O modus parisiensis e o ratio studiorum

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O MODUS PARISIENSIS E O RATIO STUDIORUM

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O MODUS PARISIENSIS EO

RATIO STUDIORUM

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O MODUS PARISIENSIS E OS JESUÍTAS

Sobre o método pedagógico dos Jesuítas, aplicado a seus alunos, em suas escolas de internatos na Europa, nos conta nestas linhas a seguir, o Professor renomado pelo caráter e seriedade de suas pesquisas, amante dos livros e da erudição, durante sua estada entre nós, nunca cedeu lugar para outras importâncias se não aquelas que norteassem o aprimoramento do saber. Sua personalidade, se confunde com a cultura.

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Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ullmann Docente da UNISINOS e da PUCRS.

”Desde cedo, compreendeu Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, a importância da educação da juventude como meio de reformar a sociedade e de opor um dique à doutrina de Lutero, que avançava a passos lar gos e se infiltrava nos colégios da Europa.Nos colégios da Companhia foi aplicado o modus parisiensis como mé todo pedagógico. Também nas universidades Inácio de Loyola fez questão fosse seguido o modo de Paris. Inúmeras vezes, em documentos da Compa nhia de Jesus, recomenda-se este proceder pedagógico. Por que, sendo espa nhol e tendo passado por Alcalá e Salamanca, não recomenda a metodologia de sua terra natal? À resposta é simples. Analisando os seus próprios estudos feitos na Espanha, na França e na Itália, chegou à nítida conclusão de que em nenhum lugar era mais eficaz o método de estudos do que em Paris. Testemu nho igual podiam dá-lo os irmãos de Ordem. O empenho dos mestres em dar as aulas, a divisão em classes, conforme o adiantamento dos alunos, os exercí cios constantes de repetição, as disputas e outros processos, tudo isto fazia com que os alunos auferissem real proveito dos estudos que ali realizavam.

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Julgamos, pois, oportuno relancear um olhar sobre o famoso modus parisiensis e sobre a sua aplicação nos colégios da Companhia de Jesus, fazen do, também, uma alusão ao célebre Ratio Studiorum que consagrou o modus parisiensis.

Prestamos, assim, uma justa homenagem aos jesuítas com experiência docente quatro e meia vezes secular e nos antecipamos aos preitosque serão prestados a Inácio de Loyola, em 1991, por ocasião de seu quinto centenário de nascimento..

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l. O modus parisiensisA esquematização a que nos temos de submeter desvitaliza um tanto o que

exporemos. Mesmo assim, dar-nos-á uma ideia da intensidade de trabalho a que estavam sujeitos os alunos na Capital da cultura e das letras de então e do esplêndido rendimento escolar que apresentavam.

À filosofia e à teologia escolásticas do medievo devemos o método em causa. Em Paris, atingiu sua florescência máxima. ''Poder-se-ia definir este método como uma atividade incansável, um exercício e uma prática constan te, uma espécie de ginástica incessante do espírito que põe em ação, rio pro cesso educativo, todos os recursos e todas as faculdades da pessoa humana".2

Na Idade Média, o método era aplicado no estudo das artes e da teolo gia, com os seguintes passos:

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a) Da lectio ou praelectio a qual consistia em que o professor lesse a seus alunos um livro e o comentasse. Lectio. significava também a leitura feita pe los alunos do mesmo livro, em particular. Em sentido mais amplo, lectio de signava, ainda, o curso seguido por alguém. Assim, lectio divina era a denomi nação para o curso de teologia.

b) ,Da lectio surgiram as famosas glosas ou comentarii. Como eram fei tos? "Basicamente, este método (das glosas) consistia em copiar o texto bíbli co na parte central da página (de papel), em caracteres grandes, com espaço duplo, deixando amplas margens. Em continuação, o mestre encarregado de explicar o texto fazia uso dos espaços entre as linhas para introduzir nelas, de baixo dos termos de difícil interpretação, frases curtas em caracteres peque nos, que lhe serviam de apontamentos para sua aula. Esta era a glosa interlinear. A ela somava-se todavia um segundo tipo de glosa. As amplas margens deixadas na página eram utilizadas para introduzir citações relativamente ex tensas, também em caracteres pequenos, dos autores antigos, isto é, dos pa dres ou auctoritates. Esta chamou-se glosa marginal.

