Ortega, Francisco. Da Ascese a Bioascese

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ORTEGA, Francisco. “Da ascese à bio-ascese ou do corpo submetido à submissão ao corpo”. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B. Lacerda; VEIGA-NETO, Alfredo. Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p.139-173. Da ascese à bio-ascese ou do corpo submetido à submissão ao corpo* Francisco Ortega Quando tenhamos aliviado o máximo possível as servidões inúteis, evitado os infortúnios desnecessários, restará sempre para preservar as virtudes heróicas do homem, a longa serie de males verdadeiros, a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não compartilhado, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que nossos projetos e menos terna que nossos sonhos: rodos os infortúnios provocados pela natureza divina das coisas. (Marguerite Yourcenar) Existem pessoas que se privam inteiramente de tudo o que se pode comer, beber ou fumar. Assim, a qualidade é questionada de qualquer maneira. É o preço que pagam pela saúde. E a saúde é tudo o que ganham. Como isso é estranho. É como gastar toda a sua fortuna em uma vaca que não dá leite. (Mark Twain) O imperativo ascético o seu livro The Ascetic Imperative in Culture and Criticism (HARPHAM, 1987), Geoffrey Harpham considera o ascetismo como um instrumento fundamental na transformação cultural e hermenêutica. Ele é o "elemento 'cultural' na cultura", que permite a comparação e a comunicação entre elas (idem, p. XI). Qualquer definição estreita do ascetismo que o identifique com um conjunto de comportamentos restritivos distintivos de períodos históricos delimitados e de áreas geográficas particulares necessariamente perde o alcance geral do fenômeno como operador de formação e transformação cultural. 1 Apesar do ascetismo se apresentar como um fenômeno * Várias idéias que apresento neste texto surgiram a partir das discussões e conversas com meus colegas Jurandir Freire Costa e Benilton Bezerra Jr., e com os participantes do Seminário sobre biopolitica, biossociabilidade e bio-ascese, no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 1 Segundo Winbush, "nenhum texto, nenhuma figura histórica ou grupo da Antiguidade e nenhum tipo particular de prática poderia adequadamente definir ou tipificar o ascetismo. A ação recíproca da prática e do motivo e o número aparentemente infinito de combinações e graus de tensão na dinâmica entre prática e motivo nos diferentes contextos apresentaram-se ser muito mais complexos para nos permitir concordar N

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  • ORTEGA, Francisco. Da ascese bio-ascese ou do corpo submetido submisso ao corpo. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B. Lacerda; VEIGA-NETO, Alfredo. Imagens de Foucault e Deleuze:

    ressonncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p.139-173.

    Da ascese bio-ascese

    ou do corpo submetido submisso ao corpo*

    Francisco Ortega

    Quando tenhamos aliviado o mximo possvel as servides inteis,

    evitado os infortnios desnecessrios, restar sempre para preservar as

    virtudes hericas do homem, a longa serie de males verdadeiros, a

    morte, a velhice, as doenas incurveis, o amor no compartilhado, a

    amizade recusada ou trada, a mediocridade de uma vida menos vasta

    que nossos projetos e menos terna que nossos sonhos: rodos os

    infortnios provocados pela natureza divina das coisas.

    (Marguerite Yourcenar)

    Existem pessoas que se privam inteiramente de tudo o que se pode

    comer, beber ou fumar. Assim, a qualidade questionada de qualquer

    maneira. o preo que pagam pela sade. E a sade tudo o que

    ganham. Como isso estranho. como gastar toda a sua fortuna em

    uma vaca que no d leite.

    (Mark Twain)

    O imperativo asctico

    o seu livro The Ascetic Imperative in Culture and Criticism (HARPHAM, 1987),

    Geoffrey Harpham considera o ascetismo como um instrumento fundamental na

    transformao cultural e hermenutica. Ele o "elemento 'cultural' na cultura", que

    permite a comparao e a comunicao entre elas (idem, p. XI). Qualquer definio

    estreita do ascetismo que o identifique com um conjunto de comportamentos restritivos

    distintivos de perodos histricos delimitados e de reas geogrficas particulares

    necessariamente perde o alcance geral do fenmeno como operador de formao e

    transformao cultural.1 Apesar do ascetismo se apresentar como um fenmeno

    * Vrias idias que apresento neste texto surgiram a partir das discusses e conversas com meus colegas Jurandir Freire Costa e Benilton Bezerra Jr., e com os participantes do Seminrio sobre biopolitica,

    biossociabilidade e bio-ascese, no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro (UERJ). 1 Segundo Winbush, "nenhum texto, nenhuma figura histrica ou grupo da Antiguidade e nenhum tipo

    particular de prtica poderia adequadamente definir ou tipificar o ascetismo. A ao recproca da prtica e

    do motivo e o nmero aparentemente infinito de combinaes e graus de tenso na dinmica entre prtica

    e motivo nos diferentes contextos apresentaram-se ser muito mais complexos para nos permitir concordar

    N

  • universal, j que todas as culturas teriam a disposio esse mecanismo privilegiado de

    formao cultural,2 a relao com uma cultura determinada pode ter diferentes formas.

    O asceta pode desafiar a cultura, integra-se nela, transcend-la, viver em tenso com ela,

    ou transform-la (ver MITCHELL, 96.10.7). Da que possamos analisar o ascetismo

    como fenmeno geral existente em todas as culturas (o que Harpham chama de

    "imperativo asctico") e que, no entanto, s compreensvel nas formas, motivos,

    contextos e comportamentos especficos nos quais a conduta as ctica aparece. Foucault

    se aproxima dessa noo quando define as "prticas de si" como os "esquemas que o

    indivduo encontra na sua cultura e que lhe so propostos, sugeridos e impostos pela sua

    cultura, sua sociedade e [p.140] seu grupo social" (FOUCAULT, 1994c, p. 719).3 "A

    nfase dada, ento, s formas das relaes consigo, aos procedimentos e s tcnicas

    pelas quais so elaboradas, aos exerccios pelos quais o prprio sujeito se d como

    objeto por conhecer e s prticas que permitam transformar seu prprio modo de ser"

    (FOUCAULT, 1984, p. 37). Uma genealogia da ascese, isto , uma histria das

    diferentes manifestaes do fenmeno asctico, das formas de subjetivao e das

    prticas de si que a garantem, o fio condutor escolhido por Foucault para a elaborao

    de sua histria da subjetividade. Tal mtodo me parece adequado para o objetivo deste

    texto, que consiste em contrapor as prticas ascticas da Antiguidade, enquanto prticas

    de liberdade, s prticas de bio-ascese contemporneas, como prticas de assujeitamento

    e disciplinamento. Em ambas, encontramos amide as mesmas prticas que, no entanto,

    visam objetivos contrapostos e promovem processos de subjetivao divergentes. A

    partir dessas consideraes preliminares, podem-se estabelecer quatro tpicos gerais

    presentes em toda conduta asctica.

    Primeiro, a ascese implica em um processo de subjetivao. Ela constitui um

    deslocamento de um tipo de subjetividade para outro tipo, a ser atingido mediante a

    prtica asctica. O asceta oscila entre uma identidade a ser recusada e outra a ser

    com a generalizao do fenmeno a partir de um foco ou rea de pesquisa". (apud KELSEY, 1992, p.

    133). 2 Ver Valantasis (1995, p. 794-795). A universalidade do ascetismo no corresponde a uma experincia

    religiosa geral, nem a uma srie de crenas ascticas universais, tais como a valorao do esprito sobre o

    corpo, ou a recusa e afastamento da sociedade que estaria implicada na atividade asctica. 3 Para Foucault, toda conduta moral, a maneira como o indivduo se constitui como sujeito moral de suas

    aes, concerne quatro aspectos principais: substncia tica, modo de sujeio, ascese e teleologia. Ver

    Foucault (1984, p. 35-36; 1994c, p. 383). O elemento asctico est presente em toda conduta moral, um

    fenmeno geral existente em toda relao tica, o qual, no entanto, unicamente compreensvel no

    contexto particular no qual se apresenta.

  • alcanada.4 A subjetividade desejada representa para o asceta a verdadeira. [p.141]

    identidade para o qual se orienta o trabalho asctico. Desde a perspectiva do observador,

    o sujeito asctico aparece como figurado e construdo, provocando reaes positivas ou

    negativas, segundo o grau de afinidade do observador com a prtica asctica respectiva.

    A forma de subjetividade almejada (e que Foucault chama de teleologia) varia segundo

    a contextualizao histrica das prticas ascticas, podendo encontrar as mesmas

    prticas vinculadas a diferentes fins, diferentes processos de subjetivao, seja a

    constituio de si como sujeito moral da Antiguidade greco-latina, a auto-renncia e a

    pureza do cristianismo,5 a interioridade crist e burguesa, ou as bio-identidades

    contemporneas, onde o corpo possui a auto-reflexividade que correspondia outrora

    alma. As formas de subjetividade visadas pela ascese podem diferir ou no das

    identidades prescritas social, cultural e politicamente. Enquanto nas asceses da

    Antiguidade o self almejado pelas prticas de si representava frequentemente um

    desafio aos modos de existncia prescritos, uma forma de resistncia cultural, uma

    vontade de demarcao, de singularizao, de alteridade, encontramos na maioria das

    prticas de bio-ascese uma vontade de uniformidade, de adaptao norma e de

    constituio de modos de existncia conformistas e egostas, visando a procura da sade

    e do corpo perfeito (ver SFEZ, 1996).

    Segundo, a ascese implica na delimitao e reestruturao das relaes sociais,

    desenvolvendo um conjunto alternativo de vnculos sociais e construindo um universo

    simblico alternativo. Para Valantasis (idem, p. 796) rearranjo das relaes sociais

    implicado nas polticas ascticas geralmente se encontra em conflito com os arranjos

    sociais dominantes.6 Essa viso deve ser modificada, j que [p.142] nas modernas bio-

    asceses, o conjunto de relaes sociais encorajadas - formas de biossociabilidade -, em

    geral no visa, como j foi apontado no tpico anterior, a transformao do status quo e

    dos arranjos estabelecidos, mas o narcisismo conformista e o abandono do mundo.

