Eterna. Mas ele ainda aponta-ria uma terceira revelação, a do Paracleto, que teria lugar numa Igrejasuperior, celestial, na qual a Igreja do Verbo se elevaria à Igreja doEspírito8. Quanto aos escritos de Rupert de Deutz, Honório deAutun e Anselmo de Havelberg certos estudiosos, com razão, encon-tram elementos que definiriam uma tendência para mudança da con-cepção patrística da história, ou da teologia da história, como bemassinala Ratzinger em seu estudo sobre S. Boaventura9. Foi através de

7 Comment. In Evang. Joann., Migne PL, CXXII, 308. V. FALBEL, N., Os EspirituaisFranciscanos. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 52ss. Sobre Scotus Erígena, vide a obrafundamental de CAPPUYNS, Maïeul, Jean Scot Erigène sa vie, son oeuvre, sa pensée. Paris:Desclée de Brouver, 1933, ed. anastática Bruxelas, Civilization et Culture, 1964.Importante para o conhecimento de seu pensamento escatológico são alguns estudosapresentados no encontro History and Eschatology in John Scottus Eriugena and HisTime. Proceedings of the Tenth International Conference for the Promotion ofEriugenian Studies, Maynooth and Dublin, August 16-20,2000, eds. McEvoy, J.and Dunne, M. Leuven, Leuven University Press, 2000.

8 Expositiones super Hierarchiam S. Dionysii, 1.2, prol, MignePL, CXXII, 266.

9 RATZINGER, J., La théologie de l’histoire de Saint Bonaventure, Paris: PUF, 1988, pp.110-11. O estudo (tese) de Ratzinger remonta a 1959, publicado com o títuloGeschichtsteologie des Heiligen Bonaventura. Pertinente é a lembrança do autor, que aatitude da patrística em relação às estruturas deste mundo se diversifica em duas dire-ções: a da “teologia imperial”, como voltada à construção cristã do mundo, em suasestruturas, cujo representante no Ocidente, após Eusébio, seria Orósio, e a “teologiapneumática”, da vitória cristã sobre o mundo no sentido neo-testamentário, tendocomo seu maior defensor Agostinho.

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Agostinho que a historização do cristianismo se fixou na doutrina deque Cristo é o fim dos tempos e seu nascimento assinala e desembocana última idade, assim como foi concebida na periodização das seisidades do mundo do fecundo autor da Civitas Dei e de boa parte dospensadores da patrística que o antecederam. Rupert de Deutz em suaobra De sancta Trinitate et operibus eius se aproximou de uma teologiada história trinitária dividindo sua obra em três partes, a saber, da Cri-ação à Queda, que corresponde ao tempo do Pai, da Queda à Paixão,que corresponde ao tempo do Filho e, da Ressurreição de Cristo àconsumação do saeculum, que corresponde ao tempo do Espírito Santo.Sua exegese, que se pode definir como “teologia bíblica”, se funda-menta numa reflexão sobre tópicos das Escrituras Sagradas, enquantosua interpretação de certo modo vai além da concepção agostiniana aointroduzir o papel do Espírito Santo na história da salvação do mun-do, que se inicia com Cristo10. Para Rupert de Deutz, a cada pessoa daTrindade corresponde um tempo, a saber, o tempo da criação, da

10 Sobre ele vide a importante obra de VAN ENGEN, John H. Rupert of Deutz. Berkeley:University of California Press, 1983. A postura negativa de Rupert de Deutz frente àfilosofia ou a dialética, aplicada à teologia se coaduna com a linha da “teologia bíblica”,ao ponto de se opor às artes liberais, aspecto lembrado por Guillermo Fraile, em suaHistoria de La Filosofia, Madrid: BAC, 1966, v. II, pp. 529-30. Seu contemporâneoGerhoh de Reichersberg (1093-1169) teria olhar idêntico frente a “teologia filosófica”–se assim podemos denominá-la – ao escrever ao papa Eugenio III: “Quapropterquoniam scientia illorum cum nulla sit, inflatur adversus scientiam Dei, pulchre satiseorum spiritui congruit illud de fabella Aesopi, ubi rana sufflando tentans se extenderead magnitutem bovis, dum conatur, et pellem frustra distendit, tandem ultra viressufflando crepuit. Sic et huius temporibus quidam causidici, et legistae vel sophistae,seu dialectici, vel potius haeretici sophistice loquentes, ideoque odibiles, contra legemdivinam, quase contra Moysen et contra sacerdotium legitimum et vere leviticum,quase adversus Aaron dimicantes... Insipientia enim illorum manifestata, et per SanctamScripturam confutata evidens erit, quod non de Spiritu Sancto inspirata, sed per spiritusmalignos et immundos conspirata sit loquacitas huiusmodi hominum veritatiresistentium, et ipsam veritatem Dei in iniustitia retinentium. Quasi enim captivamdetinent veritatem sanae doctrinae circumventam suo mendacio, per spiritus malignosconflato, ut magna in eo inveniatur veri similitudo et bonitatis imago (Liber de corrup-to Ecclesiae Statu, ad Eugenium III: PL 194,96-97), apud FRAILE, op. cit., p. 530.

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redenção e o tempo da ressurreição. No entanto, Rupert de Deutzassocia esse último tempo aos sete dons do Espírito Santo, que con-tém em sua explicação um esquema da “terceira semana do mundo”,de tradição patrística, da redenção ou salvação, representada na históriada Igreja: o da sabedoria, representado pela paixão de Cristo; o dainteligência, representado pelas Escrituras dadas aos apóstolos; o doconselho, associado à rejeição de Cristo pelos judeus; o da força, repre-sentado pelos mártires; o da ciência, referente ao tempo dos doutores;o da piedade, representado pela conversão de Israel e do temor, e odo juízo final11. Temos aqui uma elaboração que, se de um lado,resume uma tradição teológica anterior, no entanto, já contém oesboço de um tempo do Espírito Santo que embute a idéia de umaIgreja espiritual joaquimita. Em sua época, Rupert de Deutz não seriao único pensador a abrir uma nova senda para uma nova reflexão sobrea concepção tripartita da história do mundo. Seu contemporâneoHonório Augustudinensis (de Autun, c. 1090 – c. 1151)12, foi umprolífico autor cuja obra abrange boa parte do conhecimento das “ci-ências” resultante da compilação de autores antigos e dos contempo-râneos mais próximos que o antecederam. Na terceira parte do DeImago Mundi, de caráter enciclopédico, ele adota uma história domundo dividida em seis idades, a saber: 1- do princípio do mundo atéSem; 2- de Sem a Abrahão; 3- de Abrahão a David; 4- de David aNabucodonosor; 5- do cativeiro da Babilonia a Jesus Cristo; 6- deJesus Cristo a Frederico I13. Em sua concepção, a história de todos ospovos se processa conforme essa periodização. Honório Augustudinensisacreditava que o mundo não perduraria eternamente mas findaria numa

11 RATZINGER, J. op. cit. pp. 113-114. V. também MAGRASSI, M., Teologia e storia nelpensiero di Ruperto di Deutz. Roma: Pontificia Universitas de Propaganda Fide, 1959.(Studia Urbaniana, vol.2,

12 As datas de nascimento e morte de Honório de Autun assim como sobre seu lugar deorigem são discrepantes entre os estudiosos.

13 De Imago Mundi III 1, MignePL CLXXII, 165.

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apocatástase em que todas as coisas voltariam à Deus por uma reinte-gração cósmica14. No Expositio in canticum canticorum ele se refereaos dez estados ou ordens da Igreja e seu significado, considerandocomo marco divisório a aparição de Cristo, cinco antes e cinco após15.No entanto, em sua elaboração também comparece a tríade históricado tempo agrupando e relacionando três grupos de 50 salmos com a“forma mundi, qui in tria tempora dividitur: ante legem, sub lege, subgratia”agostiniana, que seriam representados por Abel, Moisés, Cristo,et finis mundi, desenvolvida porém além da fórmula agostiniana16.Seu contemporâneo, Anselmo de Havelberg (c. 1100-1158), bispo emembro da recém fundada Ordem Premonstratense, que teve umaampla atuação nos assuntos eclesiásticos de seu tempo, também preo-cupou-se com a reforma da Igreja e a união de todos os seus compo-nentes, o que também explica sua reflexão histórica e os significadosde sua trajetória temporal, tendo como ponto de partida a figura deAbel17. A observação de McGinn, citando o historiador E.Kantorowitcz, nos dá o significado maior dessa aspiração unificadora

14 Ele sofreu a influência de Scotus Erígena e sua obra Clavis physicae, de natura rerumé na verdade uma apresentação de idéias daquele pensador.

15 Expos. In cant. cant., c.7,5 MignePL, CLXXII,460. V. FLINT, Valerie. TheCommentaries of Honorius Augustodinenses on the Song of Songs, in: RevueBénédictine, 84, 1974, pp. 196-7.

16 Exp. In Ps. Prol., MignePL, CLXXII, 273 D; Exp. in cant. cant. Prol., MignePLCLXXII, 351C, 358A apud Herbert Grundmann, Studi su Gioacchino da Fiore,Marietti, Genova, 1989, p. 92. A obra original de Grundmann foi publicada emalemão sob o título Studien über Joachim von Floris, em 1927, e ainda permanececomo um trabalho fundamental para os estudos joaquimitas.

17 V. LEES, Jay T., Anselmo of Havelberg: deeds into words in the twelfth century. Leiden:Brill, 1998, p. 216: “Anselm makes his call to ecclesiastical reform a joyful battle crymeant to unite all the faithful, monks, canons, laymen, greeks, and latins, in a commoneffort at spiritual renewal”. Para a idéia de um marco inicial da Igreja com a figura deAbel, vide o artigo de Yves Congar, “Ecclesia aba Abel”, in: READING, Marcel (ed.).Abhandlungen über Tehologie und Kirche: Festschrift für Karl Adam, Düsseldorf-Patmos,1952, pp. 79-108.

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da Igreja em Anselmo18. Nele encontramos uma percepção da fécomo um movimento de mudanças, mutationes progressivas, em queos sete selos do Apocalipse fornecem o esquema de sete períodos his-tóricos, adotado por muitos pensadores da Igreja, assim como o faráJoaquim de Fiore19. Em Anselmo o esquema dos tempos após Cristo,configurados conforme a sequência: o cavalo branco, assinalando avinda de Cristo; o vermelho, o tempo dos mártires, o negro, o tempodas heresias teológicas de Arius, Sabelio Nestório etc., o esverdeado,os falsos cristãos ao mesmo tempo que a fundação das novas ordens, avisão sob o altar como o testemunho dos santos imolados na novareligião, o terremoto como a perseguição provocada pelo Anticristo, eo silêncio no céu, como a visão da eternidade20. No seu escrito Dialogiou Antikeimenon ele explicita esse movimento da consciência ascen-dente no conhecimento da fé ao afirmar que no Velho Testamento seanuncia claramente o Pai, mas o Filho ainda não é anunciado de formaexpressa. Do mesmo modo, no Novo Testamento o Pai e o Filho, sãoanunciados, enquanto o Espírito Santo ainda não é inteiramente anun-ciado, sendo seu conhecimento desvelado gradativamente21. Passa aser correta a interpretação de estudiosos de que Anselmo em sua obravisava chamar a atenção de seus contemporâneos sobre a ação do Espí-rito Santo no tempo da humanidade, no tempo histórico22. Vale lem-

18 MCGINN, B. Visions of the End, p. 95: “In a brilliant short paper on The Problem ofmedieval World Unity, E. Kantorowicz has claimed that the medieval Myth of WorldUnity has a predominantly messianic or eschatological character”. A citação deKantorowitcz é tirada do Selected Studies, Locust Valley, N.Y.: Augustin, 1965, p. 78.19 V. WANNENMACHER, Julia Eva. Hermeneutik der Heilsgeschichte. De septem sigillis unddie sieben Siegel in Werk Joachims von Fiore. Leiden: Brill, 2005.20 Dialogi l. 1, c. 7-13, col. 1149-1160, MignePL CLXXXVIII.21 Dialogi l. 1, c. 6, col. 1147s e l. 2, c. 23, col. 1200-1202, MignePL CLXXXVIII.22 Na recente tradução ao inglês do Dialogi, Ambrose Criste, OPraem e Carol Neel,Anticimenon: On the Unity of the Faith and the Controversies with the Greeks,Cistercian Publications, Liturgical Press, Collegeville, Minnesota, 2010, que incluiuma bibliografia atualizada sobre Anselmo, expressam na Introdução, p. 7: “Anselm’sgoal in crafting the work at hand was ambitious: to illuminate for his contemporariesthe agency of the Holy Spirit in human time”.

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brar que o “tempo histórico” de Anselmo e seus contemporâneos pró-ximos bem poderia servir de contexto para suas especulaçõesapocalípticas e escatológicas. Desde a segunda metade do século XI einícios do século XII grandes mudanças estavam se dando na institui-ção eclesiástica, em especial em sua relação com o regnum, na tentativade eliminar os males que a vinham assolando há longo tempo. O im-pulso de reforma da Igreja assumira novas proporções, visando elimi-nar a investidura laica, que se tornou uma questão central no períodoque antecede o papado de Gregório VII e que efetivamente entrara emconfronto com o poder secular para erradicá-la de uma vez por todas,a par de outros males como a simonia e a conduta não condizente declérigos com a vida religiosa. Os graves acontecimentos da “querela dasinvestiduras” e suas repercussões, que adquire dimensões universais apósa eleição de Gregório VII e o desafio à Henrique IV, tinha comoepicentro secular o imperador do Sacro Império Romano Germânico,e por isso mesmo talvez explique a coincidência de que boa parte dosteólogos, voltados à uma reflexão histórico-escatológica seja de ori-gem germânica. Os libelli de lite, as bulas, documentos, declarações,epístolas, emanados de ambos os poderes, espiritual e temporal,contêm em seu conjunto um considerável número de textos e passa-gens que revelam o elevado nível de tensões e expectativas de caráterescatológico, senão apocalíptico, presentes naqueles anos. Kurt-VictorSelge, observa que Herbert Grundmann já havia demonstrado comprofundidade a conexão do pensamento de Joaquim com a luta polí-tica entre o império e o papado pela libertas ecclesiae de seu tempo23.Mesmo após a Concordata de Worms, em 1122, e os acontecimentosposteriores a ela, não se amainaria o clima de exaltação gerado nessesanos de confronto entre as duas instituições regentes da sociedade

23 No posfácio da edição italiana da obra de H. Grundmann, Studi su Gioacchino daFiore. Roma: Marietti, 1989, p. 206. A referência de Selge é o estudo de GRUNDMANN,Libertà della chiesa e potere imperiale intorno al 1190 nella visione di Gioacchino daFiore. Deutsches Archiv, 19, 1963, pp. 353-396; cf. Ausgewählte Aufsätze, II, 1977, pp.361-402.

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medieval, na qual a antiga crença do tempo da vinda e atuação doAnticristo, que antecede o juízo final, é revivida não apenas comometáfora ou alegoria aplicada à figura do Imperador (e por vezes aoPapa) mas como realidade presente no curso decisivo da história24.Nas obras De investigatione Antichristi25 e no De quarta vigilianoctis, de teor claramente apocalíptico, Gehroh de Reichersberg(1093-1169), defensor da reforma gregoriana no período da dis-puta entre Alexandre III e Frederico Barbaruiva, vê a interferênciado Anticristo em quatro etapas da trajetória histórica da Igreja ins-pirado na leitura de Mt 14:22-33 na qual é narrado o caminhar deJesus sobre as águas do mar da Galiléia durante a ‘quarta vigília’: aprimeira, representada pelas perseguições de Nero, é o período doAnticristo sanguinário, a segunda, pela heresia, é período doAnticristo fraudulento, a terceira, pela corrupção dos costumes, é operíodo do Anticristo impuro caracterizado pela luta entre GregorioVII e Henrique IV, e o quarto assinala o período da avarícia, repre-sentada pelo Anticristo que provoca a existência do clero simoníacoe também corroí a cúria romana26. Assim como Gehroh deReichersberg, Joaquim de Fiore também acreditava na vinda de vários

24 Sobre a intensa expectativa da vinda do Anticristo, vide a importante obra deEMMERSON, Richard Kenneth. Antichrist in the Middle Ages: A Study of MedievalApocalypticism, Art, and Literature, Seattle, University of Washington Press,1981;RUSCONI, Roberto”. Antichrist and Antichrists”, in: Encyclopedia of Apocalypticism. vol.2, ed. Bernard McGinn,, New York/London: Continuum 2000, pp. 287-325.

25 Gehroh de Reichersberg, nessa obra, faz referência ao Ludus de Antichristo, uma peçade caráter escatológico, considerada a melhor dramatização medieval sobre a lenda doAnticristo, vide EMMERSON, K., op.cit., p. 166.

26 MCGINN, B. “Apocalypticism and Church Reform, 1100-1500”, in: Encyclopedia ofApocalypticism, Apocalypticism in Western History and Culture, vol. 2, ed. BernardMcGinn, New York/London: Continuum, 2000, pp. 82-83. É nesse mesmo tempoque a influente mística alemã, Hildegard de Bingen (1098-1179), em seu escritoScivias, no Liber divinorum operum assim como em outros textos saídos de sua penadirige fortes críticas ao clero, impregnadas de idéias reformistas de teor apocalíptico.

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Anticristos como bem demonstrou Robert E. Lerner27. Também ocronista de Frederico Barbaruiva, o bispo Otto de Freising (c. 110-1158) no capítulo final de sua obra Chronica sive Historia de duabuscivitatibus, reflete sobre o final dos tempos. Porém, certamente estávoltado à história passada e aos acontecimentos de seu tempo, certa-mente com a intenção de ilustrar o imperador alemão. Em sua divisãoentre civitas terrena e civitas Dei, Otto de Freising aplica uma divisãotrinitária28. O mesmo contexto está associado à atmosfera geradapelas Cruzadas, que teriam um papel decisivo para a transformação dasociedade medieval desde que, em 1095, o papa Urbano II mobilizoua cristandade ocidental para a libertação e a retomada dos lugares san-tos da Terra Santa então nas mãos dos muçulmanos. As crônicas lati-nas, assim como as hebraicas, relativas às Cruzadas e que descrevem osdramáticos acontecimentos, entre eles a conquista de Jerusalém em1099, revelam o quanto esse clima de expectativa apocalíptica se en-contrava presente nos anos em que elas se deram29.

27 V. em especial o estudo “Antichristi e Antichristo in Gioacchino da Fiore”, na impor-tante obra de Lerner, R.E., Refrigerio dei Santi, Gioacchino da Fiore e l’escatologiamedievale, Roma: Viella, 1995, em especial p. 118ss: “In contrasto com questa tradizione,gli scritti profetici della maturità di Gioacchino da Fiore dimostrano che egli credevanella venuta di molti anticristi, attribuendo però un‘importanza particolare a due diessi, i più terribili, la cui venuta egli collocava in um tempo futuro”.28 Sobre a obra, publicada em latim por A. Hofmeister, Cronica sive Historia de duabuscivitatibus MGH, SSRerum Germanicarum, XL, Hanover-Leipzig, Hahn, 1912, esua tradução por Charles Christopher Mierow, The Two Cities: A Chronicle of Univer-sal History to the Year 1146 A.D., New York: Columbia University Press, 1928, videdeste último “Bishop Otto of Freising, Historian and Man”, in: Transactions andProceedings of the American Philological Association, LXXX, 1949, 393-401; idem“Otto of Freising: a “Medieval Historian at Work”, in: Philological Quarterly, XXIV,1945, pp. 97-105 e o elucidativo estudo de LAMMERS, Walther. Weltgeschichte undZeitgeschichte bei Otto Von Freising, in: Die Zeit der Staufer, Katalog der Ausstellung.Stutgart, 1977, Band V Supplement, Vorträge und Forschungen, WürttenbergeschenLandesmuseums, herausg. Reiner Haussheer und Christian Väterlein, pp. 77-90.29 A manifesta expectativa nesse período levou ao fenômeno da conversão de algunscristãos ao judaísmo, a exemplo do normando Obadia, o Prosélito. V. FALBEL, N. KidushHashem: Crônicas Hebraicas sobre as Cruzadas, São Paulo: Edusp-Imprensa Oficial,2001, pp. 271-333.

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Nesse aspecto podemos afirmar que um exame de conjunto dateologia da história assim como esta se apresenta em Rupert de Deutz,em Honório de Autun e em Anselmo de Havelberg30, e ainda emoutros pensadores do século XII, indica que apesar de adstritos aopensamento agostiniano tradicional suas reflexões continham germesde uma mudança inovadora que certamente tiveram um papel forma-dor nas concepções de Joaquim de Fiore. Assim como Anselmo deHavelberg leu os escritos de Rupert e Honório, não menos provávelque Joaquim os tenha lido e vislumbrado centelhas inspiradoras parasua própria obra concomitantemente às fontes patrísticas, cuja leiturae estudo se revelam em seus escritos. Contudo, determinar os autorese obras que tiveram papel decisivo na gestação do pensamento de Joa-quim de Fiore constitui um verdadeiro desafio, considerando-se amultiplicidade de hipóteses e sugestões aventadas no meio acadêmicodesde o século XIX31.

Os estudiosos da obra de Joaquim de Fiore o consideram ummarco diferenciado devido o tratamento exegético inovador dado aolivro do Apocalipse. Conforme bem afirma E. Randolph Daniel suainterpretação é radicalmente nova no método utilizado para a“historização” do livro de João, sendo que o método exegético daconcórdia não encontra antecedentes32. É sob o mistério da Trindade

30 Sobre ele, vide EDYVEAN, W. Anselmo of Havelberg and the Theology of History. Rome:Pontificia Universitas Gregoriana, 1972.

31 A bibliografia, sob essa questão, é extensa, mas creio que uma síntese útil pode serencontrada no artigo de BLOOMFIELD, Morton W. “Joachim of Flora, A Critical Surveyof his Canon, Teachings, Sources, Biography and Influence, in: Traditio, XIII, 1957,pp. 249-311.

32 “Joaquim of Fiore: Patterns of History in the Apocalypse”, in: The Apocalypse in theMiddle Ages, p. 73. Devo observar que dentro dos limites do presente artigo sintetizocertos aspectos de seu pensamento sobre o qual escrevi no capítulo “Joaquim de Fiore esua contribuição à formação do pensamento espiritual”, incluindo as fontes, em minhaobra Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: Perspectiva, 1995, pp. 49-77.

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que Joaquim constrói a periodização que representa as três idades domundo (status mundi) figurada por um “ordo” diferente em cada umadas idades. O período do Pai, no qual os homens viviam segundo acarne (in quo vivebant homines secundum carnem), é aquele no qualprevalece a lei, o tempo dos desposados e laicos e nele predomina oVelho Testamento. A este tempo se sucede o período do Filho, operíodo da Graça, no qual os homens vivem num estádio intermediá-rio, entre a carne e o espírito (in quo vivitur inter utrumque, hoc estinter carnem et spiritum). Este é o período do “ordo” dos clérigos enele predomina o Novo Testamento. O terceiro período é o do Espí-rito Santo, o período do Amor, do “ordo” dos monges, no qual pre-dominará o Espírito (in quo vivitur secundum spiritum) caracterizadopelo Evangelho do Espírito Santo ou o Evangelho Eterno (evangeliumaeternum), que significa o conhecimento resultante de uma interpre-tação espiritual superior dos dois Testamentos (O Velho e o Novo).Este espírito eterno extraído das Escrituras pelo “spiritualis intellectus”,por uma interpretação espiritual superior, é o que subsistirá, enquantoque a letra dos anteriores, assim como nós a conhecemos até agora,desaparecerá no futuro. Esta “intelligentia spiritualis” será um domoutorgado aos “viri spirituales”, fundamento da nova Igreja Espiritual(ecclesia spiritualis), assentada sobre um novo “ordo” (ordo iustorum,ordo monachorum), que tomará o lugar da Igreja carnal, corrompida,predominante até o seu tempo33. Em sua periodização trinitária Joa-quim delimita o primeiro período iniciando-se com Adão e culmi-nando com Cristo; o segundo de Cristo até o ano de 1260; e o terceirode 1260 até o final dos tempos. Cada período ou idade, possui umprecursor e um iniciador durando 42 gerações, tese fundamentada noverso de Mt 1:17 ou seja de Abrahão a Davi, de Davi ao exílio na

33 FALBEL, N. ”São Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore”, Revista USP, SP,(30), junho-agosto, pp. 273-276.

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Babilonia, do exílio da Babilonia à Cristo, equivalente à três vezesquatorze gerações. Cada geração compreende trinta anos, desse modotemos trinta como multiplicador de quarenta e dois que perfaz 1260,ano em que se iniciará a terceira idade que teve como precursor a SãoBento e terminará com o Juízo Final34. Como precursor do segundoperíodo é assinalado o rei Ozias e se inicia com Zacarias, pai de JoãoBatista. O surgimento de cada período ou idade é turbulento e anun-cia a vinda do Anticristo. Em outro lugar dá a entender que o Anticristojá nasceu e está vivo, quem sabe em Roma, o que poderia ser interpre-tado como sendo o Papa. Porém devemos observar que juntamentecom o sistema trinitário, como já haviam observado estudiosos comoMarjorie Reeves e B. Hirsch-Reich, Joaquim de Fiore não deixou deseguir também o sistema tradicional binário, alicerçado sobre a dualidadedo Velho e do Novo Testamentos, velha e nova Jerusalém, tribo deJudá e Igreja Romana. Sob esse aspecto, o sistema binário ainda teriaum papel relevante na teologia da história do abade calabrês, enquantoque o trinitário permaneceria no nível “místico-profético”, o que nãodaria ao terceiro “status” uma autonomia absoluta, porém diretamentedependente dos demais35. Por outro lado, como lembra M.W.Bloomfield, citando M. Reeves, o aspecto pessimista existente que navisão histórica joaquimita derivaria do sistema binário, enquanto queo seu aspecto otimista derivaria do sistema trinitário. O fato decisivo éque a história termina com a grande tribulação, com o surgimento de

34 Vide sobre o significado do ano 1260 e a alternativa do ano 1200 em Mottu, op.cit., pp. 267-269 e respectivas notas de rodapé.

35 Sobre isso, vide REEVES, Marjorie, The Influence of Prophecy in the Latter MiddleAges. A Study in Joachinism. Oxford: Clarendon Press, 1969, pp. 16-27; idem, TheLiber Figurarum of Joachim of Fiore, Mediaeval and Renaissance Studies, II, 1950,pp. 57-81; HIRSCH-REICH, B. The Seven Seals in the Writings of Joachim of Fiore,Recherches de Théologie ancienne et médiévale, XXI, 1954, pp. 211-47; POTESTÀ,Gian Luca. Il tempo dell’Apocalisse. Vita di Gioacchino da Fiore, Roma-Bari: Laterza,2004, pp. 5-6;

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Gog antes do Segundo Advento, mas “essa crise de Gog, no esquematrinitário desenvolvido por Joaquim, não é no entanto nunca identi-ficado com a última perseguição da Igreja, o antichristus ultimus etpessimus, ou a sétima cabeça do Dragão. Essa deve preceder a Idade doSábado do terceiro status, mas no seu final virão as hostes de Gog, oúltimo golpe, como se fosse da cauda do Dragão, em que aparece naFigura do Dragão”36.

Sejam quais forem as fontes inspiradoras de Joaquim – e não forampoucas – o que se destaca em sua concepção é o papel atribuído ao EspíritoSanto na economia religiosa como o período “electus est ad libertatemcontemplationis scriptura attestante qui ait: Ubi spiritus ibi libertas”. Ométodo é o da “concordância” entre o Velho e o Novo testamento,“secundum coaptationem concordiae” que se diferencia do tradicionalmétodo alegórico predominante na exegese cristã medieval. O princípiohermenêutico emana do “misticus intellectus qui sicut dicut est a duobusprocedit”. Este princípio é o que rege a “concórdia” das duas partes dasEscrituras Sagradas, que contém a fé de Israel e da Igreja de Cristo. Ogênero da exegese profética de Jaoquim está ligado diretamente à interpre-tação do livro do Apocalipse, fonte inspiradora da escatologia, doapocalipticismo, do profetismo e do milenarismo posterior, livro ao qualdedicou grande parte de seu labor intelectual, a fim de revelar o significadohermético e simbólico nele contido. O conjunto de suas obras lembradasacima e as diretamente voltadas à interpretação do livro do Apocalipse,isto é, o Expositio in Apocalypsim, o Enchridion super Apocalypsim e o Liberintroductorius in Apocalypsim servirá como um manancial e fonte criativa

36 BLOOMFIELD, W.C.; LEE, Harold. “The Pierpont – Morgan Manuscript of De SeptemSigillis”, in: Recherches de Théologie Ancienne et Médiévale. XXXVIII, 1971, 137-148.O texto De Septem Sigillis foi publicado por Marjorie Reeves e Beatrice Hirsch-Reich,The Seven Seals in the Writings of Joachim of Fiore, in: Recherches de Theólogie Ancienneet Médiévale, XXI, 1954, pp. 211-247. A citação de Bloomfield é extraída desse últimotrabalho, p. 222.

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para uma verdadeira corrente de literatura apocalíptica que se manifestaráséculos após a sua morte37. A difusão de seu pensamento deveu-se, emboa parte, a certos círculos franciscanos que a partir da década de 1250incorporaram suas idéias ainda que associadas a uma ótica própria, que sedistanciaria cada vez mais dos textos originais de seu autor. Conforme umestudo de Morton Bloomfield e Marjorie Reeves, as idéias de Joaquim,de início difundidas entre os membros da Ordem Florence e Cisterciensena Calabria e na Itália, atravessaram os Alpes expandindo-se pelo conti-nente para a Inglaterra, França, Espanha e Alemanha, conforme atesta ogrande número de manuscritos encontrados nas bibliotecas européias38.Mas E. Randolph Daniel sugere que a expansão ter-se-ia dado mesmoantes de 124039. Marjorie Reeves lembra que a provável causa para aaceitação da hipótese de uma expansão posterior das idéias de Joaquim foia sua condenação no Concílio de Arles, em 1263, que dava a entender queas doutrinas do abade calabrês ainda eram pouco conhecidas e permaneci-

37 A questão do método exegético de Joaquim de Fiore é abordada com profundidadeno excelente estudo de Henry Mottu, La manifestation de l’Esprit selon Joachim deFiore. Paris: Delachaux & Nestlé S.A., 1977. Me utilizei da versão italiana Lamanifestazione dello spirito secondo Gioacchino da Fiore, Ermeneutica e teologia dellastoria secondo Il “Trattato sui quattro Vangeli”, Marietti, Casale Monferrato, 1983. Nanota introdutória à obra, p. XI, Gian Luca Potestà chama a atenção que “attraversol’analisi del Tractatus super quatuor Evangelia, uno degli scritti più maturi e radical-mente espressivi Del suo pensiero, Mottu mostra come l’exegesi gioachimita non siasemplicemente allegorica e mística (secondo la riduzione interpretativa già operata daErnesto Buonaiuti) ma profetica, in quanto reinterpreta il contenuto spirituale dellasacra pagina in una prospettiva storico-apocalittica.”

38 BLOOMFIELD, M. W.; REEVES, M. E. The penetration of Joachim into NorthernEurope, in: Speculum, XXIX, 1954, pp. 772-793. O levantamento dos manuscritosfeito por Marjorie Reeves em seu notável estudo The Influence... pp. 511-540 com-prova essa assertiva. Randolph Daniel baseia-se na Cronica de Salimbene (Chronica,MGH, SS, t.XXXII) bem como nos dois textos pseudo-joaquimitas, o Super HieremiamProphetam e o Super Esaiam Prophetam citados pelo próprio Salimbene.

39 DANIEL, Randolph E. A re-examination of the origins of Franciscan Joachitism, in:Speculum. XLIII, 1968, pp. 671-678. Segundo o mesmo autor, a difusão do joaquinismonos meios franciscanos do sul da Itália teria sido nos inícios de 1240.

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am na obscuridade. A fama de Joaquim, porém, já se fazia notar com adisseminação de sua Ordem antes e logo após sua morte, assim comoentre certos meios cistercienses e franciscanos40. No entanto, sua mençãopor cronistas como Sicardo, bispo de Cremona, que escreveu entre 1201e 1215, Roberto de Auxerre, que escreveu antes de 1215, ou Roger deWendover cujo Flores Historiarum é dos anos 1230, evidencia o quantosua doutrina estava difundida nesse tempo. A narrativa na Chronica deRoger de Hoveden sobre o encontro de Ricardo Coração de Leão comJoaquim em Messina entre 1190 e 1191, durante a Terceira Cruzada,assim como o Chronicon Anglicanum de Ralph Coggeshall também con-firmam a fama do “profeta“ calabrês. A presença de expressões e idéiasjoaquimitas é inegável nas duas obras pseudo-joaquimitas Super HieremiamProphetam e o Super Esaiam Prophetam possivelmente produzidas no sulda Itália e que passaram a fazer parte das leituras de franciscanos comoHugo de Digne, Bartolomeo Guiscolo, Gerardo da Borgo San Donnino,João de Parma e outros, como se pode depreender da Crônica de Salimbene,ele mesmo leitor desses mesmos textos41.

40 REEVES, Marjorie. The Influence... pp. 38-39. A autora observa que um meio efetivode divulgação de suas idéias foram as figurae, ou seja, as “imagens descritivo-explicativas”que constam no Liber Figurarum, cuja iconografia parece ter sido amplamente difundi-da. Sobre o texto Leone Tondelli, que escreveu o primeiro volume da segunda edição,publicado em 1953, sendo o segundo conjuntamente com M. Reeves e B. Hirsch-Reich, Il Libro delle Figure dell’Abate Gioachino da Fiore. 2ª. ed. Turim: Società EditriceInternazionale, 1954. Também REEVES, M.; HIRSCH-REICH, B. The “Figurae” of Joachimof Fiore. Oxford: Clarendon Press, 1972.

41 DANIEL, R.E., op. cit. pp. 674-5. O Super Hieremiam Prophetam teve sua primeiraedição em Veneza, Lacaz de Soardis, 1516 e Super Esaiam Prophetam, em Veneza,1517. Vide também WEST, Delno C., Between flesh and spirit: Joachim pattern andmeaning in the Cronica of Fra Salimbene, in: Journal of Medieval History, vol. 3, issue4, December, 1977, pp. 339-352. GRUNDMANN, H., op. cit., no capítulo IV de seuestudo “La sopravvivenza delle idee gioachimite”, pp. 169-204, traça um histórico daexpansão de suas doutrinas e escritos em alguns centros, sem que nem sempre se possasaber com certeza se, nessas primeiras décadas o conhecimento de suas idéias se funda-mentava em escritos autênticos ou não.

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Até onde, durante o século XIII, idéias joaquimitas foram absor-vidas por movimentos heréticos a exemplo dos seguidores de Amauryde Bène, Gerardo Segarelli e Dolcino de Novara, lideres dos Pseudo-Apóstolos ou Apóstolos de Cristo, assim como outros heresiarcas,ainda é uma questão aberta que deverá merecer a atenção dos estudio-sos, apesar das tentativas pontuais de esclarecer a sua influência emcertos heterodoxos42. Boa parte desse pseudo-joaquimismo não eramais do que interpretações que extrapolavam a doutrina trinitária ori-ginal de Joaquim de Fiore tendo como fundo e intenção a crítica e arevolta contra a instituição eclesiástica, vista como corrupta e afastadada vida evangélica, assim como a entendiam as heresias desejosas dereforma. Mas em meados do século XIII, conforme vimos acima, osescritos fundamentais de Joaquim já eram conhecidos, e seriam aindamais a partir de 1254, quando Gerardo da Borgo San Donnino pu-blicou o Introductorius ad Evangelium aeternum, identificando nosprincipais escritos de Joaquim o próprio Evangelho Eterno, ao mes-mo tempo em que provocava uma explosiva querela interna na Or-

42 Sobre eles, vide FALBEL, N. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1977. Emrelação à Amaury de Bène Paul Fournier em seu Études sur Joachim de Flore et ses doctrines(Paris: 1909, reprod. Frankfurt-Am Main: Minerva GMBH, 1963, p. 40), escreveuque “Dès le début Du XIIIe siècle, nous retrouvons chez les disciples d’un hérésiarquefrancais, Amaury de Chartres, des croyances qui sont vraisemblablement inspirées parles prohéties de Joachim de Flore. Comme Joachim, ces hérétiques partage l’histoire entrois périodes, celle du Père, celle du Fils et celle de l’Esprit”. No entanto, G.C.Capelle, em sua obra Autour du décret de 1210: III- Amaury de Bène, étude sur sonpanthéisme formel (Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1932, p. 81-5), coloca emdúvida essa possibilidade, aventando a hipótese que ambos “se inspiraram de umamesma fonte”. No prefacio a essa obra, pp. 5-6, Étienne Gilson também contesta aopinião geralmente aceita sobre o próprio panteísmo de Amaury de Bène ao afirmarque “La conclusion qui s’en dégage est, qu’en somme, Amaury de Bène est à lui-mêmesa propre source. Son panthéisme ne se retrouve ni chez les Chartrain, ni chez ScotErigène, mais est issu de ses propres réflexions sur la nature de Dieu et des relations dumonde à Dieu”, contrario à concepção de um estudioso de sua obra como Mario DalPra (Amalrico de Bène. Milano: Fratelli Bocca Editori, 1951), que enfatiza a influênciade João Scotus Erígena.

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dem Franciscana43. Esta última querela seria logo associada à contendaexterna com os magistri seculares devido a presença e influência dasordens mendicantes na Universidade de Paris44.

Efetivamente, foi nos círculos iniciais dos Espirituais Franciscanos,que viam a si mesmos como os arautos de uma nova Igreja, que opensamento joaquimita teve maior aceitação, introduzindo-se na no-tável produção literária de sua elite e liderança intelectual, impregnan-do as obras que saíram de suas penas. Refiro-me em particular a Pedrode João Olivi45, Ubertino de Casale, Angelo Clareno e seus seguido-res. E, mesmo que nem sempre possamos identificar referencias ex-pressas às obras de Joaquim, ainda assim manifestações de expectativaapocalíptica e escatológica perpassam como fio central em suas obras46.Nesse mesmo contexto, o genial e visionário médico catalão Arnaldode Vilanova, identificado e defensor dos Espirituais, também apresen-

43 Apesar da bibliografia existente sobre a questão do Evangelium aeternum, indispen-sável se faz a leitura de DENIFLE, S. Das Evangelium aeternum und die Comission zuAnagni, in ALKG, I, 1885, pp. 49-141.

44 V. FALBEL, N., Os Espirituais Franciscanos, pp. 69-77.

45 Pedro de João Olivi (1247-1297), que se destacou como líder dos Espirituais naProvença, teve uma fecunda atividade intelectual, e em sua Lectura super Apocalipsimvemos o quanto se identificara com o joaquimismo. Sob esse aspecto ainda permanececomo fundamental a obra de Raul Manselli, La ‘Lectura super Apocalipsim’ di Pietro diGiovanni Olivi: Ricerche sull’ escatologismo medioevale (Roma: Istituto Storico Itali-ano per Il Medio Evo, Studi storici 19-21, 1955). Novos estudos e questionamentossobre Olivi encontram-se na coletânea, incluindo bibliografia de 1989-1998, Pierre deJean Olivi (1248-1298), Pensée scholastique, dissidence spirituelle et société, Actes ducolloque de Narbonne (mars 1998), ed. por Alain Boureau et Sylvain Piron, Paris: Lib.Phil. J. Vrin, 1999.

46 Sobre eles, dediquei alguns capítulos em meu estudo “Os Espirituais Franciscanos”,citado anteriormente, nele incluindo as referências das fontes e a bibliografia específica.No entanto, devo observar que desde os anos 1972, quando apresentei minha tese dedoutorado sobre o tema, bem como sua publicação somente em 1995, até hoje,avolumaram-se os estudos sobre essas marcantes figuras enriquecendo sobremaneiranosso conhecimento sobre os mesmos.

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ta uma obra marcada por um joaquimismo exaltado, na qual especulasobre a vinda do Anticristo e a reforma da Igreja47. Os padrões daexegese joaquimita, a saber, os três status, as sete idades do mundo, oduplo sete selos e suas “aberturas” (apertiones) estão presentes em umasérie notável de pensadores e exegetas medievais que foram contami-nados por seus escritos, como Adam de Marisco (Marsh) e RogérioBacon, mesmo que esses não fizessem parte de grupos Espirituais daOrdem Franciscana48. Daí podermos entender a reação de determina-das personalidades que viam em certas doutrinas vinculadas à obra deJoaquim senão uma ameaça à Igreja ao menos uma visão e interpreta-ção errônea de verdades teológicas aceitas e compartilhadas universal-mente pelo conjunto de seus fiéis49. Teólogos de vulto como Tomásde Aquino (1225-1274), que em sua postura teológica mostrou-seradicalmente crítico à escatologia joaquimita, e, de outro lado,Boaventura (1217-1274), que demonstra plena familiaridade com seusescritos no Collationes in Hexaemeron e mais ainda no Breviloquium

47 Sobre ele, vide meu estudo “Arnaldo de Vilanova, sua doutrina reformista e suaconcepção escatológica”, tese de livre-docência, Universidade de São Paulo, 1977. Amesma observação da nota anterior aplica-se a esse trabalho.

48 V. BURR, David. “Mendicant Readings of the Apocalypse”, in: EMMERSON, RichardK.; MCGINN, Bernard. The Apocalypse in the Middle Ages. Ithaca-London: CornellUniversity Press, 1992, pp. 89-102. A adoção da exegese joaquimita posterior à suamorte é também tratada por Henri de Lubac, Exégèse Médiévale, Les quatre sens del’Écriture, seconde partie, II, Paris: Aubier, 1964, pp. 325-344.

49 Importante, sob esse aspecto, é o estudo de Bernard McGinn, “The Abbot and theDoctors: Scholastic Reactions to the Radical Eschatology of Joachim of Fiore”, in:Church History, vol. 40, n. 1 (mar., 1971), pp. 30-47, reeditado com o capítulo 7 deseu livro The Calabrian Abbot. Joachim of Fiore in the History of Western Thought,New York: MacMillan, 1985, pp. 207-234, com o título “Ther Abbot and the Doctors:Joachim, Aquinas and Bonaventure”; também o capítulo 3 da obra de H. de Lubac, Lapostérité spirituelle de Joachim de Flore, I. de Joachim à Schelling, P. Lethielleux, 1987,pp. 123-160.

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e foi influenciado por seu pensamento, evidencia o quanto a obra doabade causara impacto na escolástica daquele tempo50.

Para terminarmos se faz oportuno lembrar as palavras de MarjorieReeves, a notável scholar, cuja obra é um marco divisor para o conheci-mento do joaquimismo:

O significado histórico de Joaquim repousa na caráter dinâmicode certas idéias centrais que ele anunciou. Elas atuaram subter-raneamente nos séculos que se seguiram, florescendo de tem-pos em tempos para uma nova vida em um grupo ou individu-almente. Sua qualidade vital emergiu do fato que elas atuaramna imaginação, promovendo a esperança e desse modo a ação51.

50 V. RATZINGER, J. op. cit.; FALBEL, N., “São Boaventura e a Teologia da História deJoaquim de Fiore”, in: S. Boaventura, 1274-1974, II, Studia, Grottaferrata, 1973, pp.571-584; E. RANDOLPH, Daniel. St. Bonaventure’s Debt to Joachim, in: Medievalia etHumanistica, 11, 1982, pp. 61-75.

51 REEVES, M., The Influence... p. 136: “The historical siginifcance of Jaochim lies in thedynamic quality of certain key ideas which he proclaimed. They worked undergroundin the following centuries, form time to time springing to new life in a group or inindividual. They vital quality arose from the fact that they worked in the imagination,moving to hope and so to action”.

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O ALTER CHRISTUS: CRISTOCENTRISMOE CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE

FRANCISCO NA ARBOR VITAE

CRUCIFIXAE IESU, DE UBERTINO DECASALE (1305)

Ana Paula Tavares Magalhães *

Resumo: O cristocentrismo, pensamento que tende a estabelecero advento de Cristo como elemento central da História, marcou opensamento teológico e filosófico da Ordem Franciscana, com desta-que para Boaventura de Bagnoregio, seu expoente máximo. Trata-sede uma matriz patrística, cujas idéias fundamentais podem ser obser-vadas em Agostinho de Hipona. A esse pensamento, associou-se opapel fundamental atribuído a Francisco de Assis na história da Igrejana crônica franciscana. Ubertino de Casale, representante de um pen-samento rigorista no interior da Ordem, apropriou-se desses dois ele-mentos, conferindo-lhes novos significados em sua obra, ao mesmotempo que atribuiu aos Espirituais Franciscanos uma suposta soluçãode continuidade em relação aos mesmos.

Os ideais da estrita observância – com a ênfase no usus pauper queela forçosamente acarreta – e da reconstrução do cristianismo primiti-vo – destacando-se o papel histórico fundamental de Francisco de As-sis e a urgência de seu projeto – teriam permeado a luta travada pelos

* Universidade de São Paulo.

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Espirituais Franciscanos, em meio a uma conjuntura política e socialmarcada por uma série de conflitos – com o clero secular, com osmestres parisienses, com a própria Ordem Dominicana e em vista doschamados Conventuais, membros da Ordem que se mostravam parti-dários de uma “observância ampla” (marcada por uma percepção maissubjetiva do usus pauper e por formas de conduta tendentes a privilegi-ar o comportamento individual frente ao coletivo). A obra Arbor vitaecrucifixae Iesu (1305), de Ubertino de Casale (1259-1328), situa-se nalinha das discussões que durante muitos anos povoaram a história daOrdem e da Igreja, opondo Conventuais e Espirituais, naquilo queficou conhecido como a “Questão Espiritual”.

Escrita no ano de 1305, a Arbor vitae de Ubertino apresenta uma sériede pressupostos vinculados ao partido espiritual no interior da questãoque se processava dentro da Ordem Franciscana. Não se configura, entre-tanto, como um escrito concretizado com o fito de atender à demanda deuma solução urgente – caso do Rotulus iste1, produzido em meio às dis-

1 A pesquisa científica acerca do franciscano Ubertino de Casale, que marcou trajetória nahistória da Ordem e da Igreja Católica entre os séculos XIII e XIV, remonta ao fim do séculoXIX. Em sua preocupação com a chamada magna disceptatio (1309-1312) – opondoEspirituais e Comunidade, facções em que se encontrava cindida a Ordem Franciscana –e com as conseqüentes ocorrências processadas no Concílio de Viena (1312) – no qualcoube a Ubertino o destaque como ferrenho defensor das idéias e da pessoa do tambémfranciscano Pedro de João Olivi, este profundamente envolvido com a questão da pobreza,que abalava a instituição fundada por Francisco –, Ehrle (EHRLE, F. Zur Vorgeschichtedes Conzils von Vienne, in: Archiv für Litteratur und Kirchengeschichte des Mittelalters, 2(1886) 353-416, 3 (1887) 1-195; Die Spiritualen, ihr Verhältniss zum FranziskanerOrden und zu den Fraticellen, ivi 3 (1887) 553-623, 4 (1888) 1-190) recolheu e comen-tou parte dos documentos relativos ao supradito Concílio, dentre os quais o chamadoRotulus iste, opereta produzida por Ubertino em meio ao calor das discussões acerca daortodoxia dos escritos de Olivi, na qual procura defender as posições de seu companheiro– já falecido por esta data –, ao mesmo tempo em que procede a uma crítica mordaz àsidéias e ao comportamento da chamada Comunidade, composta por aqueles frades que,no interior da Ordem Franciscana, tendiam a uma interpretação ampla da Regra, opondo-se àqueles que, como Olivi e conseqüentemente também Ubertino, faziam a apologia daobservância estrita – os chamados Espirituais.