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"Pois bem. A confecção de uma destas glosas supunha minucioso traba lho prévio de seleção das citações ou sentenças que seriam incluídas junto ao texto bfblico, pois não todas eram consideradas dignas e, em todo o caso, não havia espaço senão para algumas. Este trabalho coletivo dos golosadores deu lugar ao método da contraposição de autoridades e à literatura das sentenças, orientadas para enriquecer a lectio divina. Resultado disto era a sententia ma-gistralis a qual consistia na escolha definitiva do texto glosado". Ninguém desconhece que foi Pedro Lombardo o grande mestre das sentenças.

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c) Suscitadas pelo lectío, surgiam as quaestiones - perguntas feitas pe los professores ou pelos alunos, para elucidar questões ou pontos difíceis.

d) Em consequência das perguntas, originavam-se debates -disputatio-nes em que se colocavam os argumentos a favor e contra tal ou qual ponto,a fim de, no término, concluir pela proposição certa, segundo o peso dos arra zoados. Estes eram expostos em forma de silogismo e em latim! Semanalmen te ou de quinze em quinze dias, procedia-se à repetição da matéria. Duas vezesao ano, realizavam-se disputationes sollemnes das quais participavam todos osalunos bem como todos os professores e ainda autoridades eclesiásticas e ci vis. Não é possível , dado o seguido em tais certames. Na Renascença, o método parisiense foi aplicado ao estudo das humani dades nos colégios.

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De Paris, rapidamente se difundiu para outros lugares da Europa. Adotaram-no os Irmãos da Vida Comum, pô-lo em prática Sturm, em Estrasburgo, seguiu-o Baduel, em Nimes, introduziu-o Calvino em Gene bra, escolheram-no como modelo os jesuítas, no primeiro colégio por eles fundado e dirigido, na Itália (Messina). Foi o Pé. Jerônimo Nadal, por ordem de Santo Inácio, quem lançou os fundamentos do célebre colégio messinense. O método lá seguido estendeu-se, depois, para os demais estabelecimentos de ensino dá Companhia de Jesus.

Para maior clareza na exposição, mister se faz repetir alguns termos le gados pelo método escolástico, porém direcionados, agora, para os estudoshumãnísticos dos ginásios(=colégios) da época. Antes do mais, cumpre dizer que não foram os jesuítas, como por vezesse afirma, que fundaram os colégios. "É Jean Cele (discípulo de Groote) quedeve ser considerado como fundador e criador do que hoje denominamos es colas secundárias. Foi sua escola de ZwoVle que serviu de modelo para as deLuís Dringenberg, em Selestat, de Hegius, em Deventer, de Murméllius, emMúnster, de Melanchton, em toda a Alemanha, de Sturm, em Estrasburgo, deCalvino, em Genebra, dos colégios dos jesuítas e de todos os seus sucesso res".

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Em última análise, todos são devedores do método parisiense, porquan to os fundadores dos colégios ou haviam estudado em Paris ou tiveram mes tres que buscaram sua formação naquele centro cultural. No entanto, os colé gios humãnísticos de Paris também aprenderam algo novo com os Irmãos da Vida Comum. Certamente, quanto ao método pedagógico. Paris servia de mo delo universal. Porém/alguns usos eram ali de todo desconhecidos. "A divisâfo das classes, as decúrias, os exames para passar de ano e as promoções em nível de gramática, o rapiarium, o cargo de notator. não se encontram no modo parisiense, antes do século XV l, quando tudo isto já estava bem estabelecido, há longo tempo; nas escolas dos Irmãos".