    4 "O asceta no participa plenamente nem de uma subjetividade (a que deixa atrs, mas que deve ser

    ainda superada) nem da outra subjetividade (a ainda no presente mas que est no horizonte), porque o

    asceta se movimenta sempre entre a identidade desconstruda e a construda. detido pela primeira e ao

    mesmo tempo anelando pela ltima. E, por conseguinte, o asceta parece estar sempre em transito, em

    processo, em movimento em direo a uma nova subjetividade" (VALANTASIS, 1995, p. 801). 5 Especificamente no caso da Antiguidade tardia crist, Valantasis (1995, p. 802-806) distingue cinco

    tipos de sujeito asctico: o sujeito combativo, o modelo integrativo, o modelo educativo, o peregrino e o

    sujeito da revelao. 6 Na Antiguidade, o ascetismo no era sempre subversivo, ao existir situaes nas quais servia para

    manter a ordem social e para auto-afirmar uma elite social cultural e poltica. Esse o caso do ascetismo

    imperial descrito na obra do poeta Virglio. Ver Keith e Vaage (1999, p. 411-420).

  • Terceiro, a ascese um fenmeno social e poltico. O ascetismo uma prtica

    social. Foucault reconheceu esta dimenso scio-poltica da ascese quando disse,

    referindo-se ao retiro dos esticos, que "o cuidado de si (...) aparece como uma

    intensificao das relaes sociais" (FOUCAULT, 1984a, p. 69; 2001, p. 144). At as

    formas de anacorese radical sempre visam o outro, uma audincia. Os ascetas

    representam um papel fundamental na definio da sociedade crist. Apesar da

    apresentao de ascetas e eremitas como solitrios, a maioria dependia de um suporte

    comunitrio e tinha uma funo poltica fundamental como mediadores, rbitros,

    patronos e intercessores numa poca em que as estruturas legais e governamentais eram

    insatisfatrias e inadequadas. Os ascetas ressaltavam a solidariedade do grupo tornando-

    se acessveis aos valores e necessidades da comunidade (CLARK, 1999, p. 33-37;

    BROWN, 1982, p. 148-152; 1978, p. 64-67; p. 80; ROUSSEAU, 1999, p. 53-55; RAPP,

    1999, p.63-66).

    Por ltimo, a ascese est ligada vontade. Tanto nas asceses filosficas clssicas

    quanto nas crists existe uma forte acentuao do elemento volitivo. Ascese ascese da

    vontade, exerccio da vontade (LOHSE, 1969, p. 42; W. Capelle, verbete "Asceticism

    (Greek)", em HASTINGS, 1967, p. 83-86). Frente ao ascetismo rfico-platnico e

    neoplatnico de carter marcadamente mstico-religioso, o ascetismo cnico-estico

    enfatiza mais os elementos ticos-volitivos, a ascese da vontade. esse ascetismo que

    importado tradio crist com uma funo poltica de afastamento e de oposio ao

    gnosticismo (que incorpora a tradio do ascetismo rfico-platnico) (ver FOUCAULT,

    2001, p. 402-403). A questo da unidade versus a diviso da vontade estava no ncleo

    dos debates teolgicos. A oposio entre o conhecimento e o uso correto e falso da

    vontade domina a prtica asctica. Atravs do exerccio asctico, o asceta recupera o

    conhecimento e o uso correto da vontade, a unidade da vontade, isto , consegue [p.143]

    retomar situao paradisaca do homem antes da queda: a ascese a imitatio Christi

    corporal e espiritual (DRIJVERS, 1985, p. 450-451; HORN, 1998, p. 181-183;

    BROWN, 1988, p. 407-408; FOUCAULT, 1994c, p.174-178).

    Para os esticos, o estulto o indivduo que no cuida de si, que no possui

    constncia da vontade. Ele incapaz de querer de forma adequada, de querer a si

    mesmo, estabelecendo-se uma desconexo entre a vontade e si mesmo. A ascese est ao

    servio da vontade de uma vontade livre, sem determinao, absoluta. Frente ao estulto

    que no quer de uma forma absoluta, que tem uma vontade fraca (acrasia), limitada,

  • fragmentada, que no capaz de mostrar constncia na sua prtica asctica, a vontade

    livre tem a si mesmo como alvo visado, como objeto livre, absoluto e permanente.

    uma questo de ateno, vigilncia, constncia e concentrao atltica. O estulto o

    disperso, o desatento, que relaxa a vigilncia (FOUCAULT, 2001, p. 128-130; p. 213-

    214; VOELKE, 1973). Nas modernas bio-asceses, em contrapartida, a vontade no est

    a servio da liberdade; uma vontade ressentida, serva da cincia, da causalidade, da

    necessidade, que constrange a liberdade de criao e elimina a espontaneidade.

    A tentativa de oferecer uma definio de ascese apresenta vrias dificuldades. A

    maior parte das definies usa determinadas atividades ascticas para definir o

    fenmeno asctico (VALANTASIS, 1995, p. 794; GUIBERT, 1937, p. 937-938), o que

    impede em considerar os seus aspetos mais universais. Outro elemento comum a

    diversas definies compreender a ascese no sentido cristo de auto-renncia e auto-

    restrio. As acepes de ascese podem ser divididas portanto entre as que tentam

    caracteriz-la a partir de um ou mais elementos da prtica asctica, e as que a

    compreendem de forma negativa, como auto-renncia (ORTEGA, 1999, p. 57-58). Para

    os objetivos deste artigo, as definies de Valantasis e Foucault apresentadas a seguir

    me parecem ser as mais adequadas por serem suficientemente amplas e englobantes e

    levarem em conta o carter universal do fenmeno, o qual, no obstante, apenas

    compreensvel nas formas, motivos e contextos especficos da apario da prtica

    asctica. [p.144]

    Para Valantasis, "o ascetismo pode ser definido como as performances em um

    meio social dominante com a inteno de inaugurar uma nova subjetividade, relaes

    sociais diferentes e um universo simblico alternativo" (VALANTASIS, 1995, p. 797).

    Contudo, a definio de Valantasis deve ser ligeiramente modificada, j que o universo

    simblico que a prtica asctica visa constituir nem sempre alternativo, tornando-se,

    especificamente no caso das modernas bio-asceses, um universo dominante,

    conformista e totalizador. Nesse caso, a ascese perde o seu carter de novidade e

    transgresso, ao estar mais do lado da disciplina do que da ascese propriamente dita,

    como veremos mais adiante.

    Foucault define o "asctico" como o "conjunto ordenado de exerccios

    disponveis, recomendados e at obrigatrios, utilizveis pelos indivduos num sistema

    moral, filosfico e religioso para atingir um objetivo espiritual especfico"

  • (FOUCAULT, 2001, p. 398). O objetivo espiritual implicaria na transfigurao dos

    indivduos envolvidos enquanto sujeitos de ao e conhecimentos verdadeiros.

    Ascese como prtica de liberdade

    As diversas escolas filosficas da Antiguidade e as prticas ascticas crists

    compartilham uma viso dualista da ascese: a ascese sempre do corpo e da alma; a

    ascese corporal visa, no fundo, uma ascese da alma. Para Digenes a ascese corporal

    deve acompanhar a ascese da alma, "cada um dos exerccios impotente sem o outro, a

    boa sade e o vigor no so menos teis que o resto, pois o que concerne ao corpo

    concerne tambm alma" (FOUCAULT, 1984, p. 85). Quando se dividem as prticas

    ascticas em corporais e espirituais, como em Musonius Rufus, mesmo na ascese

    corporal encontramos uma dimenso espiritual. A idia de uma ascese exclusivamente

    corporal, as bio-asceses contemporneas, completamente estranha para o pensamento

    antigo.

    Para os gregos, a ascese era parte constitutiva da paidia do homem livre que

    representa um papel na sua relao com outros homens livres. Para o pensamento grego

    clssico, observa Foucault, [p.145] "o asctico que permite constituir-se como sujeito

    moral faz parte integral, at na sua forma mesma, do exerccio de uma vida virtuosa que

    a vida do homem 'livre' no sentido pleno, positivo e poltico do termo" (idem, p. 90).

    As prticas ascticas constituem exerccios de liberdade, liberdade no sentido

    poltico, que reflete diretamente na plis: "A atitude do indivduo em relao a si

    mesmo, a maneira pela qual garante sua liberdade em relao a seus desejos, a forma de

    soberania que exerce sobre si, so elementos constitutivos da felicidade e da boa ordem

    da cidade" (idem, p. 92).

    A diettica, parte fundamental da ascese greco-latina, est subordinada ao

    princpio geral da esttica da existncia, do cuidado de si, no qual o equilbrio corporal

    uma das condies principais da justa hierarquia da alma, um equilbrio que se reflete

    no equilbrio na plis. A diettica um captulo da vida poltica. Ela implica no retorno

    ordem natural de modo reflexivo, incorporando o objetivo poltico natureza, o que

    fornece diettica sua dimenso moral. A volta ordem natural se traduz num estado de

    sintonia com os valores e necessidades da plis. A diettica, prtica refletida de si e de

    seu corpo componente fundamental da vida poltica, de uma poltica que no

  • biopoltica, e sim, liberdade da ao. por isso que a diettica representa para os

    helenos uma preocupao constante, um assunto de pensamento, reflexo e prudncia,

    que atravessa a vida cotidiana: "A prtica do regime como arte de vida bem diferente

    de um conjunto precaues destinadas a evitar as doenas ou a acabar de cur-las.

    toda uma maneira de se constituir como um sujeito que tem o cuidado justo, necessrio

    e suficiente de seu corpo. Cuidado que atravessa a vida cotidiana, que faz das atividades

    maiores ou correntes da existncia um assunto ao mesmo tempo de sade e de moral,

    que define uma estratgia circunstancial entre o corpo e os elementos que o rodeiam, e

    que visa enfim dotar o indivduo de uma conduta racional" (idem, p. 123).

    A diettica como arte da existncia se contrape ao culto excessivo e como um

    fim em si mesmo do regime corporal. Na Repblica, Plato nos adverte dos perigos

    morais e polticos decorrentes do regime excessivo, do culto extremo do corpo. O

    excesso [p.146] "valetudinrio", ou seja, a vigilncia e o cuidado contnuo do corpo e da

    sade, somente produz "homens ociosos que no so teis para a cidade" (idem, p. 119).