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cussões a respeito da ortodoxia dos Espirituais e da probidade dos escritosde Pedro de João Olivi. Por essa razão, permanece um escrito essencial-mente teórico: muito embora fosse produto de um contexto de luta, nãofoi redigido por força de uma disputa religiosa.

A perspectiva espiritual de renovação da Igreja – para dar a ela,enfim, a função de depositária do ideal da pobreza evangélica2 –, eem particular da Ordem – acentuando o papel histórico funda-mental de Francisco de Assis –, está presente em todo corpo daobra, figurando como uma verdadeira defesa dos pressupostos dogrupo dos frades rebeldes. A vida de Jesus Cristo é a árvore da vidaà qual se refere o escrito: sua raiz, seu caule, suas folhas represen-tam o símbolo da vida para a humanidade. Como elemento fun-damental da obra figura o motivo da redenção, que a preencheperfazendo seu sentido e sua finalidade3.

Tendo como suporte a tese agostiniana – com base na exegese dotexto paulino – da relação Cristo-cabeça/Igreja-membros, de acordocom Ubertino haveria uma economia entre Cristo-cabeça e Igreja defiéis autênticos. Esta, contudo, só pode resultar em ser restritiva noque se refere à parte da Igreja envolvida, fazendo-a possivelmente coin-cidir com o grupo dos Espirituais. A importância da relação estabelecidareside, portanto, no fato de que ela não se processa entre Cristo e aIgreja em geral, mas antes entre Cristo e os chamados eleitos, ou seja,aquela parte da Igreja que permanece, no entender de Ubertino, fiel aele. Dessa forma, para além das referências tradicionais à recíproca pre-sença de Cristo na Igreja e vice-versa – de resto, presentes no corpo do

2 THOMAS, Hans Michael. Franziskanische Geschichtsvision und europäischeBildentfaltung: die Gefährtenbewegung des hl. Franziskus, Ubertino da Casale, der“Lebensbaum”, Giottos Fresken der Arenakapelle in Padua, die Meditationes vitae ChristiHeilsspiegel und Armenbibel. Wiesbaden: L. Reichert, 1989, p. 15.

3 Idem, Ibidem, p. 12.

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texto –, a relação que prevalece tende a ser aquela entre Cristo e seus“membros eleitos”4.

Um exame da totalidade da Arbor vitae permite destacar uma série depassagens nas quais se ressalta a relação especial imanente entre Cristo e osseus5. Fazem aparição, naturalmente, as tradicionais referências à recíprocapresença de Cristo na Igreja e da Igreja em Cristo6. Prevalece, contudo, opressuposto da relação entre Cristo e seus membros eleitos. De um pontode vista eclesiológico, é significativa a insistência de Ubertino na relaçãoentre Cristo e seus fiéis, fato observado sobretudo na parte do capítulo IVdedicada à paixão de Jesus. Assim, este havia provado todas as dores doseleitos, querendo, igualmente, comunicar-lhes suas próprias dores, namedida em que estas se apresentavam a cada um: “A ‘paixão’ torna-se umconotativo eclesiológico, um critério de leitura da história, um sinal dereconhecimento dos eleitos de Cristo”7.

Expoente importante do grupo, Ubertino de Casale conduziu adi-ante as queixas contra o relaxamento dos costumes que imperava, deacordo com os Espirituais, no seio da Ordem e da Igreja. Ao estabele-cer a intimidade exclusiva existente entre Cristo e seus fiéis seguidoresespirituais, Ubertino recuperava a tensão entre Igreja Carnal e IgrejaEspiritual, tendo como base as vicissitudes dos Espirituais: assim, talintimidade não se referia a toda a Igreja, mas apenas àquela parcela em

4 “Sicut autem tunc in primitiva ecclesia dabatur spiritus sanctus visibilibus signispredicantibus apostolis ceterisque discipulis. Sic usque ad finem mundi benedictusIesus eundem spiritum membris suis inspirare non definit secundum illam mensuramqua istos dum vineret sui amoris et doloris portavit merito: et tunc in sui fruitionisgaudio portat in illo beatitudinis regno” (UBERTINO DE CASALE. Arbor vitaecrucifixae Jesu. ed. C. T. Davis, Torino, 1961, IV, 36, 370b).

5 Ibidem, 369b; 37, 386b.

6 Ibidem, 5, 228a; 300b.

7 POTESTÀ, Gian Luca. Storia ed escatologia in Ubertino da Casale. Milano: UniversitàCattolica del Sacro Cuore, 1980, pp. 50-51. V. Arbor vitae..., IV, 21, 331b; IV, 19,328a; IV, 9, 311a e 308a.

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seu interior que efetivamente se esforçava por renovar a experiênciaevangélica. Dessa forma, somente a Igreja Espiritual, qual seja, a co-munidade de fiéis que vivia estritamente segundo o exemplo de Cris-to, pertencia realmente a Cristo, ao passo que a Igreja Carnal possuíaidêntica função à da sinagoga contra a Igreja das origens. Ela devia,pois, percorrer um caminho de purificação, que só terminaria de secumprir no tempo escatológico8.

É possível, portanto, discernir a tensão na qual, de acordo com ofrade Ubertino, se encontrava a Igreja daquele momento: inteiramen-te dependente de Cristo, ela repercorria, na figura dos eleitos, sua vida esua morte; no presente momento, o vínculo entre Cristo e os seus restrin-gia-se ao pequeno número de eleitos – os verdadeiros fiéis – o qual, contu-do, ao aproximar-se o tempo final, tornar-se-ia maior, sendo que a condi-ção por hora em vigor para os eleitos estender-se-ia a toda Igreja, manifes-tando plenamente a ligação entre Cristo e sua esposa. Ao completar-se essaobra, transposta para o futuro escatológico, dever-se-ia completar, por-tanto, a esperada renovação no seio da Igreja.

É com grande insistência que Ubertino retoma a passagem de Pau-lo “Não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Elaatesta, por um lado, que para o Apóstolo só se pode falar dos cristãoscomo membros verdadeiros de Cristo com a condição de que estesefetivamente tomem sua figura como modelo; por outro, que estaíntima união já é uma realidade efetiva naquilo que concerne aos elei-tos. Os verdadeiros fiéis de Cristo são, portanto, reconhecíveis a partirde sua identificação com ele9. O versículo representa, ainda, uma mani-

8 Idem, Ibidem, p. 51.

9 “Sic et in charitatis ardore recepto spiraculo, spiritus Christi omnia expiret Christo diformia,semper aspiret Christo conformia, intus inspiret et recolligat ipsius recepta flagitia seusuplitia, et totaliter vivens non sua sed amati Iesu vita, clamet cum Apostolo: Mihi vivereChristus, etc. (Fl. 1,21) et Vivo ego, iam non ego, vivit vero in me Christus” (Arbor vitae...,IV, 29, 357a. V. também III, 3, 150a; III, 14, 237b; IV, 5, 290b; V, 14, 491b).

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festação da temática fundamental da espiritualidade cristã, que é aque-la da renúncia ao homem carnal para ceder espaço ao homem espiritu-al. Tal ação, operada pelo Espírito Santo, deveria fazer reviver o Cristono interior dos fiéis, e traria como condição primeira a quotidianamorte destes, a fim de que o homem exterior deixasse espaço para ohomem interior10. Assim, de acordo com a doutrina de perfeição deUbertino de Casale, a alma deve morrer para si e para as coisas materi-ais, a fim de permanecer apenas em função da vontade divina. Dessamaneira ele teoriza no quarto livro da Arbor vitae, postulando de queforma seria possível atingir a perfeição evangélica. Trata-se, fundamen-talmente, de um percurso que consiste em morrer para o amor de simesmo e de todas as criaturas, bem como de transferir-se unicamentepara a vontade divina11. O fiel deveria deixar-se absorver, por intermé-dio do Espírito Santo, pelo amor e pela vontade divinos, realizando aprogressiva anulação da própria vontade e o desligamento de si mes-mo, de tal modo a não desejar nada além do próprio Cristo12.

10 “Nec dum mens nostra impia quando a Spiritu sancto vult duci ad perfectionisfastigia [potest] excusare se sub similitudine aliorum dicendo: suficit mihi facere quodtalis facit vel quod faciunt ceteri in communi; quia in situ corporis proprium locumhabet quodlibet membrum et speciale officium, ad quod influit spiritus vivificationisnature. Sic in Christo Iesu, cuius nos sumus corpus et membra, de membro Spiritussancti influit cuilibet membro electo illa operanti et facere que congruunt illi statuispiritualis mensure, in qua Christus Iesus ipsum in se locavit in merito sue vite passibiliset locaturus est in gloria divinitatis” (Ibidem, IV, 36, 370b).

11 “et voluntatis plena et contenta de eo quod fecit Deus in se ipso et in omni creato etmaxime de mensura distributa unicuique electo in participatione meriti mortis Christi,ut nihil velit de se, nec de aliquo creato, nisi illud quod predestinatrix gratia unicuiquedisponit in Christo Iesu propter ipsius ineffabilem charitatem” (Ibidem, 37, 389a).

12 “Sicut humanitas Christi non est suppositum nec persona sed radicatur et inferiturpersone filii Dei, ita ut sit sua persona, sic voluntas tua et amor tuus absorbeatur perinfluxum Spiritus sancti ab amore Dei et voluntate ipsius, quod ipse Spiritus sanctusquasi videatur esse tua voluntas at amor, ut nihil propter te velis, sed solum propterIesum, immo nihil velis nisi ipsum” (Ibidem, 382b).

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A idéia de que a assimilação a Deus é atingida pelo fiel mediante aautoespoliação de todo e qualquer elemento mundano é comum àsdoutrinas de perfeição professadas por Ângelo Clareno, Ângela deFoligno, Iacopone de Todi e Ubertino de Casale, entre outros. A re-núncia do fiel a si mesmo encontra-se munida de dois aspectos: exteri-or e interior (ou carnal e espiritual). A respeito desses níveis, é possívelafirmar que atos de devoção e obras de penitência prestam-se como pre-ventivos no caminho de uma vida espiritual mais elevada. Entretanto, épreciso ressaltar que a conferência de um valor fundamental ao ódio de simesmo como móvel para atingir a perfeição cristã não representa um fatonovo no conjunto da produção literária dos Espirituais. Trata-se, com efeito,de uma tônica constante nos escritos franciscanos dos séculos XIII eXIV. Ubertino declara na Arbor vitae que o ódio de si é o elementofundamental de todo estado de perfeição13.

A união com Jesus torna-se possível na medida em que o fiel tor-na-se capaz da renúncia e do ódio evangélico. Trata-se de uma relaçãoproporcional, pela qual quanto mais se renuncia a si mesmo, tantomais se deixa espaço para o ingresso de Jesus na alma. Em sua Arborvitae, Ubertino de Casale fala de transformatio14. O termo análogoutilizado por Clareno para definir a experiência pela qual o fiel passa aacolher e hospedar Jesus em sua própria alma é inhabitatio. Para este,bem como para Ubertino, os esforços para igualar-se a Cristo assumi-am um duplo significado: por um lado, tratava-se de modelar-se con-forme o exemplo dos santos, superando as tentações individuais; poroutro, a perspectiva do ódio de si consistia na fidelidade ao radicalis-mo da experiência franciscana, perfazendo, dessa forma, um aspectocoletivo. O itinerário consistia na retomada do percurso de Jesus Cris-

13 “Odium sui est fundamentum omnis status perfecti” (Ibidem, 385b).

14 Ibidem, II, 5, 109a; III, 15, 243b; IV, 15, 323a; IV, 37, 390a.

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to, o qual continuava a sofrer no próprio corpo o martírio que oseleitos sofriam por ele15.

Trata-se de uma perspectiva – muitas vezes conhecida como imitatioChristi16- que não se restringiria às práticas individuais de ascese, medita-ções e penitências, mas, antes, deveria abranger a Igreja em seu complexo eem sua totalidade, resultando num movimento de purificação e de aper-feiçoamento generalizados. A força motriz desse processo seriam, natural-mente, seus membros eleitos. Cada um destes possuía uma tarefa específi-ca a realizar no interior do vasto organismo que é a Igreja; sendo assim,impunha-se-lhes a necessidade de que ninguém permanecesse inoperante.Ubertino desejava sublinhar, além disso, a ação do Espírito Santo, porintermédio da qual cada qual atuava por si a fim, contudo, de que todo oorganismo eclesiástico se conformasse a Cristo.

Nesse contexto, a Ordem Franciscana passaria a assumir o papelde membro individual, dotada de uma atribuição específica a ser leva-da adiante, de uma missão particular a ser cumprida: “Aqui se conside-

15 Sobrevém a associação entre Cristo e os chamados eleitos, aos quais se procuravaidentificar o grupo dos Espirituais Franciscanos.

16 Uma série de pressupostos, referentes, basicamente, à vida pessoal do cristão, podemser caracterizados, em conjunto, como aquilo a que se denomina imitatio Christi. Trata-se de um corpo de atitudes, práticas e valores construídos ao longo da vida da IgrejaCatólica e do cristianismo, representado por um movimento de interiorização em opo-sição ao mundo exterior. Em fins da Idade Média, Thomas de Kempis (1380-1471),um monge holandês, escreveu quatro pequenos tratados em latim, cuja compilação eposterior tradução – seu mais célebre tradutor é Lamennais – recebeu o nome deimitatio Christi. A título ilustrativo, o primeiro livro – Conselhos úteis para entrar navida interior – aconselha a imitação de Jesus Cristo e o desprezo às vaidades do mundo;os sentimentos humildes a respeito de si mesmo; a obediência e a renúncia; evitarentrevistas inúteis; evitar julgamentos temerários; suportar os defeitos alheios; trabalharcom fervor no aprimoramento da vida. Ressaltam-se ainda as vantagens da adversidade;a resistência às tentações; as obras de caridade; o exemplo dos santos; o amor à solidão eao silêncio; a compunção do coração; a consideração da miséria humana; a meditação arespeito da morte. (L’Imitation de Jésus-Christ. Trad. de Lamennais. Paris: Seuil, s/d).

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ra ‘membro’ não só o simples fiel, mas também uma comunidade,que pode ser uma ordem religiosa (ou a parte ‘eleita’ dela). Estimulan-do cada um a não se contentar em cumprir aquilo que fazem os outrosem comum, Ubertino parece aludir, de fato, à condição da OrdemFranciscana, na qual cada um deve viver em particular a escolha dapobreza, sem delegá-la a outros. Apenas desse modo a Ordem em seucomplexo poderá permanecer fiel à função específica que deve execu-tar na Igreja”17.

Não bastava, com efeito, reviver a experiência de Cristo em nívelindividual – a saber, relegando-a difusamente àqueles religiosos que,embora dotados de profunda capacidade ascética, atuavam num planode vivência que não transbordava para além do indivíduo; na verdade,subjacente ao papel histórico e religioso da Ordem Franciscana no seioda Igreja, encontrava-se a necessidade de tomar a experiência e a vivênciado Cristo como modelos de regramento coletivo – uma empreitadaque pertenciam a um tempo a todos e a cada um; mais ainda: perten-cia à Ordem em seu complexo.

A exigência de Ubertino não deixava dúvida de que o acento recaíanão na pobreza enquanto virtude exemplar de Francisco, mas sim naintentio franciscana segundo a qual aquela pobreza deveria caracterizara experiência de toda a Ordem. O pensamento de Ubertino, naquiloque concerne à intenção profunda de Francisco em relação à Ordem eao projeto do fundador, não poderia deixar de trazer como conseqüência,por um lado, a existência da Ordem por oposição radical aos padrõesde organização eclesiástica de seu tempo, bem como às formas de vidareligiosa anteriores; por outro, a crítica à organização atual da própriaOrdem, denunciando o fato de que o projeto inicial encontrava-sedesativado e mistificado. Assim como se havia observado um

17 POTESTÀ, Gian Luca. Op. cit., p. 54.

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paralelismo entre as trajetórias de Cristo e da Igreja, Ubertino estabele-ceu uma continuidade histórica e ideal entre Francisco e os Espirituais.Queria mostrar, além disso, que a condição evangélica da Ordem en-contrava-se decadente desde os tempos em que Francisco vivia18.

O fato de que Francisco assinalava uma nova época na história daIgreja e, consequentemente, da humanidade, é uma convicção profun-da que perpassa a obra de Ubertino de Casale. Ele encara Franciscocomo uma figura plena da perfeição cristã em seus vários aspectos e,pouco a pouco, o caracteriza como uma verdadeira imagem de Cristo,perfeita, na medida em que isso pode ser concedido a uma criaturahumana. Dessa forma, assim como, no décimo terceiro dia, a figurade Jesus apresentou-se aos três reis magos, da mesma forma, no déci-mo terceiro século, constituiu-se uma verdadeira manifestação da sa-bedoria cristã, sendo grandemente multiplicados os esplendores dadivina sabedoria. Sobretudo pela religião da pobreza, fora renovada avida evangélica em Francisco, o patriarca dos pobres19. De acordo comUbertino, Francisco era comparável a Cristo não em virtude de umasérie de aspectos exteriores que podem ser perfeitamente documenta-dos – como afirma toda uma tradição do século XIV que culminariacom Bartolomeu de Pisa –, mas sobretudo em virtude de terrepercorrido plenamente a vida de Cristo. Sua ressurreição seria dadapelo cumprimento estrito da Regra na Ordem Franciscana.

Francisco, homem abençoado por Deus de maneira singular, comoatesta o prodígio dos stigmata que o modelaram, bem como o cons-tante esforço por conformar-se perfeitamente a Cristo, teria em co-mum com Cristo, de acordo com Ubertino e com outros Espirituais,o destino de ressurgir. Ubertino atribui a Conrado de Offida e outrosfrades “dignos de fé” a afirmação de que a Francisco de Assis seria con-

18 Arbor vitae..., V, 3, 431a.

19 Ibidem, II, 7, 129b-130a.

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cedida uma ressurreição. Assim, da mesma forma que, de maneira ex-cepcional, Francisco assemelhou-se a Cristo sobre a terra, deveria res-suscitar, de forma a reforçar a fé e a verdade da vida evangélica queCristo queria renovar em Francisco. Ubertino deseja ressaltar, para alémda semelhança, a identidade de Francisco em relação a Cristo. Assim,Francisco encontrava-se, tanto na alma quanto no corpo, modelado eiluminado pelos stigmata. Tratava-se de um espelho perfeito que refle-tia fielmente a imagem de Cristo. Assim, belíssimo e formosíssimoera Francisco, porque carregava os sinais de uma semelhança muitobela. Era, de fato, candura de luz eterna e espelho da majestade, ima-gem da sua bondade. Já que o corpo de Francisco fora modelado deacordo com a visão do Crucificado, sua carne foi puríssima e a alma,de uma pureza quase divina20.

Nas relações entre Francisco e Cristo, os Espirituais detectam umasequela, que pode passar, ainda, por uma prática de ascese; uma imita-ção, que tende à união, que os Espirituais percebem como uma unida-de; uma similitude e, mais do que isso, uma assimilação. É no terceirocapítulo da Arbor vitae – o mais explicitamente cristocêntrico – queUbertino fornece o maior número de afirmações nesse sentido. As-sim, Ubertino afirma que Francisco empenhou-se em conformar-seao próprio Jesus, que é evidente que o bem-aventurado Francisco foisemelhante a Jesus, que Francisco buscava assiduamente a semelhançacom Jesus. Ele afirma, ainda, que era o próprio Cristo quem operavaem Francisco tal assimilação. Assim, Jesus, perfeito, havia feito trans-figurar Francisco à imagem de sua própria vida, de forma que vivesse àsua maneira, pela perfeita obediência ao Evangelho. A esse ponto, Je-sus poderia dizer de Francisco de Assis que a ele fora conferida umadescendência nova, para além daquela de Abel21.

20 Ibidem, V, 4, 434a.

21 Ibidem, 3, 429b.

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Ao Francisco seráfico de Boaventura, Ubertino de Casale opunhao seu Francisco histórico, associado a um projeto eclesial; ao santoconforme os exemplos antigos de Boaventura, Ubertino de Casaleopunha o fundador de um novo povo. De acordo com a perspectivaboaventuriana, a história da Ordem era um dado separado da vidaexemplar de Francisco e relacionado, naturalmente, às imposições dasnovas estruturas e à necessidade de absorver novas funções. ParaUbertino, em contrapartida, um conflito já experimentado por Fran-cisco adentrava a história da Ordem e colocava-se entre aqueles quedesejavam manter a identidade original e aqueles que, para adequar-seaos tempos, atenuavam o radicalismo do projeto. Um biógrafo deFrancisco descreve a dificuldade inerente à Regra no que tange à defini-ção dos detalhes da vida conventual e apostólica; e, por outro lado, oideal que ela propõe revela-se tão elevado que permanece dificilmentepraticável. Por essas razões, a Ordem Franciscana surgia como aquelana qual a vida espiritual encontra sua maior liberdade de expressão,mas também como aquela em que as exigências do fundador deixa-vam um intervalo marcante entre o objetivo e a realidade concreta.Daí, por um lado, a mediocridade em que muitas vezes parece tombara comunidade; por outro, os protestos elevados pelos religiosos fer-ventes em função de uma observância mais rigorosa da Regra22.

Era, com efeito, bastante comum entre os representantes espiritu-ais, bem como entre correntes heréticas populares – caso dos Beguinos–, atribuir o papel de renovador da Igreja a Francisco de Assis. O pon-to central da Arbor vitae é a pessoa de Francisco, o santo fundador daprópria Ordem, e sua intenção de renovação por meio da vida evangé-lica. Ele era aquele que, no início dos novos tempos, havia aspirado apermanecer na pobreza, para tornar-se parecido com Cristo em sua

22 GOBRY, Ivan. St. François d’Assise et l’esprit franciscain. Paris: Seuil, 1957, p. 82.

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vida23. O fundamento central de uma série de capítulos – o qual repre-senta, por sua vez, uma série de pressupostos vinculados ao grupo Es-piritual – é, portanto, a figura de Francisco, ressaltando seu papel re-novador e o espírito de pobreza evangélica.

Entre os séculos XIII e XIV, as duas celebrações mais importantese difundidas na literatura franciscana – e profundamente conectadasuma à outra – eram aquela de Francisco de Assis como o anjo do sextosigilo anunciado pelo Apocalipse e aquela de renovator vite Christi.Ambas as celebrações constituíam, entretanto, faces de uma mesmaepifania: aquela da segunda manifestação de Cristo no espírito da per-feição evangélica: “no princípio do sexto estado um homem angélicoseria dado ao mundo, relacionado a Cristo pela concórdia, pois surgi-ria unicamente como o renovador da vida de Cristo”24.

23 THOMAS, Hans Michael. Op. cit., p. 13.

24 “(...) patet quod illuminatio data Ioachin dicit in principio sexti status unum angelicumvirum mundo dari, quem Christus per concordiam respicit, quare vite Christi renovatorsingulariter apparebit” (Arbor vitae..., V, 3, 421a). Além dessas duas manifestaçõesprincipais, Ubertino propõe outras periféricas, a saber, associando Francisco a diversospersonagens bíblicos. Em cada uma dessas figuras ele pretende colocar em evidêncianão somente a profunda renovação produzida na história a partir de sua vinda, mastambém o desenvolvimento contraditório de sua experiência, mal compreendida erefutada pela maior parte de seus seguidores. Assim, a vocação de Francisco é compara-da àquela de Mateus. De acordo com Ubertino, o chamado de Mateus representa umfato novo em confronto com a escolha dos Apóstolos precedentes, escolhidos entrepescadores. Ao chamar Mateus, o Senhor manifestava de modo particular sua piedade,uma vez que escolhia, como seu Apóstolo, um pecador público. Ubertino compara ocaso com o chamado de Francisco, o qual era filho de um próspero comerciante. Damesma forma que não faltou o escândalo entre os fariseus e escribas em virtude dochamado de Mateus, assim, também deveu ser motivo de escândalo que Cristo, aoescolher Francisco, tenha voltado sua preferência aos pecadores e aos simples. Para aidentificação de Francisco ao anjo do sexto sigilo, recorrente sobremaneira no quintolivro da Arbor vitae, Ubertino apóia-se, em primeiro lugar, na autoridade de Boaventura,citando, para tanto, uma pregação realizada em Paris no dia 16 de maio de 1266, porocasião de um capítulo geral – no qual, pela primeira vez, teve-se notícia de Pedro deJoão Olivi. O próprio Boaventura, em sua Legenda S. Francisci, opera a identificação

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A identificação de Francisco como renovator vite Christi faz suasprimeiras aparições ainda no século XIII, quando os autores, de ma-neira geral, rejeitavam referências escatológicas e elencavam osparalelismos entre Cristo e Francisco de Assis a partir de uma perspec-tiva puramente devocional. Isso significava, por um lado, ressaltar acoerência e a continuidade externas presentes entre os dois persona-gens, e por outro, recusar qualquer referência escatológica que pudesseassociá-los de maneira histórica e necessária. Afirmar que Franciscofosse o vite Christi renovator não significava somente que Francisco,por seu apostolado, tivesse restaurado a vida segundo o Evangelho,mas que ele recomeçara a história do Cristo, no sentido da leiturajoaquimita da história do mundo25. Para os Espirituais, Francisco erao novo Cristo. Assim como na segunda idade surgira o homem novoJesus Cristo, com uma vida nova, da mesma forma, no sexto estado,surgiu o homem novo Francisco de Assis, com o estado evangélico,configurado de acordo com Cristo em sua carne. Ubertino de Casaledesejou conectar tal identidade Cristo-Francisco à sua perspectiva

entre Francisco de Assis e o anjo do sexto sigilo, “ascendente do leste e tendo o sinal doDeus vivo”. Tal asserção acabou por tornar-se uma bandeira entre os EspirituaisFranciscanos, sobretudo para Pedro de João Olivi e Ubertino de Casale. Isto, por suavez, acabou por contribuir para colocar as Ordens Mendicantes, em especial aFranciscana, no papel de novas ordens de frades espirituais. Francisco e Domingospassaram, com efeito, a ser encarados como os dois profetas de uma nova era, Enoch eElias, a desempenhar um papel fundamental naquela idade da Igreja. Além disso,Ubertino reivindicava análogo parecer da parte de João de Parma, para o qual, confor-me Ubertino, não só o sexto sigilo teria tido início com Francisco e sua Ordem, comotambém a iniquidade da Igreja deveria consumar-se através da transgressão da experi-ência e da Regra do Pai Seráfico, levadas a cabo por aqueles franciscanos que se haviamafastado da obediência estrita e por prelados perversos que agiram no sentido de favo-recer a transgressão.

25 VAN DIJK, Willibrord-Christian. “La répresentation de Saint François d’Assise dansles écrits des Spirituels”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels– ca. 1280-1324. Privat Editeur, 1975, p. 220.

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cristocêntrica acerca da história da Igreja. Esta resumia-se em situar oadvento de Cristo como evento central e fundamental, não determi-nado pela queda original, e tampouco subordinado às vicissitudes da traje-tória humana. Além disso, o reconhecimento de Francisco como o alterChristus deve ser lido à luz da teoria do tríplice advento de Cristo. Assim,com base em seu cristocentrismo, Ubertino propõe três adventos paraCristo, a saber, o primeiro na carne a fim de redimir o mundo e fundar aIgreja; o segundo no espírito da vida evangélica, que reforma e conduz àperfeição a Igreja antes maculada; o terceiro no juízo, conferindo glória aoseleitos e selando tudo26. Este segundo advento corresponderia, portanto, àreforma da Igreja por obra de Francisco de Assis, e em seguida dos viriseraphici, no sexto e no sétimo tempos.

Ubertino pode ser considerado, a partir dessa perspectiva, comoherdeiro de toda uma tradição franciscana que atribui determinadopapel a Francisco no desenrolar dos acontecimentos quando do ocasodos tempos. De acordo com tal tradição, seguida pelo frade e queremonta a frei Leão, o autor da Arbor vitae espera uma ressurreição euma ascensão de Francisco, prelúdio de um novo Pentecostes: “pelaevidente ressurreição e nova e sublime ascensão [de Francisco] commuita alegria esperamos o Pentecostes do Espírito Santo”27.

O caráter absolutamente evangélico da Regra pressupõe, portanto,indicações muito precisas nos planos das convicções e do comporta-mento do fiel. Assim, a doutrina cristã coincide com o Evangelho e,consequentemente, com a Regra evangélica de Francisco de Assis. Masa chamada lex Evangelii não fora jamais superada, sendo o modelo da

26 Arbor vitae..., V, 1, 413b. A leitura do advento enquanto acontecimento indepen-dente da queda do homem, pelo pecado original, representa, ainda, um aspecto impor-tante da tradição teológica franciscana, tendo em Boaventura seu expoente principal.

27 “cuius claram ressurrectionem et ascentionem sublimem et novam Spiritus sanctipentecostem cun multo gaudio expectamus” (Arbor vitae..., 1, 419a).

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vita apostolica aquele que em mais alto grau conduz à perfeição nointerior da experiência religiosa comunitária, consistindo em repercorrera vida de Cristo e dos Apóstolos. Esta precisão é importante, uma vezque estabelece a vita apostolica como modelo mais alto de experiênciareligiosa comunitária, ao mesmo tempo que se volta contra todoespiritualismo que presuma superar a vida e a experiência dos primei-ros Apóstolos. Dessa forma, a singularidade da experiência dos Após-tolos marcava sua superioridade em relação aos santos do sexto estadoe aos chamados viri seraphici descendentes de Francisco de Assis. As-sim, os Apóstolos, pela proximidade que tiveram com Cristo e pelamissão recebida por eles, não possuem termo de comparação. Ubertinosustenta apenas que, nos primeiros tempos, a massa dos convertidosnão possuía ainda aquela disposição interior que permite compreendere praticar a perfeição cristã em sua totalidade e altitude. Contudo, nãofaltam murmurações e repreensões. Assim, a segunda parte do pensa-mento em questão refere-se às murmurações dos fariseus antigos con-tra Cristo, bem como as murmurações dos fariseus recentes – a Co-munidade – contra Francisco e contra os seus filhos autênticos – osEspirituais. Tais críticas conduzem Ubertino a escrever que não há umpensamento mais triste do que crer que Cristo tenha sido chamado aomundo para chamar os pecadores e os simples com o fito de impedir-lhes de usar de misericórdia28.

Em associação a isso, Ubertino identificou Francisco também a figu-ras do Antigo Testamento, tais como Abraão, que teve dois filhos, um dosquais Ismael, ilegítimo, que lutou com Isaac, legítimo. Da mesma forma,Francisco teria tido uma dupla descendência: aqueles que, na Igreja e nointerior da Ordem, transgrediam a Regra e perseguiam os filhos legítimos;e estes últimos, que eram identificados com os Espirituais, que guardavam

28 Arbor vitae..., III, 5, 167b-168a.

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os preceitos originais da Regra, cumprindo, com isso, a lei evangélica.Observa-se também o paralelismo com Benjamim que, nascendo, fezmorrer sua mãe, Raquel, assim como Francisco, cujo advento no interiorde uma Igreja degradada, faria com que esta desaparecesse, cedendo lugar àIgreja dos viri spirituales29.

É preciso ressaltar, ainda uma vez, que a perspectiva de Ubertinode Casale é eminentemente cristocêntrica, encontrando-se ausente qual-quer eventual pretensão de antepor Francisco a Cristo. É, com efeito,o contrário que se processa, uma vez que o elemento que Ubertinomais admira em Francisco é justamente seu modelo de vida conformeCristo e seu Evangelho.

É notável, com efeito, no interior do grupo espiritual, a identifica-ção entre imitatio e sequela Christi (os dois termos são tomados comosinônimos nas cartas de Ângelo Clareno). Assim, a plena identificaçãocom Cristo encontra-se relacionada a concrucificar-se com ele. A cruzé, portanto, tomada como elemento central, fundamento com o qualcoincide perfeitamente a Arbor vitae de Ubertino de Casale. Assim, oseguir implica na escolha de um caminho que, uma vez corretamentepercorrido, conduz à cruz. De acordo com a Carta 1, trata-se decondividir o mistério da sua paixão, cruz e morte30, e até mesmo che-gar a ser crucificado juntamente com Jesus Cristo31, tornando-se, des-sa maneira, filho de Deus32. O nexo evangélico seguimento-cruz é tam-

29 Ibidem, V, 3, 424a. No terceiro livro, Francisco é também comparado a Moisés e aSalomão (Arbor vitae..., III, 13, 228b).

30 CLARENO, Angelo. Carta 1, p. 3, rr. 2-4, apud: POTESTÀ, Gian Luca. AngeloClareno: dai poveri eremiti ai fraticelli. Roma: Istituto Storico Italiano per il Medioevo,1990, p. 63.

31 Gl 6,14 (“Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão da cruz de nosso SenhorJesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo”).

32 1Jo 1,12 (“Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus”).

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bém proposto por intermédio do postulado de Mt 16,24 (“Se alguémquer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.”),o qual, juntamente com Mt 19,21 e Lc 14,2633, representa o funda-mento da via seguida por Francisco, conforme a Regra não bulada. Aidéia de uma plena identificação com Cristo, chegando-se a ser crucifi-cado com ele, reporta às matrizes paulinas da reflexão de Clareno34.De acordo esta perepctiva, os termos christiformis/christiformiter –cruciformis/cruciformiter, substancialmente eqüivalentes, são insistente-mente enunciados a fim de indicar o estilo da vida que o fiel é chama-do a percorrer seguindo Cristo. A cruz encontra-se, portanto, relacio-nada com a perfeição evangélica: “onde o exemplar perfeitíssimo é avida daquele que teve um cruciforme início, meio e fim”35. Em Ânge-lo Clareno, assim como em Ubertino de Casale, o cristocentrismocoincide com a visão da cruz como elemento fundamental. Acentralidade atribuída à cruz confere uma marca indelével, seja àcristologia de Clareno, seja à sua proposta de vida evangélica. A divin-dade revela-se, por meio dela, em sua condição de máxima exinatio. Acruz ultrapassa toda medida humana. Dessa forma, aquilo que é altodo ponto de vista humano não o é do ponto de visto do Deus crucifi-cado. Ao mesmo tempo em que revela a autêntica glória de Deus, acruz transforma aqueles que dela participam em filhos de Deus e her-

33 “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro noscéus. Depois, vem e segue-se”; “Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai emãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo”(CLARENO, Angelo. Carta 3, p. 13, rr. 28-29; Carta 13, p. 67, rr. 6-7; Carta30, p.159, rr. 23-24; Carta 44, p. 212-213, rr. 36-7; Carta 47, p. 232, r. 11; Carta 64, p.300, rr. 10-11, apud: POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno..., p. 63).

34 Para Gl. 6,14, Carta 54, p. 271, r. 22, apud POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno...,p. 62.

35 “Unde perfectissimum exemplar est vita eius que habuit cruciforme initium, mediumet finem” (CLARENO, Angelo. Carta 41, p. 199, rr. 27-29, apud: POTESTÀ, GianLuca. Angelo Clareno..., p. 62). Assim, é através da experiência da cruz que Franciscoatinge a mais íntima união com Jesus.

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deiros do Reino. A vida evangélica, indicada de modo especial aoscompanheiros, culmina, portanto, na experiência da cruz, por inter-médio da qual o fiel chega a experienciar a glória divina. Ao postular acruz como ponto de referência fundamental, Clareno repropõe a men-sagem de Francisco conforme a tradição interpretativa específica dosEspirituais Franciscanos36.

É possível, em contrapartida, que a ressurreição de Francisco deque nos fala Ubertino, bem como os demais, constitua uma ressurrei-ção mística, não devendo, nesse caso, ser entendida em sentido estrito.Ela figuraria, portanto, como um dos ideais franciscanos no interiorde uma Ordem degenerada: “Nós temo-lo visto, sem jamais pensarem exaltar Francisco acima de Jesus, aplicar-se a ele de formainconsiderada, num entusiasmo cândido, as palavras da Escritura queconcerniam ao Salvador: após ter falado dos profetas, dos Apóstolos,dos doutores e dos santos, eis que o Cristo nos fala hoje de seu filho, oseráfico Francisco (...); é-nos necessário revestir os sentimentos do bem-aventurado Francisco, ele que, após ter vivido no mundo ‘in formaChristi crucifixi’, recebeu então um nome glorioso no céu, ele, cujaglória nós contemplamos, como de um filho único, recebido de seuPai Jesus Cristo (...). Havia ali, verdadeiramente, algo além de inocen-tes transposições, um excesso de linguagem e de imaginação simbóli-ca, seguindo uma tradição já bem estabelecida na ordem? Todavia, nointerior de uma atmosfera exaltada, tais metáforas poderiam acarretaruma perigosa carga emocional”37.

O valor histórico-escatológico atribuído a Francisco transforma-va-o em iniciador de uma nova experiência de vida religiosa. Nesse

36 POTESTÀ, Gian Luca. Angelo Clareno..., p. 64.

37 LUBAC, Henri de. La posterité spirituelle de Joachim de Fiore: de Joachim à Schelling.Paris: Lethielleux, 1978, p. 105.

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aspecto, observamos o distanciamento em relação a Boaventura, queconsiderava Francisco como exemplo individual e modelo atemporal.A perspectiva histórico-escatológica de Ubertino o conduz, portanto,a acentuar o projeto eclesial de Francisco, bem como os desvios pro-cessados no interior da Ordem. O interesse que Ubertino nutre pelomovimento franciscano é tal que, ao expor a vida de Francisco, eleomite muitas notas biográficas, referentes à juventude e à conversão,bem como à morte e à canonização. Contudo, o valor histórico eescatológico atribuído ao santo, enquanto iniciador de uma nova ex-periência religiosa, o conduz a alterar a idéia central de Boaventura.Trata-se de uma diferença muito acentuada de perspectivas. ParaBoaventura, Francisco deve ser observado como uma figura tranquila,um modelo atemporal de santo que, com o exemplo de suas virtudes,clama à ascese e à mortificação individual, a partir de uma dimensão,contudo, sobrenatural, estranha às vicissitudes da Ordem; Ubertino,em contrapartida, volta sua atenção para a figura dilacerada de Francis-co, com o fito de compreender e valorizar seu projeto eclesial, bemcomo de demonstrar de que forma sua intenção original encontrava-sedistante das realizações históricas concretas. Assim, a importância daOrdem Franciscana no contexto da renovação da Igreja é tal que “Isra-el será convertida com os espólios do povo, e surgirá, cristiforme, pormeio da vida e da imagem de Jesus na regra evangélica reformada”38.

A Apologia pauperum de Boaventura consiste em uma defesa dosideais e práticas mendicantes contra as acusações dos mestres parisiensesao mesmo tempo que eleva a virtude da pobreza, conferindo-lhe valorinquestionável. Comparada com as idéias e o projeto atribuído a Fran-cisco, contudo, a Apologia representa uma mudança de bases: ao passoque o santo fundador da Ordem jamais pensara em conferir uma raisond’être para a pobreza – na medida em que a tomava como a própria

38 “Convertetur Israel cum reliquis gentium, et apparebit christiformis vita [et] imagoIesu in evangelica regula reformata” (Arbor vitae..., V, 1, 414a).

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pregação de Cristo e o fundamento da vida evangélica –, Boaventura ofez. Nesse sentido, a pobreza, de fim em si mesma e sua própria justi-ficação, era convertida em uma entre algumas vias pelas quais a perfei-ção de Cristo podia manifestar-se. Sendo a caridade o fundamento detoda bondade, Cristo teria reduzido a ela tudo aquilo que concernia àlei de Deus39. A perfeição – sempre subordinada à virtude da caridade –podia manifestar-se de forma absoluta (secundum se) – tal qual existiu emCristo –, mas também em vários graus entre os homens. Esta segundamanifestação poderia ser genérica (in genere) ou consoante as circunstânci-as (ex circunstantia)40. Dessa forma, a absoluta bondade (ou seja, a perfei-ção) e a absoluta maldade (ou seja, a imperfeição) seriam imutáveis, assimcomo a relativa perfeição e a relativa imperfeição seriam mutáveis. Portan-to, a genérica perfeição poderia, em certos casos, tornar-se imperfeição, namedida em que motivada pela vanglória; do mesmo modo, a genéricaimperfeição converter-se-ia em perfeição na medida em que pressupu-sesse sofrimentos gloriosos por Deus41.

Ubertino procura justificar a pobreza à luz da leitura do próprioEvangelho. Dessa forma, é sabido que, antes de Francisco, os crentesconheciam o Evangelho, o qual, entretanto, é uma mina profunda efértil. Assim, não se pode negar que as gerações anteriores ao santotenham absorvido do Evangelho figuras que também não são negadas

39 “Sciendum est igitur, quod radix, forma, finis, complementum et vinculum perfectioniscaritas est, ad quam magister omnium Christus Legem, Prophetas et per consequensuniversa Dei documenta reducit” (BOAVENTURA, S. Apologia pauperum contracalumniatorem, in: Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay, O.F.M.;Fr. Miguel Oromi, O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: Biblioteca de AutoresCristianos, 1949, p. 380).

40 Idem, Ibidem, p. 354.

41 “Cum igitur tam multiformiter dicatur tam perfectus quam imperfectus actus, clarumest, quod sicut malum in genere, potest fieri bonum ex circumstantia, ut occiderehominem quia maleficus est, et quia lex iubet et reipublicae confert, et e conversobonum in genere potest fieri malum ex circumstantia, utpote dare eleemosynam proptervanam gloriam” (Idem, Ibidem).

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por Francisco, tais como Cristo glorioso e juiz, pantocrator, entre outrosaspectos. Não obstante, o Evangelho lido e praticado por Franciscocolocava em relevo Cristo pobre, humilde e crucificado. Francisco fazia,portanto, da pobreza, o fundamento de sua própria vida e da própriaOrdem. Também Pedro de João Olivi apóia-se na leitura do Evangelhoa fim de justificar a prática da pobreza. Ela teria sido aconselhada epraticada por Jesus Cristo e figurava, portanto, nos escritos dosevangelistas. Assim, de acordo, respectivamente, com o Tractatus deusu paupere e com a nona questão42.

Assim, se a figura de Francisco sinalizava um alter Christus, isto nãoconsistia em fato que convinha simplesmente admirar, mas sobretudorepresentava um austero exemplo de vida a ser seguido. Assim, de acordoainda com Olivi, Francisco teria desejado repetir o Cristo não na glória desua grandeza, mas no sofrimento de sua humanidade e foi este sofrimentoque Francisco quis repetir entre os homens e indicar a seus irmãos comoexemplo. Assim, viver secundum formam sancti evangelii não significaria,para Francisco, somente a adesão à pobreza pregada pelo Evangelho, e simcompreender a pobreza como uma das maneiras – e até mesmo como amaneira mais acessível naqueles tempos – de aceitar o sofrimento, a dor ea humilhação: a maneira pela qual, se podia, naqueles tempos e naquelascondições de vida, realizar o sofrimento43.

42 “Constat enim multipliciter tam ex textu quam ex dictis sanctorum quod formaevangelice paupertatis tradita apostolis Matthei decimo, Nolite possedere aurum, et Lucedecimo, Nolite portare saccum, et Luce nono, Nihil tuleritis in via, et Marci sexto,Precepit eis ne quid tollerent in via, fuit eis imposita sub precepto, sed in eis fit expressioret vocalior mentio de paupere usu quam de abdicatione universalis dominii.(...) pauperisusus instar evangelii Christi in ea singularius explicantus, ut est vilitas indumentorumet coborum et nuditas calciamentorum et mutatoriorum et defectus equitationum etinterdictio usus pecuniarum (...)” (BURR, David (ed.). De usu paupere – The Quaestionesand the Tractatus. Firenze/Perth, 1992, p. 117).

43 MANSELLI, Raoul. “L’idéal du Spirituel selon Pierre Jean-Olivi”, in: Cahiers deFanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324. Privat Editeur,1975, p. 109.

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A difícil descoberta da pobreza, a resistência a ela inclusive porparte da hierarquia eclesiástica, a inspiração divina para seguir uma novavida são bastante evidenciadas no opúsculo Sacrum Commercium44,um tratado bastante sugestivo, e Ubertino possui o mérito, se não dehavê-lo descoberto, ao menos de revelar seu conteúdo a um certo nú-mero de fiéis. Assim, a pobreza, incompreensível aos contemporâneos– até mesmo aos devotos e fervorosos –, tornava-se a esposa de Fran-cisco e de Cristo, o qual a praticava desde o nascimento na manjedou-ra, em seguida em sua existência errante, e por fim a observava tam-bém no momento da morte, em que surgiu nu sobre a cruz, foi sepul-tado em túmulo alheio e, finalmente ressuscitou, deixando na tumbaaquilo que não lhe pertencia. Ubertino retoma especialmente o SacrumCommercium com o fito de fazer observar que nele é recordado o pre-coce abandono da pobreza por parte de certos Menores, oferecendo-seentão a ocasião para denunciar aquilo que considera como o relaxa-mento da Ordem e da Igreja.

Ubertino escreve sobre o opúsculo, afirmando que Francisco, comoexplorador acurado, começou uma busca, percorrendo praças das igrejase interrogando os eclesiásticos e o povo em geral a fim de apurar oquanto amavam a pobreza evangélica. Como somente obtivesse respostasdepreciativas do valor da pobreza, resolveu dirigir-se aos superiores, osquais, ao contrário do povo estulto, conheceriam a forma de vida deCristo. Mas eles próprios também consideraram impossível a vida sema posse de bens temporais. Francisco, entretanto, maravilhado e ébriopela pobreza de espírito, voltou-se para Jesus em sua oração. Invocando-

44 O título completo da famosa opereta é Sacrum commercium sancti Francisci cumdomina Paupertate. Seu autor, bem como a data da composição, permanecem incertos.Alguns, provavelmente sugestionados por um certo frescor que emanaria do escrito,querem situá-lo nos anos imediatamente posteriores à morte de Francisco (1226);outros, influenciados por uma certa apreensão que emana de suas páginas, preferemassinalar um período posterior, entre 1260 e 1270.

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o, pediu-lhe que lhe mostrasse a pobreza, pois encontrava-se cheio deamor por ela, não encontrando a paz sem ela. Menciona como a pobrezaacompanhara fielmente Cristo durante toda a sua vida, e pede para serassinalado com o privilégio de amá-la mais do que qualquer outracoisa; que fosse próprio dele e dos seus nada possuir sob o céu, bemcomo nutrir-se com coisas alheias, sempre respeitando o uso pobre45.

Assim, os confrontos conduzidos por Ubertino pressupõem a preo-cupação em definir o papel de Francisco em contraste com o encaminha-mento dado posteriormente pela Ordem. Nos dizeres de Potestà, “mos-trar a função histórico-salvífica de Francisco em relação à sua própria épocae ao mesmo tempo a responsabilidade da Ordem, que não soube compre-ender-lhe o significado profundo, interpretando redutivamente o seuensinamento. Nenhuma dessas celebrações visa, portanto, confinar Fran-cisco no papel de um modelo pessoal inimitável, mas pretende antes mos-trar o projeto eclesial que ele possuía, concebido concretamente, e aincompreensão à qual este se encontrava submetido”46.