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Acompanhemos o transcurso de uma aula de humanidade, na Renascença:

•O professor escolhe o trecho de um autor clássico, latino ou grego. Antes da praelectio, o professor discorre sobre o autor, elogiando-lhe a obra.Fala também do proveito a ser tirado da leitura. Assinala o género literário aque pertence e suas características. Depois, procede à leitura, frase por fraseexplicando todos os seus componentes, chamando a atenção para neologismos, arcaísmos, etimologia, origem grega das palavras, tropos, etc. Nâfo deixa de fazer relações com outros autores. Finalmente, extrai as ideias filosóficas eos epimítios morais. Vê-se que o texto era realmen|e exaurido até os últimosdetalhes. Por isto, anda desinformado quem diz que o latim era estudado porsi mesmo. Não. A assimilação dos autores clássicos não tem sentido senão namedida em que podem ser propostos como mestres do pensamento e modelosde vida virtuosa, objeto último dos estudos humanísticos. Clássico é precisa mente aquilo que irradia valores permanentes e imorredouros, no campo dasletras, das artes, da cultura!

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Visto todos os colégios da época renascentista serem cristãos, o ideal unânime da educação cifra-se na pietâs litterata, que sinonimizava com scientia et mores, doctrina, mores et pietâs, virtus et litterae. O escopo era formar cristáfos e cristãos letrados! Por este motivo, Sturm, um dos maiores pedago gos da Renascença, dizia: "Embora o fim dos nossos estudos seja o conheci mento das coisas, se a vida destoar da doutrina e das letras, quê utilidade tem o ensino (institutio) elegante e liberal? Por isto, sejam propostas nas escolas a piedade e a religião e para elas seja formada a alma juvenil, mediante a cultura das letras".12 De maneira idêntica pensavam Groote, Baduel, Calvino e, evi dentemente, os jesu ítas. Com a divisa honestas in moribus et sedulitas in litteris, pode-se resumir o elevado ideal dos estudos dos colégjos renascentistas. No apostolado do ensino, os jesuítas colimavam a maior glória de Deus.

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•Quanto à aprendizagem, encontramos dois métodos: o indutivo e odedutivo. Este partia das regras e preceitos para a aplicação prática dos conhe cimentos gramaticais. Aquele, obedecendo ao lema — usus, non praecepta —,procurava extrair do próprio texto as normasde gramática. Este último eramais do gosto de Erasmo de Roterdã; para a dedução inclinava-se Melanchton, cognominado praeceptor Germaniae. A Companhia de Jesus soube unir a van tagem de ambos os métodos.

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À lectio seguiam-se perguntas — quaestiones — dos alunos ou do mes tre, a fim de penetrar mais a fundo na compreensão do que fora tratado. Asdisputationes, em latim, fixavam a aprendizagem. Ali, não raro, o conteúdoda argumentação era sacrificado pelo emprego abusivo de distinções e subdis-tinções. No entanto, nato se lhes podem tirar os méritos: além de aguçarem ainteligência, corroboravam a memória. No cultivo da memória todos insistiam porque a consideravam, acertadamente, um arsenal de armazenamento das ideias. De feito, de que vale o estudo e que proveito tem a leitura, se, nó momento preciso, não se é capaz de evocar um pensamento adequado para o debate'õú para ornar, com elegância, o discurso? Ademais, os livros, à época, ainda eram bastante raros. Por isto, cabia à memória um papel importante. As disputas constituíam verdadeiras competições de dois alunos entre si, ou de uma parte da classe com a outra, porém sempre sob o olhar vigilante do professor

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•Mesmo depois das aulas, que tinham duração variada de cinco a setehoras por dia, exceto aos sábados em que nà"o havia aula, faziam-se disputas as quais tinham o nome de conferentiae, quaestiones conferentiales ou sim plesmente disputationes. Consistiam numa revisão da matéria lecionada.•Também após o almoço e depois da janta, o tempo era aproveitado para exercícios denominados reparationes. Repetia-se a matéria passada em aula, antes e depois do mèio-diâ, respectivamente. Mas não é tudo. Nalguns colégios protestantes, os alunos, antes de se recolherem, à noite, tinham que desfilar diante dó magister cubiculorum, no dormitório, para prestar contas do tempo empregado no decurso do dia.•Encontramos, ainda, a expressão reddere lectiones (dar ou tomar aslições) que consistia em dois alunos tomarem a lição, um,do outro, mormente antes do início das aulas. O professor, por seu turno, pedia contas da lição, to dos os dias. Esta redditio lectionum era um verdadeiro exercício de memória,cuja importância já foi assinalada, Diariamente, havia um trecho latino ou gre go a ser decorado. Chamava-se pensum.