    Da mesma maneira que os bio-ascetas contemporneos, os "valetudinrios" da

    Antiguidade trocaram o amor pelo mundo e a preocupao com o bem comum pela

    promessa narcisista de prolongamento infinito da vida e a maximizao das

    performances corporais, esquecendo, por vezes, que viver com medo da morte ter

    medo de viver.7

    A diettica como estilstica da existncia e prtica de liberdade tem sempre o

    outro e a cidade como objetivo. A modificao asctica de si mesmo se depreende da

    vontade de exercer o poder poltico sobre os outros. a presena dos outros e a esfera

    dos assuntos humanos que garantem a realizao do cuidado de si. Constitui-se uma

    ligao de reciprocidade, enquanto que, cuidando de mim, contribuo para a

    prosperidade e felicidade da cidade e dos outros cidados; prosperidade e felicidade da

    qual participo como membro da comunidade.8 Ocupar-se consigo ocupar-se dos

    outros, colocando a justia no centro mesmo do cuidado. Foucault nos lembra que

    7 Ccero pergunta nas suas Tusculanes: "Qual nossa hora? Devemos chorar mais por aqueles que

    morrem na infncia que por aqueles que morrem na fora da idade? Que tempo da vida deve ser

    considerado longo (...) comparado com a eternidade?" (apud SKRABANEK, 1995, p. 59). 8 "O objeto do cuidado era si mesmo, mas o fim do cuidado era a cidade, onde reencontramos o si mesmo

    mas simplesmente como um elemento. A cidade mediava a relao de si para consigo e fazia que o si

    mesmo pudesse ser tanto objeto quanto fim, mas ele somente era fim por existir essa mediao da cidade"

    (FOUCAULT, 2001, p. 81; p. 168-169; ORTEGA, 1999, p. 126-131).

  • dirigindo a ateno para si mesmo, no se tratava de se abster do

    mundo e de se constituir como um absoluto. Tratava-se antes de

    medir exatamente o lugar que ocupamos no mundo e no sistema

    de necessidades no qual estamos inseridos (...). necessrio

    conceber a cultura de si menos como uma escolha oposta

    atividade poltica, cvica, econmica, familiar, e mais como uma

    maneira de [p.147] manter essa atividade nos limites e nas

    formas consideradas como convenientes (idem, p. 518-519).

    Do que fora abordado at ento, podemos ressaltar trs caractersticas principais

    das asceses gregas clssicas: Primeiro, a ascese corporal implica e/ou se desdobra numa

    ascese da alma; segundo, a ascese uma prtica de liberdade; finalmente, a ascese tem

    uma dimenso poltica e moral.

    As mudanas que acontecem nos primeiros sculos de nossa era (nas ticas

    helensticas e romanas) no transformam o cuidado de si com suas correspondentes

    prticas ascticas - unido na Grcia clssica vida na plis e ao desempenho de um

    papel poltico - em um exerccio em solido fora da comunidade. Muito pelo contrrio,

    o cuidado de si implica na "intensificao das relaes sociais" (FOUCAULT. 1984a, p.

    69).

    O isomorfismo do cuidado de si e o cuidado dos outros deixa lugar a uma

    concepo segundo a qual as prticas ascticas no seguem mais os critrios de uma

    esttica da existncia, mas aliceram-se no fato de pertencermos comunidade humana.

    O indivduo se submete agora a uma ascese corporal que reflete numa ascese espiritual

    por ser um ser racional, ligado a outros seres racionais que so igualmente donos de si.

    Frente ao modelo platnico, onde o cuidado dos outros e da cidade era o alvo da ascese,

    na poca helenstica e romana, a reciprocidade encontra-se no interior dos objetivos

    gerais do cuidado de si. O indivduo envolvido na prtica asctica saber como

    comportar-se e cumprir seus deveres enquanto membro da comunidade humana. O

    cuidado de si induz as condutas que permitem o cuidado dos outros. Na medida em que

    no deixa de se ocupar de si mesmo, o imperador Marco Aurlio realiza tambm as

    tarefas do governador: " nesse cuidado de si, nessa relao de si consigo como

    relao de esforo de si para si mesmo, que o imperador vai fazer no somente seu

    prprio bem mas o bem dos outros" (FOUCAULT, 2001, p. 194).

    A dimenso social e poltica presente tambm nas asceses crists dos primeiros

    sculos de nossa era. O mundo dos sculos III e IV aparece povoado de foras divinas,

  • sobrenaturais, as quais se [p.149] manifestam unicamente a indivduos escolhidos. Estes

    indivduos, chamados "amigos de Deus" e "homens santos", tm uma intimidade

    especial com o divino, que constitui uma forma de poder e de status privilegiado na

    comunidade, como se observa no caso dos bispos do sculo III e dos homens santos do

    sculo IV. Esses indivduos auto-estilizados encarnam as esperanas de todo o grupo e

    testemunham a possibilidade de acesso divindade, um estado que exige uma ascese

    rigorosa. O homem do deserto do sculo IV deve submeter-se a um trabalho duro sobre

    si mesmo. Ele tem que mostrar um estilo de vida singular, claramente definido e

    reconhecvel pela comunidade. No deve simplesmente trabalhar sobre si mesmo, mas

    deve ser visto nessa tarefa, pois o carisma se manifesta na labor asctica:

    Possivelmente constitui uma das indicaes mais fidedignas de

    todo o estilo da sociedade romana tardia o fato de a objetividade

    necessitada to desesperadamente pelos homens ser raras vezes

    concedida a instituies impessoais, (...) mas era somente aceita

    num homem que podia ser observado no ato de trabalhar a

    dissociao absoluta de si mesmo (...) mediante um ascetismo

    vitalcio (BROWN, 1982, p. 135-136; 1978, p. 94-100).

    Na Antiguidade tardia, numa poca na qual a poltica no consistia em

    programas, e manifestos, mas os poetas e pensadores na tradio da paidia antiga

    forneciam os modelos de comportamento moral e poltico, visto que problemas polticos

    e morais eram resolvidos no contexto dos modelos clssicos de ao. Neste contexto, o

    papel poltico dos ascetas consistia em serem considerados exemplos paradigmticos de

    conduta que incitavam imitao. Numa poca em que as instituies e estruturas legais

    no satisfaziam as necessidades dos indivduos, os ascetas preenchiam esse espao

    exercendo o papel de mediadores, rbitros, exemplos e intercessores, estimulando o

    desejo de emulao e preparando o caminho para a cristianizao do Imprio romano

    tardio:

    Devemos supor que os ascetas serviam como modelos para os

    outros de como a vida deveria propriamente ser, que

    representavam o divino e eram, por conseguinte, objetos de

    respeito e amor para muitos. Eles canalizavam [p.150] as

    emoes humanas, e por viver isoladamente, constituam pontos

    de fixao no meio de uma vida perigosa para muitos

    (DRIJVERS, 1984, p. 115; 1985, p. 457; RAPP, 1999, p. 64-66;

    p. 72).

  • Na sociologia de Max Weber, o ascetismo do cristianismo primitivo, representa

    uma forma de ascese extramundana, cuja indiferena do mundo e dos assuntos humanos

    se situa prxima do ascetismo asitico.9 Tanto a viso romntica do asceta como um

    alienado do mundo, quanto a da poltica na Antiguidade como sendo prxima das

    instituies polticas das sociedades industriais, leva Weber a interpretar a relao entre

    o sacerdcio profissional e os ascetas como uma tenso permanente (WEBER, 1988, p.

    254-255). A viso weberiana deve ser, no entanto, corrigida. Na Sria e no Egito,

    sacerdotes e bispos eram amide ascetas e exaltaram a ascese. O episcopado glico

    tambm era recrutado nos crculos monsticos (DRIJVERS, 1985, p. 454-456;

    MARKUS, 1998, p. 181-197; BROWN, 1988, p. 256). O ascetismo sinal de prestgio,

    deixando de designar a alienao institucionalizada dentro do mosteiro e passando a

    constituir um ideal social comunitrio de ampla aceitao, e que, depois da converso

    de Constantino e o conseqente fim das perseguies, aparece como um substituto

    eficiente do martrio como marca da santidade.10

    Enquanto personalidades pblicas

    respeitadas e admiradas que representavam um papel, os ascetas, como vimos, levavam

    uma vida de imitao (imitatio Christi) e incitavam a emulao. Por isso, no entraram

    em conflito com as instituies impessoais da poca. No se tratava de uma oposio

    institucional autoridade, e sim, de uma instncia de correo. O ascetismo tinha uma

    funo de crtica social. A ascese estava na base do processo de cristianizao que,

    desde incios do sculo V, fornecia a marca da verdadeira [p.151] identidade crist. A

    ascese constitua uma forma de resistncia cultural e poltica, a expresso de uma

    vontade de separao, de alteridade, de dissociao das tradies e instituies culturais,

    religiosas e sociais pags e uma maneira de constituir formas alternativas de

    subjetividade e sociabilidade.

    Resumindo, tanto nas asceses clssicas greco-romanas quanto nas crists, o

    corpo era submetido a uma diettica (sexual, alimentaria, etc.), visando sua superao e

    transcendncia - a ascese corporal aparece vinculada a uma ascese espiritual - como

    prova de capacitao para a vida pblica, de contato com a divindade ou da superao

    da condio humana individual e da adoo da perspectiva da natureza universal.

    9 Encontramos em Peter Sloterdijk uma verso atualizada dessa viso. Ver Sloterdijk (1993).

    10 (MARKUS, 1998, p. 70-72; CONRAD, 1995). A ascese (a renncia sexual) representava uma

    "carreira aberta aos talentos" para mulheres e pessoas sem educao, por meio da qual podiam atingir a

    reputao normalmente reservada aos vares cultos. Ver Brown (1988, p. 61).

  • Nessas prticas do self, o corpo possui sempre um valor simblico, na base da

    constituio de um self dono de si, que mediante as prticas de ascese corporal,

    legitimava-se para se ocupar dos assuntos pblicos, atingir um conhecimento de si ou se

    auto-anular na procura do acesso a Deus.

    No cristianismo primitivo, com sua sublimao da atitude moral em relao

    lei, foram criadas as condies para uma ascese ativa, que implica numa ao com

    aprovao divina como instrumento de Deus. No esquema weberiano, essa forma de

    ascese tem uma orientao extramundana e s se tornar intramundana no

    protestantismo asctico. A realizao completa do "desencantamento do mundo"

    acontecer quando, como conseqncia da Reforma luterana, o protestantismo asctico

    incorpore tanto a herana judaica quanto a do cristianismo primitivo e as dilua na base

    de um individualismo religioso radical, levando anulao de todas as instncias

    mediadoras entre Deus e o homem. O resultado o desencantamento radical de todos os

    caminhos a Deus.