De acordo com Ubertino e as correntes espirituais em geral – mastambém de acordo com a essência do movimento e da Ordemfranciscanos –, o voto de pobreza comporta três elementosfundamentais. Em primeiro lugar, a renúncia à propriedade; em segundolugar, a renúncia ao direito de possuir – inclusive qualquer coisa queeventualmente, por exemplo, através de um testamento, possa serrecebida no futuro; em terceiro lugar, o uso pobre das coisas oferecidase das quais o menor se serve.

Olivi, reivindicando a autoridade dos escritos de alguns santos,expressa-se de maneira semelhante em seu Tractatus de usu paupere.Ele procura fundamentar a prática da pobreza como legado deixadopor Cristo, a qual se encontra imbuída da interdição à propriedade e

45 Arbor vitae..., V, 3, 423b-424.

46 POTESTÀ, Gian Luca. Storia..., p. 120.

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ao direito de possuir e da obrigatoriedade do uso pobre47. De acordocom Ubertino, o usus pauper consistia na prática de vida e uso dascoisas enquanto necessidades – usus facti. Não representava um simplesato, e sim um modelo de vida a ser seguido, um modelo de pobreza eoposto à riqueza. Mais do que uma mera obrigação moral ex bono etequo, ele era inerente ao voto de pobreza. Este, por sua vez, eraconsiderado de maneira equiparável aos votos de obediência e decastidade. Assim como estes últimos, o voto de pobreza deveria serintegralmente observado, uma vez que assim como somente àqueleque não fez voto de castidade é permitido ter uma esposa, de igualmodo somente àquele que não prestou juramento à pobreza épermitido possuir bens48. Do voto de pobreza sem a prática do ususpauper encontrava-se excluída a perfeição, e esse era o teor da críticadirigida aos Conventuais de seu tempo.

Trata-se, também, e em escala semelhante, da crítica dirigida porPedro de João Olivi àqueles frades que pretendiam que o voto de

47 “Ubi et adiunxi tres auctoritates, unam Ieronimi, aliam Chrisostomi, alteram Eusebii,in quibus expresse dicitur quod in illo verbo, Nolite solliciti esse, etc., prohibuit eisChristus non cogitare de futuris, hoc est non providere sibi in futurum pro necessitatenondum iminente, quod utique spectat ad modificationem usus non minus quam adabdicatonem dominii. (...) Christus abdicaverit a se et ab apostolis omne temporaledominum et omnem facultatem seu possibilitatem acquirendi ipsum nisi per summosescessus pauperis usus eorum, unde et omnes magistri nostri quando volunt probarequod in pauertate Christi et apostolorum includitur abdicatio proprietatis in speciali etin communi, semper recurrunt ad auctoritates illas que expressius de paupere usuloquuntur quam de abdicatione iuris habiti vel possibilis haberi, quod nisi timeremnimiam proplixitatem luce clarius ostenderem pertractando in speciali omnes auctoritatesque de paupertate Christi vel apostolorum vel utrumque simul in laudem paupertatisevangelice comuniter a doctoribus vel disputantibus assumuntur, quarum plures recitaviin quarta parte prime questionis de paupertate, et ubi necesse fuerit paratus sum eas adpropositum applicare” (BURR, David (ed.). Op. cit., pp. 117-119).

48 LEFF, Gordon. Heresy in the Later Middle Ages: The Relation of Heterodoxy toDissent c.1250 – c.1450. Machester: Manchester University Press; New York: Barnes& Nobles, 1967 (2 vols.), p. 145.

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pobreza se sustentasse de forma independente do uso restrito das coi-sas colocadas à disposição dos Menores. Assim, na Quaestio de usupaupere, na chamada nona questão, Olivi defende o usus pauper comoelemento inseparável do voto de pobreza49.

E, mais adiante, observamos a definição feita pelo frade do queseria o usus pauper, ou seja, a forma de vida professada na Regra deFrancisco de Assis e manifesta no voto professado pelos Franciscanos:“Na verdade, este é prever que nunca recebam ou tenham além daqui-lo que a necessidade presente exige (...) não possa receber coisas parauso a não ser exclusivamente para a presente e extrema necessidade”50.

Assim, a obediência à Regra consistia em observar o voto de po-breza, do qual não se podia excluir, por conseguinte, o usus pauper. Adesobediência a esse preceito implicava, necessariamente, em incorre-ção na observância da Regra. Assim, Olivi, apoiando-se no frade Gui-lherme de Mara – o qual retirara parte de suas idéias do Quolibet I deTomás –, defende o cumprimento pelos frades do voto contido naRegra, consistindo em pecado mortal o atentado contra ele51.

Com efeito, Ubertino não menciona frequentemente a pobreza, fa-zendo, antes, alusão a categoria como penuriosa paupertas, penuria usus ouusus pauper. Não se trata de uma precisão de pouca monta, seja no plano49 “Nono queritur an usus pauper includatur in consilio seu voto paupertatis evangeliceita quod sit de eius substantia et integritate (...) Nichil inducens in evidentia periculamultarum transgressionum et peccatorum est expediens ad perfectionem nec spectansaliquo modo ad evangelica consilia et vota” (BURR, David (ed.). Op. cit., p. 3).50 “Hoc enim est vovere quod nunquam res recipiantur vel habeantur nisi quantumpresens necessitas exigit (...). non posse recipere res ad usum nisi solum pro presenti etextrema necessitate” (Idem, Ibidem).51 “Est ergo considerandum quidsit illud ad quod religiosus voto professionis se adstringit.Et si religiosus profitendo voveret se regulam servaturum, videretur se obligare voto adsingula quae continentur in regula, et sic, contra quodlibet eorum agendo, peccaretmortaliter.” (...) Facere contra votum est peccatum mortale; sed religiosi voto professionisadstringuntur ad regulam; ergo peccant mortaliter transgrediendo ea quae in regulacontinentur” (DELORME, P. Ferdinandus M., O.F.M. “Fr. P.J. Olivi Quaestio devoto regulam aliquam profitentis”, in: Antonianum, XVI, 1941, p. 134).

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teórico, seja no plano histórico: tal qualificação acabara por provocar umaceso debate entre os Menores nos séculos precedentes. No entender doschamados zelantes – tais como Ubertino e os Espirituais – tornou-se bas-tante claro que a pobreza, entendida como renúncia jurídica à propriedadee ao dinheiro, não era suficiente, se se queria evitar a hipocrisia, traduzindoisso por afirmar-se pobre, mas conduzir uma vida bastante confortável eopulenta. Tamanha era a multidão que frequentava o convento, tamanhaa generosidade de seus benfeitores, que o convento, embora legalmenteprivado de propriedades e de dinheiro, podia fornecer uma existência com-pletamente livre de privações. Daí a convicção dos Espirituais de que apobreza, para ser efetiva, para além de impor àquele que a professava arenúncia legal aos bens terrenos, deveria exigir necessariamente um usonão somente frugal – esta é uma obrigação para todos os cristãos –, massobretudo pobre dos bens que pertencia a outros, principiando pelas rou-pas e alimentos. O uso pobre, portanto, torna-se parte integrante do votode pobreza. De resto, uma paupertas penuriosa havia sido praticada tantopor Francisco quanto por Cristo.

Da mesma forma, Pedro de João Olivi procurou coadunar a au-sência de propriedade e o usus pauper, de forma a compor o ideal daaltissima paupertas. É o que consta do Tractatus de usu paupere52.

52 “Videsne quam expresse et quam absolute diffiniunt quod curiositas et superfluitasdirecte obviant paupertati? Non dicunt a latere vel oblique sed directe. Non dicuntquod non congruant sed quod obvient, et tamen constat quod paupertati pro quantodicit abdicationem iuris in proprio vel communi directe non obviant, sed solum proquanto dicit abdicationem usus superflu et curiosi. Patet igitur quod in paupertateregule nostre sine scrupolo alicuis dubietatis includi et significari sentiebant usumpauperem seu moderatum propter quod tanquam pro gravi et enormi offensa tanquampenam tanquam stricte imposuerunt. (...) In precedentibus etiam et subsequentibusfrequentissime ponit usum necessarium, et numquam concedit quod possit tradi pecuniapro opulentia in eis fovenda, sed solum pro necessitatibus ipsorum presentibus velimminentibus, sicut patet ubi agit de personis nominandis vel subrogandis ad elimosinaspecunie recipiendas. Ibi enim semer ponit quod pro necessitatibus ingruentibus velimminentibus hoc fiat (...) Ecce quod ubique innuit quod etiam illa quod huisusmodipecuniariis licent non liceant nisi pro solis necessitatibus, non autem pro opulentiis velsuperfluitatibus. (...) Sed evangelica paupertas in se essentialiter includit usum pauperemvel moderatum” (BURR, David (ed.). Op. cit., pp. 102-103; p. 113; pp. 147-148).

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Esses representam alguns exemplos de como o voto de pobreza,para além da mera recusa da propriedade e do direito de possuir, presu-miria o chamado usus pauper, que consiste no uso moderado – e visan-do às mais prementes necessidades – das coisas que eram colocadas àdisposição dos frades. Conseqüentemente, o usus pauper deveria inte-grar o voto de pobreza na condição de elemento inseparável deste,figurando como pressuposto para o cumprimento da verdadeira po-breza evangélica. Dessa forma, não se poderia negar o usus pauper, outentar excluir sua observância do voto de pobreza. De acordo comOlivi, no Tractatus de usu paupere, tal atitude “em primeiro lugar,significa destruir a doutrina, a perfeição e vida evangélica. (...). Emsegundo, é verdadeira apostasia. (...). Em terceiro, é a inclinação damultidão ao novo e ruinoso lapso e, em conseqüência, ao escândalouniversal do orbe, subversivo tanto aos costumes quanto aos fiéis. (...)Em quarto, é nutrir e incitar todo relaxamento, torpeza e imperfeição,e favorecer a vida ociosa, carnal e não devota. Em quinto, é difamaçãopública de nosso estado e de todos os nossos. (...) Em sexto, é arma deexcitação e de incitação para nossos detratores e adversários. (...) Emsétimo, é a preparação do caminho para a seita infernal do anticristo”53.

Ubertino afirma que, em seu tempo, vigorava uma monstruosadoutrina, a qual estabelecia que o uso pobre não se encontrava inclusono voto de perfeição da altíssima pobreza, imposta aos apóstolos eprofessada na Regra por Francisco. Apoiava-se, ainda, na autoridade deHugo de Digne, o qual, em sua obra De finibus paupertatis, concluíra

53 “Primum est exterminatio evangelice doctrine, perfectione et vite (...). Secundum estvera apostasia. (...) Tertium est inclinatio multitudinis ad novum at ruinosum lapsumac per consequens ad universalis orbis scandalum tam morum quam fidei subversivum.(...) Quartum est nutrimentum et incitamentum omnis laxationis, tepiditatis etimperfectionis, et hoc potissime viventibus otiosis, carnalibus et indevotis. Quintumest publica diffamatio nostri status et omnium nostrum. (...) Sextum est armamentumanimativum et incitativum detractorum et adversariorum nostrorum. (...) Septimo estpreparatio vie ad infernalem sectam antichristi” (IDEM, Ibidem, pp. 147-148).

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que o frade Menor, uma vez que não possuía nada sob o céu, assim,pelo seu voto, deveria observar o caráter da pobreza referente ao usopobre e restrito54.

De acordo com Ubertino, Cristo havia transmitido a pobreza comoregra de vida a Maria e aos apóstolos. Pode-se acrescentar, ainda, que, porintermédio de seu exemplo, não deixara de advertir que aquele que sededicava a uma vida de perfeição deveria seguir o critério do uso pobre.Entre as virtudes que Jesus teria trazido ao mundo, encontravam-se oamor à altíssima pobreza e a observância à mesma pessoalmente e na pes-soa de sua santíssima mãe, bem como entre os discípulos, especialmentenos Apóstolos55. A afirmação de que a pobreza fora instituída por Cristoaos Apóstolos é uma tônica não só espiritual mas também franciscana deuma forma geral. É assim que observamos Olivi, em seu Tractatus de usupaupere, citar Boaventura a fim de sustentar a tese de que o estado depobreza era inerente à vida dos companheiros de Cristo56.

54 Arbor vitae..., V, 6, 443b-444a. Trata-se, ainda, da temática da nona questão emOlivi: BURR, David (ed.) Op. cit., p. 14.

55 Arbor vitae..., III, 9, 184a.

56 “‘Sancte autem paupertatis exemplar et forma in vita recessit apostolorum, quamperfectionis magister Christus eisdem instituit quando ipsos ad predicandum misit,sicut legitur in Matheo, Nolite inquit possidere aurum, etc., ubi glossa, Propemodumnecessaria vite amputat, ne vel curent de crastino qui docent omnia regi a Deo, nec ipsanecessaria nec cellarium secum vehant, nil preter vestimentum nec etiam minima.’Quibus premissis subdit Bonaventura, ‘In hiis igitur verbis domini apostolis etpredicatoribus veritatis extreme ac penuriose paupertati formam servandam imponitquantum ad carentiam non solum possessionum sed etiam pecuniarum et aliorummobilium quibus sustentari vel communiri solet communi vita hominum, ut tanquampauperes in summa rerum constituti essent et sine calciamentis incederent, ut sicpaupertatem altissimam actu et habitu quasi quodam perfectionis insigne preferent,hanc paupertatis normam tanquam speciali prerogativa perfectam et Christus in seipsoservavit et apostolis servandam instituit et hiis qui eorum cupiunt immitari vestigiaconsulendo suasit. Deinde ista tria scilicet quod in seipso servavit, et quod apostolisservandam instituit, et quod aliis consulendo suasit, probat per plures auctoritatessanctorum’” (BURR, David (ed.). Op. cit., p. 94).

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Ubertino insiste, ainda, na questão do usus pauper, a ponto demanifestar seu desejo de impor a todos os prelados uma pobreza emcerta medida não diferente daquela dos Menores. Entre outras coisas,ele lembra que os prelados devem considerar-se como advenae etperegrini, e respeitar o uso pobre. Recorda que o acúmulo de esmolasé contrário ao espírito evangélico, ratificando dessa forma a necessida-de do usus pauper. Os prelados, por sua vez, defenderiam as própriasposses alegando que não se trata de bens pessoais, e sim comuns, per-tencendo, na verdade, à Igreja. Ubertino reconhece-o, mas isso nãobasta para livrá-los do pecado do fausto, dado que até mesmo o cultoa Deus deve ser privado de pompa57.

Ubertino tornara a pobreza inseparável do uso, assim como aperfeição encontrava-se subordinada ao ideal de vida conforme oexemplo de Cristo58. Ela requeria hábitos rotos, ausência de residênciafixa, andar a pé, receber esmolas, mas nada guardar para provisão. Tudoisso fazia dele um radical, ao mesmo tempo entusiasmado pelo seuideal e indignado pela sua transgressão. Examinado a fundo, ele possuíaas próprias fontes franciscanas a seu lado, tendo em vista o teor e osignificado da figura de Francisco de Assis.

Uma das peculiaridades de Ubertino em relação aos escritos queele utiliza consistia em ressaltar e acentuar a intentio profunda de Fran-cisco, seu projeto formulado para a Ordem. Paralelamente, pressupu-nha buscar os motivos de sua falência, que para ele parecia, naquelemomento, inegável. Naturalmente, procurava a responsabilidade sub-jetiva para o desvio em relação ao projeto original do santo fundador,não chegando a considerar a possibilidade ou não de compatibilidade

57 Arbor vitae..., II, 3, 94a.

58 Também de acordo com Pedro de João Olivi, o usus pauper identificava-se à perfeição,a saber: “paupertas penuriosa valet ad exercicium perfecte virtutis” (BURR, David(ed.). Op. cit., p. 96).

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entre a sociedade eclesiástica de sua época e o Francisco presente emseus escritos. É importante, em contrapartida, sublinhar o valor e osignificado de seu engajamento. Assim, aquilo que é relevante paraUbertino é relevar os aspectos que, para Francisco, deveriam fazer daOrdem um novo povo, “que fosse dissimilar em humildade e pobrezade todos aqueles que o precederam”59.

Dessa forma, ao mesmo tempo, observa-se uma tendência a rei-vindicar para a Ordem seu caráter diferencial em relação às demaisOrdens, passadas e de seu tempo, e também por oposição ao clero deuma forma geral. Com efeito, após dedicar algumas colunas à humil-dade e à pobreza de Francisco60, Ubertino concentra-se sobre estas vir-tudes evangélicas, as quais, se tivessem sido transmitidas à Ordem emseu complexo, torná-la-iam uma entidade absolutamente nova no corpoda Igreja. Assim, a considerar a especificidade da concepção de Francis-co, a Ordem, segundo Ubertino, se se houvesse apoderado adequada-mente das virtudes da pobreza e da humildade, converter-se-ia numaentidade absolutamente nova no corpo da Igreja Católica. Emcontrapartida, como não se observasse tal ocorrência naquele momen-to, era justo supor que, à medida que relaxava em relação à observânciaestrita, perdia, progressivamente sua identidade no seio da instituiçãoeclesiástica, confundindo-se com as demais Ordens e até mesmo como clero secular61. À medida que seus componentes se dirigiam para avia prelationis, inclinavam-se aos estudo e passavam a viver em estabe-lecimentos urbanos, a Ordem se aproximava à forma de vida e decomportamento de outras ordens, e perdia suas características indivi-duais originais. A recusa de tais elementos pelo próprio Francisco de-

59 “Qui esset dissimilis in humilitate et paupertate ab onibus aliis qui precesserunt”(Arbor vitae..., V, 3, 427b).

60 Ibidem, 423b-425a e 425b ss.

61 Ibidem, 422b-423.

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monstrava uma consciência da função histórica absolutamente novaque o movimento desempenhava no conjunto da Igreja, pois, ao citaro Pai Seráfico, Ubertino assim afirma: “[Jesus Cristo] disse a mim quedesejava dar ao mundo, por nosso intermédio, uma perfeição nova enão experimentada nos tempos anteriores da Igreja”62.

Pedro de João Olivi também concebia a Ordem como imbuídade uma série de características que a diferenciavam e conferiam-lhe umpapel especial no interior da vida da Igreja. Assim, a Ordem Franciscanaencontrar-se-ia dotada de uma característica própria e excepcional, deforma que deveria exercer no interior da Igreja uma função diferentedaquela das outras, respondendo às necessidades mais profundas dainstituição eclesiástica63.

Assim, a crítica de Ubertino ao amor aos livros não deve ser con-fundida com simples antiintelectualismo; ela revelava a preocupaçãocom o desvirtuamento da Ordem. Francisco teria previsto que da in-tenção de saber originar-se-ia um novo fundamento para a Ordem,bastante diverso daquele originário, marcado pela minoritas. Assim,uma narrativa a respeito do irmão Leão, um dos primeiros compa-nheiros de Francisco, afirma: “E eu [frei Leão] já fui tentado a terlivros. Mas porque disto resultava conhecer a vontade do Senhor, [me-lhor era] carregar o livro onde se encontravam a escrita do evangelhodo Senhor (...)”64.

Igualmente, a via prelationis seria conducente à perda da identidade daOrdem face ao mundo e à Igreja. Além disso, o ingresso no mundo secu-

62 “[Iesus Christus] dixit mihi quod unam perfectionem novam per nos volebat daremundo prioribus temporibus ecclesie inexpertam” (Ibidem, 7, 499b).

63 MANSELLI, Raoul. “L’idéal...”, p. 109.

64“Et ego [fra Leo] iam tentatus fui habere libros. Sed ut de hoc cognoscerem dominivoluntatem tuli librum ubi erant evangelia domini scripta (...)” (Arbor vitae..., V, 3,427b).

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lar conduziria a privilégios inerentes ao clero secular, uma vez que a “auto-ridade pomposa” sobrepor-se-ia à virtude da humildade65.

Da mesma maneira, a vida citadina perfazia elemento não perti-nente ao projeto de Francisco. A crítica aos estabelecimentos urbanosrepresentava, nesse contexto, a crítica ao contato com os poderosos, aovão estudo e às conversas impróprias66. A oposição aos estabelecimen-tos urbanos pode ser observada de duas maneiras, a saber: como ine-rente à existência da Ordem; como busca da retomada de uma experi-ência eremítico-contemplativa. Assim, no quinto livro da Arbor,Ubertino transcreve e comenta os rotuli de fra Leão, na medida emque estes retomavam a atitude de Cristo para justificar a habitação emeremitérios. A escolha eremítico-contemplativa figuraria, portanto,como parte da intentio de Francisco. Ele limita-se, utilizando-se, paratanto, da memória dos primeiros companheiros, a assinalar o contras-te entre o projeto de vida retirada e contemplativa de Francisco e ascondições de vida da Ordem, então estabelecida nas cidades67.

No terceiro livro, por outro lado, a idéia da intentio de Francisco –à qual subjaz a concepção da novitas franciscana – parece abandonada.A orientação para a vida eremítico-contemplativa é aqui identificada aum monaquismo das origens – ao qual subjaz uma concepção de con-tinuidade entre as regras monásticas antigas e a Regra de Francisco deAssis. Dessa forma, no terceiro capítulo do terceiro livro, intituladoIesus desertum incolens, encontra-se um comentário acerca do períodotranscorrido no deserto, entre o batismo de Jesus e o seu ingresso navida pública. Com efeito, com a escolha do deserto, Jesus teria mos-

65 “In humilitate vero profunda et extirpatione totius mundane glorie, sic perfectissimeimitatus est Christum (...). Nam salutem animarum volebat procurare cum humilitatisvirtute: non cum pomposa auctoritate” (Ibidem, 422b).

66 Ibidem, III, 9, 207.

67 Ibidem, V, 3, 427ss.

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trado que a vida solitária e austera resulta na maior perfeição68. Ressal-ta Potestà que a proposta do distanciamento do mundo é formuladapor Ubertino nos termos de uma cultura monástica, qual seja, aquelade Bernardo69. Com efeito, é possível estabelecer algumas fontes dessaespiritualidade presentes na Arbor, tais como Bernardo, Nicolau deClaraval, a Regra de Basílio, bem como textos monásticos provenien-tes da tradição grega. De fato, é de se supor o interesse suscitado entreos Espirituais por fontes trazidas há pouco por Ângelo Clareno. Oantigo monaquismo grego correspondia às aspirações profundas dosEspirituais: ignorando todo tipo de hierarquia, oferecia comunhãoeclesial a eremitas que permaneciam excluídos do contato constantecom os bispos.

A idéia de reviver um patrimônio espiritual e cultural monásticopressupunha, por um lado, a transformação da relação entre os fradese o século, pertinente ao tema da intentio de Francisco; por outro lado,é redutiva da especificidade histórica da Ordem Franciscana relativa-mente às ordens precedentes, ao enfatizar uma relação antes de conti-nuidade que de ruptura. Trata-se de uma tentativa de conciliar novida-de revolucionária e pertença à tradição antiga.

O sentido dado por Francisco para o exire de seculo, de acordocom o texto hagiográfico, era fruto da experiência do encontro com oleproso, mas não requeria, originariamente, um abandono do mundoem sentido material. Ubertino, por seu turno, insistia nodistanciamento de um mundo que figura como elementoirrevogavelmente prejudicial à experiência religiosa pertinente à Or-dem e à perfeição evangélica a que ela deveria conduzir. Com o intentode retomar a experiência de Francisco, sobretudo naquilo que se referia

68 Ibidem, V, 3, 145a-160a.

69 POTESTÀ, Gian Luca. Storia., p. 213.

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à pobreza e à recusa do poder, Ubertino propunha o retorno às fontespré-franciscanas de espiritualidade. Assim, “a fim de lutar contra umaordem mundanizada, ele passa a recusar o mundo enquanto tal”70.

Tomando como base todo o conjunto de alusões à pessoa do fun-dador e aos rumos da Ordem que constam da Arbor vitae, podemosafirmar que é certa, para Ubertino, a presença de uma intentiofranciscana, para além da idéia do seguidor e imitador da vida de Cris-to. Com base nesse “motivo”, Ubertino posicionou-se em defesa da-quilo que o movimento e seus ecos populares nomearam viri spirituales.Estes são identificados aos filhos legítimos de Francisco, ao passo queos demais são considerados como filhos ilegítimos do Pai Seráfico71.

Os Espirituais deveriam, segundo Ubertino, esperar um novo ad-vento de Francisco, de forma que ele cumprisse idêntica trajetória à deCristo. Assim, a experiência de Francisco encontrava-se historicamen-te liquidada, mas se ele é verdadeiramente renovator vite Christi não éde todo impróprio aspirar a uma futura retomada. Para tanto, apoia-va-se na tradição, sustentando ter como base Conrado de Offida, paraafirmar uma futura ressurreição de Francisco. A idéia não era nova:encontrava-se em voga nos meios espirituais e faz uma aparição naLectura de Olivi, muito embora de maneira assaz discreta e cautelosa.Ubertino, em contrapartida, emprega-a com destaque no interior desua teorização, nomeando inclusive os frades que a sustentavam. Osfrades rebeldes deveriam, pois, aceitar como temporárias as dificulda-des por que passavam, na certeza de seu ulterior desígnio. Assim, sofri-mento presente e júbilo futuro deveriam ser considerados correlatos,

70 Idem, Ibidem, p. 217.

71 Nesse ponto, Ubertino chega a referir-se a Ismael, nascido da escrava de Abrãao. EsteIsmael sectário encontrar-se-ia, portanto, golpeando os filhos legítimos da Regra pormeio de perseguições, repreensões, ordens irracionais e sentenças crueis (Cf. Arborvitae..., V, 3, 424a).

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reconhecendo-se que constituíam partes da obra realizada pelo Espíri-to de Deus. Assim como Deus permitira as perseguições levadas a cabocontra seu filho, até que se culminasse na crucifixão, também permi-tia, nos últimos tempos, que os prelados vivessem na falsidade e fizes-sem o mal, perseguindo e humilhando os eleitos72. Aqui, opera-se atransferência perfeita da herança espiritual de Francisco para os Espiri-tuais. Trata-se do momento da obra no qual esses são associados aopróprio Jesus, em função da similitudo que guardam com ele por cau-sa de seu sofrimento (paixão). Assim, o cristocentrismo, associado àcentralidade histórica de Francisco, coaduna-se, por fim, na Arbor vitae,a uma concepção fundamentalmente espiritual: a noção de que o “exér-cito espiritual”, formado a partir da existência da Ordem Franciscana,encontrava-se imbuído de uma função essencial para o cumprimentodo ideal salvífico: lutar contra as hostes do Anticristo e triunfar sobre aIgreja carnal. Observa-se, dessa forma, uma relação de continuidade,histórica e ideal, entre Francisco e os Espirituais73. É possível, tam-bém, encontrar em Pedro de João Olivi uma correlação bastante claraentre o sofrimento presente e o júbilo futuro. Tal correlação encontra-se presente na Lectura, bem como em carta endereçada aos filhos deCarlos d’Anjou. Tal missiva constitui, de acordo com Raoul Manselli,uma chave que permite compreender o sentido profundo da Lectura.Da mesma forma, a Lectura, por sua vez, permitiria compreender acarta em toda sua extensão e profundidade74. De suas linhas, emergeum ideal, que é justamente aquele do franciscano, tal qual Olivi desejaser e tal qual Olivi deseja fazer conhecer, com simplicidade, porém demaneira muito clara, aos príncipes aos quais a carta é destinada.

72 Arbor vitae..., III, 10, 208; V, 37, 394.

73 “Et ex his aperte claret quod ex tunc mala cepit pullulare radix que nunc in pessimumfructum excrevit” (Ibidem, V, 3, 430a).

74 MANSELLI, Raoul. “L’idéal...”, p. 102.

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Em tal missiva, portanto, figura o princípio biológico de origemaristotélica, bem como a sentença evangélica da vida como obra detrabalho e de dor. Aqui, ambas encontram-se conjugadas a fim dedemonstrar que a lei universal da existência não consiste numdesenvolvimento triunfal e num futuro feliz e bem-aventurado, masantes num trabalho intenso que submete toda a vida à dor, e cujajustificação última é a redenção, a qual não se constitui da vinda triunfalde Cristo entre os homens, mas antes da passagem dolorosa do filhode Deus pela terra e sua morte na cruz tendo em vista a salvação doshomens: “(...) O filho único de Deus, igual a ele em todas as coisas,humilhou-se, tomando a forma de escravo e sofrendo a morte da Cruz,pelos ímpios, para os ímpios. Esta lei, nós a constatamos também nasetapas de nossa existência”75.

Nada, portanto, realiza-se, a não ser através da dor, do sofrimentoe da morte. Trata-se do princípio enunciado por São João, segundo oqual “se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só;mas se morrer, produzirá muito fruto”76.

A condição humana, em seu estado natural de sofrimento, coinci-de, portanto, com aquilo que, no plano sobrenatural da redenção, énecessário ao homem para salvar-se. Olivi procura, por intermédio deuma série de exemplos, demonstrar que a condição humana, longe deser uma reflexão filosófica ou teológica abstrata, conforma-se perfeita-mente com a vida real: “É, ainda, devido a essa lei maravilhosa, que aIgreja do Cristo foi concebida no seio da sinagoga (...), o povo deIsrael saiu da fornalha de ferro e da dura servidão do Egito e, pela mãode Deus, partiu em dois o Mar Vermelho e atravessou-o com os pés

75 OLIVI, Pedro de João. “Epitre aux fils de Charles II de Naples, en l’an 1295”, in:Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324. PrivatEditeur, 1975, p. 128.

76 Jo 12,24.

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secos. (...) O exército inteiro de eleitos, escapando ao exílio deste mundoe ao poder tirânico do diabo pela via da morte corporal, como atravésdo Mar Vermelho, reúne-se e sobe aos reinos celestes. Isso demonstratambém a razão da palavra apostólica: que é necessário entrar no reinode Deus por meio de numerosas atribulações”77.

Olivi é notável pela sua concepção dinâmica do processo históricocomo uma vitalidade bipolar que se realiza entre os homens segundo alei universal de um desenvolvimento trabalhado e atormentado, e, noplano espiritual da providência, segundo o processo dramático da sal-vação dos eleitos, na qual o ideal cristão se realiza ao preço de umapenosa e dolorosa luta contra a presença imperiosa de forças e poderesanticristãos.

Observa-se, ainda, uma condivisão de Ubertino com a tradiçãopresente no Breviloquium de Boaventura: o pecado teria sido permiti-do por Deus, advindo em função da livre escolha da humanidade. Aquestão espiritual se traduzia, dessa forma, como a vontade de Deusque, desejando reconhecer seus eleitos, colocava-os à prova por meiode adversidades78.

Assim, as perseguições levadas a cabo contra os viri spirituales, bemcomo o sofrimento imputado a eles como conseqüência de tais perse-guições, são sintomáticos da presença da vontade de Deus como forçaque atua de forma irreprimível na história da humanidade. Eles tam-bém evidenciam uma relação ideal de assimilação e continuidade entreCristo e Francisco e entre Francisco e os Espirituais. Ao homem de fé,

77 OLIVI, Pedro de João. “Epitre...”, p. 129.

78 “Item magna misericordia Dei in electos suos hic refulget, qui de malis aliorum eosglorioses efficiet, et in eorum persecutionibus et cecitatibus mirandas electis fabricavitcoronas et in ruinis huius status utilissimas eis providit cautelas” (Arbor vite..., V, 7,451b-452a).

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portanto, não deveria haver razão para lamentar-se ou rebelar-se contraDeus. Assim, as duas chamadas bestas – os papas Bonifácio VIII eBento XI, emblemáticos dos últimos tempos, e seus protagonistasnecessários –, teriam sido, na verdade, permitidas por Deus a fim depunir as culpas da Ordem. Dessa forma, a história, embora algumasvezes nebulosa e cruel, permanece, sempre, nas mãos de Deus79.

REFERÊNCIAS

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79 DAMIATA, Marino. Aspettando l’Apocalisse in fervore e furore com Ubertino da Casale.Roma: Marinetti, 2000, p. 270.

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LOS ESPIRITUALES Y LA POLÍTICAIMPERIAL

Celina A. Lértora Mendoza

Conicet, Buenos Aires

Introducción

La historia de los «espirituales» franciscanos en las densas primerasdécadas del siglo XIV ha sido motivo de numerosos trabajos queanalizan los diversos aspectos y modos en que la «pobreza evangélica»,propiciada por la Orden Franciscana y llevada a su expresión más rígidapor los «espirituales», produjo una verdadera crisis tanto teórica comopráctica, que abarcó no sólo a los miembros de la Orden, sino a teólogos,filósofos, eclesiásticos y agentes políticos.

En concreto, la cuestión del «simple uso» ha sido interpretada -entoncesy después- de diversos modos, y las consecuencias de las posicionesencontradas también han sido evaluadas con criterios dispares. No es mipropósito entrar de nuevo en esta historia que ya ha sido contada variasveces y por voces más autorizadas1. Me propongo, puntualmente, responder-en lo posible- a una pregunta que, en estos o similares términos, recorrelos ánimos de investigadores y lectores de esta historia: cuál fue exactamenteel punto nodal, en que los teóricos del emperador veían el rédito político

1 Una reciente síntesis del tema en José Antônio de C.R. de Souza, As relações de poderna Idade Média Tardia. Marsilio de Pádua, Álvario Pais O.Min., e Guilherme de OckhamO. Min., Porto Alegre, U. Porto-Est. Edições 2010, Cap. 1, “O contexto histórico”, p.11 ss. Sintetiza los estudios definitivos de G. Mollet, Les papes d’Avignon, Paris, Letouzey& Ané, 12964; B. Guillemain, La court pontificale d’Avignon (1309-1376). Étudedùne société, Paris, 1962, D. Paladilhe, Les papes en Avignon, Paris, 1975.

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de apoyar a los espirituales y el que -correlativamente- era visto como unserio peligro por la curia pontificia.

La pregunta no es ociosa. En un mundo en rápido cambio, queestaba inaugurando una nueva tradición en el hacer y el pensar lopolítico, las razones pragmáticas y hasta los intentos de reflexión sobreese nuevo mundo emergente configuraban un entramado en que losmotivos para aceptar o rechazar la opción franciscana eran muy variadosy hasta podían ser contradictorios, según la mira de los interesados.Los motivos que podía tener el emperador Luis de Baviera para acogera los espirituales, así como a los «averroístas políticos» o simplementea los disidentes con las teorías teocráticas y la política papal erancomprensibles en la medida en que se aplicara el adagio «el enemigo demi enemigo es mi amigo». Pero esto era algo coyuntural2 y difícilmentehubiese generado una situación tan compleja, tensa y duradera, si deambas partes no hubiese existido el convencimiento de que en dichapolémica se jugaba algo más que eventuales discordias o alianzas más omenos personales.

Por otra parte, el perfil del grupo «enemigo» del papado y tambiénsus razones eran notablemente heterogéneos; resulta difícil pensar que

2 La propia postura del emperador Luis de Baviera en contra del Papa puede leerse enforma coyuntural: cuando tanto él como Federico de Habsburgo acudieron a Juan XII,recientemente electo (1316) para que resolviera su disputa por la elección imperial, elPapa promulgó un decreto (Si Fratrum, de 1317) por el cual declaraba vacante elimperio y revocaba a sí la administración imperial. Naturalmente esto era inaceptablepara ambos contendientes, en cuanto los privaba del poder; pero podría preguntase sicualquiera de ellos hubiese aceptado el principio de la supremacía papal –y eventual-mente, aunque fuese por mínimo tiempo, la administración papal del imperio- si elPapa le hubiera dado finalmente la razón. La historia nos cuenta que finalmente LuisIV triunfó de su rival, que reconquistó el norte de Italia y que se negó a obedecer alPapa, el cual lo excomulgó. La reacción política del emperador, discutiendo legalmenteal papado sus pretensiones y rechazándolas, inaugura sin duda una nueva época de lateoría política secularista. Pero no podemos dejar de pensar que fue puntualmentemotivada por la escalada poco prudente de Juan XXII.

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ese conglomerado podía por sí guiar una política imperial sostenible ycoherente.

En este trabajo intento argumentar a favor de dos hipótesis: 1º.Que la cuestión esencial que separaba ambos bandos era la cuestión delpoder político. 2º. Que si las tesis de los espirituales sobre la pobrezaevangélica, el sine proprio y el simple uso podían interesar a ambosgrupos es porque veían una conexión -que no es explícita y en la mayoríade los casos creo que incluso ignorada por los frailes- entre su opción yla lectura acerca de la legitimidad del poder político que ambos gruposantagónicos pretendían para sí. Considero que es la hipótesis que mejorexplica hechos que de otro modo parecerían extraños e inclusoincongruentes.

Para avanzar en la línea argumentativa, procederé por el principiode descarte, respondiendo

1. a la pregunta por cuáles podían ser los puntos de coincidenciacon el emperador y sus asesores políticos

2. a la pregunta por cuáles podían ser los puntos de divergencia ypeligro con el papa y sus asesores político-eclesiásticos.

Se busca hallar al menos un punto que pueda ser ingresadoafirmativamente en ambos campos.

La discusión sobre las afirmaciones espirituales

Para que la respuesta a estas preguntas no sea un ejercicio «de dibujo»es importante partir de la propuesta espiritual en su forma más clara yconcisa. Al respecto, hay acuerdo entre los estudiosos3 que la propuesta

3 De la abundante bibliografía al respecto, señalo especialmente D.Lambert, FrancsicanPoverty, Saint Bonaventure, The Franciscan Institute, S. Bonaventury University,1998 y Marino Damiata ofm, Guglielmo di Ockham Povertà e Potere, Firenze, StudiFrancescani, 1978.

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de los espirituales se fue conformando con sucesivas delimitaciones apartir de la inicial admonición del Fundador.

Tenemos entonces la siguiente secuencia

1. El modelo del hermano menor es Jesús (y los apóstoles) -Francisco

2. Los frailes deben imitar en todo a Jesús y especialmente enaquello que más lo caracterice - la perfección evangélica - Francisco

3. Lo que más lo ha caracterizado es la pobreza absoluta - Franciscoy «la dama pobreza»

Hasta aquí podría decirse que los frailes menores comparten -almenos en general- las tesis de todas las órdenes mendicantes que sefundaron en el siglo XIII y cuya defensa, a mediados de ese siglo, habíasido encarada por figuras ceñeras de las dos más importantes:Buenaventura por los frailes menores Tomas de Aquino por los frailespredicadores. Podría decirse que la defensa de la legitimidad de la opciónmendicante fue radicalmente exitosa (en ese momento) y que culminócon la condena y llamado a silencio de los opositores. Las órdenesmendicantes entraron desde entonces por la puerta principal en la vidaeclesial y rápidamente ocuparon lugares estratégicos como lasuniversidades, los obispados y hasta el papado. La definición de qué esser pobre quedó consignada, justamente, en la propia fórmula de SanFrancisco: sine proprio. Esto, desde luego, conduciría irremediablementea una repetición de la historia: también los monjes eran «pobres» en elsentido de que no tenían nada propio. Quien detentaba la propiedadera la Orden, la institución. Pero esto no pasaba de ser a los ojos demuchos (entre ellos, por ejemplo Pedro Valdo) sino un subterfugioque permitía a los monjes vivir ricamente aun cuando no fuesen«propietarios» de los bienes de que disfrutaban. La cuestión, sobre todopara Francisco, es que debía vivirse realmente la pobreza y que ella esun estado real, existencial, no jurídico. Para los primeros franciscanos,

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el hecho de que fuera la Orden y no los individuos, la propietaria delos bienes, los colocaba en el mismo peligro al que ya habían sucumbidovarias veces los monjes. A partir de allí, y en la medida en que lasórdenes mendicantes querían diferenciarse de las antiguas órdenes, habíaque pensar otros recaudos

4. La vida realmente pobre es esencial a la perfección evangélica

Aquí comienza la primera escisión teórica entre las órdenesmendicantes, en la segunda mitad del siglo XIII. Mientras que losfranciscanos, orientándose hacia lo que luego sería la posición de losespirituales, consideraban que la pobreza es de la esencia de la vidaevangélica, Tomás de Aquino sostenía que es un medio y no un fin ensí misma. Sin negar su importancia y su necesidad, en términosgenerales, se la debilita claramente en términos concretos, porque unmedio puede ser eventualmente omitido, reemplazado por otro, totalo parcialmente.

5. La pobreza absoluta se exige no sólo a los individuos sino a lainstitución misma

6. La institución, por lo tanto, no puede tener propiedades a títulopropio porque entonces no sería ella misma pobre.

Este fue, en la segunda mitad del siglo XIII, el punto de inflexiónmás importante de la controversia. Luego de una serie de vicisitudesque no es necesario exponer aquí, los Frailes Menores consiguieron yaceptaron (aunque no todos ni todos los que aceptaron lo hicieran debuena gana) una solución de compromiso: los bienes que ellosnecesitaran usar para vivir y para realizar sus objetivos como ordenreligiosa no pertenecerían a ella sino a la iglesia.

Esta solución no conformó ni a tirios ni a troyanos y creo que esel antecedente inmediato de la conexión con el tema del poder político.

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El argumento contra la solución es evidente: si la Iglesia tiene bienes atítulo propio, entonces no es pobre, y si no es pobre, no imita a Cristo yno puede alcanzar ella misma la perfección evangélica. Una iglesia así es locontrario de la iglesia que fundó Cristo. La cuestión es entonces cómopuede ser «pobre» la iglesia. No puede serlo como los individuos(transfiriendo la propiedad a la institución) ni como la institución (caso dela Orden de los Hermanos Menores) transfiriéndola a la Iglesia, porqueno hay otra institución cristiana por encima de ella.

Ahora bien, si no hay una institución por encima de la Iglesia en elorden religioso, sí la hay en el orden secular: precisamente el imperio.En definitiva, la idea de una iglesia pobre es la idea de una iglesia cuyosbienes no sean de propiedad sino de uso y que el propietario sea elpoder secular. Este modelo no parece, en nuestra época, algo tanextravagante, pero lo era entonces. Y lo era por dos motivos: 1. Porquela iglesia era de hecho un poder temporal reconocido y todo podertemporal, todo príncipe (ya lo decía Tomás de Aquino en De regno,dos siglos antes de Maquiavelo) debe tener bienes, propiedades yriquezas y cuantas más tenga, mejor. 2. Porque el poder temporal (y eldominio anejo) es lo que garantiza la libertad.

Entonces, considero que

1. El emperador no se interesaba por la cuestión de la imitatioChristi ni de la perfección evangélica como un objetivo de interés políticoque le llevara a favorecer a los espirituales por sostener esto. El Papa seinteresaba por misma cuestión en sentido distinto (no necesariamenteinverso): no se oponía al dictum pero quería la exclusividad magistralpara definirla.

2. El emperador no tenía interés decisivo (podía ser un interésconcreto y circunstancial) en los bienes de las órdenes mendicantes. ElPapa podía tener algún interés en los bienes de los franciscanos, perono mayor que el suscitado por los bienes de otras comunidades, puesen definitiva no podía disponer a su antojo de ninguno de ellos.

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3. El emperador tal vez tenía interés en los bienes de la Iglesia, perono en general sino tal vez muy concretamente:

a) sin duda le interesarían los territorios de los estados pontificios,pero es difícil que pensara seriamente en la posibilidad de revertirla Donatio Constantini -que se tenía por absolutamente válida-mediante un acto de fuerza; sólo podría lograrse una reversión porun cambio interno de la política eclesiástica:

b) le interesarían los bienes muebles e inmuebles de la iglesia, sitosen sus propios territorios y de los cuales pudiera servirse en casooportuno; tal vez fuera una motivación para ayudar a quienespropiciaban el abandono de estas propiedades, pero no parece quefuera esto de un interés político decisivo

c) le interesaría, sí, seguramente, consolidar un derecho secular degravar bienes eclesiásticos, de confiscarlos, y en definitiva, de ejercersobre ellos el poder jurisdiccional absoluto y no el restringido enuso. Esto me parece un asunto de mayor interés político y queconecta con la cuestión del poder político.

Frente a estos intereses, el Papa no debía sentirse especialmentealarmado porque a) era muy improbable un intento exitoso de recuperarlos territorios pontificios para el Imperio; b) los bienes eclesiásticossitos fuera del territorio pontificio eran administrados prima facie porlas autoridades eclesiásticas territoriales, de modo que su interés porsus rentas era también indirecto y mediado por las negociaciones quedebía hacer la curia pontificia con las jerarquías locales; c) mayor interéstenía la prohibición confiscatoria por parte de los poderes seculares,que en definitiva apunta al tema del poder político y la legitimidad detales tipos de atribuciones.

4. El emperador tenía interés directo en aumentar su poder yconsiguientemente en limitar poderes concurrentes, especialmente eldel Papa. Por lo tanto, una ayuda a los espirituales debía tener la

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intención de servirse de una doctrina de ellos que favoreciera suspropósitos. De éstas, parecen conexas con este interés: a) la doctrina dela pobreza evangélica como obligación de toda la Iglesia y b) lalimitación del poder pleno del papa, la plenitudo potestatis (en general,de la jerarquía eclesiástica). Éste es, a su vez, el punto en que el Papa,por motivos exactamente inversos, es decir, por su propio interés, semuestra irreductible. Trataré por consiguiente de mostrar la relaciónde estas dos doctrinas de los espirituales con el proyecto hegemónicode la política –teórica y práctica- imperial.

1 La doctrina de la pobreza evangélica

La afirmación fuerte de los espirituales es que la pobreza evangélicaes una exigencia radical, a nivel de toda la iglesia, emanada de Cristomismo. Aplicando esta doctrina en todas sus consecuencias, la iglesiano puede ni debe tener bienes propios, a título de dominio. Estaexigencia, como es claro, incluye no solamente los bienes muebles einmuebles ubicados en los territorios de los príncipes seculares sinoque, entendida en toda su radicalidad, incluiría también los dominiosdel Estado Pontificio. Es cierto que los espirituales no llegaron a estaproposición extrema, y que además la Donatio Constantini (cuyaautenticidad no se ponía en duda) se entendía como una garantía –querida por el mismo donante- de la libertad e independencia de laiglesia. Como se verá luego, hay una relación conceptual entredominium y libertas, que puede ser leída de varias maneras, pero queno puede soslayarse.

Ya he dicho que la cuestión general de la pobreza había sido resueltafavorablemente durante el siglo XIII, pero ahora tomará otro cariz. Enefecto, los franciscanos habían sostenido que al pregonar la pobreza lohacían a imitación de Cristo y los Apóstoles, que también habían sidopobres. Esta afirmación no suscitó, durante aquella primera época,

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mayores recelos a la jerarquía eclesiástica, como que fue aceptada y/oratificada por una serie de Papas: Honorio III, Gregorio IX, AlejandroIV, Inocencio IV, Inocencio V, Nicolás III y Nicolás IV4. Por otraparte, la simple lectura de los Evangelios, de los Hechos y de las CartasPaulinas no deja lugar a dudas que la primera comunidad y su Fundadorfueron pobres, al menos en el sentido literal y común de la palabra.Pero con Juan XXII se plantea una pregunta más específica, sobre la“pobreza absoluta” y su exacto significado. Es posible que esta cuestiónfuese motivada por las disensiones provocadas por el decreto Exivi deparadiso, promulgado por el Papa Clemente V al término del conciliode Vienne (1312)5, que procura por una parte corregir los abusos de laComunidad y por otra mitigar el rigorismo de los Espirituales, y lohace fundándose en la bula Exiit qui seminat (1279)6, de Nicolás III,reiterando por tanto que los frailes habían renunciado a la propiedadsobre los bienes materiales, tam in speciali quam in commune,conservando sólo el usus simplex facti, y que la iglesia continuaba siendola propietaria de esos bienes.