    No protestantismo asctico, as relaes interpessoais perdem, sob suspeita da

    carne, seu carter interpessoal, conduzindo ao que Weber denomina "domnio da

    impessoalidade", isto , a reificao e a atitude instrumental em relao a si mesmo e

    aos outros. Ao processo de crescente racionalizao acompanham a burocratizao, a

    impessoalidade e o desencantamento do mundo. A conduta asctica contribui para a

    formulao racional da totalidade da existncia: "Uma das partes constituintes do

    esprito capitalista moderno, e no somente deste, mas da cultura moderna, [p.152] a

    direo racional da vida na base da idia de profisso (...), nasceu do esprito da ascese

    crist". A ascese crist, ou seja, o puritanismo asctico - que transferiu as prticas

    ascticas monsticas para a vida cotidiana, transformando a ascese extramundana em

    intramundana - participou da constituio de um estilo e de uma regulamentao da

    vida, de um hbito: o esprito do capitalismo. Hbito designa "a forma especial da

    direo da vida, a qual se desenvolve 'dentro das ordens do mundo: famlia, vida do

    trabalho, comunidade social'" (SCHLUCHTER, 1988a, p. 54-59; 1988; HENNIS, 1982;

    1987; BOSCH, 1962; TREIBER, 1991; KAELBER, 1998; SPRONDEL, 1971).

    O que Weber chama de ascese ativa intramundana, a qual conduz

    racionalizao completa da existncia, corresponde, na minha hiptese, ao que Foucault

    entende por disciplina. Segundo Weber, o "autodisciplinamento do sujeito" constitui a

  • forma de vida especfica do ocidente e a tica protestante a direo racional da vida que

    realiza esse disciplinamento. A descrio das disciplinas e do poder normalizador em

    Vigiar e punir representa o outro lado da viso de Weber da modernidade apresentada

    em A tica protestante e o esprito do capitalismo. Desse modo, o que Weber chama de

    ascese (ativa e intramundana) corresponde aos processos de disciplinamento corporal

    foucaultianos.

    Para Foucault, no entanto, a ascese uma alternativa disciplina. Ela representa

    uma sada aos impasses apresentados pela sua analtica do poder, a qual localizava os

    pontos de resistncia aos dispositivos disciplinares no corpo e nos prazeres. Contudo, o

    indivduo no dispe dos meios para utilizar o corpo e os prazeres de forma ativa contra

    esse poder subjetivante, que o constitui. Torna-se difcil utilizar o corpo e os prazeres

    contra um poder cujo produto precisamente esse corpo e esses prazeres (ORTEGA,

    2001, p. 157-172). A ascese a salda desse impasse, permitindo tematizao da

    subjetividade no mais como resultado de prticas disciplinares, e sim, como

    constituio de si ativa e autnoma, mediante as prticas de si (ascese): "O sujeito se

    constitui atravs de prticas de assujeitamento, ou, de uma maneira mais autnoma,

    atravs de prticas de libertao, de liberdade, como na Antiguidade" (FOUCAULT,

    1994c, p. 733). O deslocamento efetuado [p.153] permite recuperar at mesmo a

    vigilncia, que estava na base dos processos de disciplinamento corporal - como o

    prprio titulo do livro Vigiar e punir indica - e que reencontramos com uma funo

    oposta, j no mais de assujeitamento, e sim, de libertao, na conscincia, na

    vigilncia, na constncia do querer e na ateno, exigida pelas prticas ascticas.

    A autonomia, a liberdade e o poder sobre si que se desdobra no poder sobre os

    outros - caractersticos do indivduo que faz a escolha de se constituir como sujeito

    moral, submetendo-se a uma ascese corporal e espiritual - constituem uma resposta s

    prticas subjetivantes modernas. Elas manifestam a "recalcitrncia da vontade e da

    intransigncia da liberdade": "pode ser uma tarefa urgente, fundamental, politicamente

    indispensvel, constituir uma tica de si, se verdade que no h nenhum outro ponto,

    primeiro e ltimo, de resistncia ao poder poltico que a relao de si consigo"

    (FOUCAULT, 2001, p. 241).

    Prticas bio-ascticas

    e constituio de bio-identidades

  • Voltemo-nos agora s formas de ascese contemporneas (bio-ascese) e os

    processos de subjetivao correspondentes, a formao de bio-identidades. De uma

    maneira ampla, a noo de biossociabilidade visa descrever e analisar as novas formas

    de sociabilidade surgidas da interao do capital com as biotecnologias e a medicina.11

    A biossociabilidade uma forma de sociabilidade apoltica constituda por grupos de

    interesses privados, no mais reunidos segundo critrios de agrupamento tradicional

    como raa, classe, estamento, orientao poltica, como acontecia na biopoltica [p.154]

    clssica, mas segundo critrios de sade, performances corporais, doenas especficas,

    longevidade, etc. Criam-se novos critrios de mrito e reconhecimento, novos valores

    com base em regras higinicas, regimes de ocupao de tempo, criao de modelos

    ideais de sujeito baseados no desempenho fsico. As aes individuais passam a ser

    dirigidas com o objetivo de obter melhor forma fsica, mais longevidade,

    prolongamento da juventude, etc. Na biossociabilidade todo um vocabulrio mdico-

    fisicalista baseado em constantes biolgicas, taxas de colesterol, tono muscular,

    desempenho fsico, capacidade aerbica populariza-se e adquire uma conotao "quase

    moral", fornecendo os critrios de avaliao individual. Ao mesmo tempo todas as

    atividades sociais, ldicas, religiosas, esportivas, sexuais so ressignificadas como

    prticas de sade. O que alguns autores denominaram de healthism ou santisation,12

    e

    que pode ser traduzido como a ideologia ou a moralidade da sade, exprime essa

    tendncia. Healthism a ideologia, a forma que a medicalizao adquire na

    biossociabilidade.

    Segundo essa ideologia,

    a sade tornou-se no s uma preocupao; tornou-se tambm

    um valor absoluto ou padro para julgar um nmero crescente

    de condutas e fenmenos sociais. Menos um meio para atingir

    outros valores fundamentais, a sade assume a qualidade de um

    fim em si. A boa vida reduzida a um problema de sade, da

    11

    O antroplogo Paul Rabinow usa o termo biossociabilidade, a partir de suas anlises das implicaes socioculturais e polticas da nova gentica e do projeto Genoma, para designar um "novo tipo de

    autoproduo", efeito da nova gentica. Esta j no mais entendida como metfora biolgica, mas como

    "rede de circulao de termos de identidades e lugares de restrio", que implicaria na "formao de

    novas identidades e prticas individuais e grupais, surgidas destas novas verdades" (RABINOW, 1999, p.

    143-144, Idem, p. 147). 12

    A literatura sobre o tpico imensa, ver Crawford (1980, p. 365-388); Crawford (1994, p. 1347-1365); Conrad (1995, p. 22-23); Petersen (1997, p. 197-198); Bunton (1997, p. 230-231); Aach (1998, p. 16);

    Idem, p. 29; Faure (1998, p. 64); Druhle e Clment (1998, p. 83 -84); Morris (2000); Greco (1993, p. 357

    -372).

  • mesma maneira como a sade se expande para incluir tudo o que

    bom na vida (CRAWFORD, 1980, p. 381).

    Como j foi apontado no incio do texto, as prticas ascticas implicam em

    processos de subjetivao. As modernas asceses corporais, as bio-asceses, reproduzem

    no foco subjetivo as regras da biossociabilidade, enfatizando-se os procedimentos de

    cuidados corporais, mdicos, higinicos e estticos na construo das identidades

    [p.155] pessoais, das bio-identidades. Trata-se da formao de um sujeito que se

    autocontrola, autovigia e autogoverna. Uma caracterstica fundamental dessa atividade

    a autoperitagem. O eu que se pericia tem no corpo e no ato de se periciar a fonte bsica

    de sua identidade.

    Na base desse processo est a compreenso do self como um projeto reflexivo. O

    autogoverno e a formao de bio-identidades se do atravs de toda uma srie de

    recursos reflexivos e de prticas de bio-ascese (manuais, terapia, fitness). A

    reflexividade o processo de taxao contnua de informao e peritagem sobre ns

    mesmos. No s o self, mas principalmente o corpo, aparece marcado pela

    reflexividade: "Certamente, o corpo torna-se um foco do poder disciplinar. Contudo,

    mais que isso, torna-se um portador visvel da auto-identidade, estando cada vez mais

    integrado nas decises individuais do estilo de vida" (GIDDENS, 1992, p. 42;

    NETTLETON, 1997, p. 218-219; BUNTON, 1997, p. 229-230).

    A dieta e o fitness seriam dois exemplos bsicos desse processo de reflexividade

    corporal. Os alimentos que consumimos implicam uma seleo reflexiva, refletem um

    estilo de vida, um "hbito" (no sentido bourdieuano de marca de distino),13

    um

    critrio da biossociabilidade: "A auto-realizao acontece mediante uma [p.156]

    considerao mais reflexiva das opes do estilo e projeto de vida. somente sob essas

    13

    Ver Bourdieu (1979); Lupton (1994, p. 4041); Turner (1992, p. 157-169). O controle da dieta deixou de ser um componente central no governo dos corpos nos discursos mdico-higienistas do sculo XIX,

    passando a ser critrio de distino de classe caracterstico do hbito das classes mdias no sentido de

    Bourdieu. Na atualidade, no entanto, cabe se perguntar se a diettica ainda um elemento de distino de

    classe, visto que a preocupao com taxas de colesterol e alimentos light atravessa as diferentes classes

    sociais. O estigma moral que se abate sobre o gordo comum a ricos e a pobres. Como nos lembra

    Denise SantAnna, "uma empregada domstica gorda precisa de muita inventividade e, sobretudo, pacincia, para utilizar os minsculos compartimentos destinados aos serviais naqueles 'puxados',

    habitualmente chamados de rea de servio, dentro dos modernos apartamentos brasileiros"

    (SANT'ANNA, 2001, p. 21). O presidente de um grupo de defesa dos gordos nos Estados Unidos

    declarou imprensa que, em seu pas, " mais duro ser gordo do que ser negro" (FISCHLER, 1995, p.

    70).

  • consideraes que a 'procura de auto-identidade' torna-se compreensvel" (BUNTON,

    1997, p. 229-230).

    Na atualidade, o discurso do risco o elemento estruturante bsico da

    biossociabilidade e representa o "parmetro existencial fundamental da vida na tardo-

    modernidade, estruturando o modo pelo qual experts e leigos organizam seus mundos

    sociais" (WILLIAMS e CALNAN apud CASTIEL, 1999, p. 57). O indivduo se

    constitui como autnomo e responsvel atravs da interiorizao do discurso do risco. O

    corpo e o self so modelados pelo olhar censurante do outro que leva introjeo da

    retrica do risco. O resultado a constituio de um indivduo responsvel que orienta

    suas escolhas comportamentais e estilos de vida para a procura da sade e do corpo

    perfeito e o afastamento dos riscos. O auto-aperfeioamento individual tornou-se um

    significante privilegiado por meio do qual os indivduos exprimem sua autonomia e se

    constituem num mundo competitivo. Atravs das numerosas prticas bio-ascticas, o

    indivduo demonstra sua competncia para cuidar de si e construir sua identidade. Dois

    exemplos de construo de bio-identidades e de crescente medicalizao nos ltimos

    anos so ilustrativos neste contexto: a mulher na ps-menopausa e a velhice.

    No caso da mulher na ps-menopausa, os discursos mdicos da terapia de

    reposio hormonal e as crticas feministas a esse discurso, que promovem estilos de

    vida mais saudveis como alternativa reposio hormonal, tm em comum o fato de

    encorajar as mulheres a se tornarem objetos de autovigilncia e autocontrole. Ambos os

    discursos usam a retrica do risco. A mulher na ps-menopausa caracterizada segundo

    seu compromisso e responsabilidade potencial e sua disposio (ou a sua falta) de

    proteger e poupar os outros de suas prprias necessidades de assistncia. O resultado o

    mesmo: a interiorizao do discurso e a construo da identidade almejada. A mulher na

    ps-menopausa constituda como a mulher que "deseja ser til e no onerar os outros,

    e, portanto, deseja as terapias e as intervenes passveis de conferir um maior valor

    pessoal" (HARDING, 1997, p. 142). [p.157]

    O discurso mdico e o discurso feminista sobre a sade com sua nfase no risco

    e a responsabilidade pessoal estabelecem os parmetros de avaliao moral e de

    distino entre a mulher "boa" e mulher "m". A mulher "boa" responsvel e vigilante,

    no quer ser um fardo para a famlia e para o sistema de sade e faz da autonomia a sua

    bandeira poltica. Encabeando a lista dos novos desviantes encontramos a mulher

  • "m", que irresponsvel e no se vigia, sendo uma carga para os demais, numa cultura

    como a nossa que trata a dependncia como condio vergonhosa. Para a mulher na

    ps-menopausa, o preo da aceitao social implica em se submeter ao autogoverno e

    autocontrole, pois "o valor de uma pessoa cada vez mais medido por suas capacidades

    que incluem a performance de determinadas tarefas fsicas e mentais e mesmo a

    capacidade de resistir a doenas especficas" (idem, p. 143).14

    Fora, rigidez, juventude,

    longevidade, sade, beleza so os novos critrios que avaliam o valor da pessoa e

    condicionam suas aes.

    A mulher que no se vigia nem se controla faz parte dos novos desviantes, novos

    estultos, inbeis de cuidar de si. Constroem-se assim as bio-identidades dos indivduos

    responsveis e ao mesmo tempo dos desviantes por oposio e reprovao. Aquele que

    no procura uma existncia livre de riscos torna-se um novo desviante, caracterizado

    como um indivduo irresponsvel, inapto para cuidar de si, que fornece maus exemplos,

    eleva os custos do sistema de sade, e como conseqncia, no cumpre com seus

    deveres de cidado autnomo e responsvel (PETERSEN, 1997, p. 198; CRAWFORD,

    1994).

    A medicalizao da velhice representa um processo semelhante de formao de

    bio-identidades. As sociedades contemporneas tm uma viso negativa da velhice,

    associando-a com a dependncia (handicap), e esta, por sua vez, com o sentimento de

    [p.158] humilhao. a ideologia do indivduo autnomo a auto-suficiente que moldou

    a nossa percepo da velhice (DRUHLE e CLMENT, 1998, p. 69-96). A averso

    dependncia caracterstica de sociedades despolitizadas como a nossa. Em sociedades

    com intensa vida pblica, o senso de mtua dependncia est na base da ligao social.

    Richard Sennett comenta vrios exemplos de experincias pblicas de dependncia que

    no provocam humilhao na Antiguidade romana, na sociedade indiana e japonesa, e

    afirma: "quanto mais vergonhoso nosso senso de dependncia, mais inclinados estamos

    raiva dos humilhados. Restaurar a confiana nos outros um ato reflexo; exige menos

    medo de vulnerabilidade em ns mesmos" (SENNETT, 1999, p. 170).

    14

    Ver Delano (1998, p. 211-251). Para algumas autoras feministas, a gesto biomdica do corpo feminino , no entanto, uma das condies que permitiram s mulheres ingressarem no espao pblico.

    Ver Koninck (1995, p. 33-42). Tudo tem ganhos e perdas. Para o argumento defendido neste captulo,

    porm, focalizo nas prticas bio-ascticas envolvidas na formao da bio-identidade da mulher na ps-

    menopausa.

  • A nfase na autonomia individual est ligada desmontagem do estado

    assistncia que trata os indivduos dependentes com desconfiana, como "parasitas

    sociais": "o tom cido das atuais discusses das necessidades assistncias, diretos e

    redes de segurana est impregnado de insinuaes de parasitismo de um lado,

    enfrentado pela raiva dos humilhados do outro" (ibidem). A valorizao da autonomia

    devolve ao indivduo a responsabilidade por sua sade, reduzindo a presso exercida

    sobre o sistema pblico. A condio de autonomia se traduz num melhor estado de

    sade e no desenvolvimento de hbitos de vida e escolhas comportamentais saudveis.

    Como conseqncia, os idosos esto cada vez menos legitimados para recorrer aos

    sistemas de sade (DAVID, 1995, p. 58-59). Anlogo a como acontecia no caso da

    mulher na ps-menopausa, o idoso se constitui como um indivduo responsvel e

    autnomo capaz de cuidar de si. Aparece assim a figura do idoso "bom" e do idoso

    "mau", este ltimo sem competncia para cuidar de si.

    A ideologia da sade e do corpo perfeito nos levam a contemplar as doenas que

    retorcem a figura humana como sinnimo de fracasso pessoal. " urna religio secular",

    diz David Morris, "da qual os deficientes e os desfigurados esto, evidentemente,

    rigorosamente excludos a no ser que estejam dispostos a representar o papel ossificado

    designado para eles nos dramas baseados na realidade como modelos corajosos de

    'ajustamento pessoal, esforo e realizao'" (idem, p. 159). Historicamente as

    deficincias [p.159] estavam ligadas ao crime, ao mal, s aberraes (FOUCAULT,

    1999a). Os esteretipos atuais contra os gordos, idosos e outras figuras que fogem do

    padro do corpo ideal tm o mesmo efeito estigmatizador e excludente.15

    A obsesso

    pelo corpo bronzeado, malhado, "sarado", lipoaspirado e siliconado faz aumentar o

    preconceito e dificulta o confronto com o fracasso de no atingir esse ideal, como

    testemunham anorexias, bulimias, distimias e depresses. Essa fixao produz e refora

    as doenas debilitantes. Morris aponta com razo que o modelo biomdico que sustenta

    15

    A averso aos obesos, a lipofobia, um caso extremo dessa tendncia estigmatizante. Os esteretipos do "obeso maldito" o apresentam como o transgressor que viola as regras bsicas do jogo social que

    dizem respeito ao comer, ao prazer, ao trabalho, ao esforo e ao controle de si. Segundo Claude Fischler,

    "os avatares do obeso maligno podem percorrer todas as nuanas da mitologia negativa, do grotesco

    ferocidade, passando pela perversidade. O pice, alis, atingido quando o gordo no se limita mais

    acumulao e reteno de bens materiais (como nos esteretipos do gordo aproveitador do mercado

    negro, traficante e aambarcador), e se atira carne e ao sangue e outrem, tornando-se devorador,

    vampiro ou carniceiro. Encontra-se sempre essa temtica nos esteretipos revolucionrios do capitalista

    feroz, de uma voracidade que pode arrast-lo at o canibalismo, pelo menos metaforicamente: a carne e o

    sangue dos explorados" (FISCHLER, 1995, p. 76).

  • essa obsesso implica em assumir "que h algo errado com os portadores de

    deficincias" (idem, p. 162).

    No caso da velhice, o modelo biomdico dominante define o envelhecimento

    exclusivamente em termos de declnio idade adulta, como um estado patolgico, uma

    doena a ser tratada. Os sinais da idade tornaram-se marcas de averso e patologia.16

    Como resultado, os problemas sociais so neutralizados e os idosos so marginalizados

    em instituies de sade. Ao mesmo tempo, a velhice "reconstruda como um estilo de

    vida mercadolgico que conecta os valores mercadolgicos da juventude com as

    tcnicas de cuidado corporal para mascarar a aparncia da idade" (KATZ apud

    MORRIS, 2000, p. 236). Os idosos da atualidade so apresentados [p.160] como

    saudveis, joviais, engajados, produtivos, autoconfiantes e sexualmente ativos.

    Nesse contexto, devemos compreender o surgimento nos ltimos anos de grupos

    de idosos, portadores de deficincias, grupos de self care e movimentos de auto-ajuda,

    vistos como desafios e resistncia medicalizao, e, portanto, encorajados desde a

    perspectiva da governabilidade neoliberal. Esses grupos retomam o direito dos pacientes

    participarem no trabalho mdico (PINELL, 1998, p. 48-49). Eles estimulam, no entanto,

    a formao de bio-identidades sociais, construdas a partir de uma doena determinada.

    Como conseqncia, os novos critrios de agrupamento biossociais e biomdicos

    substituem progressivamente os padres tradicionais, tais como raa, classe, religio,

    orientao poltica. A troca do conceito de doena pelo de deficincia - referindo-se a

    dficit a serem compensados socialmente e no a doenas a serem tratadas -

    decorrente desses deslocamentos (RABINOW, 1999, p. 146). Os grupos e bio-

    identidades sociais constitudos na biossociabilidade por meio de prticas de bio-ascese

    se distinguem precisamente por deficincias a serem compensadas (deficincia da

    mulher frente ao homem, do negro frente ao branco, do gay frente ao heterossexual, do

    deficiente fsico frente ao indivduo fisicamente normal, dos velhos frente aos jovens,

    etc.). A poltica se dissolve em polticas particulares que aspiram compensar as

    deficincias de um grupo biopoltico determinado, cuja uma das conseqncias o

    esquecimento de ideais sociais mais abrangentes.