Las disensiones que este decreto provocó entre la Comunidad ylos Espirituales, determinaron al General Miguel de Cesena a solicitarla intervención de Juan XXII. Tal vez fue un paso equivocado, pues dioocasión al Papa para llevar adelante una radical modificación de latradición. En primer lugar promulgó la bula Quorundam Exigit(octubre de 1317)7 en la cual se afirma que la virtud de obediencia essuperior a la de pobreza; poco después la bula Sancta Romana (diciembre

4 El Manifiesto de Sachsenhausen de Luis IV contra el Papa, al acusarlo de “sostenerherejías” y estar en contra de la doctrina tradicional de la iglesia, recordaba precisamenteestos nombres.

5 Bullarium Francsicanum, Romae , Ed. Eubel, V: 80-86.

6 Bullarium III: 404-416.

7 Bullarium V: 128-139.

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de 1317)8 llama a los espirituales “Fraticelli” y los acusa de cismáticospor vivir en conventos bajo la autoridad de superiores elegidos porellos mismos y finalmente la bula Gloriosam Ecclesiam (enero de 1318)9

condena la doctrina de los Espirituales de Toscana, sobre la existenciade una iglesia “carnal” y otra “espiritual”, percibiéndose aquí un eco delas doctrinas de Pedro de Juan Olivi y de Ubertino de Casale. Se hadicho que Juan XXII era un buen canonista pero un mal teólogo. Entodo caso es claro que estas bulas están orientadas a fortalecer posicioneslegalistas y que, si se leen con cuidado, sirven también a otros finespolíticos. Es posible que Juan XXII haya visto, como hombre de leyes,los peligros indirectos de la inocente fórmula “pobreza absoluta”, asícomo otro peligro –igual o mayor- en permitir cualquier relajación dela estricta obediencia. De allí que relativice la pobreza10 frente a laobediencia y que recurra a la calificación de “herejía” para acallar a losdisidentes, lo cual iba mucho más allá de lo solicitado por Cesena.

Planteada la cuestión de la pobreza absoluta en términos de herejía,se encadenaron las condenaciones. La bula de Nicolás III afirma que larenuncia al derecho de propiedad particular o común de todo bien esun acto virtuoso, y que es ejemplo de Jesús y los Apóstoles, mientrasque el simple uso, o uso de hecho es una situación distinta: se puederenunciar al derecho de propiedad porque éste se basa en el derechopositivo, en cambio el simple uso es de derecho natural y por tantoinalienable y consiste en servirse de los bienes necesarios para la vida.Pero es claro que este concepto, en cuanto prescinde del entramado

8 Bullarium V: 134-135.

9 Bullarium V: 137-142.

10 Aunque en un sentido distinto y –desde luego- con objetivos también muy distin-tos, Tomás de Aquino ya la había relativizado al considerarla un medio y no un fin. Estomuestra que el tema de la pobreza absoluta y su radicalidad fundante nunca fue unconsenso teológico entonces, como tampoco lo es en la actual controversia –no termi-nada- sobre la teología de la liberación.

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jurídico, resulta revolucionario y peligroso. Juan XXII tuvooportunidad de contrarrestar esta idea en ocasión de una discusiónentre inquisidores, siendo el franciscano Berengario Tolon partidariode que la afirmación de ciertos terciarios provenzales de que Jesús y losApóstoles no habían poseído bienes ni particulares ni en común, no escontraria sino acorde con la bula de Nicolás III. Su decisión (1322)fue la de revocar la disposición de Nicolás III (establecida al final de labula mencionada) de que no se discutiese el contenido de la ReglaFranciscana, y para acallar los cuestionamientos, por la bula QuiaNonunquam (marzo de 1322)11 estableció que un Papa podía alterarlas decisiones de sus antecesores. Y reaccionando al documento AbAlto prospectans, redactado por el Capítulo General de la orden enjunio de ese mismo año, dictó la bula Ad Conditorem Canonum(diciembre de 1322)12. Dos son las disposiciones decisivas: la primera,declara que la perfección cristiana reside principalmente en la caridad yque el desapego a las riquezas es sólo un medio; segundo revoca lasdisposiciones de Nicolás III y Clemente V que reconocían la propiedadeclesiástica de los bienes de los menores. La segunda medida, un claroejercicio de habilidad jurídica, deja a los frailes espirituales sin coberturapara sus requerimientos. En cuanto a la primera aseveración, en realidad–y más allá del uso que le da el Papa- era doctrina común entre losteólogos y había sido sostenida, entre otras personalidades, por Tomásde Aquino, como ya se dijo.

Completando su proyecto, Juan XXII dicta la bula Cum internonnulos (noviembre 1323)13 declarando herética la afirmación de queJesús y sus Apóstoles no habían tenido el derecho de uso sobre losbienes que -según la Escritura- poseían. La idea era cuestionar

11 Bullarium V: 224-225.

12 Bullarium V: 233-246.

13 Bullarium V: 256-259.

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jurídicamente el concepto de “usus simplex facti” considerando quecuando se trata de bienes de consumo, el uso y la propiedad seidentifican14. Un año más tarde, promulga otra bula, Quia Quorumdammentes, en noviembre de 132415, donde rechaza la interpretación quehacen los franciscanos de los escritos de sus antecesores. La más conocidade las bulas de Juan XXII sobre este tema es la respuesta a lasAppellationes de Cesena, la Quia vir reprobus de noviembre de 132916

que fija su doctrina definitiva: no hay distinción entre usus facti y ususiuris, y por tanto no vale la categoría simples usus facti de los menores.Esto se aplica tanto a Cristo y sus Apóstoles como a los frailes y engeneral a todos. Por otra parte, la perfección cristiana radica en la caridady no en la pobreza. La estrategia papal consiste en negar el principio enCristo y los Apóstoles, para dejar sin fundamento la apelación a laimitatio. Uno de los argumentos más importantes del Papa fue la tesisacerca de la realiza y señorío de dominio temporal de Cristo, puesJesús, en cuanto Segunda Personal de la Trinidad, era desde toda laeternidad el dueño de todo. Esta realiza es atemporal pero al encarnarsefue adquiriendo los bienes congruentes a su cometido, renunciando algoce de todos los que hubiera podido gozar. Cesena y otros franciscanos,horrorizados de este argumento, respondieron con otra Appellatio(marzo de 1330) que discute las afirmaciones de Juan XXII conargumentos exegéticos y teológicos. A pesar de la claridad y pertinencia

14 En realidad la bula iba más lejos, pues incluía en la herejía la negación de que Jesús ylos Apóstoles hubiesen tenido derecho de vender o de adquirir otros bienes (no sólo elderecho de propiedad que implicaría –en su concepto- el mero hecho de usarlos). Esclaro que aquí hay una (voluntaria?) equivocidad: una cosa es admitir que Jesús o losApóstoles tuvieran derechos, en cuanto estaban sometidos a la legislación secular de sutiempo, puesto que gozarían de los mismos que tenían los demás; y otra muy distintaes saber si habían renunciado a ellos por amor al Reino de los Cielos, pregunta que nopuede contestarse desde la dimensión jurídica secular, sino sólo desde la hermenéuticao la teología.

15 Bullarium V: 271-280

16 Bullarium V: 48-449.

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teórica de estas réplicas, está claro que ellas resbalan sin tocar la razónpor la cual el papa se apuntala en los argumentos mencionados: laconexión entre la posesión de iure (y no sólo de facto) y el ejercicio deuna jurisdicción derivada. El argumento, en realidad funciona así: Jesús(en cuanto Hijo, en la Trinidad) es eternamente dueño de todo (esdecir, la máxima plenitudo potestatis posible); en cuanto encarnado,sigue teniendo tal potestad, pero encubierta en la limitación de la kénosis;sin embargo tiene auténtica potestad temporal sobre todo aquello quesea adecuado a su misión salvífica. La iglesia, como sucesora de Cristo,debe tener iguales potestades, con excepción de lo que le compete comoSegunda Persona trinitaria. En síntesis, tanto la potestad del dominiumcomo la plenitudo potestatis de autoridad se deducen de la misma base.Cuestionar una es cuestionar la otra. Y esto también lo veía, sin duda,Luis de Baviera.

2 La plenitudo potetatis

Las doctrinas teocráticas que habían sido dominantes hastaprincipios del siglo XIV, comienzan a ceder bajo el peso de diversascríticas. Las más directas y conocidas son, sin duda, las debidas a lapluma de los “averroístas políticos”, Marsilio de Padua y Juan deJandún. Pero no menos importantes teóricamente han sido laselaboradas desde la perspectiva de la polémica papal con los Espirituales.Digamos primeramente y en general, que la contestación a la teoría dela plenitudo potetatis en la época en consideración, provenía de dosfuentes. La primera es la fuente de las nuevas teorías políticas secularistas,las cuales, a su vez, toman dos direcciones: por una parte, las quepodríamos llamar “imperialistas” que recogen la polémica Papado-Imperio en términos altomedievales, suponiendo la unidad dejurisdicción suprema tanto en lo espiritual como en lo temporal. Lacuestión que se ventila aquí es si el Papa es superior al emperador o a la

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inversa, o si se trata de dos poderes iguales e independientes. La segundalínea es la de los teóricos de los nuevos reinos, especialmente los deFelipe IV de Francia, que sostenían la absoluta supremacía (acercándoseal posterior concepto de “soberanía”) del rey sobre su territorio y portanto de su independencia tanto del emperador como del Papa. Paraestas nuevas posiciones, la idea de una “monarquía universal” (sea conpreeminencia del Papa o del emperador) era algo ya superado. Encualquiera de las dos líneas, se desconoce al papa el derecho de deponera reyes o emperadores ni de disponer arreglos territoriales de lajurisdicción de ellos17.

La otra fuente de críticas a la teoría es la proveniente de los escritosfranciscanos que, más o menos cercanos a los espirituales, considerannecesario revisar la legitimidad de las declaraciones y las medidas papalescontra ellos. En esta línea debemos mencionar, especialmente, las obraspolíticas de Guillermo de Ockham18. La primera (1328), el Opusnonaginta dierum, está dirigida a refutar las ideas de Juan XXII en sus

17 La cuestión de la independencia del imperio en relación al papado se resolvió sinintervención de éste, por la fuerza de las situaciones políticas. En 1338 un grupo deelectores firmaron un acuerdo según el cual quien fuera electo por unanimidad omayoría como rey de Alemania, no necesitaba la confirmación del papa para asumir elimperio ni para gobernarlo. Aunque luego hubo diversas escaramuzas políticas entrepríncipes rivales, en 1356 el emperador Carlos IV promulgó la llamada Bula Aurea,que define el modo de elección del emperador, los derechos de los electores y susprivilegios.

18 Como ha mostrado de Souza, los escritos polémicos de Ockham han contribuido ala elaboración de las nuevas teorías políticas sobre el gobierno secular (A contribuiçãofilosófico-política de Guilherme de Ockham ao conceito de poder civil, São Paulo, FFLCH/USP, 1980). Por otra parte, como ha dejado establecido Giuseppe Santonastaso, Ockhamse enfrentó directamente a los curialistas de Avignon y en especial a Alvaro Pelayo,penitenciario de Juan XXII y jefe de los teóricos curialistas (“Occam e la plenitudopotestatis”, Rassegna di Scienze Filosofiche, 10, 1957: 213-271). También AntonioGarcía Martínez (en “Álvaro Pelayo y Guillermo de Ockham y la teoría de los dospoderes”, Crisis 2, 1955:33-45) sostiene que la teoría ockhamista de la separación delos dos poderes es su replica a la teoría teocrática de Pelayo. Por eso aúna argumentosteológico-eclesiológicos con otros de índole filosófico-política.

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bulas contra los espirituales, y en especial Quia vir reprobus, defendiendola pobreza evangélica19. El Breviloquium de Potestate Papae contiene lateoría de la distinción entre la potestad papal ordinaria y laextraordinaria20. Deben mencionarse, en la misma línea, el Tractatuscontra Ioanem y el Tractatus contra Benedictus, que analizan la relaciónentre el poder secular y el eclesiástico desde la perspectiva de la limitaciónde la potestad absoluta del Pontífice21; Octo Questionum Decisionessuper potetate Summi Pontificis (1340-1341); Dialogus de de Imperioet Pontificia Potestate, cuya redacción abarcó varios años y cuya terceraparte corresponde a los últimos años del pontificado de BenedictoXII. El Breviloquium de principado tyrannico papae data de la mismaépoca (Munich, 1339-1340)

Para ubicarse en el contexto de la controversia entre los espiritualesy la jerarquía eclesiástica, Ockham elabora una eclesiología que incluyeel lugar y la función del papado, el primado de la sede romana y elmagisterio doctrinal. Según Lagarde, la idea central de la eclesiología

19 Sus fuentes son variadas, hay elementos vinculados a la Apologia pauperum deBuenaventura, a los escritos de Peccam, de Pedro de Juan Olivi y de Tomás de Aquino;para la elaboración de los argumentos se basa en Pedro Lombardo y los conceptosjurídicos quizás los tome del Decretum de Graciano. R. F. Bennet y H. S. Offler hanseñalado (“Introduction” a Guillemi de Ockham Opera Politica, Vol. II, manches UniversityPress, 1963, p. xviii) que Ockham toma libremente diversos argumentos de distintasobras, pero raramente las cita a la letras. Podría pensarse, añado, que este proceder –tandistinto al de sus obras académicas- se debe precisamente a la premura y al caráctercircunstancial de su intervención en la polémica.

20 Esta obra se orienta contra el sucesor de Juan XXII, Benedicto XII, que renovó lascondenaciones de su antecesor a los espirituales. Según L. Baudry, a cargo de la edicióncrítica del Ms. de la Biblioteca de Ulm, se compuso entre 1339 y 1340, seguramenteantes del 25 de abril de 1341, fecha de la muerte de Benedicto XII, al que se mencionaen la obra como Papa reinante (“Préface”, Guillemi de Occam, Breviloquium de PotestatePapae, Ed. critique par L. Baudry, Paris, Vrin, 1937, p. vii).

21 Edición crítica por H. S. Offler, Vol. III de Guillemi de Ockham Opera Politica,Mancunii, e Typis Universitatis, 1966, p. 19 ss y 157 ss.

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de Ockham es la “cristiandad” entendida como una comunidadintegrada de fieles, en la cual se ejercita el doble poder, espiritual ysecular. Clérigos y laicos deben participar cada uno, a diverso título, enese proyecto22.

En este contexto Ockham elabora una teoría del poder secularcuyas características, según ha observado Lagarde23, se correspondenbien con el régimen político de transición propio del siglo XIV: 1. elpoder secular es el resultado de la yuxtaposición de principados muydiversificados; 2. en ellos comienza a delinearse la figura de lacomunidad, o sea “poner en común” ciertos derechos originalmenteindividuales; 3. estos principados están a medio camino entre laautoridad feudal y la moderna; 4. su función principal es mantener elorden y administrar justicia. En este contexto, el poder imperialfundamenta su legitimidad en los principios de universalidad,romanidad y soberanía, independientemente del Papado24. SegúnFrancisco Fortuny, este pensamiento político no es una “via media”sino una nueva y ya “moderna”; incluso su tesis de que el Evangelio esla ley de la perfecta libertad e presentado como límite e ideal utópicodel gobierno terrenal necesariamente coactivo25.

22 Cf. La naissance de l’esprit laïque au déclin du moyen âge. V. Guillaume d’Ockham:critique des structure éclésiales, Louvain-Paris, Nauwelaerts, 1963, p. 264.

23 “Comment Ockham comnprend le pouvoir séculier», Scritti di Sociologia e Politicain onore di Luigi Sturso, Bologna, 1953, vo. 1 : 593-612.

24 Lagarde ha señalado que Ockham se atiene a la tradición del Imperio Romano cuyatranslatio es estrictamente secular. De este modo, afirma que originalmente el emperadorera elegido por el senado, el pueblo o el ejército, y el emperador del siglo XIV es elegidopor el voto de los príncipes electores; por tanto su legitimidad no deriva de la coronaciónpapal (cf. La naissance… IV Guillaume d’Ockham: défénse de l’empire, Paris-Louvain,Nauwelaers, 1962, pp. 149-150.

25 “Pensamiento político de Ockham e informática”, Actas del II Congreso Nacional deFilosofía Medieval, Zaragoza, 1996, p. 125 y 136.

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Hay otro punto importante en Ockham, que se pone de relieveespecialmente en el Dialogus: pone a luz la dicotomía entre la jerarquíay la libertad personal del creyente, entre la verdad que se quiere establecerpor autoridad y la que puede tener cualquiera de ellos, destacando elcarácter individual de la fe y la preeminencia de la universitas fidelium26.Al negar carácter “carismático” a la autoridad eclesiástica, reduce sumagisterio a una delegación de la comunidad. Como ha señalado hacetiempo Cesare Vasoli27, la concepción ockhamista sobre la relación

26 Cf. Brian Tierney señala que es dudoso que Ockham fuera conciliarista; en todo casoafirmó que la universitas fidelium es superior al concilio (“Ockham, the conciliar theoryand the canonist”, Journal of the History of Ideas 15,1954: 40-70. Por las mismas fechas,Giovanni Tabacco sostenía que en la tercera parte del Dialogus, a la pregunta de si espreferible la monarquía del Pontífice o un gobierno pluralista, queda sustancialmenteen la línea de la monarquía (cf. Pluralità di papi et unità di Chiesa nel pensiero deGuglielmo di Occam, Torino, 1949). Pero estos trabajos visualizan más bien la relaciónde Ockham con el conciliarismo posterior, y no las figuras jurídicas de su época, y quepara Ockham que no se trataba de elaborar un conciliarismo teórico en general, sino dejustificar la legitimidad de la deposición de un papa herético. En otro sentido, y enforma muy matizada, George de Lagarde considera que Ockham no sostuvo lasuperioridad del concilio sobre el Papa; y que si no aceptó la infalibilidad de éste esporque no reconoce a ninguna institución particular o individuo tal infalibilidad, queDios ha prometido a la iglesia. La promesa de Dios significa solamente que la verdadsiempre quedará en –al menos algunos individuos de- la Iglesia, pero no sabemosquiénes, ya que la infalibilidad no se liga a la estructura eclesiástica (“Ockham et leconcile géneral”, Album, Helen Maud Cam, vol. 1, Louvain-Paris, Nauwelaerts, 1960:85-96). Sin embargo, también hay que considerar, conforme al mismo autor, queOckham nunca introdujo el principio de la soberanía popular de la Iglesia. Por su parteTeodoro de Andrés tampoco considera conciliarista la eclesiología de Ockham (“Apropósito del pretendido conciliarismo de G. de Ockham”, Sal Térrea 61,8/9: 1965:714-730). Parece prudente admitir, por tanto, que Ockham no elabora su crítica a laplenitudo potestatis e incluso al poder papal en general, asumiendo la dicotomíacanonística: Papalismo vs. Conciliarismo, sino que su objetivo más importante es deli-mitar las competencias de los poderes en cuestión, entre sí pero sobre todo en relacióna los individuos sujetos a ellos.27 “Il pensiero politico di Guglielmo d’Occam”, Revista Critica di Storia della Filosofia, 9,1954:232-253, donde reitera ideas anteriormente expuestas, en el capítulo VII de GuglielmoOccam, Firenze, La nuova Italia, 1953. Años después reiterará la importancia de la elaboraciónockhamista, en concordancia con nuevos estudios sobre el contexto ideológico del medioevotardío (“Guglielmo di Ocán”, De Homine, 1, n. 4, 1962: 77-92).

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Iglesia-Estado (especialmente la que expone en el Libro III del Dialogus)es solidaria con esta teoría general sobre el magisterio eclesiástico. En elmismo sentido debemos mencionar el Breviloquium de principatutiránico papae, que intenta demostrar, en primer lugar, la licitud de ladiscusión sobre el poder del papa, derecho que tiene todo cristiano yno solamente los teólogos. Una vez aceptada la legitimidad de ladiscusión se pasa a la refutación de la tesis de la plenitudo potestatis conargumentos tomados de la Escritura y del derecho canónico28.

En síntesis, podemos formular así la propuesta ockhamista29

conocida como via media. Sus dos elementos son el binomio regulariter- in casu y la distinción simpliciter - secundum quid. Así, por el principiode libertad, el papa no puede imponer regulariter nada supererogatorio,aunque no sea contrario al derecho divino o natural, pero sí in casu,aunque Ockham reconoce que es difícil precisar los casos concretos.La vía media como articulación de potestades tiene cuatro trazoscaracterísticos; 1. La potestad temporal y la espiritual provienen deDios a través de canales distintos; 2. Cada potestad goza de una esferade acción propia; 3. Eso no implica que la Iglesia se ocupe sólo deasuntos espirituales ni el príncipe sólo de temporales; 4. Se busca laarmonía y la concordia entre ambas potestades.

Aunque Ockham no pertenecía al grupo de los espirituales, en estepunto su aporte resulta coincidente. Por tanto, puede señalarse una víaindependiente del averroísmo político, y conectada con los espirituales,que realiza una crítica decisiva al teocratismo.

28 Según Pedro Rodríguez Santidrián, lo que -según Ockham- convierte a Juan XXII enhereje haber usado una fórmula teológica y bíblica para acumular poder y riqueza. (cf.“Introducción” a Guillermo de Ockham, Breviloquium de principatu tyrannico papae,traducción, introducción y notas de Pedro Rodríguez Sanrtidrián, Madrid, Tecnos, 1992).

29 Cf. Esteban Peña Eguren, «La filosofía política de Guillermo de Ockham en elDialogus III: relación entre Iglesia y Estado», Pedro Roche Armas (Coordinador), Elpensamiento político en la Edad Media, Madrid, Ed. Fundación Ramón Areces, 2010:169-189.

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Discusión final

Volviendo a la pregunta formulada al comienzo, la controversia delos espirituales con la jerarquía eclesiástica tuvo una derivación -alcomienzo impensada- a favor de las teorías políticas secularistas. Ladefensa de la libertad de los creyentes para imitar a Cristo en aspectosmuy alejados de los intereses políticos, tuvo proyección en la afirmaciónde la potestad secular, indirectamente al cuestionar la plenitud de unpoder que se veía como “tiránico”. Una polémica que tuvo su comienzoen la distinción entre usus y dominium terminó implicando otrosconceptos como ius, iustitia y libertas. En tiempos cercanos a Ockham,Juan Gerson tendía a identificar ius con libertas (en el sentido de libertaddel sujeto), así como, a la inversa, los espirituales (y Ockham) tendíana aproximar la defensa del usus con la libertas cristiana. Por esos extrañosvericuetos de la historia, la identificación siguiente fue la de libertascon dominium, a través de la aproximación entre ius y dominium. Conel juego de estas nociones, los escolásticos de la Escuela de Salamancadefendieron a los indios americanos30. Algo que estaba lejos de lasmentes de los espirituales del siglo XIV, pero seguramente no lejos delsentir de los primeros frailes que acompañaron a Colón y que, segúnuna tradición que puede considerarse segura, pertenecían a esta familiade los “fraticelli”, buscando y siguiendo tan lejos las huellas del espíritude su Santo Fundador.

30 Giuseppe Tosi, (La teoría della schiavitù naturale nel dibattito sul Nuovo Mundo (1510-1573) «Vere domini» o «servi a natura»?, Divus Thomas 33, 3/2002, Ed. StudioDominicano) hace notar que Soto (De iustitia et iure, IV, I) señala que el dominio sedistingue de otras formas de uso o usufructo en que en ellas el bien sólo se usa, mientrasque en el dominio se dispone totalmente de él, y afrontando esta famosa disputa (en Dedominio, par. 6) toma parte a favor de los franciscanos, en cuanto a la distinción entre usumy dominium (p. 64) . Aunque la cuestión se plantee en estos términos, Soto tiende aidentificar dominium con libertas, y considerar la propiedad como una característica intrín-seca del hombre, que le permite ejercer su libertad (p. 65).

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DA VERDADEIRA À PERFEITA ALE-GRIA, UMA E(IN)VOLUÇÃO?

Aldir Crocoli *

“A perfeita alegria consiste em vencer-se a si próprio e, voluntaria-mente, por amor, suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e humilha-ções”. Estamos habituados, há seis séculos, a esta compreensão de vidapenitencial de Francisco de Assis, entendida como automaceração quese torna difícil imaginar alguma diversa. E as consequências desta visãotêm múltiplas repercussões na compreensão da proposta de vidafranciscana. Para isso, sem dúvida alguma, muito tem contribuído olivro dos Fioretti, no seu capítulo oitavo, donde é extraído este versículocitado no começo. Como ao longo de séculos não se tinha notícia deum outro texto anterior, aquele dos Atos do Beato Francisco e seus com-panheiros1 – ou de sua tradução popular, os Fioretti2, escrito quase umséculo depois – que coloca este pensamento como diretamente saído

* Dr. Aldir Crocoli, capuchinho,  Professor na Estef. Contato: [email protected]

1 Os “Actus Beati Francisci et sociorum ejus” (Atos do Beato Francisco e seus companheiros)é uma compilação surgida em torno de 1336, provavelmente elaborada por FreiHugolino de Monteggiorgio, um frade da região das Marcas, na Itália.

2 Os “Fioretti”, a obra franciscana mais conhecida no mundo inteiro, são uma tradução ouadaptação dos Atos do Beato Francisco...” nos últimos anos do século XV. Os textos sãopraticamente idênticos no seu conteúdo. No caso preciso deste texto da “Perfeita Alegria”(Cap. 7 dos Atos e 8 dos Fioretti) duas pequenas diferenças podem ser facilmente consta-tadas: no versículo 10 dos Actus os Fioretti acrescentam “Fora daqui”; e no versículo 16,depois de “nos bater com o pau de nó em nó”, os Fioretti acrescem “e encher-nos de feridaspor todos os lados”. São acréscimos que nada alteram do conteúdo.

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da boca do Poverello, acabou se impondo como verdade. Felizmente,em 1927, Benvenuto Bughetti descobriu, num pequeno pergaminho,uma versão mais breve desta parábola. As análises levaram à conclusãoque se tratava de um texto mais original, oriundo, não do próprioFrancisco, mas de muito próximo a ele, enquanto o dos “Atos” surgiumais de um século depois, e os Fioretti, quase dois séculos depois damorte de Francisco. Este texto é uma excelente porta de entrada parao mundo de Francisco. Por isso nosso interesse em estudá-lo, para quese perceba a diferença entre o pensamento dele e o de seus seguidores.

Nosso objetivo neste ensaio é analisar o texto da “Verdadeira Ale-gria” de Francisco, depois compará-lo com o texto da “Perfeita Ale-gria” dos Fioretti3. Na conclusão apresentam-se, lado a lado, as dife-rentes compreensões de vida, das quais os referidos textos são porta-vozes. Nossa intenção é analisar o texto original para captar sua pro-funda mensagem e, em segundo lugar, compará-lo com o texto dosFioretti a fim de que fique clara a grande divergência de mentalidadeentre ambos. O texto foi totalmente modificado, perdendo seu con-teúdo original, para comunicar outro conteúdo, que não encontra con-firmação nos escritos de Francisco. Passemos à análise.

1 A verdadeira alegria

O texto da Verdadeira Alegria poderia ser datado em torno dosanos 1223 a 1225, mais precisamente, 1224. O contexto pessoal emque vivia Francisco e do movimento franciscano, agora transformadoem Ordem, são decisivos para uma correta compreensão dessa verda-deira preciosidade. Uma mínima compreensão do contexto garantirá afidelidade às palavras e expressões. Por isso, antes de examinar o texto,

3 Preferimos compará-lo com o texto dos Fioretti que, além de ser o mais conhecido, nãoapresenta grandes diferenças de compreensão das suas “estorietas” com os Actus.

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vejamos rapidamente, em algumas pinceladas, as circunstâncias pesso-ais de Francisco e de seu movimento nessa época.

1.1 O Contexto histórico-pessoal de Francisco e domovimento

Como o texto não foi escrito pelo próprio Francisco (segundo afrase introdutória), conhecemos a versão de um frade que ouviu deum tal de Frei Leonardo4, que deve ter ouvido de Francisco. Portantonão temos a segurança absoluta de ter as próprias palavras de Francis-co. Contudo, a análise interna nos leva a crer na possibilidade de fide-lidade do narrador. Seria difícil alguém criar uma parábola com tantaperspicácia e com tal envolvimento da pessoa de Francisco5.

Partindo da hipótese de datação de 1224, podem ser lembradosalguns fatos e dados históricos que ajudam a entendê-lo. Francisco jánão era, há 2 ou 3 anos, o Ministro Geral de, pelos menos, três milfrades6. Já não tinha, portanto, autoridade jurídica sobre os frades.Queria ser, isso sim, o tempo todo, exemplo de vida para os seus ir-mãos. E, como se sabe pelo testamento e outras fontes, ele nunca dei-xou de manifestar sua posição sobre o andamento do movimento. Épossível, pois, que ele tenha querido dizer uma palavra orientativa ou

4 2Cel 31,1 menciona Frei Leonardo no retorno do ultramar, isto é, em 1219 ou 1220,ao retornar da Cruzada. Logo deve ser alguém muito próximo a Francisco, ao menosnos últimos anos da vida e por isso pode ter fatos e reflexões a contar em primeira mão.

5 Só se conhece um pergaminho com o presente texto. É o códice FN, publicado porBenvenuto Bughetti, em 1927. Lucas Wadding conhecia outra versão intermediária aeste e o dos Actus e o colocou entre os escritos de Francisco em 1623. Porém, como otexto dos Fioretti é melhor elaborado, este original acabou no esquecimento.

6 Os Fioretti dizem, evidentemente exagerando, que no capítulo das Esteiras, que osestudiosos atualmente fixam em 1222, estavam presentes 5 mil frades. Dois anos maistarde, três mil é o mínimo que se pode supor.

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exortativa a todos os frades por meio desta parábola neste momentocrítico do movimento e, porque não, também seu.

É nossa opinião de que o texto seja de 1224 por um dado muitosimples: apenas em dois dos seus escritos Francisco emprega a palavra“Ordem” para se referir à totalidade dos frades: aqui nesta parábola ena Carta a Toda a Ordem (Ord 2). Nas demais vezes usa o termo“Fraternidade”. Juridicamente a passagem de Fraternidade a Ordem sedeu com a aprovação com bula da Regra de Vida pelo papa HonórioIII, aos 29.11.1223. Esse fato não deixou de marcar significativamen-te a história do movimento7. O reconhecimento papal da Regra ele-vou o status social dos frades. Se, antes, com o reconhecimento oral doseu modo de vida, eles não tinham argumentos objetivos para apre-sentar quando não eram aceitos em algum lugar, agora eles podiamquase se impor apresentando-se como integrantes da estrutura eclesial.A insegurança anterior cedeu lugar, de alguma forma, a certa superiori-dade por terem sido oficialmente reconhecidos pelo próprio Papa, amaior autoridade do tempo. Com isso e com o ingresso de muitosdoutores e mestres de universidades, crescera muito o desejo de ver a“Ordem” projetada no cenário mundial (desenvolvimento triunfalista).Francisco se dá conta de que o “ideal” da minoridade, tanto espiritualcomo social, estava sendo esquecido, mesmo se sob argumentos pas-torais. Ele reflete sobre essa nova realidade vivida pelos seus irmãos epensa como pode ajudá-los a “retornar ao primeiro amor” (Ap 2,4-5).

De sua parte, o próprio Francisco vivia angustiado. Celano e ou-tras fontes dizem que ele sofria uma longa (mais de dois anos) e grave

7 Continua difícil de explicar a notícia fornecida por Celano (2Cel 193,4) de queFrancisco queria acrescentar à Regra aprovada pelo Papa a frase: “O Ministro Geral daOrdem é o Espírito Santo”, o que não pôde fazer porque a Regra já estava bulada.Como poderia ele não saber que a regra, uma vez bulada, seria inalterável se ele acom-panhou de perto todo o processo ao longo dos decisivos 12 anos iniciais?

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“tentação”. Neste período até evitava se encontrar com os frades. Mui-tas vezes se dirigia aos bosques para poder chorar sem ninguém ver. Épossível que esta tentação seja o nome do conflito interno experimen-tado duramente por Francisco. De que mesmo se trataria? Uma daspossibilidades, na qual cremos, é de que Francisco, devido ao apoiodado pela Igreja institucional na pessoa do Cardeal Hugolino, prote-tor da Ordem, ao grupo dos doutos da Ordem, cujo pensamentomuito se diferenciava daquele de Francisco, tenha começado a sentiraté sérias dúvidas de fé. Estes buscavam uma autoafirmação no interi-or da Igreja e da sociedade, enquanto Francisco entendia que seu cami-nho era o da liminaridade, o da margem, não do centro. Franciscosempre entendeu que Deus lhe revelara isso. Mas, de repente, vê a Igrejaapoiando a posição contrária. Por isso começa a pensar: “Não terei meenganado o tempo todo, imaginando ser alvo de uma revelação especialquando na realidade era simples ilusão?8 Seria eu, talvez, um teimoso arbi-trário?” Pode-se supor que o interior de Francisco fosse de uma posiçãoa outra, incapaz de discernir qual seria a verdadeira.

Meditando constantemente na sua situação interna e vendo os ru-mos que a Ordem estava tomando, Francisco forja aos poucos estaparábola. Ela pretendia ser uma memória do itinerário percorrido porele mesmo e pelos seus primeiros companheiros, como virá a fazer demodo mais explícito no seu Testamento. Da mesma época poderia serdatada a Admoestação V, pois que trata da mesma temática. Com este

8 Sabemos que este não é um argumento científico. Mas é interessante perceber queLiliana Cavani, no seu filme “Francesco”, retrata Francisco no Monte Alverne, rezando,chorando e pedindo em voz alta: “Parlami”, isto é, fala-me, numa intensa súplica paraque Deus se manifestasse sobre “quem estaria no caminho certo”. Depois, recebendo osestigmas, Francisco declara a Frei Leão “Deus mihi dixit”, Deus me falou. Deus meconfirmou estar no caminho certo. Por isso, segundo estudiosos, Francisco teria descidodo Alverne pacificado interiormente por se sentir assemelhado com Cristo, mais espiri-tualmente do que fisicamente pelos estigmas, enquanto partícipe do seu processo deesvaziamento de que fala Paulo apóstolo (Fl 2, 6-11).

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“Sietz im Leben”, esta sucinta descrição do contexto do movimento eda situação existencial de Francisco, podemos passar à análise do texto.Para facilitar, trazemos diante dos olhos o texto. Será mais fácil confe-rir os detalhes.

1.2 A parábola da verdadeira alegria

Como se perceberá imediatamente, a parábola da Verdadeira Ale-gria se compõe de duas partes bem nítidas, com uma introdução, umafrase de transição e uma conclusão. Na conclusão está a resposta aoenunciado da introdução. E as duas partes do corpo da parábola serelacionam, de certa forma, de modo antagônico. A primeira descreveo que não é a verdadeira alegria e a segunda conduz o ouvinte a com-preender em que consiste a Verdadeira Alegria.

De que alegria trata Francisco? Não da alegria das gargalhadas, nem daalegria superficial das festas. Trata da alegria profunda, própria de quem sesente verdadeiramente realizado porque conseguiu ter “o coração miseri-cordioso de Deus” que, qual pastor, vai ao encontro da ovelha tresmalha-da. Trata-se de ter o coração de Deus, de “ser igual a Deus” no jeito de vivere de amar na gratuidade. Esta é a mais profunda realização humana. Ésobre esta que Francisco discorre nesta parábola.

Estrategicamente, a criação da parábola é situada na Porciúncula,exatamente o lugar que Francisco queria como “modelo para aFraternidade”. Nos tempos de sua conversão era um lugar abandona-do, situado nas proximidades de leprosários, a uns 4 quilômetros dacidade. Era seu lugar referencial. Lá viveu, com os primeiros compa-nheiros, por muito tempo. Foi o berço da Fraternidade, o lugar da“descoberta do Evangelho”. E os leprosários próximos eram lugar denoviciado dos ingressantes (CA 9, 2-3; 2EP 44). Pode-se dizer que aPorciúncula era o lugar-símbolo de sua conversão e do espírito que

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animava os primeiros tempos do movimento. Mas, com o passar dosanos, este lugar foi se institucionalizando: a Comuna de Assis cons-truiu uma casa grande para os frades. Os frades já não eram mais osexcluídos, mas sim o alvo de uma especial atenção da população e daprópria Igreja que via nos frades um “exército de possíveis colaborado-res”. É o que Francisco vai denunciar na segunda parte de vários mo-dos. Eis o texto:

1 O mesmo (Frei Leonardo) contou na mesma ocasião que obem-aventurado Francisco, em Santa Maria, chamou a Frei Leãoe disse: 2 “Frei Leão, escreve”. Este respondeu: “Já estou pron-to”. 3 “Escreve – disse – o que é a verdadeira alegria”.4Vem um mensageiro e diz que todos os mestres de Paris entra-ram na Ordem: escreve que isto não é a verdadeira alegria. 5

Igualmente, que (entraram na Ordem) todos os preladosultramontanos, arcebispos e bispos, o rei da França e o da In-glaterra: escreve que isto não é a verdadeira alegria. 6 Do mesmomodo, que os meus irmãos foram para o meio dos infiéis e osconverteram todos à fé; e, além disso, que eu tenho tanta graçade Deus que curo os enfermos e faço muitos milagres: digo-teque em tudo isso não está a verdadeira alegria.7“Mas, o que é a verdadeira alegria?”8Volto de Perúgia e chego aqui na calada da noite; e é tempo deinverno, cheio de lama e tão frio que gotas de água se congelam naextremidade da túnica e (me) batem sempre nas pernas, e o sanguejorra de tais feridas. E totalmente na lama, no frio e no gelo, chegoà porta e, depois de eu ter batido e chamado por muito tempo, vemum irmão e pergunta: Quem és? Eu respondo: Frei Francisco. 10Eele diz: ‘Vai-te embora! Não é hora decente de ficar andando; nãoentrarás. 11E, como insisto, de novo ele responde: Vai-te embora! Tués simples e idiota. De maneira alguma serás acolhido junto a nós;somos tantos e tais que não precisamos de ti. 12E eu novamente mecoloco de pé diante da porta e digo: Por amor de Deus, acolhei-mepor esta noite. 13E ele responde: ‘Não o farei. 14Vai ao lugar doscrucíferos e pede lá.15 Digo-te que, se eu tiver paciência e não ficar perturbado, nistoestá a verdadeira alegria e a verdadeira virtude e a salvação daalma”.

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1.3 Análise da parábola da verdadeira alegria

Nessa análise seguiremos versículo por versículo.

a) A introdução (Vv 1-3). No versículo introdutório são apresen-tados os personagens, o tema e o lugar: Francisco dita; Leão, seu con-fidente escreve; o ambiente é a Porciúncula, aquele lugar pobre, margi-nal e próximo dos marginalizados. E, por fim, o tema a ser abordado,a verdadeira alegria. Também se percebe, como dissemos acima, quenão se está em contato com a fonte direta da parábola. O texto de quese dispõe passa, pelo menos, por dois mediadores: “O mesmo Leonar-do contou que ...” Quer dizer, quem escreve não é Leonardo. E Leo-nardo não participou, diretamente, da parábola. Leão ou Franciscoterão contado a Leonardo?

b) A primeira parte (vv 4-6). Nesta parte, Francisco se vale dedois gêneros literários: a hipérbole e a ironia. A hipérbole consiste emexagerar propositalmente nos dados para chamar a atenção. Aqui Fran-cisco diz: “todos os mestres de Paris”, “todos os prelados”, “converte-ram todos os infiéis” etc. É um modo de alertar para a realidade dossonhos dos frades doutos. Desse modo, descreve a busca do múltiplopoder e grandeza presente naqueles frades. Esse parece ser o foco daquestão aqui retratada. E, pela ironia, coloca na boca dos outros aquiloque eles mesmos deveriam buscar ou ser. João evangelista usara a iro-nia para apresentar, pela boca de Pilatos, a Jesus Cristo realmente comomodelo de pessoa humana, quando Pilatos, escarnecendo, apresentouJesus flagelado ao povo dizendo: “Eis o homem” (Jo 19,5). Franciscoaqui se vale da ironia para dizer, através da boca do porteiro, a necessi-dade de retornar ao lugar dos últimos (Vai aos crucíferos e pede lá) aoinvés de alimentar sonhos de grandeza e poder.

“Vem um mensageiro” (v. 4a). Esse dado não é casual. Os pobresnunca têm mensageiro, propriamente dito; será sempre um amigo,

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um parente, um vizinho, apenas. Quem possui mensageiro para levarnotícias a milhares de quilômetros (distância de Paris a Assis) são os reis, ospríncipes e os graus equivalentes dentro da hierarquia eclesiástica.

“E diz que todos os mestres de Paris entraram na Ordem” (v. 4b).Para frades da Ordem (Fraternidade elevada ao status de “Ordem”) émotivo de grande orgulho e satisfação ter em suas fileiras os grandesluminares da intelectualidade. Por outro lado, o que moveria a “todosos mestres” não de uma escola qualquer, mas da universidade maisfamosa do mundo a ingressar na Ordem? Não seria com certeza abusca da conversão pessoal, nem a transformação da sociedade aomodelo evangélico de vida. Não será antes o desejo de ingressar numaorganização humana que ofereça condições excelentes para seu traba-lho e sua promoção pessoal? E, por outro lado, estes doutores só to-mariam semelhante decisão se já encontrassem na Ordem clima e con-dições de favorabilidade para o desenvolvimento de sua profissão. E,nesse caso, a Ordem não estaria sendo uma “Ordem de Irmãos Meno-res”. Por isso, tanto do ponto de vista dos frades quanto dos doutos,há uma evidente busca de poder. Pode-se dizer que nesta primeira situ-ação está retratada a busca do poder do saber, da ciência.

“Igualmente que entraram na Ordem todos os preladosultramontanos, arcebispos e bispos, o rei da França e o da Inglaterra” (v.5a). Provavelmente o texto supõe que seja o mensageiro que tambémanuncia esta outra notícia. Desta vez são os detentores do poder religi-oso (prelados, bispos e arcebispos) da França, da Espanha, da Alema-nha, isto é, de todos os países ao norte dos Alpes que dividem a Itáliae a Suíça. E, neste gênero literário da hipérbole, Francisco volta a dizerque são “todos” eles, não um ou outro. Novamente se pode levantar apergunta: Por que um bispo ou arcebispo se faria frade? Para pertencera um movimento de penitência-conversão? Muito dificilmente. Nãoseria antes porque, gozando a Ordem de grande prestígio no cenário

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eclesial, cresceria seu prestígio também? E não seria o mesmo motivoa levar os reis da França e da Inglaterra a tomarem também a decisão dese fazerem frades? Francisco não parece estar ironizando a busca depoder religioso e político – ambos decisivos no ambiente de cristanda-de vivido então? E por que cita exatamente os dois países emergentesde então?

“Do mesmo modo, que meus irmãos foram para o meio dos infiéis e osconverteram todos à fé” (v. 6a). Neste versículo Francisco retrata o evan-gelho do poder e não e poder do Evangelho. Quer dizer, tanta e tãoalta é a santidade dos frades que obtém a conversão de “todos” osmuçulmanos. Os frades estão revestidos de tão grande santidade quesua presença tudo transforma. Fazem isso porque o poder divino ou opoder sagrado está presente abundantemente neles. Converter ummaometano já é difícil; imaginemos que poder de que santidade deve-riam estar revestidos os frades para converter todos os muçulmanos.Não era assim que os frades imaginavam sua projeção comoevangelizadores em nome da Igreja? Francisco está claramente exage-rando com seu estilo hiperbólico, mas provavelmente era o que estariapresente em certo número de frades.

“E, além disso, que eu tenho tanta graça de Deus que curo os enfermos efaço muitos milagres” (v. 6b). Francisco vê que muitos frades se orgulhavamde sua santidade. Ser companheiro de um santo é, de certa forma, partici-par de sua áurea. Por isso inclui este dado também. Nada acrescenta aodado anterior do poder sagrado. Apenas abre para uma nova circunstância,agora a respeito da fama de santidade de sua pessoa.

Observando com atenção, pode-se perceber nesta parte a descriçãode três tipos de poder, ou três dimensões do poder: o poder da ciência,o político, seja religioso ou civil, e o poder sagrado, aquele que emanadiretamente de Deus. Para cada uma destas três situações Franciscoafirma que NÃO está nisso a verdadeira alegria, a verdadeira realização

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humana, a verdadeira grandeza humano-cristã. Ele tira, dessa forma,os pontos de apoio a quem, mesmo se de modo quase inconsciente,alimenta assim aspirações e sonhos de grandeza. A busca que qualquerforma de grandeza ou poder não realiza a pessoa humana, declara Francis-co nesta primeira parte. Também a onipotência divina não reside na capa-cidade de fazer o que Ele quer, sobrepondo-se a qualquer força de resistên-cia. Ao contrário, a capacidade de força de Deus reside em fazer-se peque-no, solidário com as menores das suas criaturas. Jesus Cristo, rosto deDeus, procedeu assim segundo a Carta aos Filipenses (2,6-11).

c) A segunda parte (vv. 8-14).

Concluída a fase da descrição dos falsos valores vividos por frades(busca de autoafirmação e supremacia sobre os outros), seu interlocutor,Frei Leão, lhe faz a pergunta de transição: “Mas o que é a verdadeiraalegria?” E Francisco, então, passa a direcionar a atenção para a verda-deira alegria com uma história hipotética e, ao mesmo tempo, real,pelo contexto de rejeição que sofria da parte de grande número defrades, especialmente os doutos que o julgavam incapaz de orientar econduzir a Fraternidade, mesmo se o reconhecessem como um grandesanto. Francisco diz:

“Volto de Perúgia e chego aqui na calada da noite” (v. 8a). Franciscocomeça relatando sua saída da cidade do poder. Perúgia era reconheci-damente a cidade dos poderosos nobres. Até a família Favarone, deClara, ao ser expulsa de Assis, foi refugiar-se em Perúgia. Nesta pará-bola é provável que Perúgia funcione como símbolo de grandeza e depoder. Francisco começa, pois, dizendo que ele saiu daquele ambienteque alimenta sonhos de grandeza e “chega” à Porciúncula, um lugar deperiferia e exclusão pela sua proximidade com os leprosos.

Ele chega na “calada da noite”, porque não consegue entender oque está se passando com seus confrades. Tem ciência do rompimentoexistente entre eles. E não é propriamente um rompimento entre eles,

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enquanto pessoas, mas um rompimento com a proposta de vida. Pro-põem outra maneira de viver, que nada tem a ver com a opção daFraternidade nos seus inícios, e que Francisco percebia ter sido umaverdadeira revelação. É difícil para Francisco assimilar a situação. É,por isso, noite.

“E é tempo de inverno, cheio de lama e tão frio que gotas de água secongelam na extremidade da túnica e (me) batem sempre nas pernas e osangue jorra de tais feridas” (v. 8b). Provavelmente essa situação é osímbolo do estado de relação entre ele e o grupo dos frades mais doutos:um distanciamento total, um gelo afetivo dolorido e insuportável quelhe dói profundamente.