    16

    Estes e Binney, 1991; David, 1995, p. 44-46; Druhle; Clement, 1998, p. 85; Clarke, 2000, p. 24; Lupton, 1994, p. 38-39.

  • Autores como Robert Castel enfatizam a idia da dissoluo do social como um

    dos efeitos do olhar biolgico, prprio da viragem biopoltica nas sociedades ocidentais,

    nas quais a experincia identitria calcada na materialidade do biolgico e referentes

    fisicalistas substituem referentes culturais. As aparentes reivindicaes (bio)polticas

    dos grupos constitudos na biossociabilidade so, em muitos casos, uma armadilha, pois,

    como Graham Burchell reconhece,

    em nome de formas de existncia formuladas pelas tecnologias

    polticas de governo, que ns, como indivduos e grupos,

    fazemos reivindicaes ao Estado e contra ele. em nome de

    nossa existncia governada como seres [p.161] vivos

    individuais, em nome de nossa sade, do desenvolvimento de

    nossas capacidades, de pertencermos a comunidades

    particulares, de nossa etnicidade, de nosso gnero, de nossas

    formas de insero na vida social e econmica, de nossa poca,

    de nosso meio ambiente, dos riscos particulares que podemos

    enfrentar e assim por diante, que ns igualmente injuriamos e

    invocamos o poder do Estado (BURCHELL, 1991, p. 145; 1993,

    p. 267-282).

    Ou seja, o contexto das reivindicaes sempre o dos grupos biopoliticamente

    organizados, constitudos precisamente por essas tecnologias de governo. em nome da

    autonomia dos idosos que fazemos as reivindicaes, a mesma autonomia que se

    encontra na base das prprias tecnologias governamentais.17

    De fato, ganhamos

    autonomia, mas a autonomia para nos vigiarmos, a autonomia e a liberdade de nos

    tornarmos peritos, experts de ns mesmos, da nossa sade, do nosso corpo.

    Por outro lado, o surgimento de grupos de idosos e de portadores de deficincias

    correlato imposio de uma ideologia que menospreza e estigmatiza a velhice, a

    doena e a deformao fsica. A organizao desses grupos constitui uma reao, uma

    tentativa de resistir a essa imposio ideolgica. s vezes, esses grupos de idosos se

    constituem para realizar trabalhos sociais, recuperar e propor prticas de solidariedade e

    formas de sociabilidade alternativas e no s para viver os ideais de longevidade

    17

    J dizia Foucault que a resistncia ao biopoder se apia precisamente naquilo que ele investiu, isto , na

    vida mesma: "A vida como objeto poltico foi de certa maneira tomada ao p da letra e voltada contra o

    sistema que pretendia control-la" (FOUCAULT, 1976, p. 191). Portanto, a vida constitui o alvo das lutas

    (bio)polticas, mesmo sob a forma de lutas pelo direito vida, sade, ao corpo, higiene, ao bem-estar e

    satisfao das necessidades. A biopoltica precisa da resistncia ao dispositivo biopoltico para poder se

    desenvolver.

  • (aparente), [p.162] juventude, proezas sexuais, o que seria se adaptar a essa ideologia da

    sade, da vitalidade, da longevidade.18

    O imperativo do cuidado, da vigilncia e da ascese constante de si, necessrio

    para atingir e manter os ideais impostos pela ideologia do healthism exige uma

    disciplina enorme. Ao narcisismo prprio de uma sociedade hedonista da busca do

    prazer e do consumo desenfreado, foi acrescentado o imperativo da disciplina e do

    controle corporal, provocando uma ansiedade e um sentimento de ambivalncia.19

    A

    compulso consumista foi canalizada para os produtos de sade, fitness e beleza (o que

    os norte-americanos chamam de commodification dos artigos de sade),20

    e a

    ambivalncia [p.163] se traduz na tentativa de reprimir qualquer desejo que prejudique a

    procura de sade e de perfeio corporal.21

    A disciplina exigida, tarefa das bio-asceses,

    ocupa cada vez mais um lugar central, relegando a um segundo plano os elementos

    hedonistas constatados por numerosos tericos, j que "a necessidade de dietas sem

    gordura, sexo seguro e malhaes interminveis colocaram novas coaes ao prazer

    ps-moderno" (idem, p. 138). A ideologia do fitness mudou a viso da esfera do

    trabalho e a do lazer como mbitos independentes e excludentes. Da por diante,

    trabalho e lazer se confundem - como fica patente numa das mximas mais populares

    18

    Madel Luz vem trabalhando nessa linha de pensar prticas de sade como formas de solidariedade e tentativas de enriquecimento do tecido social e relacional. Ver Luz, (2000, p, 181-200; Luz (2001.p.46-

    66). 19

    Para Jean-Jacques Courtine o culto ao corpo , nos Estados Unidos, uma das principais frmulas do compromisso entre a tica puritana e as necessidades da sociedade de consumo. Ver Courtine (1995, p.

    102). Ver Edgley e Brissett, (1990. p. 266-267). 20

    Em conferncia no Brasil, em 1974, Foucault j tinha advertido sobre o novo encontro da medicina e

    da economia que tornou a sade e o corpo objetos de consumo. Ver Foucault (1994b, p. 54-56). O

    capitalismo entrou na sade e os indivduos so construdos como consumidores de bens e servios

    biomdicos. Os artigos de sade incorporam elementos do estilo de vida e encorajam a retrica da escolha

    e a fetichizao dos produtos e servios de sade. Ver, Featherstone (1992, p. 170-196); Clarke (2000, p.

    29-30); Bunton (1997, p. 235-236). O investimento em artigos de fitness e bem-estar uma empresa

    multibilionria. A ttulo de exemplo, os norte-americanos gastaram, em 1990, 1,8 bilho de dlares em

    mquinas de exerccio, 3,5 bilhes em vitaminas, 33 bilhes em dietas e 44 bilhes em equipamentos

    esportivos. Ver Leichter (1997, p. 371). Apesar de ficarmos impressionados com essas cifras no

    esqueamos que as cifras da indstria farmacutica so muito maiores: s no Brasil 9,7 bilhes de dlares

    por ano. A commodification dos artigos de sade est em contnua expanso, nos ltimos anos vem

    surgindo uma sofisticada "boutique mdica" feita sur mesure, que preencheu um importante nicho no

    mercado e que inclui a venda de sangue, esperma, prteses, rgos, tecido fetal, entre outros. Ver

    Kimbrell (1994); Silver (1997, p. 152-162). 21

    Ver Crawford (1994, p. 1362-1363). Os indivduos que seguem uma bio-ascese (disciplina) rigorosa durante a semana e que esperam o fim de semana para se entregar desenfreadamente aos prazeres e

    desejos reprimidos durante a semana representam um bom exemplo da mencionada angstia da

    ambivalncia.

  • entre os assduos da academias: " preciso sofrer se distraindo" (COURTINE, 1995, p.

    85). O carter repetitivo e automtico aproxima o fitness das prticas de adestramento

    corporal descritas por Foucault. "Lazer trabalho, impulsos so transformados em

    repeties por minuto, e a conscincia, agora tanto do corpo como da alma, to forte

    como o corao do proprietrio e to firme como suas coxas" (GLASSNER, 1989,

    p.187; MANSFIELD e McGINN. 1993, p. 52-54).

    A prtica bio-asctica do body-building constitui o melhor exemplo da enorme

    disciplina e inmeras mortificaes exigidas para construir o corpo perfeito. No

    romance autobiogrfico do body-builder Sam Fussel, o protagonista admite que

    "ningum mais estava disposto a sofrer esse tipo de dor", e compara a disciplina exigida

    com uma forma de "automartrio" e "autopurificao" (apud MORRIS. 2000, p. 143).

    Uma disciplina que visa menos sade do que iluso de sade. A aparncia o que

    conta, como testemunham a longa lista de doenas decorrentes da procura do corpo

    perfeito: artrites degenerativa, cirroses, hipertenso, problemas cardiovasculares,

    ortorexia nervosa,22

    etc. Temos nos [p.164] tornado "condenados da aparncia",

    sacrificamos sem pensar duas vezes o "sentir-se bem" (feeling good) pela "boa

    aparncia" (looking good).

    A disciplina presente nas bio-asceses o meio e o preo a ser pago para

    atingirmos os ideais da perfeio corporal e nos tornarmos fit.23

    O fitness nos

    apresentado como o "remdio universal", que nos garante a independncia da medicina

    (a qual se revela como sendo aparente), a proteo de todos os males da sociedade

    moderna - adies de todo tipo (drogas, sexo, consumo), depresses e distrbios

    alimentares -, a receita da felicidade e da fidelidade ("nestes tempos de altos ndices de

    divrcio e infelicidade conjugal, os casais que malham juntos ficam juntos") e a

    possibilidade de construo de uma biografia ntegra em tempos de desordem moral e

    desintegrao social (GLASSNER, 1989, p. 182-183; p. 187).

    22

    A ortorexia nervosa, isto , a obsesso por comida natural, a mais nova das doenas decorrentes da procura da perfeio corporal. Pode parecer uma brincadeira, mas o portador da ortorexia nervosa

    descrito como "algum que muito preocupado com os hbitos alimentares e dedica grande parte do

    tempo a planejar, comprar, preparar e fazer refeies. Alm disso, dispe de um autocontrole rigoroso

    para no se render diante de uma tentao, como um bom Big Mac ou uma suculenta macarronada. Sem

    falar que se sente superior a quem se esbalda nas impurezas de um espesso fil ao ponto ou de um sorvete

    afogado em calda de chocolate. A pessoa acaba por adotar comportamentos nutricionais cada vez mais

    restritivos, at se isolando socialmente" (revista Veja on-line, 1696, 18.04.2001). 23

    O verbo ingls fit in tem o sentido de "adaptar-se", "ajustar-se", "encaixar-se", o que aponta para a dimenso conformista implicada na atividade de fit in.

  • Num texto notvel, Joseph Gusfield analisa a ligao entre sade e moralidade

    nos movimentos de alimentao natural norte-americanos da primeira metade do sculo

    XIX e da atualidade. Nos movimentos do sculo XIX, o autodisciplinamento e

    autocontrole presentes na dieta saudvel constituem atos de excelncia moral, formas de

    recuperar a retitude moral e de garantir a ordem scio-moral com a perda de

    legitimidade da autoridade tradicional. Tanto os movimentos de 1830 como os da

    atualidade denotam um extremo individualismo, a sade e a segurana dependem

    [p.165] da capacidade de controle e disciplina individual, que exige "um cdigo de

    disciplina moral considerado to severo e firme como o ideal hedonista que o mercado

    nos impe" (GUSFIELD, 1992, p. 98). Porm, enquanto nos movimentos de 1830 o

    apelo ao autocontrole era feito no contexto do debilitamento e da deslegitimizao das

    regras sociais e da ordem moral - o corpo fsico, social e poltico estava fora de controle,

    s recupervel pela vontade individual atravs das prticas de bio-ascese (estrita

    diettica alimentaria e sexual) -, na atualidade os apelos ao autocontrole e disciplina

    visam exclusivamente o controle do corpo. A nossa obsesso com o domnio do corpo,

    das suas performances, movimentos e taxas substitui a tentativa de restaurar a ordem

    moral.24

    O corpo torna-se o lugar da moral, seu fundamento ltimo e matriz da

    identidade pessoal. [p.166]

    24

    A sexualidade, elemento fundamental da diettica dos movimentos oitocentistas, ocupa um segundo

    plano nas bio-asceses contemporneas. Nas nossas sociedades, a comida ocupa o lugar da sexualidade

    como fonte potencial de ansiedade e patologia. O tabu que se colocava sobre a sexualidade desloca-se

    agora para o acar e as gorduras. O gluto sente-se, com freqncia mais culpado que o adltero. Sobre a

    moralizao da dieta alimentaria ver Mintz (1997, p. 173-184); Belasco (1997, p. 185-199); Rozin (1997,

    p. 379-401); Schwartz (1986). Para Lupton (1994, p. 42), "a renncia da comida torna-se um smbolo de

    ascetismo, 'leveza' e santidade, no procura da figura perfeita. As dimenses do controle, disciplina,

    virtude e fora de carter so, no entanto, comparveis a renncia alimentaria como smbolo de pureza

    religiosa de beleza. Como a abstinncia feminina nos sculos passados, a abstinncia hoje pode

    representar uma afirmao de piedade secular, de pureza moral e de disciplina metafsica sobre a carne e

    seus desejos". A anorexia constitui um caso especial desta relao entre diettica, moral e bio-ascetismo,

    bem como do deslocamento da sexualidade como locus privilegiado de problematizao moral. Na minha interpretao, a anorexia estaria para o sculo XX como a histeria para o sculo XIX. Ambas so formas

    de questionamento do discurso dominante (da sexualidade ou da dieta). Da mesma maneira que nas

    histricas oitocentistas, e contrrio ao que vrios autores apontam (prioritariamente tericas feministas),

    no consigo ver na anorexia expresses de uma esttica da existncia, de resistncia ao dispositivo da

    sade. Na obsesso com a vigilncia e autocontrole para no engordar e no comer demais (ou nos casos

    extremos das adolescentes que tomam laxante durante o dia para aparecer magras nas "parties" noturnas)

    difcil encontrar uma prtica do self no sentido foucaultiano de ascese. Trata-se antes de exerccios de

    bio-ascetismo, prticas de assujeitamento e no de liberdade. S posso concordar com Morris quando diz

    que a anorexia mais uma sociopatologia do capitalismo tardio, do que uma psicopatologia, pois "as

    fantasias culturais de beleza feminina podem parecer distantes do corpo castigado e emaciado da

    anorxica, mas a anorxica simplesmente leva at o seu limite lgico o ideal de magreza que obceca as

    mulheres brancas educadas nas naes tecnologicamente avanadas", e conclui: "as mulheres jovens que

    sucumbem ao feitio da anorexia nervosa, so, porm, somente as vtimas mais bvias de nossa obsesso

  • A somatizao da subjetividade um processo que vem sendo analisado por

    vrios autores (LE BRETON, 1999; SANT'ANNA, 2001; MORRIS, 2000; LUPTON,

    1994; GLASSNER, 1989). O corpo reinventado como objeto de viso, onde corpo e

    self tornam-se idnticos, o mundo interno parece ser transmutado na "carne externa" e o

    sentimento de "ter" um corpo dar lugar ao de ser um "corpo" (EDGLEY e BRISSETT,

    1990, p. 271). Nesse sentido, Deborah Lupton afirma que "a aparncia do corpo tornou-

    se central s noes de auto-identidade". O corpo veio representar a liberdade pessoal, o

    melhor de ns:

    Meu corpo corresponde quilo de que gosto, quilo que sou,

    independentemente das minhas heranas genticas, das minhas

    filiaes culturais e de classe, do meu estado civil e das

    maneiras pelas quais eu ganho dinheiro; minha casa tem minha

    cara, [assim como] minha banheira e minhas roupas no cessam

    dc expressar aquilo que sou (apud SANT'ANNA, 2001, p. 69).

    Com as bio-asceses a distino entre corpo e self tornou-se obsoleta, "por meio

    do fitness os sujeitos so verdadeiramente corporificados. O fsico tornou-se um signo

    cardinal do self de uma maneira no mais conseguida por meio de acessrios tais como

    moda e cosmticos". O corpo central para a experincia do [p.167] eu: "levado ao seu

    limite lgico, essa verso da identidade", a qual fornecida pelas bio-asceses, "equipara

    virtualmente o self com atividades de fitness" (GLASSNER, 1989, p. 184-185). As

    prticas bio-ascticas fundem corpo e mente na formao da bio-identidade somtica,

    produzindo um eu que indissocivel do trabalho sobre o corpo, o que torna obsoleta

    antigas dicotomias, tais como corpo-alma, interioridade-exterioridade, mente-crebro.

    Nas asceses clssicas greco-romanas e crists, o corpo era submetido, como

    vimos, a uma diettica que tinha por objetivo a sua superao e sua transcendncia

    como prova de habilitao para a vida pblica, de intimidade com a divindade ou da

    derrota da nossa condio mortal. Nelas, o corpo possua sempre um valor simblico,

    estava na base da constituio de um self dono de si, que mediante as prticas de ascese

    corporal e espiritual, legitimava-se para a vida poltica, atingia um conhecimento de si

    ou se auto-anulava na procura de Deus. Em contrapartida, nas modernas bio-asceses e

    tecnologias do self o corpo obtm um novo valor. Na sua materialidade sofre um

    englobante com corpos perfeitos" (MORRIS, 2000, p. 154-8). Ver Eckermann (1997, p. 151-169);

    Goodwin e Attias (1994, p. 23-35); Leccese (1994, p. 198-223); Groot (1994, p. 127-144).

  • desinvestimento simblico: j no o corpo a base do cuidado de si; agora o eu existe

    s para cuidar do corpo, estando ao seu servio. Predicados mentais como vontade so

    definidos segundo critrios materiais e corporais: vontade ou fraqueza de vontade

    (acrasia) obtm um referente fisicalista, fora e falta de vontade referem-se

    exclusivamente tenacidade e constncia, ou debilidade (desnimo) e inconstncia

    na observao de uma dieta, na superao dos limites biolgicos e corporais, etc.

    Mesmo prticas espirituais orientais so incorporadas como formas de bio-ascese,

    perdendo assim sua dimenso simblico-transcendente original, e visando

    exclusivamente a maximizao da performance corporal. Como foi assinalado, a prpria

    subjetividade e interioridade do indivduo so deslocadas para o corpo; a alma se torna

    uma relquia e descries fisicalistas so adotadas na explicao de fenmenos

    psquicos.25

    A introspeco substituda [p.168] pela fruio de sensaes prazerosas,

    os sentimentos so substitudos pelas sensaes, tomadas como critrio de avaliao

    subjetiva. Dessa maneira, sentir-se bem fisicamente, maximizar os ganhos de prazer,

    desafiar os limites estabelecidos de satisfao, fora ou potncia fsica se tornam os

    equivalentes das asceses clssicas, as quais visavam atingir a sabedoria, coragem,

    prudncia, bondade, conhecimento de si, superao de si, etc.

    No nos enganemos, ao fazer do corpo um alter ego, a afirmao de uma

    identidade provisria, corremos um risco enorme. Na nossa cultura somtica, a

    aparncia virou essncia, os "condenados da aparncia" so privados da capacidade de

    fingir, de dissimular, de esconder os sentimentos, as intenes, os segredos, uma

    capacidade presente na cultura da intimidade que tornou-se obsoleta. Hoje, sou o que

    aparento e estou, portanto, exposto ao olhar do outro, sem lugar para me esconder, me

    refugiar, estou totalmente merc do outro, j que o que existe (o corpo que tambm o

    self) est a mostra, sou vulnervel ao olhar do outro mas ao mesmo tempo preciso de

    seu olhar, de ser percebido, seno no existo.

    Nos anos 70, o socilogo Richard Sennett (1992) desmascarou a ideologia da

    intimidade, que transforma todas as categorias polticas em psicolgicas e mede a

    autenticidade de uma relao social em virtude de sua capacidade de reproduzir as

    necessidades ntimas e psicolgicas dos indivduos envolvidos. A conseqncia a

    25

    O avano da farmacologia dos problemas sociais, a "quimioterapia do social" - como denominada por Jaeger - um exemplo desse deslocamento que conduz a supervalorizao de fatores biolgicos em

    detrimento de elementos socioculturais na gnese de distrbios e mal-estar. Ver Jaeger (1998, p. 135-

    158); Castiel (1999, p. 81-86).

  • decomposio da "civilidade", esta ltima entendida como o movimento aparentemente

    contraditrio de se proteger do outro e ao mesmo tempo usufruir de sua companhia.

    Trata-se de uma forma de se relacionar com os outros como estranhos, pois usar uma

    mscara, cultivar a aparncia, constitui a essncia da civilidade, como modo de fugir da

    identidade, e de criar um vnculo social baseado na distncia entre os homens que no

    aspira ser superada. Essa faculdade de uma sociabilidade sadia e criativa, perde-se na

    sociedade "ntima". A civilidade torna-se incivilidade, ou seja, essa habilidade to

    difundida de incomodar o outro com o prprio eu, de lhe impor [p.169] minha

    intimidade. A incivilidade teria como conseqncias os comportamentos egostas e

    narcisistas e o esquecimento do outro, bem como o desinteresse na vida pblica que

    caracterizam nossa sociedade.

    Na atualidade, recuperamos a aparncia, marca da civilidade de outrora, mas

    como a aparncia ao mesmo tempo a essncia, somos privados uma vez mais da

    possibilidade do fingimento, da distino entre o que aparento e o que sou, condio de

    uma sociabilidade sadia. Para os antigos, ao e o discurso eram as nicas formas de

    que os indivduos dispunham de "mostrar quem so", de "mostrar ativamente suas

    identidades pessoais e singulares" (ARENDT, 1987; ORTEGA, 2000). A identidade se

    construa publicamente na ao e no discurso, como aparncia, mscara, um papel a ser

    representado. A procura da autenticidade, os romnticos tornaram-se inartsticos,

    perderam a aparncia e ganharam a interioridade, provocando uma decomposio

    progressiva da vida pblica. Ns abolimos a interioridade sem recuperar o fingimento

    dos antigos.