“E totalmente na lama, no frio e no gelo, chego à porta e, depois deter batido e chamado por muito tempo, vem um irmão e pergunta: Quemés? E eu respondo: Frei Francisco” (v.9). Os termos eloquentes nesteversículo poderiam ser “chamar por muito tempo” e a resposta de Fran-cisco dizendo ser ele, Francisco o fundador da sua “Ordem”. O fato debater e chamar por muito tempo revela que a casa é grande, que oporteiro, mesmo se de sono leve, demorará muito para caminhar até àporta. Para quem está na situação de Francisco, alguns minutos sãouma eternidade. Mas o pior acontece depois que o irmão chega: aoouvir a resposta do peregrino se identificando como “Francisco” aoinvés de lhe escancarar a porta, acordar todos os irmãos para recepcioná-lo, começa a apresentar as razões para não admiti-lo. Não duvida queseja ele como na versão dos Fioretti.

“E ele diz: Vai-te embora! Não é hora decente de ficar andando: nãoentrarás” (v. 10). Neste versículo, o rompimento de propostas de vidaentre Francisco e aquele grupo de frades se manifesta de duas formas:Ele é rejeitado diretamente ao ser reconhecido como o fundador, rece-bendo um claro “vai-te embora”. O irmão dessa maneira está dizendoque os frades que estão com ele naquele grande convento já não se

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interessam pela proposta de Francisco. Mandam-no para longe: “Vai-te embora”. Porém, o segundo aspecto do rompimento com Francis-co é sintomático: “não é hora decente de ficar andando”, isto é, nóstemos uma estruturação de vida como os monges, com horários de-terminados para viajar, para dormir, para rezar, para comer etc. Tu jánão observas esses horários conventuais, portanto não és um religioso;não podes integrar nosso grupo de religiosos com estrutura conventual.O irmão porteiro já não se sente um irmão pobre entre os pobrescomo Francisco propunha para seus irmãos. identifica-se antes comoum religioso, vivendo numa estrutura conventual. Quem opta pelospobres, quem se faz pobre entre os pobres, não tem como ser fiel auma observância regular de horários e ter casa grande. A distância afetivae efetiva entre os dois (Francisco e o grupo dos doutos) é grande!

“E, como insisto, de novo ele responde: Vai-te embora! Tu és simples eidiota. De maneira alguma serás acolhido junto a nós; somos tantos e taisque não precisamos de ti” (v. 11). Novamente a rejeição clara e explíci-ta. E o irmão não revisa sua postura; ao contrário, a reafirma: vai-teembora. Por que razão Francisco é rejeitado? Por ser igual aos da ralésocial, por ter aparência de mendigo. E por ser, desse modo, inútil.Não contribuirá com a Ordem. Não lhe trará mais fama nem maishonra. Antes, desonra, vexame e vergonha. E o irmão lhe diz aberta-mente a razão: “Somos tantos e tais que não precisamos de ti”. A Or-dem está cheia de doutores, de prelados e bispos, de reis, de pregadoresfamosos que convertem a todos, de grandes santos com muitos mila-gres, que vantagem teria em acolher um pobretão desses como Fran-cisco, maltrapilho e ignorante? É melhor que fique longe. Essa expres-são “somos tantos e tais” é a frase nuclear dessa segunda parte no sentidode fazer a conexão como tema do poder, trabalhado por Francisco naprimeira. Além disso, é a frase reveladora, por excelência, do sonho degrandeza aninhado na alma daqueles frades, sonho que Francisco que-ria combater com a parábola.

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“E eu novamente me coloco de pé diante da porta e digo: Por amorde Deus acolhei-me por esta noite” (v. 12). O modo de Francisco seexpressar supõe que ele tivesse recuado alguns passos ao ouvir por duasvezes o “Vai-te embora”. Agora ele torna novamente à porta, já nãocomo Francisco, o fundador da Ordem, mas como um pobre quepede abrigo “por esta noite”. Está numa situação de extrema necessida-de e urgência: está na lama, no frio, na noite, com feridas nas pernas.Os Fioretti acrescentarão “com fome”. E suplica ao frade menor “poramor de Deus”, como fazem os pobres (Até este momento Francisconão pronunciara o nome de Deus e aqui o faz como um pobre e nãona qualidade de Francisco).

“E ele responde: Não o farei” (v. 13). A insensibilidade do frade é total.Quem só sonha com grandezas fica cego ao pequeno e insignificante. Nãoencontra tempo, nem maneira de ajudar os inúteis (Não vale a pena inves-tir neles. É perder tempo e dinheiro). É a lógica materialista estampada nocapitalismo da sociedade hodierna, quer a nível microcósmico, quantomacrocósmico. Esta é a origem da enorme fissura social que, ao longo dahistória, separa os ricos e poderosos dos pobres e excluídos.

“Vai ao lugar dos crucíferos9 e pede lá” (v. 14). O irmão porteiro écoerente. Manda Francisco para os inúteis da sociedade, os leprosos:Vade ad locum cruciferorum et ibi pete. Manda ao lugar, não para acasa, pois os leprosos não tinham mais que um esconderijo para seabrigar, como se não fosse propriamente uma casa. Não eram maiscontados como população. Aliás, crucífero era um dos nomes dadosaos leprosos. É um termo de origem latina que literalmente significa“portador da cruz”, da cruz da própria morte, por uma doença incurá-vel e que exigia total isolamento da convivência social. Matava física esocialmente, já que, ao serem enviados aos leprosários donde não po-

9 K. Esser (Gli Scritti di san Francesco d’Assisi, 1982, p. 602) dá notícias também deuma “Ordem dos Crucíferos”, existente em Assis e dedicada aos leprosos. Seja indican-do os leprosos, seja indicando quem a eles se dedica, o significado do envio não altera.

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dia mais sair, também perdiam todos os direitos sociais10. São os cru-cificados ou os mortos-vivos ambulantes, pregados à cruz da morte.

Há outro aspecto a ser observado aqui. O envio aos leprosos é, defato, uma orientação de Deus, como Francisco confessa no testamen-to: “Como estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo verleprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles e fiz misericórdia comeles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me conver-teu em doçura de alma e de corpo” (Test 1b-3a). Aqui a verdade brota,ironicamente, da boca do irmão porteiro, assim como o “eis o ho-mem” de João 19,5 brotou da boca de Pilatos. Têm razão os Fiorettiquando dizem que “Deus o fez falar assim”11. Sem querer, o porteiroapontou para a grande verdade que ele mesmo não aceitava: overtedouro da vocação humana e franciscana emerge no ambiente daexclusão social, no lado diametralmente oposto ao aspirado pelos muitosfrades habitantes daquele convento. A descoberta do modo humanode ser, calcado na solidariedade e na misericórdia, características tam-bém do modo de ser de Deus, de quem somos feitos “à imagem esemelhança”, se dá mediante a trans-descendência, isto é, a capacidadede descer aos últimos e fazer-lhes misericórdia, dar-lhes o melhor de si,o coração. O máximo de grandeza e de realização humana reside nestamaneira de ser e não em conseguir galgar o topo da pirâmide social.

A lógica de Francisco é muito refinada, opondo claramente estaparte à parte anterior e, desse modo, com mãos de luva, dar um tapade admoestação aos frades que caíram na tentação da grandeza e do

10 Quando alguém era identificado com lepra, era chamado o sacerdote à sua casa. Esterezava as exéquias fúnebres, colocava cinza na cabeça e, a seguir, era levado por outros atépróximo de um leprosário de não podia mais retornar à convivência social. Por isso“morto-vivo”. ROMERO GARCÍA, F. M., na sua tese de doutorado com o título“videre leprosos” (1989) descreve pormenorizadamente este rito religioso realizado porum sacerdote.

11 Todavia o contexto da frase nos Fioretti é totalmente outro e, portanto também seusentido. Aqui vale apenas enquanto frase construída com os mesmos caracteres.

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poder, talvez a pior, a mais sutil e mais profunda tentação humana,quase sempre imperceptível, uma “tentação persistente” como ele ano-ta na paráfrase do Pai Nosso12. Veremos abaixo como os Fioretti alte-ram completamente a história e a conclusão, reconfigurando o modode ser franciscano.

d) A conclusão

Embora breve, esta parte merece ser observada com atenção. Seupapel é explicitar o ponto de chegada da segunda parte. Acrescentapoucos aspectos novos, mas traz à tona os inerentes.

A mudança de estilo é evidente: “Digo-te que, se eu tiver paciênciae não ficar perturbado, nisto está a verdadeira alegria, a verdadeira vir-tude e a salvação da alma” (v. 15). Parece serem três os elementos dedestaque:

“Se eu tiver paciência...”. Não se pode esquecer que o autor é Fran-cisco. Quando jovem, no período da conversão, foi expulso da regiãocomo diz Celano (1Cel 13,6)13. Também já havia realizado a experi-ência de convivência com os leprosos que lhe abriram os olhos para anova maneira de ser pessoa humana e de ser cristão. A sociedade oconsiderava, por isso, um louco (1Cel 11,2; LTC 17,4). Até na oraçãoda conversão, Francisco pede a Deus “juízo, bom senso”14, pois haviamuitos que o retinham como demente.

12 “Não nos deixeis cair em tentação: oculta ou manifesta, repentina ou persistente” (PN 9).

13 Para uma descrição mais pormenorizada deste processo de expulsão da família e dacidade de Assis, ler os parágrafos 18, 19 e 20 da Legenda dos três companheiros.

14 A maioria dos tradutores tem dificuldade de traduzir “senno”, da oração de Francisco,originalmente em italiano, língua onde o primeiro sentido é “bom senso”, juízo, nosentido de ter a cabeça no lugar, ser uma pessoa com bom raciocínio, justamente nãoleva em conta o fato de que a oração foi composta no momento em que Francisco, pelasua radicalidade de opção a muitos dava a impressão de haver perdido o juízo. Ou seráque é desonroso ter um santo que, em certo período da vida, foi julgado, impropria-mente, louco?

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Ora, para suportar essa exclusão social, necessita-se de muita “paci-ência”. Isto é, de muita capacidade de compreensão da reação “normal”da maioria do povo diante de alguém que assume uma postura total-mente inusitada, mesmo se profundamente evangélica. O que faz ecomo faz está fora dos parâmetros normais. É mais fácil taxá-lo delouco do que compreendê-lo. Por isso, Francisco usa a palavra “paciên-cia” no sentido de capacidade de suportar, força de levar a carga de despre-zo sem se deixar perturbar por esse julgamento de exclusão social. É muitoexigente esta postura. Frei Lázaro Iriarte, ainda na década de 70 do séculopassado, disse que os frades sustentaram uma luta inglória durante séculos,por tentar ser pobres, mas sem ter a coragem de ser “menores”. Ser menor,socialmente, é também considerado sem valor pela sociedade. Isso é mui-to mais exigente do que suportar ofensas, fome, frio e outras privações.Fazer esta opção de vida, que foi a de Jesus Cristo, morto como criminosoe malfeitor, fora dos muros da cidade, no mais terrível dos modos possí-veis, a crucificação, requer uma capacidade, uma força inimaginável. Éque todos nós, seres humanos, necessitamos, psicologicamente, de ummínimo de reconhecimento social. A proposta de Francisco supõeabdicar também dela; sem nenhuma propriedade mesmo. É odespojamento total como está expresso mediante as três citações evan-gélicas15 no capítulo I da Regra não Bulada, primeira redação escritado projeto de vida dos Irmãos Menores: desfazer-se dos bens, abdicarda defesa da própria vida e, por terceiro, renunciar à família, quer di-zer, ao apoio e segurança social. No tempo de Jesus, quando ele colo-cou essas condições para segui-lo, a família exercia esse papel, já quenão havia o estado de direito como hoje.

“E não ficar perturbado”. O texto original latino se expressa dessaforma: “Et non fuero motus”, o que poderia ser traduzido por “não

15 As três citações da RnB 1, 1-4 são: renúncia aos bens (Mt 19,21; renegar-se a simesmo e tomar a cruz (Mt 16,24); e “odiar” pai e mãe ... e sua própria vida (Lc 14,26).

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estar alterado”. A versão brasileira preferiu “não ficar perturbado”. Tudobem. A perturbação é a que confunde o raciocínio. O discernimentopode ficar perturbado pelo sentimento de raiva com a reação dos ou-tros ou pelo sentimento de inveja (inconsciente até) em querer estarno lugar dos outros, pelo sentimento de inconformidade por não maisgozar de prestígio, pelo autodesprezo por ver-se relegado na história.Manter-se sereno nessa posição de exclusão e carregar a cruz da exclu-são da parte de quem nos julga inúteis, incômodos, perigosos, desajui-zados, é muito exigente, requer muita misericórdia para consigo e paracom os fazedores da história. Então o “ir aos leprosos”, à exclusão,deve sempre ser acompanhado da “paciência”, no sentido de muitacoragem e força, e da “não perturbação”. Jesus Cristo, diz Lucas (9,51),tomou a firme decisão de ir a Jerusalém, expressão que Shoeckel, co-ordenador dos comentários da “Bíblia do Peregrino”, diz que não sig-nifica “enrijecer a face”, como em Is 50,7. A RnB 9,5 assume literal-mente esta visão de Jesus Cristo, como alguém capaz de enfrentar qual-quer coisa, inclusive a perda da própria vida na obediência ao Pai e ànecessidade dos irmãos que, aliás, são sinônimas.

“Nisto está a verdadeira alegria”. A autêntica realização humana,aquela que nos torna semelhantes a Deus, aquela que nos dá a satisfa-ção de estar dentro do modo de ser e julgar de Deus, obedientes ao seudinamismo de amor, é esta. Quando alguém consegue passar aos ex-cluídos e lá permanecer na serenidade alcança, segundo o pensar deFrancisco, o máximo que um ser humano pode atingir e fruir por todaa eternidade. Todas as demais conquistas deste mundo são voláteis,perecerão; permanecerá apenas a grandeza do coração conferida poreste passo. Sentir-se neste processo contínuo e constante alegra e reali-za. É o bem, todo o bem, o sumo bem!

“...e a verdadeira virtude”. Etimologicamente virtude significa “for-ça”, energia. Viver segundo o parâmetro de vida acima mencionado

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revela a existência de uma grande energia. De fato, a identificação coma fonte da energia (Deus) torna forte o fraco. Todos os que fazemexperiência de Deus sentem uma energia incrível. Francisco já avivenciara, há tempo. Pode, por isso, evocá-la aqui. É uma força queaparentemente é passiva, mas é uma passividade transformadora, qualsal que se deixa derreter, mas que repassa neste mesmo ato todo o seusabor a tudo quanto entra em contato com ele. A capacidade de desceraos últimos, ser um deles, por opção, transforma até o “amargo emdoçura da alma e do corpo”.

“... e a salvação da alma”. Esta é a conclusão da conclusão. A verda-deira alegria e a verdadeira virtude são simultaneamente a “salvação daalma”. Esta expressão pode ser entendida, tanto linearmente como asalvação da alma para a vida eterna como se expressa a linguagem po-pular, quanto o resgate da verdadeira identidade (alma) da pessoa hu-mana, já aqui nesta vida terrena. Em outras palavras, o modo verda-deiramente humano de ser que Deus projetou para toda a humanida-de é este “fazer misericórdia”, na pura gratuidade e na minoridade, atodos indistintamente, a começar pelos últimos.

Para encerrar esta seção, apenas um aperitivo do que vai ser consta-tado mais abaixo: nenhum apelo ao ascetismo moral de padecer sofri-mentos físicos e morais, injúrias e escárnios, como se o máximo darealização humana consistisse em “vencer-se a si mesmo”. Não há naparábola nenhum autocentramento, mas apenas altruísmo em relaçãoa si na dedicação aos últimos e compreensão misericordiosa para comquem rejeita e exclui.

2 A Perfeita Alegria

Como dissemos acima, esse texto da “Perfeita Alegria” formandoo capítulo oitavo dos Fioretti, era o único texto conhecido, até as pri-

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meiras décadas do século XX. Por isso ele fez história. Está gravado nosubconsciente de muitas pessoas e ninguém duvidava que não fosserealmente de Francisco. B. Bughetti encontrou outra versão e a divul-gou em 1930. É o texto que acabamos de analisar. Difere muito destedos Fioretti, alvo de nossa atenção a partir de agora. Também aqui,para facilitar, reportaremos este texto, ao lado do anterior, mesmo se orepetimos. Será mais fácil observá-lo e compará-lo. Já o apresentamosconforme sua estrutura, quase idêntica ao anterior.

A Verdadeira Alegria (s.

Francisco)A Perfeita Alegria (Fioretti)

1 O mesmo (Frei Leonardo)contou na mesma ocasião que obem-aventurado Francisco, emSanta Maria, chamou a Frei Leãoe disse: 2 “Frei Leão, escreve”.Este respondeu: “Já estoupronto”. 3 “Escreve – disse – oque é a verdadeira alegria”.

4 Vem um mensageiro e diz quetodos os mestres de Paris entraramna Ordem: escreve que isto não é averdadeira alegria. 5 Igualmente,que (entraram na Ordem) todos osprelados ultramontanos, arcebispose bispos, o rei da França e o daInglaterra: escreve que isto não é averdadeira alegria. 6 Do mesmomodo, que os meus irmãos forampara o meio dos infiéis e osconverteram todos à fé; e, alémdisso, que eu tenho tanta graça deDeus que curo os enfermos e façomuitos milagres: digo-te que emtudo isso não está a verdadeiraalegria.

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Vindo uma vez São Francisco dePerusa para Santa Maria dosAnjos com Frei Leão em tempode inverno, e como ograndíssimo frio fortemente oatormentasse, chamou Frei Leão,o qual ia mais à frente, e disseassim: “Irmão Leão, ainda que ofrade menor desse na terra inteiragrande exemplo de santidade e deboa edificação, escreve, todavia, enota diligentemente que nissonão está a perfeita alegria”.

E andando um pouco mais,chama pela segunda vez: “Óirmão Leão, ainda que o frademenor desse vista aos cegos,curasse os paralíticos, expulsasseos demônios, fizesse surdosouvirem e andarem os coxos,falarem os mudos e, mais ainda,ressuscitasse mortos de quatrodias, escreve que nisto não está aperfeita alegria”.

E andando um pouco, SãoFrancisco gritou com força: “Óirmão Leão, se o frade menorsoubesse todas as línguas e todasas ciências e todas as escrituras esoubesse profetizar e revelar nãosó as coisas futuras, mas atémesmo os segredos dasconsciências e dos espíritos,escreve que não está nisso aperfeita alegria”.

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7 “Mas, o que é a verdadeiraalegria?”

8 Volto de Perúgia e chego aqui nacalada da noite; e é tempo deinverno, cheio de lama e tão frioque gotas de água se congelam naextremidade da túnica e (me)batem sempre nas pernas, e osangue jorra de tais feridas. 9 Etotalmente na lama, no frio e nogelo, chego à porta e, depois de euter batido e chamado por muitotempo, vem um irmão e pergunta:Quem és? Eu respondo: FreiFrancisco. 10 E ele diz: ‘Vai-teembora! Não é hora decente deficar andando; não entrarás. 11 E,como insisto, de novo ele responde:Vai-te embora! Tu és simples eidiota. De maneira alguma serásacolhido junto a nós; somos tantos etais que não precisamos de ti. 12 Eeu novamente me coloco de pédiante da porta e digo: Por amorde Deus, acolhei-me por esta noite.13 E ele responde: ‘Não o farei. 14

Vai ao lugar dos crucíferos e pedelá.

Andando um pouco além, SãoFrancisco chama ainda com força:“Ó irmão Leão, ovelhinha deDeus, ainda que o frade menorfalasse com língua de anjo esoubesse o curso das estrelas e asvirtudes das ervas; e lhe fossemrevelados todos os tesouros daterra e conhecesse as virtudes dospássaros e dos peixes e de todosos animais e dos homens e dasárvores e das pedras e das raízes edas águas, escreve que não estánisso a perfeita alegria”.

E caminhando um pouco, SãoFrancisco chamou em alta voz:“Ó irmão Leão, ainda que o frademenor soubesse pregar tão bemque convertesse todos os infiéis àfé cristã, escreve que não estánisso a perfeita alegria”.

E durando este modo de falarpelo espaço de duas milhas, FreiLeão, com grande admiração,perguntou-lhe e disse: “Pai, peço-te, da parte de Deus, que medigas onde está a perfeita alegria”.

E São Francisco assim lherespondeu: “Quando chegarmos aSanta Maria dos Anjos,inteiramente molhados pelachuva e transidos de frio, cheiosde lama e aflitos de fome, ebatermos à porta do convento, eo porteiro chegar irritado e disser:

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15 Digo-te que, se eu tiver paciênciae não ficar perturbado, nisto está averdadeira alegria e a verdadeiravirtude e a salvação da alma”.

‘Quem são vocês’; e nósdissermos: ‘Somos dois dos vossosirmãos’, e ele disser: ‘Não dizema verdade; são dois vagabundosque andam enganando o mundoe roubando as esmolas dospobres; fora daqui’; e não nosabrir e deixar-nos estar ao tempo,à neve e à chuva com frio e fomeaté à noite; então, se suportarmostal injúria e tal crueldade, tantosmaus tratos, prazenteiramente,sem nos perturbarmos e semmurmurarmos contra ele epensarmos humildemente ecaritativamente que o porteiroverdadeiramente nos tinhareconhecido e que Deus o fezfalar contra nós: ó irmão Leão,escreve que nisto está a perfeitaalegria.E se perseverarmos a bater e elesair furioso e como a importunosmalandros nos expulsar comvilanias e bofetadas dizendo:‘Fora daqui, ladrõezinhos vis, vãopara o hospital, porque aquininguém lhes dará comida nemcama’; se suportarmos issopacientemente e com alegria e debom coração, ó irmão Leão,escreve que nisso está a perfeitaalegria.

E ainda se constrangidos pelafome e pelo frio e pela noite,batermos mais e chamarmos epedirmos pelo amor de Deuscom muitas lágrimas que nosabra a porta e nos deixe entrar, ese ele mais escandalizado disser:

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‘Vagabundos importunos, pagar-lhes-ei como merecem': e saircom um bastão nodoso e nosagarrar pelo capuz e nos atirar aochão e nos arrastar pela neve enos bater com o pau de nó emnó: se suportarmos todas estascoisas pacientemente e comalegria, pensando nos sofrimentosde Cristo bendito, os quaisdevemos suportar por seu amor;ó irmão Leão, escreve que aí enisso está a perfeita alegria, eouve, pois, a conclusão, irmãoLeão.

Acima de todas as graças e todosos dons do Espírito Santo, osquais Cristo concede aos amigos,está o de vencer-se a si mesmo, evoluntariamente pelo amorsuportar trabalhos, injúrias,opróbrios e desprezos, porque detodos os outros dons de Deusnão nos podemos gloriar por nãoserem nossos, mas de Deus, doque diz o Apóstolo: ‘Que tens tuque não o hajas recebido deDeus? E se dele o recebeste, porque te gloriares como se o tivessesde ti?’ Mas na cruz da tribulaçãode cada aflição nós nos podemosgloriar, porque isso é nosso eassim diz o Apóstolo: ‘Não mequero gloriar, senão na cruz denosso Senhor Jesus Cristo’”. Aoqual sejam dadas honra e glóriain secula seculorum . Amém.

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Como nosso objetivo nesta parte é mostrar a transformação sofri-da pelo texto de Francisco no livro dos Fioretti, mais que analisar propri-amente este texto, nós o vamos comparando com o anterior e tentan-do evidenciar as diferenças, mostrando as implicações ou consequênciasde tais alterações.

1) A parábola contada por Francisco fala sempre em “Verdadei-ra”16 Alegria. É um conceito ligado à verdade. E a verdade é correspon-dência ao ser. Está, pois, relacionada com a dimensão ontológica. Osfilósofos dizem que o “bom, o verdadeiro e o belo” se correspondem.

17Já nos Fioretti, a alegria é qualificada somente com o adjetivo“perfeita”. Trata sempre de “perfeita alegria” O contexto do escrito levaa entender que essa é uma conquista de ordem moral, no campo docomportamento, da qualidade das ações e não do ser. É uma mudançamuito significativa.

2) No texto da “Verdadeira Alegria”, o personagem central é Fran-cisco. Francisco narra para Frei Leão que faz o papel de simples secretá-rio, mas que não participa propriamente da história. Veja-se, por exem-plo, quando chega à porta do convento em Santa Maria dos Anjos, àpergunta do irmão do lado de dentro da porta: Quem és? A resposta é:“Frei Francisco”. Francisco é o fundador do movimento. Ele é a pes-

16 O leitor atento poderá encontrar na primeira edição das Fontes Franciscanas eClarianas, verso 3, o adjetivo “perfeita” alegria. Contudo foi um puro engano, já corri-gido na segunda edição (2009?). A edição crítica latina sempre emprega o mesmoadjetivo “vera” nas seis menções que o texto faz de alegria.

17 Além disso, é interessante perceber como a forte influência do texto dos Fioretti levouos tradutores a intitular o texto original de “perfeita alegria”. Embora no título da ediçãobrasileira encontremos “A verdadeira e perfeita Alegria”, nas abreviações oficiais para oportuguês (cf. página 8 das Fontes) o texto de Francisco, que nunca menciona “perfei-ta” alegria, recebeu como abreviação “PA”, de Perfeita Alegria. Já Lucas Wadding, noséculo XVII o intitulou “Da Verdadeira e Perfeita Alegria”. E é assim que ele é abreviadona edição crítica de K. Esser (cf. ESSER, K. Gli Scritti di San Francesco d’Assisi. Padova:Messaggero, 1982, p. 601).

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soa-símbolo da proposta de vida que estão vivendo. Pedro Maranesi,por isso, chega até a dizer que se trata de um texto autobiográfico18.

Já nos Fioretti a resposta é “somos dois dos vossos irmãos”, querdizer, a pessoa de Francisco nada tem a ver com a estória. Esta mudan-ça de Francisco para dois irmãos protagonistas tira toda a gravidade dofato. O porteiro está apenas agindo assim como agiria com quaisqueroutros confrades. Mais adiante, quando dizem que o porteiro os haviareconhecido, deixam entender que os reconheceu como seus irmãossim, mas entre eles não estaria Francisco, a pessoa emblemática porexcelência.

3) Observe-se que no texto original o protagonista está em SantaMaria dos Anjos e relata um fato atual, presente. Mesmo se na segun-da parte o texto conta “Volto de Perúgia e chego aqui...” é apenas oestilo deste tipo parábola em forma de estória. De fato, todo o textoestá construído no presente do indicativo (Tu és, vai-te embora, vai aolugar dos crucíferos...) para dizer que a história descrita é real, está emato, acontecendo realmente ali na Porciúncula, também lugar símboloda opção pela minoridade, próxima dos leprosários.

Nos Fioretti, diversamente, Francisco e Leão caminham por duasmilhas dialogando sobre situações hipotéticas de onde “não estaria” a

18 Em minha opinião, Maranesi exagera com semelhante posição. O que o texto oferecede histórico é a confissão de um rompimento entre Francisco e o grupo dos fradesdoutos, vibrantes com o “desenvolvimento triunfalista” da Ordem. Mas o texto nadadiz da vida de Francisco. Tudo é parábola. Aliás, esse mesmo autor, no belíssimo livrosobre o confronto crítico do Testamento com as biografias a respeito no lugar e papeldos leprosos no processo de conversão e na vida de Francisco, também entende que otexto ajudou a Francisco reencontrar o “sentido último de suas opções e da sua posiçãode marginalizado” (p. 297). Creio que isso advirá com a experiência do Alverne, nãocom esta reflexão da parábola. Penso que o autor não valoriza suficientemente a primei-ra parte do texto e se centra demasiado na pessoa de Francisco, sem dar o devido pesoao contexto da Ordem, que estava cedendo à tentação do “fermento dos fariseus”, istoé, neste caso, à segurança do poder.

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perfeita alegria. Não estão na Porciúncula, mas estão no caminho deretorno de Perúgia (“Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos”),também levantando hipóteses de algo que eventualmente “poderiaocorrer”. Os verbos estão no futuro condicional: Se batermos, se dis-sermos, se ele nos agarrar pelo capuz, se ele disser ... No texto original,ao invés, a parábola retrata uma realidade concreta.

4) No texto original se encontram muitos nomes emblemáticosessenciais para a compreensão da parábola, tais como: mensageiro, Fran-cisco (tanto como o protagonista da parábola, quanto como quemrealiza os milagres por sua santidade), Mestres de Paris, prelados, bis-pos, arcebispos, reis da França e da Inglaterra. Como já vimos, todosesses nomes denotam situações de poder na tríplice dimensão: o poderda ciência, o poder político, o poder religioso, o poder sagrado.

Nos Fioretti desaparecem todos esses nomes característicos. Sãosubstituídos por situações hipotéticas que desviam o foco da questãoque Francisco abordava na sua parábola. Os Fioretti falam generica-mente, no condicional: se o frade menor desse exemplo de santidade,se fizesse muitos milagres, se conhecesse os segredos das criaturas e dasconsciências... Por isso, podem ficar falando pelo espaço de duas mi-lhas sem esgotar o assunto, apesar de explicitar apenas uma hipótese amais que as quatro situações nomeadas por Francisco.

5) No texto original da Verdadeira Alegria, o irmão porteiro, iro-nicamente, reenvia Francisco aos crucíferos que lhe converteram “oamargo em doçura”, isto é, lhe revelaram sua nova visão de mundo, depessoa humana e de Jesus Cristo. Foi descendo a estes últimos da soci-edade, considerados mortos-vivos, que aconteceu a grande descobertade Deus e dos novos valores que ele abraçou. Esta frase, porque in-compreensível na nova reformulação do texto, é substituída por “vãopara o hospital”, cujo sentido na Idade Média era de albergue ou hotel.Tal atitude significa que, hipoteticamente, os dois frades não são acei-

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tos no convento simplesmente por serem considerados estranhos oupor não serem pessoas honestas, como o texto irá apresentar a seguir.

6) “Tu és simples e idiota... Nós somos tantos e tais que não precisa-mos de ti”. No texto original a razão da não acolhida é de que Francis-co nada tem a oferecer à Ordem: é um simples, ignorante e analfabeto.Seria, antes, motivo de vergonha para a Ordem, constituída de pessoasde grande importância social. São ali apresentadas razões daqueles quemoram dentro do convento (“não é hora decente de chegar” – os fra-des estão repousando; não devem ser incomodados –, “somos tantos etais...”). É a condição dos que moram dentro do convento, ou me-lhor, do mosteiro, o verdadeiro empecilho para Francisco entrar.

Já nos Fioretti o motivo da não acolhida é totalmente outro e estános que chegam pedindo acolhida. Nas três vezes que o porteiro negaingresso aos dois frades apresenta razões éticas: “Não dizem a verdade(= mentem); são dois vagabundos que andam enganando (falsidade) omundo e roubando (cometem crimes) as esmolas dos pobres.”; “Foradaqui ladrõezinhos vis...”; “Vagabundos importunos”. Os dois irmãossão avaliados pelas suas supostas ações morais. Há assim um total des-locamento do critério de avaliação: no texto original as razões vêm dosque estão dentro do mosteiro; no texto alterado dos Fioretti o motivoé a moralidade dos que desejam entrar.

7) Na Verdadeira Alegria há uma conclusão: ir aos crucíferos, oumelhor, retornar para lá. O que segue pode ser visto como explicaçãoou justificativa da conclusão. A ida aos leprosos, vivida na “paciência esem perturbação”, é a verdadeira alegria, a verdadeira virtude e a salva-ção da alma. Este é o ponto de convergência do texto.

Mas nos Fioretti a conclusão é repetida três vezes para não deixardúvidas: viver “prazenteiramente, pacientemente e com alegria e debom coração” as contrariedades da vida. E na justificativa ou explica-ção é recordado o exemplo de Cristo que também sofreu injúrias e

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ofensas. Mas enquanto no texto original se propõe retomar o itinerá-rio de autoesvaziamento de Cristo, que se encarnou por solidariedademisericordiosa, aqui são recordados os sofrimentos externos de Cris-to, através de longa citação de Paulo, justamente porque o núcleo daconclusão é o “vencer-se a si mesmo”. O ponto de chegada do cresci-mento humano aqui não está centrado no amor ao outro, como é daessência de Deus que é amor e, portanto, também do ser humano,feito à sua imagem e semelhança. Para os Fioretti o ponto de conver-gência da caminhada de crescimento humano é uma espécie deautossatisfação pelo autodomínio nas adversidades. Há, pode-se per-ceber claramente, uma diferença fundamental entre as duas posições.

8) Por fim, talvez, a diferença mais marcante: o modo de ver Deus,espelhado nas duas versões. No texto original, o nome de Deus é lem-brado, como se saísse da boca de um pobre. Nunca se diz que “Deus ofez falar assim contra nós”. O que fala alto nesta parábola de Franciscoé o antropológico profundo, a dimensão ontológica da pessoa e da féencarnada. E aí o que vale é a identificação com o dinamismo divino enão o uso abundante de citações bíblicas. Por isso, pode-se dizer queno texto original há uma visão encarnada da fé, vista como modo deDeus ser (assim como nas parábolas do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) edo juízo final (Mt 25,31ss), onde Deus propriamente não é evocado, masidentificado com o modo de ser do samaritano ou de quem acolhe onecessitado). De fato, este é o modo de ser do Deus de Jesus Cristo, queouve o clamor do povo, vê seu sofrimento e desce para o livrar e conduzirà abundância de vida (cf. Ex 3,7ss). Este é seu nome, a identidade pela qualquer ser reconhecido pelos tempos afora. São João vai dizer que “Deus éamor” (1Jo 4,8), isto é, alguém essencialmente voltado para fora, que vaiao encontro do mais fraco e necessitado.

Nos Fioretti, ao contrário, Deus é citado sete vezes, Cristo, trêsvezes, e o Espírito Santo, uma vez. Parece, à primeira vista, um textomais espiritual. Contudo, é de uma espiritualidade exterior e, talvez,

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até tendenciosa. Como o autor pode se atrever a dizer que “Deus o fezfalar assim contra nós”, se no fundo está buscando uma justificativareligiosa para seu modo de pensar? Não é esta uma maneira de mani-pular Deus, que a Bíblia tanto combate? Deus está sendo usado parajustificar uma antropologia estóica, porquanto não lhe importa umaidentificação interior com o dinamismo de Deus que desce ao encon-tro das pessoas, as mais marginalizadas, e sim o autodomínio de si.Interessam aos Fioretti um estoicismo de fachada religiosa. No “ven-cer-se a si mesmo” não estaria embutida uma espécie de autosatisfação,um comprazer-se com o feito de ser capaz de autodomínio? Essaautosatisfação não estaria na mesma perspectiva de poder que Francis-co tanto quer combater? Eu “apanho, mas tenho o orgulho e honra deme autocontrolar”. Não há um esvaziamento pleno de si como o pro-posto pelo texto original: estar entre os mortos-vivos, ser consideradoum morto ambulante como os leprosos. Os Fioretti, na realidade,apontam mais, como já dissemos, para um estoicismo de fundo religi-oso do que para uma visão autêntica da fé cristã e de antropologiacristã. Essa é a diferença mais profunda entre os textos, que distamquase dois séculos um do outro no tempo e, certamente, muitos qui-lômetros no espaço.

Esses elementos levantados tornam clara a evolução (pode-se cha-mar a isso de evolução?) ou distorção da parábola de Francisco.

Conclusão

Estas oito diferenças são suficientes para dar uma idéia da enormedistância existente entre o texto que aqui chamamos de original (surgi-do em torno de 1224) com o texto de Frei Hugolino de Monteggiorgioescrito por volta de 1336 e, 60 anos mais tarde, em 1390, traduzidopara o italiano com enorme sucesso popular. Foi traduzido em prati-

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camente todas as línguas mais conhecidas. E durante mais de 500 anosse acreditou ser autenticamente de Francisco. Como se explica estefenômeno? Talvez a justificação possa ser atribuída a duas circunstânci-as precisas. É o que se deseja dizer à guisa de conclusão geral.

A primeira é devida à grande sintonia ou consonância entre o textodos Actus com a mentalidade do tempo. A Igreja em geral pensava dessemodo como os Fioretti. Tinha a visão de que o seguimento de Cristopassava pelo caminho da mortificação, da ascese, da penitência físico-cor-poral. Por isso Tomás de Celano, Boaventura e demais biógrafos medie-vais de Francisco o apresentam como homem penitente. A equação eraesta: quanto mais penitência alguém faz, de maior santidade é detentor.Mostrar o fundador como alguém que dormia pouco, que nunca satisfa-zia completamente a fome, que aguentava o frio mais rígido, que toleravaas maiores agressões morais ou físicas... era o método para evidenciar suasantidade. Os autores dos Actus e dos Fioretti, pertencendo a este modo depensar, modificam uma parábola para que ela confirme este horizonte decompreensão. E obtiveram muito êxito.

Em segundo lugar, é possível afirmar que a parábola original nãofoi compreendida, porque também não era suficientemente entendidaa proposta de vida de Francisco. Assim como havia um rompimento(rachadura) entre Francisco e um grande número de frades, sobretudoos mais instruídos – fator, aliás, do surgimento desta parábola – tam-bém esta estória, criada com muita perspicácia por Francisco para alertarseus confrades a respeito de um vírus que estava se disseminando naFraternidade, não foi captada na sua intenção mais profunda. De fato,o Poverello era portador de um projeto alternativo de vida. Sem passarpelo túnel da convivência com os maiores excluídos de seu tempo, osleprosos, não nasce novo sol em Assis. Nasce um sol adaptado às cir-cunstâncias e, por isso mesmo, alterado. Para tal fim, são modificadaspalavras, omitidas frases ou nomes emblemáticos, acrescentadas con-

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clusões e citações bíblicas etc. de modo que se forme outro conjuntoharmônico em si mesmo e com o contexto cultural.

O que importa agora é ressaltar a mensagem da parábola original.Esta poderia ser sintetizada desse modo: a Verdadeira Alegria, ou aprofunda realização humana, pode ser experimentada quando se con-segue descer aos últimos, aos mais relegados da sociedade e ser seuirmão, ser um deles. Feliz, bem-aventurado é quem consegue percor-rer o caminho do esvaziamento e da autodecentração de si como JesusCristo que, “sendo de condição divina, não se apegou zelosamente àsua igualdade com Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a con-dição de escravo e fazendo-se obediente ao Pai até à morte de cruz. Porisso seu nome foi exaltado acima de todo o nome”, isto é, experimen-tou a VERDADEIRA ALEGRIA da plenitude em Deus.

Referências

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Hermógenes Harada *

Introdução

O termo “espirituais”, nos estudos franciscanos, se refere a fradesmenores e à luta interna dentro da sua Ordem a cerca do ideal da vidafranciscana, ocorrida no I século da origem e evolução doFranciscanismo, na Idade Média.

“Hoje” sugere vagamente um modo de ser e pensar a nós referido,cujo interesse é estudar as “questões franciscanas”1. Trata-se, pois, de

* Publicação póstuma.

1 Nos estudos franciscanos, a expressão Questão franciscana indica várias questões refe-rentes às primeiras biografias sobre São Francisco e seus primeiros companheiros. Dizrespeito a pesquisas crítico-historiográficas das fontes usadas nas primeiras biografias deSão Francisco e nas narrações que relatam os primórdios e a evolução do franciscanismo.A “Questão franciscana” é o título que em 1902 S. Minocchi deu a um escrito quepesquisava a datação de alguns documentos franciscanos do século XIII. A expressãoteve de imediato muita repercussão e sob esse título desencadeou discussões apaixona-das dos estudiosos das “coisas” franciscanas ao redor da historicidade dos “fatos” relata-dos pelos primeiros hagiógrafos de São Francisco e de seus primeiros companheiros. Épois uma questão análoga a dos problemas referentes a Cristo histórico e Cristo da Fédas primeiras comunidades cristãs, cujo testemunho é fonte para os nossos conheci-mentos sobre Jesus e sua vida. Um nome famoso e apreciadíssimo no pioneirismo dodespertar dessa questão é Paul Sabatier (1858-1928). Cf. DESBONNETS, Th. “Avant-propos”, in: DESBONNETS; VORREUX, 1968, p. 14; cf. MENESTÒ, E. “La‘questione francescana’ come problema filológico”, in: Francesco d’Assisi e il primo secolodi storia francescana. Torino: Biblioteca Einadi, 1997, p. 117-143; cf. MANSELLI,Raoul, “Paul Sabatier e la ‘questione francescana’” in: La “Questione Francescana” dalSabatier ad oggi, Atti del I Convegno Internazionale (Assisi, 18-20 de 10 de 1973),Assis, 1974, p. 51-70.

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acontecimentos e pessoas do ontem longínquo, cuja questão nos dizrespeito, por causa do nosso interesse, hoje. Esse interesse é científico eespiritual. Mas se é inter-esse, o nosso interessar-se não nos satisfaz, sepermanecermos na indiferença e neutralidade mal engajada de curiosi-dade e satisfação da erudição cultural; ou na “inexistencialidade” deum cientificismo, corretamente atrelado ao funcionalismo “acadêmi-co”, a um status quo do saber “objetivista” como consumo e exercíciode poder; nem no misticismo esteticista de um espiritualismo facilita-do e cômodo, desencarnado. Se é ciência, a cientificidade na sua raizdeve estar no toque da paixão da busca da verdade, em cujo estímulose abandona continuamente a terra firme do dogmatismo da certeza,para se lançar na aventura da precisão da dúvida racional; se éespiritualidade, deve estar exposta, corpo a corpo, ao confronto radicalcom as vicissitudes, as mais prementes da existência humana, em cujainterioridade abissal se dá o toque do Espírito, desse sopro vital daliberdade dos filhos de Deus, que sopra onde lhe apraz, nos desinstalandosempre de modo novo e sempre de novo de todo e qualquer apego efixação a o que quer que seja, para a disposição grata e cordial da possi-bilidade de seguir os acenos do Radical-Outro no encontro.

O encanto e o fascínio que “as questões franciscanas” despertamem nós, hodiernos, parecem emanar da disposição aos estudos, sejamquais forem as suas denominações, que estão no toque dessaradicalização, seja na busca absoluta da paixão da dúvida na inquiriçãocientífico-crítica ou na precisão e limpidez da recepção absoluta aosabor da gratuidade do encontro, na espiritualidade.

Os “espirituais” e suas posições e os acontecimentos do confrontoentre eles e as assim chamadas “comunidades” nos poderiam despertarpara uma questão sempre antiga e nova e hoje esquecida, acerca do ser-franciscano.

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No entanto, assim colocada a questão, o título e a sua explicaçãosoam como se fossem promessa e programa de um artigo de pesquisaobjetivo-historiográfica de interesse comum na área de estudosfranciscanos. Esses ares de “importância acadêmica” que o nosso títulopode insinuar camuflam e escondem o significado real do ponto deinterrogação que está no fim da formulação do título. É que ainterrogação não é a do questionamento da investigação nem da pesquisacientífico-objetiva, mas é a expressão desajeitada de uma grandeperplexidade, portanto é expressão de “desimportância”, para não dizerlimitação subjetivo-particular, que diz respeito à sensação de não sabero que dizer e o que pensar, diante de um dos problemas mais intrigantesdas “questões franciscanas”: os espirituais2.

1 Os espirituais, um ponto de interrogação da perplexidade

Mas de que ponto de interrogação se pretende falar nessa perplexida-de particular, subjetiva? Da interrogação, cujo ponto é o espiritual. Mas,para podermos falar desse ponto de interrogação, falemos antes como pre-paração, dos assim chamados “espirituais”, na história da OrdemFranciscana, no fim do I século da sua evolução como Franciscanismo3. É

2 Cf. Chi erano gli Spirituali, Atti del III Convegno Internazionale (Assisi, 16-18ottobre 1975), Assis, 1976; NANTES, René de, Histoire des Spirituels dans l’Ordre deSaint François. Paris, 1909; “Franciscains d’ Oc., Les Spirituels”, ca. 1280-1324 (Cahiersde Fanjeaux 10), Toulouse,-Fanjeaux, 1975; BARONE, G. “Spirituali”, in: Dizionariodegli Institui di Perfezione. vol. VIII Saba-Spirituali, Roma: Edizioni Paoline, 1988, col.2034-2040.3 Dados, datas e fatos historiográficos e sua interpretação aqui relatados foram tiradosde: GRATIEN DE PARIS, Histoire de la Fondation et de l’évolution des frères mineurs auXIII. Siècle. Bibliographie mise à jour par Mariano D’Alatri et Servus Gieben, Roma:Istituto Storico dei Cappuccini, 1982; IRIARTE, L. História franciscana. tradução deAdelar Rigo e Marcelino Carlos Dezen, Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1985; MOORMAN,J. A History of the Franciscan Order, from its origins to the year 1517. Chicago: FranciscanHeraldpress, 1988; Dicionário franciscano. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1993;HOLZAPFEL, H. Handbuch der Geschichte des Franziskanerordens. Freiburg i. Br.:Herder, 1909.

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que o ponto de interrogação da perplexidade particular e subjetiva estáentalado justamente no destinar-se desses “espirituais”, cujas lutas e vicis-situdes dentro da Ordem e da sua reação são como um cano, por ondeentramos e nos entalamos, todos nós, hodiernos, porque voltar para trásnão podemos, mas ir para frente nesse encanamento é que não vai.

O termo “espirituais”4 designa frades menores que entre 1274, fimdo generalato de São Boaventura, e 1318, fim do movimento dosespirituais como facção dentro da Ordem, portanto durante 44 anos,no fim do primeiro e no início do segundo século do desenvolvimen-to da Ordem, integravam um movimento de volta ao caráter originá-rio do carisma fundacional da Ordem, iniciada por São Francisco deAssis, e lutavam pela sua manutenção como dever essencial da comu-nidade de toda a Ordem. Essa busca de restauração da Ordem tomoua forma da exigência de renovação, contestação e resistência à maioriados frades menores, denominados “comunitários” ou simplesmente“comunidades”, acusando-os de afastamento e relaxamento do idealoriginário dado por São Francisco. Esse grupo minoritário de renova-dores se achava espalhado na Itália e na França meridional. Na Itália,principalmente nas províncias de Úmbria, da Marca de Ancona eToscana. Na França, na Província de Provença. Os líderes espirituaisdesse movimento de reação eram Angelo Clareno (†1337)5 na Marcade Ancona, Ubertino de Casale (†1329)6 em Toscana e Pedro João de

4 Stanislao da Campagnola fala da possibilidade de constatar como historiador “a exis-tência empírica, dentro de uma área geográfica de um grupo de frades menores, quedepois da metade do século XIII, contrastando com a evolução do movimentofranciscano, se con-formava a uma interpretação rigorosa e literal da Regra e do Testa-mento de Francisco (considerados indispensáveis uma e outro)...” (“Gli Spirituali Umbri”,in: Chi erano gli Spirituali. Atti del III Convegno Internazionale (Assisi, 16-18 ottobre1975), Assis, 1976, p. 75-105).

5 VON AUW, L. Angelo Clareno et les Spirituels italiens. Roma, 1979.

6 POTESTÀ, L. Storia ed escatologia in Ubertino da Casale. Roma, 1980.

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Olivi (†1298)7 na Provença. Esse confronto entre os espirituais e acomunidade ou os comunitários no interior da vida religiosa da Or-dem Franciscana nesse período entre 1274 a 1318 é caracterizado como“questão da pobreza” ou “luta pela pobreza”8.

Traçar mais em detalhes, com precisão, a história “verdadeira” des-ses espirituais e as vicissitudes que sofreram, é uma tarefa que exigemuita competência de exatidão e abrangência historiográfica. Pois osdados e as suas interpretações acerca dos espirituais e dos comunitáriose de suas interações e reações chegam a nós já filtrados dentro das pers-pectivas dos interesses partidários de cada uma das facções correspon-dentes. Como frades menores, no entanto, mesmo divididos em fac-ções, pertenciam ao organismo humano religioso denominado Or-dem Franciscana, como seus membros vivos, cuja referência era SãoFrancisco de Assis. Por isso, os móveis que implicavam e constituíamas impulsões das ações e reações de ambos os lados se objetavam comonós intrincados de questões, onde se entrecruzavam diversas perspecti-vas de compreensão do todo do ser franciscano9. Aqui, não faremos

7 MANSELLI, R. La “Lectura super Apocalipsim” di Pietro di Giovanni Olivi. Richerchesull’ escatologismo medievale, Roma, 1955; FLOOD, D. E. “Petrus Johannis Olivi.Ein neues Bild des angeblichen spiritualen Führers”, in: Wissenschaft und Weisheit 34(1971) 130-41.8 Cf. Dalla “Sequela Christi” di Francesco d’Assisi all’Apologia della Povertà. Atti delXVIII Convegno Internazionale, Assisi, 18-20 ottobre 1990, Centro Italiano di studisull’alto Medievo, Spoleto, 1992.9 Em situando a sua pesquisa sobre os espirituais da Úmbria, Stanislao da Campagnolanos chama a atenção para a necessidade de, mais do que definir os traços fundamentaisde um modelo geral dos espirituais, levar em conta os tempos, os lugares, as pessoas dasquais se fala. E explica: “seja porque não se podem vincular séries temporais e geográfi-cas diferentes, colocando sob uma única divisa, fatos, elementos, episódios de umperíodo, por assim dizer, pré-espiritual e outros da maturidade, ou de uma fase, emtodo caso, diversa da história dos espirituais; seja porque problemas como aqueles,relativos à apropriação dos fatos, elementos, testemunhos do primeiro período, emnovo contexto e em novo esquema interpretativo ou historiográfico, sempre maiseivado de alusões joaquimistas e de responsabilidade escatológica, mudam de medida epeso com o suceder-se e com o aguçar-se dos momentos da decadência “comunitária”desaprovada e com as conseqüentes repressões e maus tratos sofridos pelas minoriasdissidentes e contestatórias” (op. cit. 74-75).

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tentativa de traçar uma tal história, não somente por um tal empreen-dimento não pertencer ao tema propriamente de nossa exposição, masprincipalmente devido à nossa total incompetência para um tal tipode trabalho. Daremos, apenas de modo muito geral, alguns dados einformações, aliás já bem conhecidos dos que estudam a história daOrdem Franciscana, muitas vezes questionados e questionáveis sob oponto de vista da exatidão historiográfica, para podermos situar me-lhor a interrogação de perplexidade que queremos colocar mais tarde.

1.1 O que aconteceu por fim aos espirituais?

No confronto entre os espirituais e os comunitários entraram emjogo vários pontos antagônicos, mas todas essas contraposições po-dem ser reduzidas à oposição básica entre a observância estrita “adlitteram” da pobreza e a observância da pobreza no sentido mais lato,conforme as interpretações dadas e propostas pela Santa Sé, através debulas e outros documentos correspondentes. A observância estrita dapobreza exigia a aceitação da obrigatoriedade do Testamento de SãoFrancisco como pertencente à Regra. A observância lata da pobrezaconsiderava o Testamento somente como exortação e convite paramaior perfeição.

Essa luta meramente interna na Ordem franciscana é uma questãomuito antiga. Iniciou-se já no tempo de São Francisco, estava presentena elaboração da Regra, continuou e tornou-se mais explícita depoisda sua morte, tomando uma forma de confronto no seio da Ordemfranciscana, que esboçava um movimento de um certo caráter partidá-rio, mas que não chegava a ser sectário no sentido mais estrito. A lutase tornou exacerbada, constituindo algo como duas facções dentro daOrdem, que se degladiavam, após o generalato e a morte de SãoBoaventura. No conflito entre essas duas facções, ao mesmo tempoem que surgiam, tanto numa como na outra, manifestações de legíti-

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ma preocupação e cuidado pelo espírito e ideal de São Francisco, vi-nham à fala inúmeras tendências político-religiosas, negligências, rela-xamentos, idiosincrasias regionais, principalmente desavenças e lutaspelo poder, ocultos no seio da Ordem dos Frades Menores. Essa lutacomeçou a inquietar as autoridades eclesiásticas, envolvê-las na preo-cupação e no cuidado pela sua integridade pastoral-política, na medidaem que as partes em litígio recorriam à Santa Sé para assegurar para sia legitimidade de sua tese. Nessa busca de apoio das autoridades eclesi-ásticas, revezavam-se sucessos e reveses para ambas as partes, conformea posição tomada tanto pelos ministros gerais da Ordem como pelospapas, diante das reivindicações dos espirituais. Da parte da Santa Sé, agrande preocupação dos papas era manter a unidade e evitar a todocusto o cisma no seio da Ordem dos frades menores. Em geral, a atitu-de das autoridades maiores, tanto dos gerais da Ordem como dos pa-pas, era de aceitar as reivindicações justas dos espirituais, no que sereferia a abusos, negligências, relaxamentos introduzidos na Ordem,de exigir reformas; mas ao mesmo tempo, de combater a tendência deradicalismo fanático e separatista presente na insistência dos espirituaisde exigir para toda a comunidade da Ordem a observância estrita adlitteram da pobreza.

Entrementes, a desavença entre os espirituais e os comunitários seexacerbava cada vez mais, de tal sorte que os papas e os gerais daOrdem começaram a sentir a necessidade urgente de pôr fim à divisãoe reconciliar as facções sob uma única observância comum, válida tan-to aos espirituais como aos comunitários. Depois de várias tentativasde apaziguamento, tanto da parte dos papas como dos ministros geraisda Ordem, através de capítulos gerais e diversos documentos, foi ofe-recido aos frades menores um documento pontifício como propostade uma definitiva determinação para a observância regular comum.Assim, o Papa Clemente V (1305-1314) promulgou no dia 6 demaio de 1312, na última sessão do Concílio de Viena, a bula Exivi de

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Paradiso10. A bula se destacava pela moderação e esforço de concilia-ção. Admoesta a corrigir os abusos cometidos contra a pobreza, exigea seriedade em assumir a observância regular e propõe buscar a vidareligiosa franciscana segundo o espírito de São Francisco. Mostra be-nevolência no que diz respeito à busca da vida franciscana mais autên-tica, como exigiam os espirituais, mas no que toca à observância estritaad litteram da pobreza, coloca como a medida comum a todos osfrades a pobreza segundo o espírito de São Francisco acolhida dentroda compreensão determinada pelas inúmeras e sucessivas interpreta-ções dadas nos documentos e fixada nas Constituições Gerais da Or-dem. Para evitar a continuação e o recrudescimento das hostilidadesentre as facções que se manifestavam nas perseguições, até mesmo físi-cas dos comunitários aos espirituais em minoria, Clemente V provi-denciou que se estabelecessem condições para eliminar ressentimentose represálias. Assim, por exemplo, o provincial de Provença e 15guardiões, que tinham tido comportamento demasiadamente rude eduro contra os espirituais, foram demitidos e substituídos por superi-ores mais benevolentes e imparciais para com os espirituais. Dessemodo, sob o pontificado de Clemente V os espirituais se sentiramprotegidos contra a perseguição dos comunitários e se conformaramcom as determinações da bula Exivi de Paradiso. Tanto o Papa Cle-mente V como o Ministro Geral Gonçalves de Valboa (1304-1313)11

intensificavam a campanha de pacificação, convocando todos os mem-bros da ordem a se unirem sob a observância regular proposta pela

10 “Exivi de Paradiso é um documento extenso, cheio de esperança para uma maiorreforma da Ordem. O papa provavelmente pensou que, se ele vigiasse os relaxamentose ordenasse certas reformas a serem executadas, a Ordem se tornaria mais unida e issoatuaria com maior eficiência na obra que ele e seus predecessores esperavam dela. Masas divisões tinham se tornado por demais profundas para poderem ser sanadas facil-mente com um golpe de caneta” (MOORMAN, J. op. cit. p. 204).

11 Ensinou como regente em Paris, mestre de Duns Scotus, escreveu importantes trata-dos filosóficos sob o nome Gonsalvus Hispanus.

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bula Exivi de Paradiso, exigindo de todos os frades menores, comuni-tários e espirituais a submissão aos seus superiores, tanto provinciaiscomo Geral, combatendo todo e qualquer movimento de separaçãoou cisma. Com a morte de Clemente V em 1314, sucedeu-lhe JoãoXXII (1316-1334)12. Com a morte do Ministro Geral Gonçalves deValboa (1304-1313) sucedeu-lhe Alexandre de Alessandria (1314-1315)e a este, Miguel de Cesena (1316-1328). Tanto o novo papa como osministros gerais da Ordem continuaram a campanha de unificação epacificação, e pressionaram cada vez mais energicamente a submissãodos espirituais com tendências separatistas aos superiores provinciais egerais, ao mesmo tempo em que pressionavam os comunitários a sereformarem para uma vida religiosa franciscana mais autêntica, con-forme indicada e recomendada na bula de Clemente V.

O novo Ministro Geral Miguel de Cesena trabalhou para que abula de Clemente V fosse seguida por todos os membros da Ordem.Tentou acalmar a justa indignação dos espirituais contra os abusos doscomunitários e sua perseguição movida por eles. O Provincial deProvença, Etiene Alberti, em nome do ministro geral ofereceu aosespirituais perdão por tudo que se passou. Mas estes se perguntavam:perdoar o que, se o crime que eles cometeram não era outra coisa doque querer viver mais autenticamente o ideal de São Francisco e, de-pois da bula de Clemente V, de praticar a Regra franciscana conformeas determinações da bula Exivi de Pradiso. Recusaram pois a oferta doperdão, protestando contra os comunitários que demoravam em exe-cutar as reformas indicadas por Clemente V.

João XXII, bem diferente de Clemente V, no caráter e no modode lidar com a autoridade, estava como Clemente V determinado amanter a unidade da Ordem e restabelecer a concórdia entre espirituais

12 João XXII foi feito cardeal por Clemente V no ano de 1312. Seu nome de nascimentoé Jacques de Duèze.

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e comunitários. De natureza enérgica, autoritário, se mostrou desde oinício, à diferença do seu antecessor, pouco inclinado aos espirituais,principalmente contra os mais radicais.

Entrementes, os comunitários consideravam que a morte do PapaClemente V e do Ministro Geral Gonçalves de Valboa anularam asdeterminações e decisões tomadas em favor dos espirituais. Para a cons-ternação dos espirituais, os superiores demitidos, devido a sua hostili-dade exacerbada contra os espirituais, foram reintegrados nas suas fun-ções anteriores. Indignados com essas e outras manobras dos comuni-tários, os espirituais do convento de Narbona e de Béziers recorreramao papa e com ajuda dos habitantes da cidade expulsaram os comuni-tários de seus conventos e recolocaram como superiores os guardiãesanteriores. Imediatamente um grande número de frades amigos damesma província e até mesmo da província vizinha de Aquitânia seuniram aos “rebeldes” e constituíram uma fraternidade de 120 fradesem dois conventos13.

1.2 O fim dos espirituais

Esse acontecimento desencadeou novas hostilidades e um novoprocesso contra os espirituais de Provença e da Itália. João XXII man-dou vir à sua presença Ubertino de Casale, Ângelo Clareno e doisoutros representantes dos espirituais de Narbona para uma reunião,exigindo explicações sobre diversos pontos em litígio. Pelo modo

13 Diz Gratien: “No capítulo provincial reunido em Carcassona (no fim de 1315 ou noinício de 1316), tudo isso que se fez ilegalmente foi ilegalmente confirmado. Nacustódia de Narbona foi colocado como superior Guilherme d’Astre, um dos adversá-rios mais decididos dos espirituais. Dois dos superiores antigos, que contra todo odireito tinham tomado parte no capítulo, foram designados como delegados daProvença ao Capítulo Geral convocado em Nápoles para Pentecostes do ano seguinte(27.05.1316)” (GRATIEN DE PARIS, op. cit. p. 487).

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como recebeu as explicações destes e pelos atos que se seguiram, sepercebe que o papa já tinha a sua própria opinião formada sobre osespirituais, e que tinha tomado partido pelos comunitários. Assim,depois dessa audiência que se dá no fim do ano de 1316 ou no iníciode 1317, Ângelo Clareno foi colocado na prisão. No dia 27 de abril de1317, o pontífice convocou 62 dos mais agitados “rebeldes” espiritu-ais à sua presença e mandou que os outros fossem dispersos em dife-rentes conventos da província. Ubertino de Casale, porém, não foiconvocado. Mas um certo frei Bernardo Délicieux (Dulcino), um ini-migo ferrenho da inquisição e mais um outro frade, se ajuntaram vo-luntariamente aos acusados. Desses, frei Guilherme de Santo Aman-do, Geoffroy de Cornone, François Sanches e também BernardoDélicieux tomaram a palavra para se defenderem e reivindicarem odireito de separar-se da Ordem dos frades menores e de fundar umanova ordem. João XXII os meteu numa prisão, e os restantes foramcolocados no convento de Avignon para serem vigiados até uma pos-terior determinação. Esta veio no dia 7 de outubro de 1317 com abula Quorumdam exigit com apelo “à obediência” religiosa. Dos 60espirituais que no convento de Avignon aguardavam novas determina-ções sobre seu futuro, 25 resistiram. Depois de os interrogar de novo,ao ver a sua decisão firme de não ceder, o ministro geral os entregou àmercê da Inquisição14. Cinco desses 25 frades negaram insistentemen-te “o direito ao papa de poder modificar a observância da Regra que,segundo eles, era o mesmo que o evangelho”. Foram condenados, 4deles ao suplício e morte na fogueira e 1 à prisão perpétua. SegundoGratien de Paris, João XXII, antes de publicar a bula teria provavel-mente conversado com Ubertino de Casale. Este vendo que o papanão permitia aos espirituais de observar a Regra dos frades menores,

14 O inquisidor era frade e se chamava Miguel de Moine e era um dos guardiãesdemitidos por Clemente V em 1313.

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longe da jurisdição dos superiores comunitários, percebeu que nãotinha chance de permanecer na Ordem e pediu ele mesmo a autoriza-ção de deixar a Ordem. No dia da publicação da bula Quorumdamexigit (7 de outubro de 1317) Ubertino de Casale, esse defensor ardo-roso dos espirituais, foi incorporado ao mosteiro beneditino deGembloux (na diocese de Liége)15.

Segundo Gratien de Paris, mesmo antes da publicação da bulaExivi de Paradiso (1312), alguns dos espirituais de Toscana, persegui-dos duramente pelos superiores dos comunitários, ocuparam váriosconventos; depois, em número de uns quarenta, fugiram para a Sicíliasob a condução de certo frei Henrique de Ceva, para escapar das censu-ras eclesiásticas. Foram acolhidos benevolamente por Frederico, rei daSicília. A bula Quorumdam exigit ainda não era a condenação expressados espirituais, mas era um prenúncio. A condenação veio depois dointerrogatório dos 25 “rebeldes” de Narbona, na bula Sancta Romanade 30 de dezembro de 1317. Nessa bula João XXII “condena e reprovatodos os espirituais da Itália, da Sicília, do Condado de Tolosa, deNarbona e Provença, seja qual for a denominação sob a qual se escon-dem: Fraticelli, ou Irmãos da vida pobre16. E isto, apesar dos privilégi-os que eles pretendem ter obtido de Celestino V, privilégios aliás abo-lidos por Bonifácio VIII. Com eles são condenados os bizoques e osbéguines, que tinham se tornado seus adeptos e exigiam hábito da OrdemTerceira”17. Os espirituais de Toscana, refugiados em Sicília ao redorde Henrique de Ceva estavam englobados nessa condenação. Mas João

15 GRATIEN DE PARIS, op. cit., p. 493, nota 31. Segundo Holzapfel, não sabemos sefoi efetuada a incorporação. Provavelmente não se deu a entrada de Ubertino naOrdem beneditina. Por ocasião do seu aparecimento posterior, Ubertino é chamado deex-minorita, mas não ex-beneditino (cf. op. cit. p. 64).

16 Quanto à denominação Fraticelli cf. GRATIEN DE PARIS (op. cit. p. 497,nota 39).

17 GRATIEN DE PARIS, op. cit. p. 495-6.

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XXII fez questão de emitir a bula Gloriosam Ecclesiam de 23 de janeirode 1318, que os condenou e os excomungou especialmente.

Concluamos esse parágrafo sobre o fim dos espirituais com a ob-servação de Gratien de Paris: assim, “a comunidade em fim teve a últi-ma palavra sobre os espirituais. A causa deles estava perdida definitiva-mente. Os documentos Quorumdam exigit, Sancta Romana eGloriosam Ecclesiam os tinham decepado para sempre da Ordem dosFrades Menores”18.

2 O espírito dos espirituais19

Segundo Teodosio Lombardi, os manuais da história da OrdemFranciscana falam dos frades implicados na luta acima relatada, dividi-dos em três grupos: dos “zelanti”, dos “moderati”, dos “rilassati”, por-tanto em zelantes, moderados e relaxados. Essa classificação, aliás mui-to geral não serve para especificar e caraterizar os espirituais e os comu-nitários. Pois essas qualificações genéricas podem ser atribuídas, sobdiferentes pontos de vista, tanto aos espirituais como aos comunitári-

18 Op. cit. p. 496. Em nossa exposição, omitimos falar mais sobre João Pedro de Olivi,Ângelo Clareno e Ubertino de Casale, sobre seus pensamentos e sobre suas lutas e seussofrimentos, e sobre o fim que levaram. Tudo isso pode ser lido em detalhes na biblio-grafia que indicamos bem no início de nossa exposição. Pois embora a exposição faledos espirituais, o seu tema é na realidade o que está implícito no ponto de interrogaçãofinal do título, o qual podemos caracterizar, como já foi insinuado acima, como pontode perplexidade da interrogação.

19 O título desse segundo capítulo exige uma boa exposição sobre doutrinas principais,mística e espiritualidade dos líderes principais do movimento dos espirituais, principal-mente de João Pedro de Olivi e também de Ângelo Clareno e Ubertino de Casale. Nãonos é possível uma tal pesquisa, não somente por causa da economia do espaço, masprincipalmente pela limitação do nosso saber. Aqui, porém, entendemos a palavraespírito na acepção menos exigente, menos objetivo-real, mas já dentro do ponto devista da interrogação subjetivo-particular, o qual queremos começar a colocar, emborade modo bem insuficiente e vago.

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os ou a quaisquer outros grupos humanos20. Por isso, não se podeadmitir que houvesse então facções organizadas como “partidos” doszelantes, moderados e relaxados. Daí não se deve pensar que os espiritu-ais fosse um nome usado para indicar os religiosos observantes, fiéis ezelosos, numa acepção geral. Do mesmo modo, o termo rilassati nãoindica tout court os comunitários; e moderati os que estariam no meio,no sentido de ser equilibrado, politicamente correto, na acepção usualdefasada do dito latino: virtus in medio. Analogamente, a classificação:os da direita, os da esquerda, e os do centro; os tradicionalistas oufundamentalistas, os progressistas, e os em cima do muro; ou os talebãs eos liberais, não seriam classificações de adequação precisa, embora tan-to nos espirituais como nos comunitários se encontrem fenômenosque poderiam ser enquadrados nos binômios acima mencionados eoutros. Não devemos pois entender a atitude dos espirituais a partir edentro da ratio divisionis da classificação zelanti, moderati e rilassi. Émais claro e metodicamente mais enxuto considerar os espirituais comofacção, algo como um “partido” dentro da Ordem franciscana, com oseu modo de ser e pensar todo próprio e minoritário, a ser estudadomelhor a seguir. Evitemos, pois de lançar sobre a classificação-binômiaespirituais – comunitários a malha de uma outra classificação tripartitazelanti, moderati e rilassi21. Resumindo, a divisão tripartita zelanti,

20 Dentro dos espirituais, por exemplo, na perspectiva do rigorismo de observância exter-na, poderia haver pessoas zelosas, moderadas e relaxadas, que na perspectiva de bom sensona compreensão da essência da observância externo-material poderiam ser inversamenterelaxadas, moderadas e zelosas. O mesmo se poderia dizer dos comunitários. Na literaturafranciscana, porém, o termo zelanti é usado para indicar os discípulos mais próximos deSão Francisco da primeira e mesmo da segunda geração dos frades menores que eramzelosos e zeladores da conservação do espírito originário deixado por São Francisco.21 Cf. LOMBARDI, T. op. cit. p. 145: “Numa Ordem que, naquela época, contava comcerca de 40.000 indivíduos, as pessoas envolvidas no movimento ‘espiritual’ não ultrapas-savam talvez a cifra de duzentos frades, e praticamente o problema dizia respeito às trêsprovíncias de Provença, Marca de Ancona e Toscana. Se o fenômeno espirituais teve tantaressonância não foi por sua entidade numérica, mas pelas questões, trazidas à fala e pelasimplicações que tiveram conseqüência sobre a questão da pobreza”.

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moderati e rilassi é de conotação valorativa, moral, ao passo que, adivisão da classificação espirituais e comunitários conota concepção,compreensão e modo de ser da referência ao ideal e ao espírito origi-nário de São Francisco.

2.1 A pobreza, o espírito dos espirituais?

Assim, para perceber o que especificamente caracteriza o móvel dacausa dos espirituais devemos considerar que o binômio que expressaas posições contrárias da questão em litígio entre as duas facções soaespirituais – comunitários ou comunidades, e não, por exemplo, espiri-tuais e materiais, ou espirituais e pouco ou mesmo não espirituais, ouespirituais e mundanos etc. Atrás desse modo de oposição expressa nobinômio espirituais-comunitários se esconde o pivô da questãofranciscana. Segundo o texto citado de Lombardi, esse pivô se chamaa questão da pobreza. É interessante anotar que no tempo da luta entreos espirituais e os comunitários a questão da pobreza significa“questionamento crítico acerca da pobreza franciscana”. No início, naorigem da Ordem, em São Francisco e em seus primeiros companhei-ros, a “questão da pobreza” significa a busca apaixonada e apaixonante,de vida e morte, com adesão total e incondicional de toda a existência dequem busca, no nosso caso, de São Francisco de Assis e de cada um dosseus primeiros companheiros. Portanto nada a ver com questionamentoou crítica; nada a ver com a busca de explicação de como deve ser apobreza, se material ou espiritual; se obriga tal qual está escrita noTestamento ad litteram ou já interpretada pelos homens. Essa paixão,essa absoluta positividade, palpável, real, sim “físico-material”, diga-mos corpo a corpo, esse sim incondicional à pobreza é sentido por todosnós, quando lemos os Escritos de São Francisco, na sua Regra em trêsversões, em suas admoestações, em suas cartas, em suas orações, e prin-cipalmente no seu Testamento. A intensidade dessa busca, dessa ade-

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são à busca vem à fala de modo inequívoco nas primeiras biografias deSão Francisco e nas coletâneas das narrações sobre os episódios eensinamentos de São Francisco transmitidas no início oralmente22. Esseamor à pobreza, personificada como Senhora Pobreza e o encontro deunião esponsal com ela, é o que caracteriza na origem da Ordem a questão,a busca da pobreza. Essa busca aparece nítida e claramente, segundo estudi-osos da coisa franciscana, no escrito, o mais antigo sobre São Francisco,intitulado Sacrum Commercium Sancti Francisci cum Domina Paupertate.Diz Sacrum Commercium: “Francisco, como verdadeiro imitador e discí-pulo do Salvador, no princípio da sua conversão, dedicou-se com todo o empe-nho, com todo o desejo e com toda a deliberação a procurar, encontrar econservar a Santa Pobreza, nada duvidou de adverso, nada temeu de sinis-tro, não se esquivou de nenhum labor, nem declinou de nenhuma angústiacorporal, se lhe fosse dada apenas a possibilidade de chegar àquela a quemo Senhor entregou as chaves do Reino dos céus”23.

22 Temos assim, por exemplo, a Legenda dos três companheiros, Legenda Perusina, Oespelho da perfeição, os Atos do bem-aventurado Francisco e seus companheiros (I Fioretti deSão Francisco de Assis) etc.

23 Sacrum Commercium de São Francisco com a Senhora Pobreza. Santo André: EditoraMensageiro de Santo Antônio, 2002, p. 20-21. Cf. BRUFANI, Stefano, “Il SacrumCommercium: L’identità minoritica nel mito delle origini”, in: Dalla “Sequela Christi”di Francesco d’Assisi all’Apologia della Povertà, Atti del XVIII Convegno Internazionale(Assisi, 18-20 ottobre 1990), Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, Spoleto,1992, p. 203-222; Cf. BRUFANI, Stefano, “Sacrum Commercium Sancti Franciscicum Domina Paupertatis”, Introduzione, in: Fontes Franciscani, a cura di Enrico Menestòe Stefano Brufani e di Giuseppe Cremascoli, Emore Paoli, Luigi Pellegrini, Stanislao daCampagnola, apparati di Giovanni M. Boccali, Assis: Edizioni Porziuncola, 1995, p.1693-1703; Cf. MANSELLI, R. “Evangelismo e povertà”, in: Povertà e ricchezza nellaspiritualità dei secoli XI e XII. Atti dell’VIII convegno del Centro di Studi sulla spiritualitàmedievale (Todi, 15-18 ottobre 1967) Todi, 1969, 11, compl. p. 9-41. Cf. HARDICK,Lothar, “Pobreza, pobre”, in: Dicionário Franciscano. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1993,p. 586-599, cf. p. 587.

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2.2 A questão da pobreza, uma luta pelo espírito originário?

O amor à Pobreza como ela aparece na sua límpida transparência nosEscritos, nas palavras, nas atitudes de São Francisco e seus primeiros com-panheiros no início, na origem da Ordem é pois o ponto nevrálgico aoredor do qual se desencadeia o movimento dos espirituais, nas suas reivin-dicações. Os espirituais se consideram como herdeiros legítimos da tradi-ção autêntica do espírito de São Francisco. Assim, nas suas reivindicações,nas críticas às comunidades, na insistência em reclamar pela reforma ur-gente da observância mais estrita da pobreza, na persistência em afirmarque o Testamento é a consumação da Regra, e que por isso mesmo é tãoobrigatório quanto a Regra etc., os espirituais se interpretam, se vêemcomo continuadores e participantes, sim partidários da luta pela observân-cia da estrita Pobreza, da questão, isto é, da busca, corpo a corpo, de vida ede morte, do espírito originário de São Francisco, portanto, do carismafundacional da Ordem franciscana24.

Mas então, se tudo isso que os espirituais dizem e sentem de sitem um fundamento, por que foram tão rejeitados, combatidos e per-seguidos, a ponto de alguns deles pagar a sua fidelidade ao espiritooriginário de São Francisco, portanto ao carisma fundacional da Or-dem, com prisão, exílio, e sim até com a própria morte, como foisucintamente relatado no primeiro capítulo dessa exposição?

24 Segundo alguns documentos eclesiásticos, segundo certos escritos da espiritualidadecristã, carisma fundacional é o espírito, i. é, o sopro vital, o vigor essencial que, recebidoatravés do seu fundador, faz surgir, crescer uma ordem ou congregação religiosa, unifican-do-a, vivificando-a, constituindo a sua identidade. Carisma fundacional de uma ordem oude uma congregação é concreção, é corporificação, o vir à fala da insondável e inesgotávelfonte da vitalidade espiritual da Cristidade que é Jesus Cristo, o Carisma do Pai, i. é, oesplendor e a manifestação da graça e da beleza do amor do Pai. Cf. JOÃO PAULO II, Avida consagrada. exortação apostólica pós-sinodal sobre a vida consagrada e a sua missão naIgreja e no Mundo. São Paulo: Paulus, 1996; Cf. FASSINI, Dorvalino Frâncico. Vidaconsagrada e formação. Porto Alegre: Província São Francisco de Assis, 2002.

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As pesquisas historiográficas, com sua abordagem bem diferencia-

da e acurada, nos fazem suspeitar que a “coisa” ou melhor “a causa” não

é tão simples assim. Aqui surgem perguntas, por exemplo, como essa:

tudo isso que dissemos do carisma fundacional, da experiência e inspi-

ração originária de São Francisco, donde é que sabemos de tudo isso?

Ou é algo que a priori supomos como já existente, como algo verificável?

Trata-se apenas de uma hipótese da Espiritualidade, ou é uma “realida-

de” perceptível, embora se exija para isso uma percepção toda própria,

chamada espiritual? Não é assim que tudo isso que dizemos da experi-

ência de São Francisco, por ser ela a mais íntima e pessoal e existencial,

só pode ser captada nela mesma, ao passo que ela na realidade nos é

transmitida através dos relatórios dos seus discípulos? E mesmo que

fossem obras escritas ou ditadas pelo próprio Francisco, não chega a

nós através de manuscritos, cuja transmissão até nós implica uma tra-

dição complexíssima dos manuscritos, portanto através de uma trans-

missão mediada pelos pósteros, acerca de Francisco e dos seus escritos?

E mesmo lá onde temos com toda certeza ou com grande probabilida-

de textos escritos pelo próprio punho de Francisco, donde é que tira-

mos o significado, o sentido de suas palavras? Já não as entendemos, a

partir e dentro da representação ou imagem do Santo, transmitida

pelos primeiros biógrafos de São Francisco? Assim, embora amemos

Francisco, nos fascinemos por esse nosso irmão menor, tão simples,

humilde e pobre; embora o acolhamos na afeição e confiança da sim-

plicidade filial dos seus seguidores e admiradores, nós hodiernos, estu-

dados ou não, somos colocados diante de todas as dificuldades que as

ciências historiográficas em sua acribia e paixão pela “veracidade” his-

tórica nos apresentam, não para “complicar” inutilmente com sua

racionalidade e racionalização “intelectualista” a vivência da simplici-

dade e pureza, da inocência vital da espiritualidade, mas a partir e den-

tro da paixão científica pela verdade crítico-histórico-científica.

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Ao se considerar o que acima chamamos de carisma origináriofundacional, que se revela através da experiência originária de São Fran-cisco e de sua inspiração, sob a perspectiva historiográfico-científica,acima mencionada, percebemos que a imagem “originária” de Francis-co, a sua “prima et ultima intentio”, a sua “vida de pobreza estrita,radical” aceita sine glossa, sine glossa, sine glossa, pode já ser produtoda compreensão que os primeiros companheiros de São Francisco, osseus primeiros zelantes discípulos herdeiros e curadores do “Espírito”franciscano, portanto os proto ou pré-espirituais, principalmente daÚmbria, transmitiram aos seus discípulos, tornando por assim dizerocasiões ou mesmo causa do espiritualismo e do ideal de autenticidadeque mobilizava e conduzia os espirituais da era posterior à luta, àautoafirmação25.

No que toca à compreensão do espírito e espiritual, na exigência dosespirituais de voltar a e de conservar o espírito originário de Francisco, ostraços captados por eles da fisionomia humano-espiritual de S. Francisco,na colheita biográfica das primeiras “vidas” do santo parecem estar retoca-dos com coloração de sublimação e super-valorizados por uma aura de“vitae perfectae et merae contemplationis et raptus”26, que tanto Franciscocomo vários de seus primeiros companheiros parecem não mais viver na

25 “De tudo isso, emerge a constatação, em si óbvia e deduzida, de que grande parte dospressupostos do drama dos espirituais postula não somente interlocutores umbros, masse configura sobre uma “silhueta” de Francisco e do seu ideal originário, delineada pelosdiscípulos zelanti umbros, mantenedores da vontade e das intenções ‘literais’ do Mestree, ao mesmo tempo, depositários dos ‘secreta ordinis’ que eles transmitem oralmente oupor escrito” (STANISLAO DA CAMPAGNOLA, op. cit. p. 84); “Frei Tiago de Massaobteve essa história da boca de frei Leão; e frei Hugolino do Monte de Santa Maria, daboca de frei Tiago. E eu que escrevo, obtive-a da boca de frei Hugolino, homem dignode fé e bom”. Actus do bem-aventurado Francisco e dos seus companheiros, traduçãosob a responsabilidade de frei Dorvalino Fassini OFM, São Paulo: Mensageiro de SantoAntônio, 1997, cap. 9, v. 71.

26 “Vida perfeita e da pura contemplação e êxtase”. É uma expressão freqüente nas“vitas” dos companheiros de Francisco, colecionadas nas Chronica XXIV Generalium.

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terra das vicissitudes da existência humana, mas no céu de um espiritualismodiáfano, cuja sublimidade sabe ao misticismo que não conhece aEncarnação27. A nossa veneração e amor filial para com São Francisco eseus primeiros companheiros nos faz pensar sem mais que esses pré-espiri-tuais ou os proto-espirituais, santos seguidores da altíssima pobreza e con-templação, imitavam a São Francisco, em vivendo a vida de oração e peni-tência na solidão dos eremitérios ou em pequenas moradias, modestas epobres no campo, cheios de vitalidade, santidade, autenticidade do segui-mento cristão. Examinando-se esse estilo pobre de vida, sob o ponto devista mais crítico e historiográfico, a vida no eremitério pode significar nãosomente ou não necessariamente uma manifestação de engajamento aoideal originário. Segundo Stanislao da Campagnola, esse retirar-se na vidasolitária, em eremitério “não representava somente um traço de fidelidadeao ideal da origem, um momento no qual o ideal aparecia minado, sejapela nova atividade pastoral a qual se dedicavam agora os frades menores,seja pela realidade social dentro do imprevisível desenvolvimento urbanoque impelia os religiosos a abandonar as moradias primitivas e precáriaspara se inserir nos aglomerados citadinos”28. Na medida em que a ordemcrescia rapidamente em número, e com a entrada dos doutores, dos estu-dantes universitários, dos sacerdotes, de uma ordem predominantementede irmãos leigos, se transformava numa ordem clerical, com exigência enecessidade de uma formação acadêmica cada vez mais “excelente”. A or-dem comandada por esses novos elementos mais progressivos assumianovas tarefas, responsabilidades e desafios de evangelização, abriam-se no-vas fronteiras de pregação, missão, de pastoral; a vida comum se estruturavade modo novo, bem diferente do da vida primitiva. Nesses itens os fradeszelosos e zelantes do espírito originário da Ordem apresentavam uma ten-dência que poderia induzir à suspeita, se no fundo essa vida nos eremitéri-

27 Cf. STANISLAO DA CAMPAGNOLA, op. cit. p. 87.

28 Id. Op. cit. p. 88, nota 50.

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os não era uma espécie de fuga. Assim, o eremitério, e juntamente com elea vida pobre, cheia de vicissitudes nas intempéries, ausência de objetos deluxo e de comodidades, ao mesmo tempo em que expressava lugar deintensa busca espiritual ou quem sabe espiritualista, se tornava tambémlugar de refúgio, onde se evitava ter que suportar o convívio com os co-munitários, suas teses e seus modos diferentes de viver a vida “fraternal”em comunidade do mesmo ideal franciscano e se confrontar com deca-dências e afrouxamento da observância, existentes nos comunitários.

Por outro lado, havia o grupo dos “observantes” comunitários, e se-gundo a sua auto-interpretação, grupo dos que tentavam manter-se autên-ticos no seguimento do espírito de São Francisco, mas evitando de fixá-lona forma quase fundamentalista de ver o espírito originário de Francisco amodo dos espirituais mais radicais. Esse grupo, que era a maioria, se abriaaos desafios e às necessidades dos tempos novos, auscultando os sinais dostempos, implícitos nas situações da evolução da ordem em várias dimen-sões, e combatia o grupo minoritário dos espirituais como um grupo derigoristas, fundamentalistas e separatistas. Essa oposição, em vez de fazercrescer para um confronto sério de cada posição consigo mesma e para umexame mais radical e clarividente dos seus próprios princípios e normas,desandou para uma disputa que crescia cada vez mais na fixidez de medi-das, na compreensão da vida franciscana, ao redor de exterioridades equestiúnculas jurídicas, sem mais estar na inspiração da essência do sercristão, pulsante, por exemplo, na imagem de São Francisco e de seusprimeiros companheiros.

3 Espírito franciscano, hoje?

Como já foi mencionado no início, o termo hoje com o seu pon-to de interrogação expressa perplexidade. Perplexidade diante de um“fenômeno” da contradição interna dentro da Ordem franciscana. Dis-

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semos também que essa perplexidade é de caráter subjetivo-particular.Em que sentido é subjetivo-particular, isso deve ser explicado melhor.Para isso, de tudo que viemos dizendo acerca dos espirituais, tentemosdestacar um estado da questão e assim explicar de que se trata, quandodesignamos o ponto de interrogação como perplexidade que se ex-pressa num ponto de inter-esse da existência chamada franciscana, cujopivô está na pré-compreensão toda própria e singular do ser espiritual29.Para colocar o estado dessa questão subjetivo-particular da nossa per-plexidade, recorramos a alguns dados tirados e resumidos a nosso modo,do verbete-artigo já mencionado, de Giulia Barone em Dizionario degliIstituti di Perfezione, vol. 8, verbete “Spirituali”, col. 2034-2040.

Há na Ordem Franciscana um ponto nevrálgico, bem escondido ebem enraizado no cerne, o mais íntimo e profundo, digamos no cora-ção do seu destinar-se, isto é, da sua história, cheia de lutas, sofrimen-tos e empenhos, que é algo como matriz, donde surgem e para ondeconvergem inúmeros e diversos problemas e conflitos, experimenta-dos a duras penas pelos frades menores, em todas as épocas e em todosos lugares como acenos de um retorno contínuo a uma única e totalinterrogação da busca, isto é, da questão franciscana. Esse ponto deinterrogação de onde e para onde se move a espiral da questãofranciscana do espírito (isto é, do sopro vital), originário da sua identi-dade é: Francisco de Assis. É por isso que a questão dos espirituais ini-cia-se e já vem à fala na própria vida de Francisco, na origem e evolu-ção da Ordem, e vem a nós através dos tempos, em multifárias vicissi-tudes da existência franciscana em repetição.

29 Qualificamos esse “ser do espiritual” de subjetivo-particular, porque nas questõesfranciscanas, ao falarmos por exemplo do espírito originário de São Francisco e dos seusprimeiros companheiros, é costume compreender “espírito” e “espiritual” dentro daclassificação de uma compreensão predeterminada de que o espírito, o espiritual épróprio da “realidade” interior do sujeito, portanto, subjetiva, e que por ser subjetivopessoal, individual, privativo e particular não possui propriamente uma validade co-mum, objetiva, geral.

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De que problema se trata nessa questão? Historiograficamente eleaparece, por exemplo, de modo bem concreto no fato mencionado eanalisado por Barone, a saber: 5 anos antes da sua morte, Francisco,fundador e alma da Ordem franciscana renuncia ao seu cargo de mi-nistro geral da Ordem. Por que?30

Acerca do por quê dessa decisão há várias sugestões de interpreta-ção. Mencionemos as principais:

• A constatação, da parte de Francisco, dos limites do seu corpo,cujas forças se debilitavam cada vez mais, devido às enfermidades efraquezas. Trata-se, pois, de cansaço e da sábia percepção precisa dainadequação de suas forças e capacidades diante das tarefas cada vezmais exigentes, complexas e volumosas, principalmente em referênciaàs exigências administrativas dessa Ordem que se expandia e tomavaforma e corpo de proporção européia

• Talvez pressentindo a morte iminente, a tentativa de concentrartodas as suas forças para dedicar-se inteira e indivisamente à tarefa dolíder carismático, no fomento e na consolidação espiritual dos mem-bros da Ordem, deixando outros tipos de tarefas e atividades, princi-palmente as administrativas, a outros.

• A impossibilidade interna de assumir como coordenador geral aliderança da Ordem por ele fundada, cujo carisma fundacional Fran-cisco sente ter recebido do Senhor, na sua evolução para direção, for-ma e modo de ser do crescimento, escolhidos por uma facção dosinfluentes na Ordem e da própria Igreja Romana. Esta encorajava, exor-tava, tecia elogios e favorecia a Ordem com inúmeros e abundantesprivilégios, dava-lhe tarefas novas, importantes, encargos e títulos, paraque a Ordem dos frades menores se tornasse no seu modo de ser,

30 Cf. FRANK, I. W. Franz von Assisi, Frage auf eine Antwort. Düsseldorf, 1982.

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digamos, cada vez menos diversa das outras ordens, para poder colocá-la a serviço do próprio programa de evangelização, para combater he-resias, para assim transformá-la numa grande e poderosa instituiçãoeclesiástica à disposição dos planos missionários, pastorais e até mes-mo políticos da Igreja Romana no fomento, manutenção e expansãoda sua influência e do seu poder.

Sem excluir nenhuma dessas motivações acima mencionadas paraa explicação do por quê do fato da renúncia de São Francisco doGeneralato, 5 anos antes da sua morte, o último item apresentadoacima parece explicar melhor todo o movimento de conflitos e lutasno fim do primeiro século da origem e da evolução da Ordemfranciscana, entre os assim chamados espirituais e comunitários.

Como já foi rapidamente mencionado no capítulo 2.1, o pivô daquestão que cria o binômio espirituais e comunitários se chama a ques-tão da pobreza. Essa questão da pobreza nas suas discussões entre osespirituais e os comunitários, na tentativa de definir a essência da vidafranciscana, girava ao redor de questões como: quando se luta pelapobreza, trata-se da pobreza material ou espiritual? viver sem nada depróprio ou no uso dos bens, sem ser seu proprietário? se é só uso, e nãoposse, é uso pobre – usus pauper – ou uso moderado – usus moderatus?o Testamento de são Francisco deve ser assumido como obrigatório,juntamente com a Regra, como consumação da própria Regra, por-tanto deve ser vivido sine glossa ou apenas como uma admoestação“espiritual”, não obrigatória, com interpretações apropriadas para situ-ações da mudança da época e circunstâncias? Todo esse leque de ques-tões, se examinarmos bem, embora atrás de todas essas posições diver-gentes sempre de novo se possa encontrar uma faísca de pulsões degrande ou pequeno amor à causa franciscana, na sua forma e nas suasações são modus deficiens da questão, cuja essência possui um outrohálito, isto é, espírito que vem da inspiração originária, em cujo toque

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o indivíduo Francisco é São Francisco de Assis. O toque da inspiraçãooriginária sob cujo impulso Francisco é aquele que é, nãoempiricamente, mas propriamente no vigor do ser da sua essência sechama: Seguimento de Jesus Cristo. O ponto de interrogação hoje por-tanto incide justamente nisso: a essência do ser franciscano vivido etransmitido por São Francisco, e isto, mesmo ou apesar do retoque“espiritualista” feito tanto pelos pré-espirituais como também pelosespirituais não consiste na pobreza nem estrita, nem moderada; nãono Testamento sine glossa, nem na Regra segundo o modo como asábia Igreja interpreta para o fomento da Ordem através dos séculos;nem na penitência, nem no minorismo ou fraternismo, nem na con-templação, nem na união mística, nem na evangelização; mas sim toutcourt, imediata e concretamente, corpo a corpo, no Seguimento deJesus Cristo, nada mais, nada menos. Dito de outro modo, em vez deinterpretar o Seguimento em o classificando a partir de pobreza, Testa-mento, Regra, penitência, minorismo, fraternismo, vida comum, vidaeremítica, contemplação, mística, tentar compreender todas essas as-sim chamadas categorias fundamentais da espiritualidade em geral eprincipalmente da espiritualidade franciscana, a partir e dentro da com-preensão ela mesma própria do Seguimento de Jesus Cristo31. Acimadissemos que no coração do destinar-se da Ordem franciscana, amatriz donde surgem e para onde convergem as vicissitudes da históriada Ordem em todas as suas dimensões, sublimidades e decadências,donde e para onde pulsa a vida franciscana em todos os tempos e luga-res, em todas as suas interrogações, este ponto da matriz-de-fundo

31 No modo como está formulada uma tal colocação é insuficiente, é simplista. Assim,podem surgir mil e mil objeções contra a proposta, que são muito úteis para não cairmosno simplismo. Isto principalmente porque o seguimento não é uma categoria entreoutras categorias espirituais, nem um conceito genérico que subsume outros conceitosqualificativos do ser franciscano debaixo da sua extensão. Aqui surge uma questãodificílima da hermenêutica, num sentido todo especial, que ora não podemos trataradequadamente.

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para onde se move a espiral da questão franciscana do espírito originá-rio da sua identidade é: Francisco de Assis. Mas Francisco de Assis não éoutra coisa do que a personificação do Seguimento de Jesus Cristo.Daí o aceno: Franciscus alter Christus. Este se corporifica como Pobre-za estrita, sine glossa do Testamento, o Cristo Crucificado que é deno-minado como figura feminina: a Senhora Pobreza. Portanto, todos ostermos que se referem a Francisco, pessoa-matriz do ser franciscanocoincidem com o Seguimento, corpo a corpo, nu e cru, numaconcreção-identidade, do Cristo Crucificado: a Senhora Pobreza. Mastal colocação é impossível! Pois, factualmente, isto alvora o indivíduoFrancisco na sua vivência pessoal subjetivo-particular, sim, digamosinefável, para não dizer irracional na medida matriz de todo o serfranciscano32. E quem me garante que tudo que acima insinuamos sobos termos como Seguimento, Alter Christus, Pobreza estrita, SenhoraPobreza, e mesmo Cristo Crucificado, na sua compreensão, não passade simples fantasia, especulação, certamente cum fundamento in re,mas inteiramente subjetivo-particular, se não tanto dos primeiros com-panheiros de São Francisco, ou de seus primeiros biógrafos, portantodos pré-espirituais, dos espirituais da primeira geração, e através destesdos espirituais da segunda geração, e assim por diante, mas também daterceira, quarta, e dos espirituais e espiritualistas de todos os tempos?

O nosso ponto de interrogação, cheio de perplexidade, de nãosaber o que dizer e o que pensar incide portanto nesse ponto da reali-dade, há pouco acima nomeado como o seguimento, corpo a corpo, nue cru, numa concreção-identidade, do Cristo Crucificado, da SenhoraPobreza. Aliás, é a isto que chamamos vagamente na espiritualidade de

32 É o que fazem os espirituais, quando apelam para a vida de Francisco e seu Testamen-to contra a interpretação amenizada da vida da pobreza dos comunitários. Assim, osespirituais se fazem um grupo que acentua a experiência pessoal, individual, ao passoque os comunitários, um grupo que coloca o acento na vida comum.

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dimensão do espírito originário e da experiência de São Francisco, a partire dentro da qual termos como espírito, os espirituais, espiritual, rece-bem pretensamente o seu sentido. Que se não saiba nem o que dizernem o que pensar pode vir e vem certamente da limitação individual,subjetivo-particular. A tal ponto que um tema assim, uma interroga-ção assim, nem se quer deveria ser mencionada num artigo ou numaescrita que de alguma forma tem caráter de ser público, pois tais ques-tões são pseudo-problemas. Espírito e espiritual são termos que todomundo compreende e sabe o que é de imediato, obviamente como ostermos vida, ser, amor, Deus, pobreza, Cristo Crucificado etc. Assim estáde alguma forma justificado o caráter privativo, particular e subjetivodo ponto de interrogação do título do nosso tema: Os espirituais, hoje?