    A superficialidade, a eterna desconfiana do outro (parania) e o melindre so os

    correlatos do homem somtico.26

    Trata-se de um indivduo frgil, inseguro e insensvel

    para o outro, onde o controle e a regulao relevam reciprocidade e transformao:

    "O eu constrangido e frgil, mediante a obsesso psicocultural de encontrar e manter a

    identidade, ergue uma defesa, para a qual as fronteiras so inseguras por definio. Por

    conseguinte, se em minha insegurana, voc tenta me dizer sua verdade diferente, eu

    no lhe ouvirei. Em vez disso, o que ouvirei a ameaa da incurso. Percebo sua

    personalidade como o espelho deformado de meu prprio eu reprimido ou como uma

    diferena que sou incapaz de integrar em minha compreenso. Dessa forma, o outro est

    26

    Jurandir Freire Costa tem chamado a ateno desses elementos da subjetividade somtica.

  • irrevogavelmente ligado ao self, e visto que no admitido num lugar de conexo - por

    meio de semelhana e diferena - o outro inevitavelmente banido a uma posio de

    subordinao, conteno e controle" (CRAWFORD, 1994, p. 1.364). [p.170]

    O self superficial, paranico e melindroso tem uma nica maneira de escapar da

    tirania da aparncia: se igualando, se conformando norma. Somente sendo idnticos

    norma que podemos nos esconder. A adaptao, a obedincia e a identificao com a

    norma o refgio do eu que fez de sua aparncia a essncia. Queremos ser iguais para

    nos protegermos, nos escondermos. Ou somos idnticos, ou nos denunciamos.

    As asceses clssicas tinham, como vimos, uma dimenso poltico-social

    fundamental, visando sempre o outro e a cidade, eram expresso do amor pelo mundo.

    A presena do outro e do mundo garantiam a realizao do cuidado de si. Os ascetas

    representavam a solidariedade do grupo e canalizavam valores, necessidades, medos e

    esperanas da comunidade. A ascese como resistncia cultural e poltica e como

    expresso de uma vontade de singularizao, de estilo, de separao, de alteridade, de

    constituio de formas alternativas de subjetividade e sociabilidade, deixa lugar nas

    modernas bio-asceses vontade de adaptao, de conformidade com a norma, como a

    nica forma dos indivduos se protegerem. A ascese se torna disciplina e se despolitiza.

    A pluralidade se anula, isto , a existncia de um espao "entre" os indivduos, um

    mundo comum, que os una ou separe, mantendo sempre a distncia entre eles, e a

    diversidade se transforma em bio-identidades apolticas.

    O outro tornou-se inexistente para o indivduo somtico, as bio-asceses

    tornaram-no obsoleto. O corpo mesmo ocupa seu lugar, ele o "parceiro privilegiado",

    o "lugar de predileo do discurso social"; "encontramos em ns mesmos o parceiro

    complacente e cmplice, ausente ao nosso redor" (LE BRETON, 1999, p. 50). O eu

    somtico vive numa atmosfera de ambigidade, incerteza e medo contnuo, provocado

    pela cultura do risco, que produz um sentimento de angstia e apreenso constante.27

    A

    27

    "Apreenso uma ansiedade sobre o que pode acontecer; criada num clima que enfatiza o risco

    constante, e aumenta quando as experincias passadas parecem no servir de guia para o presente"

    (SENNETT, 1999, p. 115). Ver Castiel (1999, p. 159).

  • situao agravada pela nossa averso dependncia que impede que [p.171] possamos

    desenvolver a necessria confiana em ns,28

    nos outros e na benevolncia do mundo.

    A ao precisa da confiana, como nos lembram Winnicott (1990), Arendt

    (1987) e Foucault (2001). A confiana possibilita a continuidade e a constncia no

    ambiente, a formao de um "ambiente suficientemente bom", condio necessria para

    que o novo e o imprevisto possam surgir. Sem essa confiana em mim, nos outros, e no

    mundo no h ao, s h reao, que , no fundo, um sinnimo para o "comportar-se".

    Nessas circunstncias, a obedincia, a adaptao e a submisso ao mundo ocupam o

    lugar do agir no mundo.

    Se as prticas ascticas da Antiguidade visavam a liberdade da vontade, nas

    modernas bio-asceses, a vontade no est a servio da liberdade; uma vontade

    ressentida, serva da cincia, da causalidade, da previso e da necessidade, que

    constrange a liberdade de criao e anula a espontaneidade. Ela est submetida lgica

    da fabricao, do homo faber, matriz das bio-identidades. O resultado a constituio

    do homo medicus:

    Numa poca em que perdemos a f na santidade dos cdigos

    morais, em que no queremos nos vincular por imperativos

    legais e somos coagidos a racionalizar nosso destino atravs de

    nossas escolhas, a nova ontologia de ns mesmos, constituda

    pela medicina [e/ou por meio das bio-asceses], parece nos

    oferecer uma soluo racional, secular e corporal para o

    problema de qual seria a melhor forma de viver nossa vida, de

    como poderamos aproveitar o melhor de nossa vida adaptando-

    a a nossa verdade e deixando medicina esclarecer nossas

    decises de como viv-la (ROSE, 1998, p. 69).

    A vontade na bio-ascese se define mediante critrios reducionistas, fisicalistas,

    materiais, e corporais. Os novos estultos se referem exclusivamente tenacidade,

    constncia, ou debilidade, inconstncia, irresponsabilidade na observao de uma

    dieta, na superao dos limites biolgico-corporais, na manuteno de uma existncia

    livre de riscos. O fracasso em atingir e manter os ideais de sade e perfeio corporal

    so vistos como expresso da acrasia, de uma vontade fraca: "O nico tirano que

    28

    Como lembra Courtine (1995, p. 1(3), "o amor inquieto, super ocupado, sempre insatisfeito, por um bem-estar intimamente ligado atividade fsica e a uma promessa de transformao corporal" tem um

    custo psicolgico muito alto. A profuso atual de desordens da personalidade mtua est na base desta

    desconfiana de si, de um self que perdeu a cauo do outro na construo de sua identidade.

  • enfrenta sua prpria inrcia e ausncia de vontade - a crena de que voc est

    demasiado ocupado para se responsabilizar por seu prprio bem-estar e que a procura de

    sua sade por meio de um estilo de vida que promova o bem-estar demasiado duro,

    complicado ou inconveniente" (ARDELL apud CRAWFORD, 1980, p. 379). A

    ideologia da sade e da perfeio corporal nos faz acreditar que uma sade pobre deriva

    exclusivamente de uma falha de carter, um defeito de personalidade, uma fraqueza

    individual, uma falta de vontade. "No devemos nos enganar pensando que a doena

    causada por um inimigo exterior. Somos responsveis por nossa doena", nos diz um

    guru do healthism (ibidem). Nessa linha de pensamento, os novos estultos, os fracos de

    vontade, merecem as doenas que contraem, tendo em vista toda a problemtica estar

    reduzida falta de controle, acrasia. Eles so alvo legtimo de repulsa moral e de

    ostracismo social. O sofrimento do outro no reconhecido. Ele fruto de sua prpria

    culpa, eles so donos de seus destinos:

    Bbedos, glutes, fumantes e sedentrios - agora chamados

    irrisoriamente de "batatas de sof" (couch potatoes) na nova

    gria pejorativa da ideologia da sade - so vistos como uma

    classe inferior de pessoas, com certeza inaptos, independentes,

    ineficientes e possivelmente sujos de mente e de esprito assim

    como de corpo. O sentimento de desconforto que o indivduo

    saudvel sente na presena do indivduo doentio parece

    assustadoramente semelhante experincia, inquieta do passado

    do bom povo branco quando estava na companhia de negros

    (EDGLEY e BRISSEIT, 1990, p.263; CRAWFORD, 1994, p.

    1.363).

    Apesar de que as prticas de bio-ascese paream estar mais prximas das

    prticas do self da Antiguidade do que das disciplinas [p.173] - para alguns autores

    existem grandes semelhanas entre as bio-asceses e as asceses clssicas no que diz

    respeito ao grau de autocontrole atingido em ambas as prticas (BUNTON, 1997, p.

    238-239) -, elas so, no fundo, formas de disciplinamento corporal. As asceses clssicas

    visavam a transcendncia do corpo e o bem comum, a auto-superao, ou contato com a

    divindade. As prticas bio-ascticas, em contrapartida, so prticas apolticas e

    individualistas, faltando nelas a preocupao com o outro e com o bem comum.

    Perdemos o mundo e ganhamos o corpo. O interesse pelo corpo gera o desinteresse pelo

    mundo; a hipertrofia muscular se traduz em atrofia social. A preocupao com o mundo,

    ponto central da poltica desde a Antiguidade foi substituda na modernidade pela

    preocupao com o homem, a descoberta de si mesmo (ARENDT, 1997). Uma

  • preocupao consigo que se traduz na atualidade na preocupao com a sade e a

    perfeio corporal. No podendo mudar o mundo, tentamos mudar o corpo, o nico

    espao que restou utopia, criao. 29

    29

    Body-building, tatuagens, piercings, transplantes, prteses, clonagem, e at mesmo a ltima moda das body modifications (amputaes) representam avanos na conquista do ltimo continente, o corpo, e

    tentativas de personaliz-lo. Ao mesmo tempo e devido sobrevalorizao e ao enorme investimento

    simblico que vem sofrendo nas ltimas dcadas, o corpo tornou-se objeto de desconfiana, de receio,

    mesmo de desconforto: s aceitamos o corpo submetido a um processo de transformao constante.

    Existe, portanto, "um vnculo entre as explicaes biolgicas do comportamento humano, a vontade dos

    cientistas de modific-lo por manipulao gentica e este mundo ideal sonhado por alguns tericos

    radicais da cultura virtual" (LE BRETON, 2001, p. 23). Sobre o tema, a literatura imensa; ver, entre

    outros, Yehya (2001); Le Breton (1999); Sfez (1996); Zeitpunkte: "Der neue Mensch" (3, 2001);

    Joralemon (1995); Sharp (1995, p. 335-389).