Com o risco de a nossa interrogação perplexa subjetivo-particularpermanecer ou tornar-se cada vez mais privativo-pessoal, tentemos ca-racterizar melhor a interrogação, formulando a questão através de al-guns dos seus pontos mais nevrálgicos.

3.1 A dimensão chamada espírito?

Se observarmos as contraposições de discussões entre os espirituaise os comunitários, percebemos de imediato que os espirituais ao insis-tir na “volta à origem”, ao São Francisco, se engajam na vida de auten-ticidade e na renovação do ser franciscano, acentuando a vivência, aexperiência, a santidade e perfeição pessoal, a exemplo de São Francisco eseus primeiros companheiros. Ao passo que os comunitários acentuammais a busca da estruturação comunitária e participação no grupo soci-al, como comunidade institucional constituída com determinadas ta-refas e metas; são, pois, frades que querem ser franciscanos, aceitam aespiritualidade de São Francisco, mas constituem não mais apenas pe-quenos ajuntamentos fraternais de irmãos que viviam de modo muitopobre e primitivo nas pequenas moradias, nos eremitérios, nos lugares

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quaisquer da zona rural, mas sim em grandes conventos, casas de estu-do, nas cidades, com mentalidade mais urbana, digamos, progressista,crescendo e se instalando cada vez mais como uma grande instituiçãoeclesial, com novas tarefas, encargos, se adaptando às exigências e àsnecessidades dos novos tempos, a pedido e exortação da Igreja. Assim,se usarmos uma classificação hodierna, sem entrar no mérito da validezde sua “ratio divisionis”, podemos dizer que os espirituais viviam,mutatis mudandis, a vida religiosa franciscana no estilo e na concepçãode uma espiritualidade subjetiva, particular, de perfeição e santidadepessoal, ao passo que os comunitários no estilo e na concepção de umaespiritualidade eclesial-social para não dizer eclesiástico-monacal mo-dernizada. Porque a espiritualidade de perfeição e santidade pessoallida com a esfera íntima, pessoal, subjetivo-particular, os espirituaisnos aparecem acentuadamente edificantes e intensos na piedade, con-templação e virtudes; são homens “interiores”, de muita fé e edificação,mas um tanto unilaterais, sem muita abertura para a dimensão eclesial-social, fechados numa compreensão quase fundamentalista da vidareligiosa, alienados das novas exigências e necessidades das novas épo-cas. Assim, toda a questão, queiramos ou não, mesmo cientes de ou-tros aspectos e de outras perspectivas, acaba se reduzindo à problemá-tica do relacionamento entre um espiritualismo centrado na esfera ín-tima pessoal, subjetivo-particular do homem, e uma espiritualidadecentrada na dimensão social comunitária eclesial33.

33 Numa colocação, assim superficial e simplificada, podemos dizer que do lado daesfera pessoal está por exemplo a vida interior, o cultivo da oração pessoal e da piedade,a contemplação, o relacionamento vertical com Deus, na intimidade de Tu a Tu, asantidade e a perfeição pessoal, o cultivo das virtudes, as vivências, o coração, o carisma,a intuição, o viver intensamente a vida pessoal, em pequenas fraternidades, de modocaseiro etc. Do lado da esfera eclesial-social e comunitária temos: a doação aos irmãos, aação, as responsabilidades pelo mundo, pela sociedade, pela humanidade, o engajamentopelos valores ético-social-políticos, o conhecimento, o interesse e a preocupação pelosestudos e as ações sociais, a familiaridade com o jurídico, com a disciplina, com asistematização, o poder, a organização, a qualidade máxima, a excelência dos seus em-preendimentos, na gestão e administração etc.

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Sem dúvida, uma tal explicação classificatória, sem analisar cadavez o fenômeno concreto como tal, não leva em conta os entre-cruza-mentos nessas variações de diferentes perspectivas que, por sua vezpodem mudar de polaridades, criando com o avolumar-se das varia-ções, um emaranhado quase inescrutável de significações. E pode muitobem ser que todas essas significações classificatórias sejam, em grandeparte, projeções das nossas dificuldades e medidas, lançadas sobre ascolocações medievais dos problemas dos espirituais.

Mas, seja como for, o ponto de insistência dos espirituais, seja dasegunda ou da primeira geração, em voltar a e conservar o espíritooriginário transmitido por São Francisco e dele herdado, que se ex-pressa como Seguimento de Jesus Cristo, Pobreza, Testamento etc.etc. não pode ser devida e propriamente captado, se o classificarmoscomo pessoal, subjetivo e particular ou moral, místico ou piedoso nosentido usual.

O título desse terceiro capítulo soa Espírito franciscano, hoje? Aessa altura da exposição, começa a surgir uma inquietação, uma espéciede frustração, ou melhor digamos perplexidade. É que estamos mar-cando passo, girando vazio, no vazio a modo de antigas locomotivas,das assim chamadas “maria fumaça”. A locomotiva “maria fumaça”,puxa filas de vagões, carregados de imenso peso; mas não consegue irpara frente numa subida, porque o peso puxa para trás todo o combóio,de tal sorte que mal consegue segurar o conjunto que por assim dizerfica parado, mas que está sendo puxado pela locomotiva da frente,cujas rodas giram freneticamente, marcando passo, no vazio. Essemedium da perplexidade de não saber o que dizer, o que pensar, comoque ao dizer girando no vazio, numa repetição infrutífera nos podeinduzir a compreendermos melhor o que se quer dizer com interroga-ção subjetivo-particular da perplexidade. Aqui, a essa altura da refle-xão, a interrogação perplexa e titubeante, se expressa mais ou menos

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como que num ímpeto, surgido da própria perplexidade, numa espé-cie de reação indignada contra tantas hesitações e senões intermináveis:Para que tanta lenga lenga de perspectivas e pontos de vista, por quenão dizer direta, imediata, simplesmente, sine glossa, isto é, concreta eimediatamente a coisa ela mesma do espírito franciscano: viver como,imitar, seguir a Cristo pobre, humilde, crucificado?

Mas, quem vive e pode viver assim tão abstrato-formalmente, tão“espiritualmente”, assim tão direto, sem mediação, tão radical, sim“irracional”, “coisal”, sem levar em conta as vicissitudes da Terra dosHomens? Que um indivíduo ou alguns indivíduos, santos, radicais ouquem sabe fanáticos talebãs consigam viver uma tal existência religio-sa, tudo bem, talvez fosse possível; isto, no entanto, é para poucos,pouquíssimos. Mas uma comunidade inteira que cresceu rapidamentee se tornou uma ordem? Não devemos, pois, distinguir entre São Fran-cisco, indivíduo e a sua vida espiritual, interna, subjetivo-particular,sua história e experiência pessoal e a vida e a história da comunidade daOrdem em evolução e crescimento como uma grande instituiçãoeclesial-eclesiástica? Não é assim que, por mais que o fundador de ummovimento tenha sido santo, genial, criativo, ele como indivíduo, asua história pessoal não pode prender o movimento ou a ordem afixar-se nele, mas sim libertá-la para a sua missão, tarefa e inspiração?O fundador, ele mesmo, não é apenas primeiro passo, uma etapa ini-cial que deve ser deixada para trás, que deve ser superada?

Esses e outros arrazoados similares fazem com que a questão dosespirituais perca inteiramente a sua força, o seu mordente, e se trans-forme num problema factual da falta de equilíbrio, de bitolamentoideológico e fixidez mental ou problema de não adaptação à evoluçãoe crescimento de um movimento que a partir de uma existência inter-na espiritual pessoal individual se desenvolve para um organismo soci-al comunitário, adaptado às novas exigências da época. Nesse sentido,

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Stanislau da Campagnola, falando dos líderes dos espirituais PedroJoão de Olivi (†1298), Ângelo Clareno (†1337) e Ubertino de Casale(†1329), diz: “eles estavam cercados de uma fileira de numerosos dis-cípulos e admiradores. Sendo de inteligência aguda, eram no entantode pouca elasticidade e sem capacidade de adaptação; com idéia fixa,além disso, de que a pobreza era a expressão integral do franciscanismo.Assim, eles não chegaram a ou não quiseram reconhecer o idealfranciscano na mais ampla integridade da vida evangélico-apostólica,confundindo entre eles Evangelho e Regra franciscana e negando aopapado o direito de comentar e adaptar a Regra às exigências doapostolado e da santificação contemporânea”34.

3.2 O vazio da perplexidade como espírito, hoje?

No entanto, diante de todas essas interrogações, que parecem es-vaziar e neutralizar o sentido da luta dos espirituais pela vida franciscanaoriginária, no que ela tem de mais real, mais engajado, relativizando-aem infindas classificações determinativas da questão, isto é, da buscado espírito originário de São Francisco de Assis, a interrogação subjeti-vo-particular e pessoal da perplexidade pode ser medium no qual “algo”como sentido da busca dos espirituais, portanto, o sentido do que éespiritual e espírito na experiência da existência franciscana em SãoFrancico e seus primeiros companheiros pode começar a aparecer. Se defato aparece e vem à fala, é uma outra questão. Mas que se prepare,que se disponha a receber a possibilidade do espírito, o gosto pelosabor ou saber do espírito, seja talvez a possibilidade impossível deno-minada hoje. Essa possível impossibilidade hoje é a objetividade dasnossas abordagens “na vida e nas ciências” da dimensão-espírito. E o

34 STANISLAO DA CAMPAGNOLA, L’ Angelo del sesto sigillo e l’ Alter Christus (genesie sviluppo di due temi francescani nei secoli XIII-XIV, Roma: Ed. Laurentianum/Ed.Antonianum, 1971, p. 233.

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que denominamos de subjetividade das vivências e experiências da vidainterior, da espiritualidade do cultivo pessoal da alma na sua santidadee perfeição é variante da objetividade, colocada no mesmo “galho”,mas no polo oposto, que continuamente dá “galhos”, cujo emaranha-do de pontos de vista dos diferentes enfoques objetivista-científicosespecializados nos coloca em perplexidade que por sua vez, se nãoestamos vigilantes, nos empurram para a simplicidade, imediatez dasvivências, do sentir o coração, que não é outra coisa do que a reaçãoressentida contra a objetividade, portanto uma modalidade da objeti-vidade, colocada na mesma bitola da plataforma horizontal de umbalanço, no extremo oposto ao da objetividade.

3.2.1 Um texto espiritual dos espirituais

Depois dessa observação um tanto à margem do fio condutor danossa exposição, experimentemos ouvir um trecho do texto dos espi-rituais na fala de um dos seus representantes mais profundos na com-preensão do que é espírito no sentido da volta ao espírito originário deSão Francisco. O texto é de Ângelo Clareno, na sua famosa escrita Olivro das Crônicas35. Diz Clareno no início do Prólogo de O livro dasCrônicas: “A vida de São Francisco, homem de Deus, pobre e humilde(cf. Sl 82,3), foi escrita por quatro importantes pessoas, todos fradespreclaros pela ciência e santidade. São eles: João e Tomás de Celano,Frei Boaventura, um dos ministros gerais após Francisco, e Frei Leão36,homem de admirável simplicidade e santidade, companheiro do mes-mo beato Francisco”.

35 O trecho aqui exposto foi tirado da acurada tradução feita do latim por frei OrlandoBernardi OFM. A tradução está para ser publicada em breve. Frei Orlando generosa-mente permitiu que tirássemos o trecho do texto.

36 Sobre o relacionamento entre esses quatros biógrafos, cf. GRATIEN DE PARIS, op.cit. Introdução, VII-XXI.

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“Quem ler e diligentemente examinar (...) o quanto ali se narra,poderá conhecer (...) a vocação do Seráfico Pai, sua conversão, suasantidade, sua inocência, sua vida e sua intenção primeira e última.Além disso conhecerá como Cristo o amou de modo singular e semostrou benigno e familiar com ele, purificando-o, iluminando-o einformando-o. Depois o atraiu a si para que seguisse os passos de suaperfeição e por último, aparecendo-lhe como Crucificado, o transfor-mou de tal maneira em si mesmo que a partir de então não mais viveupara si, mas totalmente crucificado com Cristo (...)”.

“Cristo Jesus o considerou fiel, obediente, agradecido, simples, retoe humilde conforme seu coração (cf. Ap 1,5; 1 Sm 2,35). Revelou-lheentão a perfeição primeira e última de sua vida evangélica, de sua mãe,de seus apóstolos e evangelistas. Abriu-lhe seus ouvidos (cf. Is 50,5) e oformou, com mão forte (cf. Is 8,11) nas coisas celestes, incorruptíveis eperfeitas e se colocou a si mesmo em seu coração, em sua boca e em seubraço (cf. Ct 8,6) (...)” Resumindo, seguem as palavras de Cristo aFrancisco, onde Cristo revela a Francisco, passo a passo a realização dasua missão, recebida do Pai, que culmina na Cruz, e a escolha dos seusseguidores e continuadores da sua missão.

Continuando a citação do texto de Clareno, Cristo diz a Francisco“os que escolhi como meus seguidores, foram configurados em minhamorte (Cf. Fl 3,10) e associados a minhas dores e paixões (cf. Fl 3,10) eentenderam o início da abertura do livro da vida (cf. Ap 20,12) ondeestá escrito a comunicação do meu amor” (...).

“Nosso Salvador Jesus Cristo ao lhe aparecer disse: Francisco, se-gue-me (Cf. Mt 9,9; Mc 2,14; Lc 9,59; Jo 2,19) e mantenha-te presoaos vestígios de minha vida pobre e humilde. Configurar-te e asseme-lhar-te a mim de maneira sensível, intelectual e eficiente é a finalidadede minhas promessas e da perfeição da graça e da glória. Na verdade, seaderires a mim com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a

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tua mente e com todas as tuas forças (cf. Dt 6,5; Lc 10,27), de talmaneira que todo pensamento esteja em mim e de mim parta, quetoda tua palavra saia de mim, para mim e esteja diante de mim e todoo teu agir seja sempre por causa de mim e para a maior honra e glória(cf. 1 Tm 1,17; Ap 4,11; 5,12) de meu nome, então serás meu servo eeu estarei contigo e falarei por tua boca (cf. Is 41, 9.10; Ex 4,12.15).Quem te ouvir me ouvirá (cf. Lc 10,16), quem te receber me receberá(cf. Mt 10,41), quem te bendisser será abençoado (cf. Gn 12,3; 27,29)e quem te amaldiçoar será amaldiçoado (cf. Gn 12,3; 27,29)”.

Observemos brevemente esse texto, só para percebermos a tonância,em que ele pode estar e ser ouvido, se de antemão não o classificamoscomo um texto projetado subjetivamente por um sujeito que estáimbuído de uma espiritualidade de perfeição e santificação pessoal doestilo espiritualista37. O que detectamos como acréscimo subjetivo sobreo fato, através de fórmulas e formulações padronizadas de umaespiritualidade dos espirituais – sem negar a objetividade de todos es-ses acréscimos – pode estar acenando para uma compreensão mais pró-pria da história, não tanto a partir do binômio objetivo-subjetivo, massim como participação criativa na recepção livre do sopro vital, isto é,

37 Com outras palavras, como já foi observado anteriormente, seja qual for a nossaconstatação factual das palavras e dos atos dos espirituais, desde os mais altos e sublimesaté os mais bitolados, fundamentalistas e intransigentes, aquilo que neles há de maisinteressante como o fundo, como o toque inicial de suas intenções, não pode ser devidae propriamente captado, se o classificamos como pessoal, subjetivo e particular, místicoou piedoso no sentido usual, e se não tentamos renovar a compreensão do que seja oespírito e o espiritual, de modo inteiramente radical e novo. E o comentário que segueacima é, do ponto de vista objetivo, mera “chutação” especulativa. Serve somente paracriar um vazio perplexo de interrogação, onde talvez se torne possível um espaçomenos fixo de indagação. É que pode haver a fixidez numa indagação, onde se abremcontinuamente interrogações, sem se dar conta de que as próprias interrogações, mes-mo que sejam contrárias, sim contraditórias entre si, são produtos do mesmo horizonte,donde haurem suas significações, como que do mesmo fundo do sentido do ser já bemdeterminado.

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do espírito originário do toque da existência humana no destinar-sedo seu ser como pessoa-humana. Essa participação ao destinar-se doser da existência humana como pessoa-humana poderia ser o sentidomais de acordo com o que chamamos de historicidade. Assim, faça-mos brevemente um excurso sobre o que denominamos fato histórico.

3.2.2 Excurso: historicidade da história como factualidade?

Clareno fala da vida de São Francisco. A vida aqui seria na nossalinguagem, hoje, biografia. A biografia deve ser objetiva. Falar dos fa-tos reais, averiguados e averiguáveis de um sujeito ou sujeitos, aqui nonosso caso, de Francisco de Assis, que de fato existiu. Tudo quantonão é verificável e verificado como fato, pode ser útil e influenciar aconfirmação ou não dos fatos, mas não pertence aos fatos objetivos,mas sim à esfera subjetiva de interpretação pessoal, particular, quer deum indivíduo, quer de um grupo de indivíduos, que comungam damesma experiência e vivência. Essa maneira já preestabelecida de en-tender a vida humana como fatos biográficos, objeto da pesquisa, pa-rece caracterizar a abordagem historiográfica que hoje apresenta cuida-do, exatidão, diferenciação acurada na abordagem do objeto da suapesquisa, levando em conta todos os elementos também subjetivos.No fundo, porém, na última instância, o que dá certeza, garantia daverdade da pesquisa é o fato e sua averiguabilidade, a confirmação darealidade como fato. No entanto, na compreensão do que seja fatohistórico, usualmente quem não está acostumado com a precisão eacurada diferenciação que encontramos nas abordagens das ciênciashistoriográficas, confunde o fato e sua factualidade com a coisa ecoisidade de um realismo ingênuo. E representamos o fato históricocomo se ele fosse algo como uma coisa física, ocorrente e existentediante de nós como esta ou aquela coisa. Essa maneira de representar ofato como coisa física é resto decadente de um modo de pensar e inter-

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pretar a realidade que denominamos concepção substancialista do uni-verso. Fato histórico não é substância nesse sentido deficiente. Por isso,não pode ser tratado como se fosse substância. A concepçãosubstancialista no seu vigor originário é todo um mundo de compre-ensão profunda da realidade, cuja expressão temos, por exemplo, naconcepção grega e medieval do universo. São Francisco e as “coisas”franciscanas, cuja epocalidade é medieval, só pode ser entendida, a fundoe na sua riqueza, se levarmos em conta e a sério que o fundo ontológicoda paisagem histórica primitiva do franciscanismo é a concepçãosubstancialista medieval. A palavra-chave, na qual se expressa de modooptimal a idéia da substância é pessoa. Por isso, toda a ontologia, por-tanto o conceito do ser na intuição originária do pensamento medie-val é Pessoa. Ser por excelência é Deus, o Ens a se. A aseidade aparecede modo próprio e único como pessoa. Só que em vez de pessoa seusava mais a palavra ser ou melhor espírito38. A decadência consiste emhoje entendermos a substância, não como todo um mundo de paisa-gem, cujo fundo ontológico é espírito ou pessoa, mas como produto daentificação concentrada como átomo-algo, abstrato e formal. Esse algoé o resto abstrato e formal de uma compreensão da substância jácoisificada. A palavra fato vem do latim factum. Factum é particípiopassivo passado do verbo facere (facio, feci, factum, facere = faço, fiz,feito, fazer) e significa feito. O fato é pois o que está sendo ou foi feito.Nesse sentido, o perfeito é o que foi feito, atravessando ou através de(per = de cabo a rabo), isto é, de início até a consumação, passando pormil e mil peripécias e vicissitudes do destinar-se de uma vida (isto é, dahistória). Consumação aqui não é simplesmente o último ponto deuma série de sucessão de pontos; nem o início, o primeiro ponto dessamesma sucessão. Essa maneira linear de representar o ser ou destinar-se

38 Sobre esse assunto, cf. ROMBACH, Heinrich. Substanz, System, Struktur. DieOntologie des Funktionalismus und der philosophische Hintergrund der modernenWissenschaft. Band I. Freiburg i. Br. / München: Verlag Karl Alber, 1965, p. 57-78.

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da existência humana, mesmo que se o represente dinâmica eevolutivamente, não traz à fala o próprio do tornar-se humano, mas oreduz ao modo de mover-se de uma coisa a modo físico-geométrico,abstrato-formal. Os medievais usam muito o verbo facere, fazer.Usualmente, como nós hodiernos compreendemos o verbo fazer, comofabricar, produzir, operar, obrar? A nossa perplexidade em não conse-guirmos captar bem em que consiste o sentido do fazer, presente vaga-mente em todas essas acepções do fazer e seus sinônimos, parece indi-car que o seu sentido foi formalizado, isto é, esvaziado do conteúdopara funcionar como indicativo de uma atuação a modo geral, neutro,indiferente ao processo de engajamento constitutivo do ser da existên-cia humana. Fazer sofre entre nós a redução do seu sentido ao achata-mento significativo, geral e formal de um modo de ser, cuja entificaçãoproduz ente a modo de coisa-algo abstrato, como instante geométricode pontos referenciais de movimento também formalizado, vazio deconteúdo. Ser aqui é algo; algo no algo; algo ao lado do algo; algo noalgo no algo no algo e conjunto de algos que por sua vez não passamde pontualização atomizada de um quê... E o movimento desse quê, aatuação sobre esse quê é fazer. Por isso o feito assim, o fato é represen-tado como algo ocorrido como ponto-coisa. Nesse sentido dizemos:aconteceu ou não aconteceu? É fato? Existiu? Ocorreu? Para o medie-val, no entanto, facere como verbo não é propriamente um ato do sujeito.É antes um certo nível da intensidade e do modo de ser substância bemconcreto e vivo que constitui por assim dizer o primeiro grau na escalaçãoda atuação de ser, que conforme a intensidade e grau de excelência nasdiferentes ordenações das esferas do ser, culmina no modo de ser doem si e do a se, cujo sentido é o sentido optimal de todo o fazer, agir,atuar, produzir que é: ser. E o ente no qual esse ser vem à fala de modoo mais excelente se chama Deus Criador. Trata-se aqui de uma concep-ção totalizante do ser, isto é, ontologia. Do ser, entendido não comoser do ente na acepção da factualidade da ocorrência de algo (“ontologia”

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em certas manualísticas que opõem ou enfileiram uma ao lado daoutra, “ontologia” e “antropologia”), mas entendido como desvelamentoe ocultamento do sentido do ser, o mais vasto, o mais profundo e omais originário, que cada vez de novo e sempre novo se abre (e seoculta ao mesmo tempo) como possibilidade de ser como clareira atra-vés da qual surgem mundos. Nesse sentido, o que denominamos “fi-losofia medieval”, que ao nosso ver não é outra coisa do que “teologiae mística” medieval, é ontologia, isto é, sentido do ser, vindo à falacomo uma possibilidade criativa da gênese do mundo da vitalidade,criatividade do espírito, isto é, do sopro vital, dinâmica do modo deser pessoa; tudo, isto é, cada ente no seu ser não é outra “realidade” doque gênese, isto é, nascimento, crescimento e consumação da vontadedo encontro. Essa vontade do encontro, como o ser da existência medi-eval na sua concretização empírica como “cristianismo” medieval, re-cebe o nome de Amor de Deus (na acepção do genitivo subjetivo eobjetivo), cujo vir à fala se chama encarnação. Essa vontade do encontrona sua ordenação estruturante aparece como gênese, conservação e con-sumação do universo, como comunicação do ente supremo denomi-nado Deus, do seu ser na bondade difusiva de si como doação de si acada ente, sempre novo e de novo, e na pertença de cada ente, semprenovo e de novo como participação no ser dessa doação como recepçãoalegre e cordial da filiação divina; e isto desde a mais ínfima e insigni-ficante esfera dos entes sem vida, materiais, até a suprema excelênciado ser-pessoa, denominada Deus, numa escalação dimensional da in-tensificação do ser que sucessivamente recebe os nomes alma (anima:vida vegetal como dinâmica da autoalimentação); ânimo (animus: vidaanimal como dinâmica do sentir, isto é, da sensibilidade comoautomobilização, automotivação, autoconstituição); razão (ratio, ani-mal rationale: vida como dinâmica de autocriação, isto é, abertura eestruturação do sentido do ser que possibilita o nascer, o crescer e oconsumar-se como decisão de ser na concreta e encarnada possibilida-

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de de um mundo novo como época, como histórica, isto é, expansãoe convergência da unidade ordenada como totalidade: uni-verso. E apartir do Homem (como animal, isto é, ânimo racional) se deslanchao constituir-se, o auto-estruturar-se contínuo de ordenação de mundos;de mundos cada vez novos e cada vez retomados na sua totalidade, desve-lando as diferentes intensidades e qualificações no crescimento do ser-pes-soa como dimensão do intelecto, espírito, mente até se adentrar na possibi-lidade do ser, descrita como ser in se no modo de a se (pessoa) isto é, ser deDeus, cujo ser é chamado por Mestre Eckhart de deidade. Esse ser do ser-pessoa como abismo do mistério do Amor de Encontro e do Encontro doAmor Trino e Uno, fonte e dinâmica da possibilidade insondável einesgotável da nossa filiação divina, é o ontologicum, o feito, o fato pri-mordial originário do pensamento medieval.

Para o medieval e seu texto, quando ali se fala de espírito e espiritu-al, é necessário ter-se em mente toda essa paisagem da ontologia medie-val, em toda a sua diferenciação e dinâmica da sua estruturação, da suadinâmica, força mobilizadora da existência humana medieval. E istoprovavelmente vale também, e quem sabe, principalmente de alguémcomo Ângelo Clareno, como nossos confrades medievais denomina-dos “espirituais”, quando falam do sentido primeiro e último da exis-tência franciscana.

3.2.3 Em se referindo por cima à paisagem de fundo do texto deClareno

A história e a historicidade, cuja gênese do ser vem à fala como“mística-onto-teológica” acima insinuada, possuem “razões e corações”que a factualidade historiográfica desconhece, por classificá-las comopertencentes à dimensão factual da vivência individual subjetiva e par-ticular de uma experiência moral, piedosa e religiosa. Ao passo que apressuposição básica dos medievais, portanto, por exemplo, dos espi-

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rituais, é exatamente que os feitos narrados39 como experiência de Je-sus Cristo e de seus seguidores, no nosso caso de São Francisco e deseus primeiros companheiros, são “realidades” fundamentaisontológicas, das quais toda e qualquer realidade e seus fatos recebem oseu significado, seu sentido, o quilate da sua “realidade e realização”.Ontologia aqui significa, pois, a medida optimal na excelência da in-tensidade qualitativa do ser. Sendo assim, em primeiro lugar e de ante-mão, isto é, a priori, o fato originário é a experiência pessoal, isto é, amodo do ser-pessoa e enquanto modo de ser-pessoa, chamado Fran-cisco, no encontro corpo a corpo, de alma a alma, portanto, “pessoal”,“íntimo” com Cristo Crucificado e no vir à fala do “Espírito do Senhore do seu santo modo de operar”40. A assim chamada experiência pessoal(tida por nós como particular, individual e subjetiva) de São Francisconão é um fato entre outros fatos, mas sim o vir à fala do feito originá-rio. É a concreção da facticidade, do lance do horizonte, a partir edentro do qual todos os outros fatos devem ser entendidos e recebemo seu sentido. A história e a historicidade que dali se deslancha, sua

39 Surge a pergunta: esses fatos narrados são fatos no sentido de interpretaçãohistoriográfica objetiva ou subjetivo-pessoal? Podemos agravar a pergunta: a perguntaque pergunta se os fatos narrados são objetivos ou subjetivos é um fato no sentidohistoriográfico ou subjetivo? Aqui percebemos que o nosso interesse historiográfico jáde antemão emposta a pergunta na averiguação e confirmação da certeza da ocorrênciade uma ou mais experiências como fato ocorrente. E não se volta na pergunta sobre asua própria pergunta, indagando o sentido do ser que sub-põe na compreensão do queseja ocorrência. Com isso, de antemão, supõe que, para serem reais, os “conteúdos” dosfatos devem ter o mesmo modo de ser da ocorrência. Como, porém, eles escapam dessa“malha” grossa de “suposição” significativa, são considerados subjetivos, menos reais. Aquestão se agrava ainda mais porque os termos como pessoal, particular, individual,dentro dessa perspectiva, são como que sinônimos de subjetivo, ao passo que o índiceda excelência no ranking da realidade vai para o que denominamos de geral, comum,sem se perceber que esse tipo de generalidade ou comunidade está ocultando umaintersubjetividade dominante toda própria, cuja tipicidade vai na direção do inter-esseda previsibilidade e calculabilidade de um modo de saber quantitativo-físico-matemá-tico, cujo ser não está suficientemente analisado.

40 SÃO FRANCISCO DE ASSIS, RB, X, 9.

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transmissão, seu proceder seguem então a lógica desse fenômeno dafacticidade originária primordial. Por isso na seqüência histórica datransmissão da herança franciscana relatada por Clareno, por primeirovem o mais antigo historiador, João Celano; depois o seguinte, Tomás deCelano, e depois o mais recente, São Boaventura; e de repente o anterioraos historiadores como que os envolvendo, como que indicando a reper-cussão primordial do toque originário, aquele que pertence à origem, freiLeão. Temos assim a sucessão: João de Celano, Tomás de Celano, freiBoaventura} • Frei Leão ← São Francisco} ⇐}O Espírito do Senhor eseu santo modo de operar: = Jesus Cristo Crucificado do Mistério daEncarnação. Dito com outras palavras: o modo de ser, ver, sentir, agire atuar, no qual a realidade não é constituída e interpretada enquantorealidade a partir e dentro do “realismo” ontológico a modo da realida-de físico-material, mas sim a partir do ser, isto é, do sentido do ser quevem à fala no modo de ser-pessoa, no seu ser, ver, sentir, querer, agir eatuar, considerando todas as outras dimensões do ser como concreção-re-percussões em diversos níveis e áreas desse mesmo sentido do ser, é a con-cepção dos entes na sua totalidade, característica do pensamento medi-eval, fundo da paisagem da fala, por exemplo, dos espirituais. Essaconcepção se chama espiritual, pois um tal sentido do ser chama o serde espírito41. Esse espiritual, esse espirito, porém, não tem nada a vercom a divisão dos entes pelo binômio material-espiritual, matéria-espírito da metafísica. É antes a palavra-chave, o conceito-chave do pen-samento medieval, para indicar o sopro vital, a vida, a essência do quea Boa Nova do Evangelho chamou de Amor de Deus (genitivo subje-tivo: amor que Deus tem para conosco), a se, difusivo de si, do Amor

41 Não se trata, pois, de espiritualismo. A interpretação da vivência e experiência pessoaldos medievais como espiritualista, pietista, misticista etc., distorce a perspectiva daconcepção medieval, pois interpreta o sentido do ser todo próprio denominado espiri-tual do pensamento medieval, a partir do sentido do ser, cuja característica é a dominânciae dominação do binômio subjetividade-objetividade, sujeito-objeto.

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que nos amou primeiro, e se nos doou pessoal, livremente em JesusCristo, seu Filho encarnado e crucificado, nos fazendo seus filhos, paraparticiparmos da Plenitude da Realização, que consiste na Realidade-Mistério do Amor da Santíssima Trindade na Realidade-Mistério daEncarnação. É o que São Francisco chama de Espírito do Senhor e doseu santo modo de operar.

Se tudo isso é válido, o texto de Ângelo Clareno acima citado, ondefala do relacionamento de intimidade profunda e pessoal de Cristo comFrancisco, e de sua radical e total entrega a Ele, não é outra coisa do que, àsemelhança da ponta visível de um iceberg submerso, manifestaçãopontualizada de toda uma riquíssima possibilidade inesgotável e insondá-vel do ser. Essa realidade originária, o toque primordial, o “big bang” douniverso medieval cristão é a condição da possibilidade da compreensão,da realização da história do mundo franciscano, da sua origem, sua evolu-ção, da sua estruturação e lógica, do sentido da sua crise e de lutas internas.Não é ela, essa realidade, o ser-espírito, que sempre de novo acompanhacada passo das vicissitudes do ser franciscano, no destinar-se de cadaepocalidade, até hoje, com insistente, penetrante indagação, crítico-questionante do sentido do ser franciscano, o ser da história franciscana esua historicidade? Para além, ou melhor, para aquém de toda a polêmica,de todas as vicissitudes de controvérsias, rixas, intrigas, estreitamento doânimo e da inteligência, da ambição do poder, ressentimentos, sofrimen-tos e heroísmos de entrega e abnegação dos espirituais, das atitudes ambí-guas, imposições autoritárias, mas também das preocupações e cuidadospastorais e pastoralistas da parte da Ordem e da Igreja, sim para além oupara aquém de tudo isso, o verdadeiro sentido da “rebelião” dos espiritu-ais contra os comunitários não significaria em última instância o ace-no da necessidade livre de retomada, sempre nova e cada vez maisprecisa e radical “das questões franciscanas”, a partir e dentro do hori-zonte da Cientificidade própria que vem do Espírito do Senhor e do seumodo de operar?

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Conclusão

Se observarmos bem as colocações das reivindicações dos espiritu-ais, principalmente de um Ângelo Clareno, de um João Pedro de Olivi,percebemos no fundo de todas as suas articulações e formulações naluta pela pobreza, seja explicita, seja implicitamente, um questionamentomuito agudo sobre o ser do espírito da Ordem, da Igreja e da Socieda-de, que parece ameaçar certas teses fundamentais sobre as quais a Or-dem, a Igreja e a Sociedade medieval de então firmavam sua estabilida-de, ordem e paz.

O título desse artigo é Os espirituais, hoje? O problema, como foidito, é esse ponto de interrogação. Interrogação que ao estar perplexo,sem saber o que dizer e o que pensar dos espirituais e do seu espírito,desandou numa lenga lenga que parece não saber bem o quepergunta...Talvez esse tema teria sido excelente ocasião para mostrarcomo, tanto na Ordem como na Igreja, domina sempre de novo aempáfia, a política do poder que por fim acaba abortando, asfixiandomovimentos de renovação e de volta à fonte originária de inspiração easpiração carismática. Ou, numa outra versão, de mostrar como todoe qualquer movimento de renovação carismática, se não cuidar, se nãose abrir aos sinais dos tempos, ou não ficar atento às sábias admoestaçõese orientações da Igreja acaba virando fanatismo e fundamentalismotalebã... Em vez de aproveitar de todas essas chances de desdobramento,a exposição acabou de modo muito diletante, questionando no fundoas abordagens historiográficas da questão dos espirituais, perguntando,o que são fatos, história e historicidade para essa abordagemhistoriográfica. E indagando, de modo muito pretencioso-ignorante,se nas questões franciscanas não está faltando uma abordagem maisprecisa sobre o que está realmente em questão quando se fala de espíritoe espiritual, como se fosse possível escapar aos grandes e profundosconhecedores da causa franciscana uma tal questão. E pior, terminando

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a reflexão com uma apelação piedosa, melhor piega de uma posiçãoclassificável como eflúvio espiritualista de uma espiritualidade deperfeição pessoal, particular e subjetiva, falando do Espírito do Senhore do seu santo modo de operar...!?? Assim, por fim, a nossa exposição,demonstrou ao vivo a perplexidade pessoal, subjetiva, expressa no pontode interrogação do título Os espirituais, hoje? *

* À guisa de uma nota final: Espírito de São Francisco, Ordem franciscana, dos fradesMenores, nós de alguma forma espirituais..., nós franciscanos, o que somos, quemsomos, afinal realmente, quando abordamos o espírito de seguimento de São Francisco,o Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar, assim historiograficamente, sementrarmos na crise da perplexidade acerca do nosso ser-franciscano? E nós, ao mesmotempo, modernos, intelectuais, de alguma forma historiográficos, ou ao menos acadê-micos, pertencentes à grande comunidade da humanidade do saber científico, o quesomos, quem somos afinal, realmente, quando vivemos, nos movemos e somos nohorizonte do saber crítico-científico, quando julgamos, sim até somos capazes de des-prezar a ignorância dos simples e iletrados, falamos de tudo, da religião, da espiritualidade,da religiosidade popular, do espírito, do passado, dos outros povos não europeus, sementrarmos na crise da perplexidade diante do nosso saber, pensando saber o saber donosso saber, certo, objetivo, objetivante e objetivista, num dogmatismo ontológicoacerca do ser, do sentido do ser, da realidade, sem assumir a acribia e paixão pela buscados fundamentos do nosso saber, na precisão e no zelo da dúvida radical, característicada nossa cientificidade moderna? Como o nosso artigo, no fundo, não disse nada oupouco conseguiu dizer, tentemos salvá-lo, citando a Introdução, escrita por Kierkegaardpara o seu livro Com temor e tremor, falando do saber de Descartes e da Fé de Abraão:

“Não somente no mundo do agir, mas também no mundo das idéias, o nosso tempoagencia uma verdadeira liquidação. Tudo se compra num preço tão irrisório que surgeuma pergunta, se por fim se ache alguém que tem ainda oferta. Cada escrivãoespeculativo, que conscienciosamente coloca ponto no í sobre o passo significativo danova Filosofia, cada docente, repetidor, estudante, cada marcador e instalado na Filoso-fia, não permanece insistente em duvidar de tudo, mas vai adiante. Talvez fosseintempestivo e inadequado lhes perguntar, aonde, pois chega propriamente; mas certa-mente é cortês e modesto, considerar como suposto que tenha duvidado de tudo, jáque senão seria estranho dizer que tenha ido adiante. Esse movimento prévio certa-mente todos o têm feito e se supõe que o tenham feito com tal facilidade, que nãoacham ser necessário gastar uma palavra, nem sequer, sobre a pergunta: como aqueleque com angústia e preocupado busca, encontraria algo como uma pequena informa-ção, como um aceno condutor, uma pequena norma dietética, de como se deve com-portar diante dessa imensa tarefa? “Mas Cartesius o tem feito!?” Cartesius, um honrado,

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humilde, honesto pensador, cujos escritos certamente ninguém pode ler sem a maisprofunda comoção; ele fez o que disse, e disse o que fez. (...) Isto é no nosso tempo umagrande raridade! Cartesius, como ele mesmo repete muitas vezes, em referência à Fé,jamais duvidou. (...) O que, aqueles antigos gregos, que entendiam, pois, um pouco daFilosofia, consideravam como uma tarefa para toda uma vida – porque a disposiçãopara duvidar não se conquista em dias e semanas; o que esse velho combatente tinhaalcançado, ele que através de todas as armadilhas conservou o equilíbrio da dúvida,intrépido negou a certeza dos sentidos e a certeza do pensamento, ele que incorruptíveldesafiou a angústia do amor próprio e as insinuações do sentimento; - com isso, cadaqual, no nosso tempo, faz o seu começo.

No nosso tempo ninguém permanece insistente na Fé, mas vai adiante. Uma perguntaque indaga aonde se chega, representaria talvez uma louca ousadia, enquanto é poisum sinal de educação e formação, se eu suponho, que cada um tem a Fé, já que seriaestranho dizer: a gente vai adiante. Naqueles antigos tempos, era diferente; então a Féera uma tarefa para toda uma vida, porque se supunha que a disposição para crer nãose deixa adquirir em dias nem em semanas. Quando então o experiente ancião seaproximava da morte, tinha combatido o bom combate e conservado a Fé, jovembastante era o seu coração para não esquecer aquele temor e aquele tremor que tinhadisciplinado o adolescente, temor e tremor, do qual o varão tornou-se quiçá senhor, porsobre o qual, porém, nenhum homem pode crescer – a não ser que se tenha conseguidoir adiante o mais cedo possível” (KIERKEGAARD, Sören, Die Krankheit zum Tode;Furcht und Zitter. Frankfurt am Main und Hamburg: Fischer Bücherei, 1959, pp.110-111).

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TRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕES

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE(Expositio in Apocalypsin)

Joaquim de Fiori *

1. O Apocalipse é o último de todos os livros escritos em espírito

de profecia e contidos no cânon das Escrituras Sagradas. Por onde se vê

que é por isso que esse livro é chamado de revelação, pois através dele

nos são transmitidas as obras de Cristo, geradas ou em processo de

geração nessa plenitude dos tempos.

Meu Pai opera até hoje e eu também opero (Jo 5,15). O Pai operou

antigamente nos patriarcas (cf. Hb 1,1), opera agora no Filho Cristo,

a fim de que todos glorifiquem o Filho como glorificam o Pai (cf. Jo

5,23). Pois não é em vão que uma roda se encaixe na roda (cf. Ez 1,16;

10,10), como o Novo Testamento procede do Velho ou o intelecto da

letra espiritual, uma vez que a chave de toda nossa fé consiste na con-

fissão de Pai e Filho. Em terceiro lugar, esperamos realmente um mundo

futuro onde não se desposarão nem serão desposados, não vencem

nem serão vencidos, mas serão como anjos de Deus no céu (Mt 22,30;

Mc 12,25; Lc 20,36) e, disse, serão filhos de Deus, uma vez que são

filhos da ressurreição (Lc 20,36). Por isso, teremos corpos espirituais e

até mesmo repletos do espírito divino, para que a confissão de nossa

piedade, que possuímos no Pai e no Filho, seja consumada no Espírito

Santo e não necessite mais de nenhuma perfeição, pois, na realidade, já

* Tradução de Fr. Orlando Bernardi.

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JOAQUIM DE FIORI

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possuímos em nós o que ao mesmo tempo esperamos no fundamen-

to da esperança. Dessa forma o gênero humano, após a culpa do pri-

meiro homem, necessitava voltar, aos poucos, para o conhecimento

de seu criador, a fim de que em primeiro lugar e, por certo tempo, se

fundasse no Pai e depois brotasse no Filho e, por fim, experimentasse

a doçura do fruto no Espírito Santo, mas também para que, depois de

um longo tempo, levado ao gáudio celeste, goze amplamente e tanto

mais aumente para ele a alegria da glória que conquistou quanto mais

suportou a tristeza sofrida em seu exílio.

Por isso, o primeiro Testamento se refere ao Pai, porque por meio

dele Deus Pai se revelou aos pais. O segundo se refere ao Filho, porque

por ele Cristo tornou-se conhecido aos filhos dos patriarcas, isto é, a

nós. Sabiamente o Espírito Santo, que é a terceira pessoa da santa Trin-

dade, foi dado de modo admirável aos apóstolos no dia da páscoa, a

fim de que permanecessem na expectativa que lhes seria ainda dado;

certamente é pela mesma razão do mistério que o dia de pentecostes

designa ultimamente o dia da solenidade (cf. Esd 8,18). Mas continu-

emos brevemente o que não pode ser abreviado por causa da dignida-

de do discurso, isto é, aquelas coisas que foram dadas no dia da páscoa

(cf. Jo 20,22s): os olhos não perceberam algo e muito menos sua grande

força foi percebida, como posteriormente aconteceu, porém no dia de

pentecostes as línguas de fogo foram percebidas pelos olhos e o estré-

pito pelos ouvidos (cf. At 2,2-6) e foi sentida também a grande força

do amor e da sabedoria. De fato, tudo isso nada mais designa senão o

que possuímos pela fé e pela esperança. Pois o que mais afirma nossa fé

senão que acreditamos que os batizados em Cristo foram mortifica-

dos pelo pecado, foram ressuscitados pela justiça na forma da paixão e

ressurreição do Senhor e que foi dado o Espírito Santo a todos que

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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foram catolicamente batizados? Portanto, recebemos agora pela im-

posição de suas mãos o Espírito Santo que os apóstolos receberam no

dia da Páscoa, para a remissão dos pecados (cf. Jo 20,23); no futuro,

porém, esperamos o mesmo Espírito para a glória e a felicidade, de

acordo com a plenitude e virtude de seus dons.

No entanto, as ações do Testamento passado certamente nos con-

fiam, de viva voz, as histórias literais para que a raiz de nossa fé se firme

num fundamento sólido. Os acontecimentos, porém, do Novo Tes-

tamento eram ainda futuros quando Cristo entrou no mundo e por-

que historicamente ainda não podiam ter sido escritos, foram

condensados no livro do Apocalipse como palavras proféticas a fim de

que a idade juvenil aprendesse voando com a andorinha (cf. Jr 8,7) a

receber o alimento espiritual e pudesse por meio da sabedoria rejeitar

as palavras históricas como carne deteriorada ou cadáver.

Certamente, no futuro, faltam não apenas as palavras históricas e

aquelas coisas que parecem ter sabor de terra, mas também cessarão as

palavras místicas que através de figuras e enigmas são apresentadas aos

prudentes, e isso porque já não vemos por meio de algumas figuras,

mas veremos em espírito a face de nosso Deus criador, tornados seme-

lhantes a ele, de acordo com João que afirma: Sabemos que, quando

aparecer, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é (1Jo 3,2).

Por isso, verdadeiramente afirmamos que podemos expor o as-

sunto do livro do Apocalipse e desvencilhar qual seja a intenção da

obra. Pois é fácil para Deus conceder aos que pedem desde que haja fé.

Com efeito, a mente se recusa a escavar e fatigar-se com trabalhos

inúteis, a não ser que julgue existir um tesouro em algum lugar.

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2. Por isso, deve-se agora considerar o curso dos tempos passados

aos quais se dedicavam as obras do Antigo Testamento, no volume

sagrado, a fim de que possamos compreender distintamente também

essa sexta idade, que contém em si toda plenitude do Novo Testamen-

to, e de que maneira se atribuem os tempos próprios a cada uma das

partes do Apocalipse. Em primeiro lugar, expor simplesmente e de-

pois, com a autoridade de Cristo, comprovar para as autoridades idô-

neas.

É costume na Igreja afirmar que somente existem seis idades do

mundo, de acordo com os seis dias em que Deus fez toda sua obra. A

sétima, porém, não está nas obras, mas foi dada às almas que descan-

sam. Por isso, nas obras há seis idades do mundo, das quais cinco

pertencem ao Antigo Testamento e a sexta ao Novo. Como afirma o

Apóstolo, nós estamos naquela que se tornou a plenitude dos tempos

(1Cor 10,11). A primeira idade começou com Adão e terminou no

tempo do justo Noé. A segunda começou com Abraão, a terceira com

Davi, a quarta com a deportação para a Babilônia, a quinta com o

advento do sacratíssimo salvador do mundo e a sexta foi iniciada por

ele. Desde o início não se sabia quando Deus todo-poderoso dispunha

isso, mas ficou conhecido quando se iniciou a sexta idade, depois que

Cristo ressuscitou dos mortos, quando também desvendou aos discí-

pulos o sentido para que entendessem as escrituras (cf. Lc 24,27). Isso

é verdadeiro a respeito do passado. Isso porque, o que ainda era futuro

no Novo Testamento, ainda estava em gérmen e não se podia saber

nem averiguar, a não ser apenas no espírito da profecia.

Mas também o futuro não existia. Já percebemos que devia-se

enviar algum profeta depois dos apóstolos e evangelistas que reunisse

as histórias eclesiásticas como indicadoras de algo, assim como outrora

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se fazia no Antigo e para que o livro não fosse obrigado a permanecer

sob o pedagogo (cf. Gl 3,24s), para a contemplação, como outrora,

do povo judeu. Pois onde se fala da profecia do Espírito o pesquisador

das Escrituras se cala e se presume que empalidece como assombrado

pelo poder. Daí que se diz das almas santas: Quando soava a voz sobre o

firmamento que estava por cima de suas cabeças e quando paravam dei-

xavam pender as asas (Ez 1,25; cf. 10,1). Com efeito, quando penetra-

mos para contemplar os mistérios secretos, somos levados, com asas

para o mais alto dos céus, mas quando soa a voz sobre o firmamento,

rapidamente depomos as asas, pois é necessário que o homem, por

mais que esteja pleno da graça, silencie e cale sua voz, porque o próprio

Espírito fala. Embora os santos animais tenham asas para contemplar,

pelas quais podem compreender aquelas coisas que estão colocadas

debaixo do firmamento, quer dizer, no volume das Sagradas Escritu-

ras, quando se faz ouvir a voz por cima do firmamento, deixam pen-

der as asas, porque quando o Espírito da profecia fala alguma coisa

pelos profetas, que não está nos códices sagrados, rapidamente aban-

donam sua contemplação e para que se dê a honra ao Espírito Santo se

submetem a sua liberdade. Na verdade, isso raramente acontece e mais

raramente ainda é recebido no Novo Testamento, para que também

possamos progredir contemplando o livro e afastar os absurdos dos

falsos profetas.

Por causa disso, teve que escrever uma profecia geral para conhecer

as práticas desse tempo aquele a quem quase o mundo todo reconhe-

ceu ser o dileto de Cristo e o camareiro do palácio celeste, para que a

Igreja dos cristãos soubesse excluir as profanas novidades e evitar as

peregrinas profecias que lhe fossem contrárias. Afasta quem quer res-

tringir o fim do mundo para um circulo menor de anos, a fim de

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perturbar os corações indecisos com um temor infecundo, ou a quem

prometer milhares de anos para permitir continuar apegado aos praze-

res. Tu, porém, guarda a forma e a medida das escrituras que te foi

dada, compreendendo piedosamente que aquele que possui a chave

(cf. Ap 3,7; 5,2-5) explica humildemente aos que é negado o acesso.

Não extingas o espírito, mas permita provar se provém de Deus (cf.

1Ts 5,19-21). Isso porque está escrito no livro do profeta Daniel: Vai,

Daniel, essas palavras permanecem secretas e lacradas até o tempo prede-

terminado (Dn 12,9). Pois muitos passarão e o saber será múltiplo (Dn

12,4). Quem, afinal, afirma isso proibiu que o espírito seja extinto. E

quem disse: não acrediteis em qualquer espírito, mas examinai os espíri-

tos para ver se provêm de Deus (1Jo 4,1), indubitavelmente acrescen-

tou cautela no discernimento.

No entanto, para que possamos rejeitar conjecturas apócrifas e es-

quadrinhar, com a ajuda do Senhor, as coisas profundas desse livro,

deve-se antes de tudo considerar que como o universo dos tempos

continua em seis grandes etapas, da mesma forma a sexta idade, que é

a presente, deve ser limitada em seis pequenas idades. Como o conjun-

to todo das antigas escrituras era cercado por sete selos, da mesma

forma esse livro se manifesta através de sete revelações, a respeito das

quais cada um dos Testamentos dá notícia. Essas, para dar fé aos que

perguntam, desde muito tempo são convertidas em figuras. Com efei-

to, os sete tempos desde Jacó patriarca até Cristo se mostram diferen-

tes com novos combates, nos quais a escritura do Antigo Testamento

se encontra reunida, e de igual maneira desde a chegada de Cristo até o

fim do mundo reunimos sete, agora a respeito do fim do mundo e da

revelação desse livro. Assim como o que foi realizado em cinco idades

só ficou claro que eram coisas espirituais no final da quinta, quando

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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apareceu o Cristo Senhor, da mesma forma as coisas que o livro do

Apocalipse continha a respeito dos tempos eclesiásticos só puderam se

revelar racionalmente no final da quinta revelação.

Além disso, o que dissemos dos sete tempos que se iniciaram em

Jacó patriarca, se tem outra compreensão, de modo que os testemu-

nhos são apresentados de dois admiráveis modos e com diferentes fins,

mas que se unem numa só compreensão. Por isso me é por demais

trabalhoso explicar, contanto que não seja mais obscuro ao ouvinte.

Por causa disso não seja oneroso se nos demorarmos no fundamento

para que – se não nos demoramos aqui – a casa sobreposta não caia.

3. Quando se quer chegar à doçura da noz, em primeiro lugar, se

faz necessário retirar a casca e depois a pele, chegando por fim ao mio-

lo. Da mesma forma acontece com o mistério que nos ocupa agora, de

dois modos admiráveis se chega ao invólucro. Em terceiro lugar per-

manece como carne vivente, a qual se busca. Deve-se então remover a

túnica para que apareça a veste, tirar a veste a fim de que se mostre a

carne. Abre-se o sepulcro para que apareça o lençol de Cristo (cf. Lc

24,12; Jo 20,5ss). Retire-se o lençol para que saia então o Cristo vivo.

Por isso, abre-se o sepulcro quando se abre esse mistério geral que se

encontrava inteiramente ali dentro. Retiram-se os lençóis quando se

chega ao segundo gênero do mistério que se esconde nas figuras. Cris-

to, porém, que é a verdade, designa a compreensão espiritual.

a. Por isso a respeito da primeira série geral dos tempos, devem-se

em primeiro lugar ver aquelas coisas que admitem distinção em cinco

e sete partes, isto é, em cinco épocas desde Adão até Cristo, e em sete

pequenas épocas que se deduzem de seis partes da idade. Grande é esse

mistério e é um leal e verdadeiro sacramento. Penetremos mais para

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dentro a fim de que se tome um sólido fundamento. Embora não haja

dúvidas de que desde Abraão até Cristo transcorreram cinco épocas,

embora se deva dividir a sexta época em pequenas etapas, o que se

comprova da série desse livro, para que, nessa parte, não decepcione-

mos a alguém menos crédulo, julgamos ser bom nalgum ponto apre-

sentar testemunhas sobre o valor da obra, que mostram por meio dos

testemunhos evidentíssimos das obras, bem como provavelmente for-

tifiquem também a outros com testemunhos verdadeiros.

É patente a todos os católicos que foram doze as tribos que dividi-

ram entre si a terra dos cananeus a mando do Senhor. Cinco dessas

tribos, que pareciam ser as maiores, receberam por primeiro a herança.

Por fim, sete tribos dividiram, por sorte, entre si a terra (cf. Js 12,16;

13,7s; 18,5.7.10ss). As cinco tribos foram portanto as de Rubem,

Gad, Manasses, Efraim, junto com a de Judas. Portanto, essas cinco

tribos designam cinco idades do tempo; mas as sete que receberam as

heranças por últimas indicam as sete porções dessa sexta etapa, que

agora herdam suas moradas no final dos séculos. Um homem previ-

dente se indaga diligente e escrupulosamente por que apenas duas tri-

bos e meia foram dividas, por arte da providência, igual e proporcio-

nalmente, recebendo as regiões orientais da margem do Rio Jordão e

por que apenas duas tribos e meia dessa parte? Admire-se esse grande e

manifesto mistério, em nada diferente do mesmo! Com efeito, direta

e evidentemente duas tribos e meia foram designadas para a parte ori-

ental do rio, porque existiram duas idades e meia sem lei, desde Adão

até Moisés, duas e meia, porém, sob a lei, desde Moisés até Cristo.

Desse modo, também sete tribos, que significam a multidão dos fiéis,

de acordo com o número septiforme da graça, receberam a herança

por últimas.

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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O novo mistério das igrejas concorda com esse antigo, já que co-

nhecemos as cinco igrejas principais que são a de Roma, a de

Constantinopla, a de Alexandria, a de Antioquia e a de Jerusalém, o

profeta diz. Haverá cinco cidades na terra do Egito, que falarão a língua

de Canaã; e uma delas será chamada cidade do sol (Is 19,18). Assim, a

tribo de Rubens concorda com a igreja de Jerusalém, pois ambas per-

deram a primogenitura – Rubem, porque subiu o leito de seu pai (Gn

49,4; 35,22), esta porque, com a semente da palavra, procurava judaizar

os fiéis gentios (At 15,1.5) que professavam a fé. Gad recebeu a segun-

da herança após Rubens; a segunda igreja a ser fundada depois da de

Jerusalém foi a igreja da Antioquia. Manasses foi o primogênito de

José, mas o escolhido foi seu irmão menor Efraim (Gn 48,14.19);

antes escrevia-se, primeiramente, a igreja de Alexandria, mas agora vem

registrada antes a de Constantinopla, que é mais jovem que aquela. A

tribo de Judá é tribo régia, onde foi fundado o templo, sabe-se

comprovadamente estar referida à igreja romana, cujo sacerdócio real é

presidido por Deus (1Pe 2,9). Esta é a cidade do sol, aquela a própria

igreja de Cristo. As sete tribos referem-se às sete igrejas de João, a fim

de que os dois testamentos dêem fé da verdade una.

Assim, as cinco igrejas principais significam que há cinco tribos

principais. As sete tribos restantes significam que foram instituídas

sete igrejas na Ásia pelos apóstolos. O fato é que, seja em cinco tribos

ou em cinco igrejas, designam cinco idades do mundo, desde Adão até

Cristo e até o final do tempo dos apóstolos, quando começou a dar-se

o final do povo circunciso, por causa do que está escrito: Comereis as

colheitas antigas, bem conservadas, e lançareis fora as velhas, para dar

lugar às novas (Lv 26,10). Portanto, não são eliminadas as coisas anti-

gas tão logo tenha começado o novo, mas deve-se esperar até o ponto

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em que a nova plantação vinge. Realmente, nas sete tribos e nas sete

igrejas, são designadas setes gerações dos tempos novos, que se suce-

dem seriadamente, e sucessivamente perpassam do primeiro advento

de Cristo até o final, dos quais explana o livro do Apocalipse, como

dissemos acima. As cinco idades do mundo, portanto, têm suas histó-

rias, pelas quais proclamam as obras geradas antigamente. Mas, como

dissemos, este livro, tão distinto ou dividido como parece ser distinta

essa idade por suas obras, se dedica a esta sexta idade.

Cremos que basta mencionarmos dois testemunhos, admiravel-

mente concordantes entre si, para esse assunto. Mas como está escrito:

Toda palavra se confirma na boca de duas ou de três testemunhas (Mt

18,16), daremos a Cristo também uma terceira. E uma vez que para

Deus filho, poder e querer são sempre o mesmo, lê-se que às vezes

sentia fome, às vezes passava sede junto com os discípulos, lemos tam-

bém que surpreendia a turba, o que se deu duas vezes apenas, pela

razão de que a sabedoria nada faz em oposição à sabedoria, como o ser

do Pai ensina por suas obras a sabedoria. Primeiro abençoou cinco

pães, certamente não de trigo, mas de cevada (cf. Jo 6,9ss; Mc 6,41;

Mt 14,17; Lc 9,16); depois sete, que de modo algum eram de cevada,

mas crê-se terem sido de trigo (cf. Mc 8,2; Mt 15,36). E o que pelos

cinco pães quis significar senão os cinco livros de Moisés ou mesmo os

livros das histórias que o espírito divino uniu em cinco idades do

mundo para indicar algo ao povo infantil dos judeus? O que pelos sete

pães quis indicar senão esse livro que só ele, entre todos os outros,

consta ter sido composto pelo espírito septiforme?

No último momento da quinta idade, portanto, quando esse li-

vro ainda não fora composto, o Senhor abençoou com cinco pães.

Abençoam-se agora também os sete pães na última abertura do quinto

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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selo, para que a multidão que já há três dias (Mc 8,2; Mt 15,32) o segue

não desfaleça no caminho, por não ter o que comer, tendo já comido os

fragmentos que sobraram do pão de cevada – não que essa explicação seja

falha no ler, mas porque o espírito delicado requer de algum modo um

novo alimento e embora satisfeito de muitas iguarias, contudo ainda está

faminto de não sabe o que, de acordo com o homem sábio: A vista não se

cansa de ver, nem o ouvido de ouvir (Ecle 1,8). Pois, assim como a carne

satisfeita com muitas iguarias não deixa de sentir fome, da mesma forma

também a alma instruída com muitas escrituras. Por mais forte e gordo

que seja o homem, contudo se não possui o que comer, enfraquece e sem

forcas definha. Da mesma forma também a mente do homem, embora

saiba muitas coisas, deseja sempre mais e se renova com aquelas coisas

sempre de novo acrescidas mais do que com aquelas que gera no estô-

mago da mente. O que significam os três, melhor e mais fluentemen-

te será mostrado na obra da concordância. Aqueles três dias são aqueles

que, depois de três dias, Jesus Cristo é encontrado pela mãe no templo

(cf. Lc 2,46), são também os três anos depois dos quais Davi chamou

de volta a Absalão rejeitado.

Mas, se for do agrado, coloquemos essas coisas na casca da noz a

fim de que mostremos algo da pele, enquanto em terceiro lugar traze-

mos a gordura do alimento.

b. Desde Moisés até João Batista, lê-se terem se consumado sete

tribulações, de acordo com aquilo que está escrito: ferir-vos-ei sete ve-

zes pelos pecados (Lv 26,24). Contudo, note-se que se deve tomar as

duas últimas tribulações em lugar de uma, porque no sexto dia deve-se

colher o fruto em dobro. O que corretamente está designado no

Pentateuco de Moisés, onde por aquilo que foi realizado corporal-

mente por aquele povo, mostra-se algo que devia ser realizado no espí-

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rito. Com efeito, Moisés ordenou aos filhos de Israel (Ex 16) que

saíam da terra do Egito, que ajuntassem para si, por cinco dias, uma

medida individual de maná celeste e apenas na sexta-feira ajuntassem

em dobro, uma medida para o mesmo dia e outra para o sábado, dia

em que não era permitido fazer ação alguma. Desse modo, em seis

dias se juntavam sete medidas de maná. Aquele maná vindo do céu

significava a divina escritura que, em seis tempos determinados, foi

reunida dos feitos daquele povo, para que no devido tempo alimen-

tasse as mentes dos espirituais. Há tempo para colher e tempo para

comer (cf. Ecle 3,2ss). Outros colheram e nós, indigna e imerecida-

mente, tomamos posse de suas obras (cf. Jo 4,38).

Com efeito, com os cinco dias em que se colhiam cinco medidas

de maná, se designam os cinco tempos, nos quais são abertos os cinco

selos. O maná, porém, significa as palavras espirituais que descem do

céu. Ademais, na sexta-feira se juntam duas medidas, porque na sexta

abertura do selo se realizam ao mesmo tempo dois mistérios, quer

dizer, na abertura do sexto selo se revelam o sexto e o sétimo selo, o

sexto, porém, antes do sétimo. Contudo, foi muito bem prescrito

que se comesse cada quantidade em cada dia a fim de que nada sobras-

se para o dia seguinte (cf. Ex 16,19s), porque aquela escritura que

indica a obra do Senhor que deve ser feita nos tempos, sem dúvida são

realizadas em cada tempo, umas depois das outras. Mas aquele maná

guardado até a manhã seguinte apodrece. Que outra coisa deve signifi-

car isso, senão que toda escritura se realiza ao ser consumada e porque

significa o devir do que foi feito, para o julgamento e não para a justiça

daquele que espera mais que o sinal que lhe foi dado (cf. Mt 12,39;

16,4; Lc11,29)? Como se aquele maná que anunciava o Cristo futuro

apodrecesse nos corações dos judeus e dele se desenvolvessem os ver-

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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mes para seu julgamento e para as condenações, conforme com o que

o Senhor afirma: A palavra que vos anuncio, ela mesma vos julgará no

último dia (Jo 12,48). Com efeito, a palavra de Deus e do maná é

alimento para os que crêem, os fiéis, ou verme e condenação para os

que não crêem. Eis então quais são os escritos sobre aquelas coisas que

no tempo presente esperamos deverem se consumar. Tudo isso, se for

acreditado, é maná e bebida de salvação. Contudo, se forem reservadas

para o futuro apodrecem, e daí se apresentam aos não crentes como

vermes para o julgamento e para a ruína.

Sete são os combates gerais que se deram sob a lei, conforme aqui-

lo que está escrito: De seis perigos te salva e no sétimo não sofrerás mal

algum (Jó 5,19). Descreve seis tribulações porque duas são tomadas

por uma. Da mesma forma, se descrevem sete batalhas, mas de vez em

quando se descrevem só seis, porque a Igreja dos eleitos é instituída,

provada, purificada e libertada em seis tribulações e na sétima o mal já

não a atinge, porque descansa de todos os trabalhos (cf. Ap 14,13).

Contudo, enumeram-se sete batalhas, que pertencem à série das histó-

rias: primeiro dos egípcios, segundo dos cananeus, terceiro dos sírios,

quarto dos assírios, quinto dos caldeus, sexto contra os medos da

Babilônia e contra os filhos de Israel, um resto que parece ter sucum-

bido no quarto tempo dos assírios (cf. 2Rs 17). A sétima batalha foi a

dos gregos, quando o rei Antíoco profanou a cidade santa e o templo

(cf. 1Mc 1,56s) e quem pode fugir se escondeu nas montanhas.

c. São esses portanto os sete selos com que o livro estava selado,

porque o que significavam era desconhecido até que Cristo os abrisse.

Cristo os abriu quando realizou o que neles estava escrito. Pois se bus-

cas o que tipicamente os egípcios significavam, encontramos novos

egípcios piores que aqueles que perseguiam também a Cristo e os após-

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tolos e mantinham presos os fiéis nas obras da carne, proibindo-os de

alimentar-se com a liberdade da graça e de ir pregar ao povo dos genti-

os. Por isso, o primeiro combate da Igreja com os judeus aconteceu

por exemplo como foi com os novos egípcios, quando na luta se abriu

o primeiro selo.

Eis que aparece o núcleo que a casca escondia; aparece a verdade

viva, que os lençóis escondiam no sepulcro. A quem acreditou que era

assim, me seja suficiente apenas tocar brevemente no tema. A quem,

porém, exige para si uma fé mais plena, espere a íntegra da obra a fim

de saber o que julga e o que condena. Ninguém duvida que todas essas

coisas são possíveis para Deus e, apesar disso, muitos julgam não po-

der vir a ser o que sabem ser possível.

Mas passemos para os restantes selos, mostrando, não expondo,

de que modo, nos tempos próprios, esse selos são abertos por Cristo

Senhor. O segundo selo contém as guerras dos cananeus; na Igreja isso

significou o conflito com os pagãos. Abriu-se então o segundo selo

nos tempos dos pagãos. O terceiro selo contém as lutas dos sírios e de

outros povos, pelas quais na Igreja surgiram as guerras dos persas e dos

godos, dos vândalos e dos longobardos. O quarto selo contém as guerras

dos assírios, pelas quais o povo pestífero dos sarracenos se insurgiu

contra a Igreja, os quais praticaram ações no povo cristão iguais às que

fizeram aqueles outros no povo de Israel. Seguem-se os caldeus sob o

quinto selo e por eles se significam os novos caldeus e babilônios que

perseguem a nova Jerusalém espiritual. Por isso, o quinto selo é aberto

na quinta batalha. O sexto selo, porém, mostra a perseguição da

Babilônia e a repetida perseguição dos assírios, descrita no livro que se

chama Judite; ali, na sexta parte do livro mostra-se claramente que

coisas semelhantes aconteceriam no sexto tempo da Igreja. Sob o mes-

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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mo selo, na época de Antíoco, segue-se um período de muita violência

e na Igreja se dá a tribulação do anticristo, a qual dará fim a todas as

lutas. O sétimo selo impõe o fim da lei, a sétima abertura revela que

tudo se consumou. Sob esse selo, foi enviado João Batista, de quem se

diz: a lei e os profetas até João (Lc 16,16) Batista. Sobre isso pregou

Elias, de quem se diz: Quando Elias vier, ele mesmo restabelecerá tudo

(Mc 9,12). E o profeta: Eis que vou enviar-vos Elias, antes que chegue o

dia do Senhor, grande e terrível (Ml 3,23).

Em oitavo lugar, porém, o abrir o primeiro selo deve significar o

tempo da ressurreição do Senhor, no qual o Espírito Santo foi enviado

sobre cento e vinte fiéis (cf. At 1,15), ornando aquela santa Igreja com

dons celestes e dando origem a um tipo de Jerusalém celestial, a respei-

to da qual se trata plenamente em oitavo lugar no final desse livro na

parte sétima.

II. 1. Antes de dizermos qualquer coisa, precisamos adiantar al-

guns pontos a respeito do livro do Apocalipse. Primeiro, que esse livro

vem munido de um título, de uma saudação e de um prefácio e depois

que está dividido em sete partes e termina com os tempos. O título é

o que se apresenta antes da saudação; o prefácio é o que a segue, até

aquele lugar em que se afirma: E escreve ao anjo da Igreja de Éfeso (Ap

2,1). Embora não apenas nessa primeira parte, mas também em cada

uma das sete partes parece proceder como no prefácio: primeiro colhe-

se como num lago e depois como se desembocasse num rio.

A primeira parte de sete trata das igrejas, a segunda dos sete sinais,

a terceira dos sete anjos com tubas sonantes, a quarta da mulher revestida

de sol e de seu parto, a quinta dos sete anjos que saem do templo da

tenda e têm sete taças cheias da ira de Deus para serem derramadas

sobre a terra, a sexta da ruína da Babilônia, da luta de Cristo com a

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besta e daqueles que eram com ela pseudoprofetas e, por último, da

destruição do diabo que devia seduzir os povos. A sexta parte, como

foi dito, se divide em duas e deve ser tomada como duas. A sétima

parte, contudo, trata do juízo e da glória da cidade celestial.

b. Tudo isso está indicado naqueles oito dias que o filho unigênito

de Deus consagrou com a primeira e a segunda aparição, depois que

ressuscitou dos mortos. Essa é a sua configuração: de princípio, a pri-

meira parte concorda com o dia da ressurreição, a segunda com o se-

gundo, a terceira com o terceiro, a quarta com o quarto, a quinta com

o quinto e a sexta com o sexto. Falta, porém, o sétimo dia, ao qual não

se lhe atribui nenhuma parte do livro, porque de fato a sétima parte

deve ser atribuída ao oitavo dia.

c. Por isso, na primeira parte se trata da cura pastoral na forma de

sete estrelas ou anjos; a segunda trata das lutas dos mártires no misté-

rio dos sete selos; a terceira, da luta dos doutores na forma dos anjos

com tubas que soam; a quarta, da luta dos eremitas e das virgens na

forma da mulher revestida de sol e daqueles que são de sua raça; a

quinta, do zelo dos homens espirituais, cuja luta se opõe às perversões

do mundo que percebe com seus olhos. A sexta parte, contra a

Babilônia, quer dizer, contra as perversões do mundo, às quais se apli-

ca uma condenação definitiva. A seguir contra muitos povos que se

insurgem contra o nome de Cristo e por último, porém, contra o filho

da perdição (cf. 2Ts 2,3) e contra os povos, seduzidos para essas lutas.

Dessa forma, depois de terminado o tempo, se descreve a glória do

reino celeste na figura da cidade preciosa.

2. Nesse livro chamam a atenção, do ponto de vista espiritual,

cinco grupos: os apóstolos, os mártires, os confessores e as virgens e

em seguida os clérigos ou os monges da Igreja universal e todos os que

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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vivem na unidade da fé. Contra eles, o diabo enviou suas tropas: os

judeus, os pagãos, os arianos e os árabes e, por último, uma turba

universal da multidão desesperada.

Os quatro animais, isto é, o leão, o boi, o homem e a águia, signi-

ficam quatro grupos especiais (2Ts 2,3); o leão indica a ordem dos

pastores, o boi, a dos mártires, o homem, a dos doutores e a águia, a

dos contemplativos. Essas são as quatro comitivas espirituais do rei do

sul (cf. Dn 11,5ss), contra as quais o rei do norte dirigiu animais mui-

to ferozes, isto é, a leão, o urso, o leopardo e outro cuja figura Daniel

não indicou (Dn 7,4ss). Significavam aquela espécie de perseguidores,

acima mencionada, os judeus, os pagãos, os arianos e os árabes. Em

quinto lugar se mostra a cadeira (Ap 4,6), isto é, a Igreja universal, da

qual saem os homens espirituais, cheios de zelo, a fim de derramar

suas pragas de acordo com as perversões da Babilônia. Na quinta luta

termina o conflito da Igreja. Mas o que se segue no sexto selo é como

ver a novidade de outro tempo.

Assim, o primeiro tempo foi dos apóstolos, o segundo dos márti-

res, o terceiro dos doutores, o quarto dos eremitas e das virgens e o

quinto da Igreja universal. Com efeito, o sexto tempo foi reservado

para o juízo dos maus, no qual o povo israelita se converterá para a fé,

por meio de alguma paz entre as duas últimas tribulações nas quais se

duplica a abertura do sexto selo. Como antigamente, quando a Babilônia

foi vencida, a velha Jerusalém foi edificada em tempos de angústia (cf.

Dn 9,25), e não muito depois se seguiu a terrível calamidade de Antíoco,

da mesma forma agora se faz algo semelhante no sexto tempo.

Por conseguinte, os tempos dos apóstolos e dos mártires se estende-

ram até Constantino Augusto; o tempo dos doutores e dos que levavam

vida solitária foi até o famosíssimo príncipe Carlos; o tempo dos monges

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e dos clérigos se estendeu desde o mesmo príncipe até hoje. Em todo o

caso, eis que se aproxima um tempo de grande tribulação. Quando se diz

paz e segurança (1Ts 5,3), é como se surgisse um turbilhão. A temporalidade

compreende, portanto, seis etapas do mundo; a sexta idade do mundo

compreende no mesmo sentido seis tempos.

3. Mas daqui nascem duas questões não supersticiosas nem esté-

reis. Se alguém afirma que os próprios tempos são diferentes em cada

parte, como então cada uma das cinco partes se divide em sete divi-

sões? E se existem tempos próprios dos pastores, dos mártires, dos

doutores e das virgens e igualmente da Igreja universal: como no pri-

meiro tempo que se afirma ser próprio dos pastores existiram márti-

res, doutores, contemplativos e quem levava vida comum?

A isso se responde: Se as ordens singulares são distribuídas assim

tão distintamente em idades singulares, de modo a não receberem

qualquer comunhão umas das outras, nem esse livro seria de difícil

compreensão nem a mutação dos tempos seria confusa ao juízo. As-

sim, o que nesse livro se trata conforme as espécies é diferente daquilo

que passa para o gênero do que é necessário de modo especial em cada

tempo, e é diferente do que se faz de modo comum; isso porque é pela

mesma necessidade que somos obrigados a discutir aquilo que é, para

que não se deixe de lado o gênero na espécie, e nem se confunda a

espécie no gênero.

Por exemplo, a escritura nos fala de quatro animais, pelos quais se

designam os quatro evangelistas e quatro classes de santos: o leão, o

boi, o homem e a águia (Ap 4,6ss). Têm-se aqui quatro especiais, pois

nem o leão é boi, nem o boi é homem e nem o homem é águia.

Embora sendo assim, descobre-se que cada um dos animais, de acordo

com Ezequiel, possui quatro rostos, isto é, do leão, do boi, do ho-

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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mem e da águia (Ez 1,6-10). Por causa disso, também se sabe que o

leão participa de três propriedades do boi, do homem e da águia; o

boi, do leão, do homem e da águia; o homem, do leão, do boi e da

águia, e a águia, do leão, do boi e do homem. Da mesma forma tam-

bém o tempo dos pastores ou dos apóstolos possuiu mártires, douto-

res e virgens, bem como o tempo dos mártires teve pastores, doutores

e virgens e o tempo dos doutores teve pastores, mártires e virgens,

também no tempo das virgens havia pastores, mártires e doutores. De

modo semelhante, deve-se entender o quinto tempo que acima anun-

ciamos pertencer mais especificamente à “cadeira”, onde mesmo que se

incluam coisas do sexto, por causa disso não se acrescenta nenhuma

dificuldade.

Por isso voltemos, agora, para as ordens. A primeira ordem na

Igreja é a dos pastores, primeira no tempo e na dignidade. No tempo

é a primeira não porque começou imediatamente e logo desapareceu

para que se iniciasse uma segunda, mas primeira porque por primeiro

começou. Iniciou-se de Cristo e em Cristo de Pedro. Ele mesmo de-

pois de Cristo é o primeiro de todos os pastores, pois não precisa ser

comprovado por palavras que é o primeiro em ordem de dignidade,

uma vez que não pode ser tido como católico quem disser que um

cristão não está sujeito ao Pontífice romano, independente do gênero

ou da virtude.

Se a primeira classe é dos pastores quer pela dignidade, quer pelo

tempo, de modo algum deve-se crer que seja por simples vontade que

a primeira parte do livro (Ap 3-4) trate dos pastores, mas pelo exigen-

te juízo da razão. E porque os pastores não são pastores para si mes-

mos, mas para as igrejas que lhes foram confiadas; acrescentam-se nes-

sa parte, aos pastores, as plebes dos submissos, isto é, a Igreja, pelas

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quais se designa a totalidade dos fiéis, de acordo com o que acima se

dispôs quando se fez menção das sete tribos.

Por que a ordem dos pastores é compreendida pelo número sete?

Porque sete são os tempos próprios para as sete ordens e nelas por sete

tempos não faltaram pastores. Por isso que o tempo próprio dos pas-

tores é chamado de primeiro tempo e o dos mártires segundo, o dos

doutores terceiro, o das virgens quarto e o dos monges quinto. Por

isso, os convertidos e os casados devem ser incluídos no sexto lugar.

Embora sua instituição descenda da ordem dos monges. No primeiro

tempo, todas essas ordens existiram, por assim dizer, na família dos

pastores, depois na dos mártires, em terceiro lugar na dos doutores,

em quarto na das virgens, em quinto na dos monges, em sexto na dos

convertidos e dos casados, em sexto lugar, nos últimos tempos esses

dois manifestaram-se quase que simultaneamente.

Sendo assim, pode-se considerar o que foi próprio de cada um e

como todos através de cada um se comunicam com cada um. Foi

próprio dos apóstolos esvaziar a letra para que se instituísse o espírito;

o próprio dos mártires foi esvaziar a idolatria a fim de instituir a cultu-

ra do único Deus; o próprio dos doutores foi vencer as heresias para

instituir a verdade de Cristo; o próprio dos contemplativos foi tirar do

mundo a luxúria para que se percebessem as alegrias dos céus; foi pró-

prio dos monges forçar os vagantes e os inconstantes a fim de que

guardassem a virtude da unidade. Essas são as cinco principais ordens,

atribuídas às cinco partes do livro e com eles se aperfeiçoam as cinco

partes da cidade celeste, às quais se ajunta também a ordem dos con-

vertidos, como pertencentes ao subúrbio, e a dos casados, como se

pertencesse a aldeias, das quais se diz: Em todas as suas aldeias se canta-

va aleluia (Tb 13,22). Assim, porque cada uma das ordens foi

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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esclarecida por cada um dos tempos, de modo semelhante, cada um

dos tempos é atribuído a cada uma das ordens. Na verdade, porque

em cada um dos tempos e em cada combate todas as ordens estão

presentes, corretamente prova-se que cada uma delas possuía algo co-

mum com todas. No entanto, de maneira melhor se mostrará se tudo

isso de que falamos for repetido abaixo.

4. A primeira ordem é a dos pastores, e por isso na primeira parte

se trata dos pastores. Contudo, visto que a mesma ordem passando

dos tempos para os tempos participa das opressões de todos, uma or-

dem implica sete anjos, que são a Igreja de Éfeso, de Esmirna, de

Pérgamo, de Tiatira, de Sardes, de Filadélfia e de Laodicéia. Nelas, se

conseguirmos intuir com sutileza, vamos encontrar que o primeiro

anjo se refere a um tempo próprio, isto é, dos apóstolos, o segundo ao

tempo dos mártires, o terceiro dos doutores, o quarto das virgens, o

quinto dos monges, o sexto dos convertidos e casados. No entanto,

nessas ordens deve-se notar principalmente que os apóstolos instituí-

ram evangelistas e os evangelistas doutores, os doutores instituíram

contemplativos, e os contemplativos instituíram monges e os mon-

ges, convertidos. Finalmente dos convertidos para os casados difun-

diu-se a imitação das boas obras. Disso aconteceu que, quase sempre,

uma fé une duas ordens em uma só, conforme o que se lê que os

primeiros diáconos habitavam com os apóstolos (Cf. At 6,2ss), mas

agora com os bispos, como agora também vemos os convertidos habi-

tarem com os monges de sua ordem.

Como a segunda ordem é a dos mártires, corretamente na segunda

parte se trata dos mártires. Essa ordem começou com Cristo quando

suportou por nós o suplício da cruz e em Cristo desde o beato Estévão

(cf. At 7,57s) que, por primeiro, devolveu a Cristo o que recebera. Daí

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que, na segunda parte, se descobre o cordeiro quase morto (cf. Ap

5,6s), isto é, Cristo sofredor na cruz, que veio e recebeu o livro da

direita daquele que estava sentado quando veio da morte e ressuscitou

dos mortos. Como abriu o túmulo, também abriu o entendimento a

seus discípulos para que compreendessem as escrituras, a partir de en-

tão começaram a se abrir os selos, acima mencionados. Os sete selos

são os sete mistérios das paixões, de tal forma que no sexto se lem-

bram simultaneamente duas paixões, e designam as paixões dos fiéis

que se aperfeiçoam em seis tempos, quer dizer, naquela ordem de que

falamos acima. Dessas paixões, porém, quatro são passadas, a primeira

por meio dos judeus, a segunda pelos pagãos, a terceira pelos arianos, a

quarta pelos sarracenos, a quinta geral que os filhos da Babilônia fize-

ram. A sexta e a sétima serão realizadas na sexta abertura do selo (cf. Ap

6,12-17), onde porém, embora a sétima não apareça explicitamente,

é deduzida das palavras escritas abaixo. Na sexta parte do livro (Ap

17ss; cf. 17,7-14) aparece claramente. Portanto, tendo-se completado

os seis combates, infere-se a soma dos mártires (Ap 7,4ss), cento e

quarenta e quatro mil de todas as tribos dos filhos de Israel, e depois

essa grande multidão, que ninguém podia enumerar (Ap 7,9). Então

são soltos os quatro anjos, a quem foi dado fazer mal à terra e ao mar

(Ap 7,2; 9,15) sob a mesma abertura do sexto selo, e assim depois da

abertura do sétimo selo (Ap 8,1; 10,7) acontece o fim.

A terceira ordem eclesiástica é a dos doutores, que começou com

Cristo e em Cristo desde o apóstolo Paulo, e por isso a terceira parte

do livro trata dos doutores, pela ordem como acima. Contra os pri-

meiros pregadores dos judeus se levantaram os hereges, que (At 15,5)

acreditava-se serem da seita dos fariseus e pervertidos se fizeram

pseudoapóstolos (cf. Hb 6,5s; 2Cor 11,13); contra os segundos, se

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opuseram os nicolaítas (cf. Ap 2,6.15); contra os terceiros, os arianos,

contra os quartos os moamequitas, contra os quintos os paterinos,

contra os sextos os pseudoprofetas (cf. Ap 19,20) dos quais o vocábu-

lo ainda é pouco conhecido e por último o anticristo com seus minis-

tros. O sétimo anjo, porém, quando soar a tuba, se consumará o mis-

tério de Deus.

A quarta ordem da Igreja é a dos eremitas e dos virgens de ambos

os sexos e por isso na quarta parte do livro se trata das virgens. Foi

iniciado pela virgem e por seu filho. João, porém, foi dado a Maria

como filho em lugar de Cristo (Jo 19,26), porque era previsto para o

futuro que crescesse a ordem dos virgens em ambos os sexos. Tens,

portanto, a mulher vestida de sol (cf. Ap 12,1), que significa a Igreja

das virgens, cuja ordem foi iniciada por Maria quanto às mulheres e

por Cristo e em Cristo por João quanto aos filhos virgens. O dragão

diabo, tendo sete cabeças com sete diademas (Ap 12,3), são sete reis a

respeito dos quais se afirma: E os reis são sete (Ap 17,9), mas os dez

chifres são dez reis (Ap 12,3; 17,12) futuros que reinarão sob o mesmo

tempo.

Repara: a palavra e o tempo. Os anjos do dragão (Ap 12,7s) são os

perseguidores dos mártires. Miguel Pedro e Miguel em Pedro, como o

diabo em Herodes (cf. At 12,1ss; Ap 12,7). Com efeito, foi este a

primeira cabeça do dragão. Os anjos de Miguel são os santos mártires

de quem se diz: Eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e não amaram

suas almas até a morte (Ap 12,11). Esse combate aconteceu após a

ressurreição do Senhor, mas foi consumado nos dias de Constantino.

A mulher, porém, fugiu da presença da serpente para a solidão (cf. Ap

12,6), onde permanece por um tempo e por tempos e por meio tempo

(Ap 12,14), que nada mais significa que todo o tempo da Igreja dife-

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renciado por meio do setenário. No entanto, o dragão fez guerra ao

resto da descendência da mulher (cf. Ap 12, 17), quer dizer, aos eremi-

tas e aos monges, que vivem castamente, ou a todos os fiéis. Tirou

também do abismo um animal que tinha sete cabeças e dez chifres (cf.

Ap 13,1). Certamente esse animal possui sete tempos, por isso é que

na quarta parte se escreve a revelação desse animal, porque no quarto

tempo se manifestou com a máxima força.

Essa fera é a reunião dos infiéis que a modo de animais perseguem

os cristãos. Daniel divide essa fera em quatro (cf. Dn 7,4-7). A primei-

ra semelhante ao leão, a segunda semelhante a um urso, a terceira se-

melhante a um leopardo e possuía quatro cabeças, a quarta era diferen-

te das outras. Daniel apresenta sete cabeças em quatro animais, o que

João apresentou em um animal. João menciona assim o leão, o urso e

o leopardo: E a fera que vi era semelhante ao leopardo e seus pés como de

um urso e sua boca como a boca de um leão (Ap 13,2). Em lugar da

quarta fera de Daniel, João apresentou dez chifres (cf. Ap 13,1; 12,3;

17,3-12). Colocou o tempo próprio dessa fera no povo ferocíssimo

dos sarracenos e por isso na quarta parte do livro, porque essa é a mes-

ma quarta fera de Daniel, também essa perseguição se originou no

quarto tempo, quer dizer, no tempo dos eremitas e das virgens. Tam-

bém afirma que a própria cabeça estaria morta e rapidamente teria

voltado (cf. Ap 13,3); é claro que os povos bárbaros foram por assim

dizer totalmente esmagados pelos combates superiores dos francos e

muitos deles foram trazidos para o serviço dos cristãos e deve aconte-

cer que a fera que parecia estar profundamente presente se levante numa

cabeça, isto é num reino; que essas coisas devem acontecer só se po-

dem explicar por palavras. Outra besta que se levanta da terra e que

tem dois chifres semelhantes aos do cordeiro (cf. Ap 13,11) virá em sua

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ajuda e significa a seita dos pseudoprofetas, como João abaixo mos-

trou (cf. Ap 15,13; 19,10). Como Janes e Jambres realizavam sinais

diante do faraó (cf. 2Tm 3,8; Ex 7,11) e Simão, o mago, diante de

Nero, da mesma forma estes fazem-no diante da besta que sobe do

abismo, isto é da nação dos gentios, que também o apóstolo lembra

duas ou três vezes (cf. Ap 16,13s; 19,20).

Depois que S. João fez menção da primeira besta (cf. Ap 13,11),

que no quarto tempo fez desaparecer uma parte do povo cristão, leva-

do pela necessidade mostrou aquelas coisas que essa fera realizaria no

sexto tempo por meio deles, começou a falar das coisas das virgens

fazendo uma digressão para se livrar dos que pertencem à besta. Agora,

porém, volta para aquilo que deixara de lado e recorda o número das

virgens que era de cento e quarenta e quatro mil, de quem também

disse: Esses são aqueles que não se mancharam com mulheres, pois são

virgens (Ap 14,4). Esse número é igual ao número dos mártires, que é

tomado dos doze patriarcas (cf. Ap 7,4-8), para que naquela cidade

existam tantos virgens assinalados como mártires, além da grande

multidão que ninguém podia enumerar (cf. Ap 7,9). A respeito dessas

coisas é difícil uma palavra importante nesse lugar.

Por isso, em primeiro lugar, deve-se conceber que o combate é de

Cristo, que foi levado para Deus e para seu trono (Ap 12,5); em segun-

do lugar, de Miguel e seus anjos (Ap 12,7), esse combate anuncia o

dos mártires; em terceiro, da perseguição do diabo que perseguiu a

Igreja no tempo dos arianos e introduziu uma doutrina errônea após a

mulher, como se fosse água de um rio (Ap 12,15). Por ocasião dessa

perseguição aconteceu que muitos, tendo assumido asas (cf. Ap 12,14),

fugiram para a solidão. Isso, apesar de ter acontecido também em ou-

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tros tempos, ficou claro principalmente no quarto tempo. Em quinto

lugar se apresenta outro anjo, que anuncia a proximidade do julga-

mento do Senhor. Afirma: E vi outro anjo que voava pelo zênite do céu

e segurava o Evangelho eterno para anunciá-lo aos habitantes da terra e

a toda nação, tribo, língua e povo, dizendo em altas vozes: temei o Se-

nhor e lhe dai glória porque chegada é a hora de seu juízo (Ap 14,6). Em

seguida, em sexto lugar, são apresentados dois outros anjos, de quem

se afirma: Um segundo anjo o seguiu dizendo: “caiu, caiu a grande

Babilônia que com o vinho de sua furiosa prostituição embriagou todas as

nações”. E mais um terceiro anjo o seguiu dizendo com voz forte: Se al-

guém adorar a besta e sua imagem etc. (Ap 14,8). A seguir, em sétimo

lugar, se indica o sábado, quando afirma: E ouvi uma voz do céu que

me dizia: Escreve: bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor

(Ap 14,13). Em seguida se trata do fim dos tempos, quando se realiza

a colheita dos bons e a vindima dos maus (cf. Ap 14,14-20).

A quinta ordem da Igreja universal é daqueles que levam vida co-

mum. Essa ordem, porque atua em parte na Igreja e em parte nos

mosteiros, é designada ao mesmo tempo o templo e a tenda (cf. Ap

15,5). O templo certamente significa a Igreja, por causa da solidez da

fé, a tenda indica a vida cenobítica, pelo fato de não terem aqui uma

herança permanente, mas futura (cf. Hb 13,14). Acima, contudo, foi

dito que diante do trono existe como que um mar vítreo semelhante a

cristal (Ap 4,6). A sede de Deus é a mesma que o templo e a mesma

que a tenda. Daí que se faz menção também aqui do mar vítreo, por-

que se afirma que o mar está misturado com fogo (Ap 15,2), porque o

mar de bronze (cf. 2Rs 25,13; Jr 52,17) está cheio de água. Por isso no

mar de bronze se designa a vida ativa, que é própria dos pregadores, no

mar vítreo, porém, se indica a vida especulativa, que é própria daque-

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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les que moram nos claustros. Aqueles, portanto, que venceram a besta

e sua imagem e o número de seu nome (Ap 15,2) reúnem-se sobre esse

mar, porque para os que quiserem ser perfeitos é necessário que, des-

prezando a carne, vençam a besta e, fugindo dos pecados criminosos,

superem a imagem e, precavendo-se da multidão dos vícios, vençam o

número. O número é do homem e seu número é seiscentos e sessenta e

seis (Ap 13,18). Julgo ser algo supersticioso buscar a certeza desse nú-

mero, porque nele pode existir alguma obscuridade que não se pode

saber a não ser no tempo em que reinar a besta. Por agora é suficiente

saber que designa a multidão dos vício, e aqueles que podem vencê-los

se tornam apologistas do Senhor. Saem do templo da tenda sete anjos

vestidos de jaspe ou de pedra pura (Ap 15,6), que é o homem novo,

que foi criado segundo Deus (cf. Ef 4,24) e vestidos ao redor do peito

com cinturões de ouro (Ap 15,6), não tendo apenas a castidade do cor-

po, sinalizada pelo fato de cingir os rins, que se sinaliza o contorno das

costas, mas também da mente, que é sinalizada no contorno do peito.

Esses são os homens espirituais que assumem o zelo pelo nome de

Deus, que combatem os delitos do povo com grande indignação da

mente e derramam o fogo do zelo por cima da plebe pecadora, con-

forme o que diz Isaías: Obceca o coração desse povo (Is 6,10) etc. Por

isso a quinta parte do livro designa a ira de Deus realizada no povo,

porque está escrito: Por três anos vim buscar fruto nessa árvore e não

encontro. Arranca-a, portanto (Lc 13,7ss). Roga o camponês e lhe é

dada a indulgência de um quarto ano. No quinto, porém, não haven-

do mudança será arrancada. Portanto, quanto a Deus, então o gênero

humano será arrancado, uma vez que por causa dos delitos anteriores e

do coração impenitente o Senhor os abandonou em seus caprichos (cf.

Sl 80,13; 105,29; Mq 3,4).

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JOAQUIM DE FIORI

Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 229-257, jul./dez. 2010

Quatro são as obras de Cristo: o nascimento, a paixão, a ressurrei-

ção e a ascensão. Em dignidade, porém, a ressurreição se antepõe. A

ressurreição pertence à fé apostólica, a paixão à paciência dos mártires,

o nascimento à humildade dos doutores e a ascensão à esperança dos

contemplativos. Em quinto lugar vem o fogo divino sobre os reuni-

dos num coração (cf. At 2,3s) e lhes ensinou toda equidade (cf. Jo

16,13). Na verdade a caridade é a plenitude dos mandamentos. Por-

tanto, em quinto lugar se realiza a perfeição dos bons no fogo da cari-

dade de Deus, mas também em quinto lugar se realiza a ira do fogo

sobre a malícia dos pecadores. Esse juízo, porém, acontece em cada

tempo porque cada tempo possui suas proporções, mas de modo es-

pecial nesse quinto tempo em que existe a propriedade dessa coisa.

5. A sexta parte é dedicada à ceifa do século, e dos ceifados na

quinta parte ninguém (cf. Ez 15) será entregue ao fogo. Nela, pois, se

mostra o julgamento da besta, principalmente daqueles homens que

perseguiram a Igreja, e em geral, porém, onde quer que se tenham

propagado os frutos da Babilônia. Quem fará isso? A besta com seus

chifres. Babilônia (Ap 17,5) é o povo, que se chama cristão, mas não é,

pois contamina a terra do Senhor (cf. Jr 2,7; 16,18) e polui as coisas

santas. O Senhor suscitará contra a imundície do povo uma gente

terrível, significada pela besta, e como os operários cortam muitos

bosques para tornar a terra preparada e limpam os caminhos do cam-

po do mundo. Os eleitos começam a ser confortados no senhor, mas

a besta lutará contra eles e com ela os pseudoprofetas. Mas o Senhor se

levanta em juízo e triunfará sobre aquela gente e haverá paz. A Jerusa-

lém nova será edificada na angústia dos tempos (cf. Dn 9,25). Nos

últimos dias, contudo, o diabo que outrora fora amarrado será solto

(cf. Ap 20,2s) e seduzirá povos que estão nos quatro cantos da terra, Gog

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COMENTÁRIO AO APOCALIPSE (EXTRATO)

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e Magog (Ap 20,7), e os incita contra a Igreja. Mas virá fogo do céu (Ap

20,9) e os consumirá. Tudo isso acontecerá no final da sexta abertura e

então será sábado. A seguir a ressurreição para o julgamento (Cf. Ap

20,13), e então será revelada a glória da cidade celeste (cf. Ap 21,2.10-

22,5). Para ela nos conduza o Senhor, que vive e reina por todos os

séculos dos séculos. Amém.

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