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• Através das lectiones, o aluno adquiria um vocabulário cada.véz mais rico — copia verborum. Para tanto, cada aluno tinha um caderno a fim de ano tar osloci communes. Para estes cadernos transcrevia, cada qual, em ordem de assuntos, as palavras, as ideias, as frases mais bonitas dos autores lidos. Os loci communes devem, é quase certo, sua origem aos rapiaria (do verbo latino ra-pere, que significa furtar ) dos Irmãos da Vida Comum.•Além dos exercícios diários, a que se obedecia rigidamente, topamos com exercícios hebdomadários ou quinzenais. Quase sempre eram levados a efeito aos sábados. Faziam-se em sessão pública, mas não solene. Alternavam-se, deisemana em semana ou quinzenalmente, discursos, composições;erri pro sa e verso, dos alunos, e disputas. Para adquirirem um bom estilo, os alunos tinham como tarefa, duas ou três vezes por semana, o chamado théma. Tratava-se de uma composição, ver sando sobre>uma frase ou uma ideia extraída de um autor clássico, por cujo estilo os alunos procuravam pautar-se.

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•É a chamada imitatio. ImitavamTSe, mas não sé copiavam os clássicos, visto cada aluno ter sua própria maneira de ex pressar-se. -Os mestres deviam ter em mente que os clássicos servem de guias e não simplesmente de senhores a quem o aluno se submeteria servilmente. Os \ temas eram corrigidos. Em Estrasburgo, sturm "examina de tempos em tempo os temas (scripta) dos alunos". Diferente nâo" era o proceder de Inácio de Loyola: "Este, amante sempre da formação clássica, nâo só impunha a todos o domínio do latim e ainda do grego, senão que pedia às vezes aos alunos que lhe mandassem a Roma a composição latina, antes que a visse algum professor, pois desejava formar uma ideia pessoal da pura latinidade do aluno, antes da intervenção da caneta do professor com retoques e correções".Nas aulas de retórica, faziam-se permanentes exercícios de declamação í de trechos de autores renomados ou de pequenos discursos elaborados pelos J alunos.

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Finalmente, nâo estavam ausentes as representações teatrais de peças clássicas ou de peças compostas por alunos ou por professores. Eram levadas a icena, por ocasião de festas de santos, de patronos da nação, da província, da diocese ou do respectivo colégio. Se compostas por professores, o enredo en- volvia ternas de cunho moral.

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É claro que os alunos, com o tempo, em se lhes dando liberdade de elaborarem suas peças teatrais, preferiam a sátira. A talponto chegou o abuso e o desrespeito, neste particular, que, em 1516, em

Navarra a Corte convocou os príncipes, a fim de pôr cobro à apresentação de enredos que envolvessem a honra do rei, da rainha e de outros personagens de

alto ficoturno. ;

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Nos colégios dos jesuítas, era cultivado intensamente o teatro.'"Muitos"colégios, já alguns meses depois de sua abertura, apareciam em público com ocasião de festas da Igreja, como Corpus Chrísti, Sexta-Feira Santa, Natal, Páscoa ou nas Congregações Marianas, bemcomo no início do ano letivoou vernácula. (...) Ao lado destes diálogos, desenvolveram-se, desde o início, também representações de cunho dramático".

Se, como vimos, o latim ocupava lugar de destaque no ensino dos colegios renascentistas, não menor importância dava-se ao grego e ao hebraico, Daí vem o nome de colégios trilingues. Os motivos no-los fornece o já tantas | vezes citado Mir: "O latim, o grego e o hebraico são tidos em mira, pratica- f mente em função do estudo da Escritura". A par destas línguas, era tam- f bem dada importância ao vernáculo,: assim entre os protestantes como entre os Jesuitas.

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Lutero, tão inimigo das universidades que chegou a classificá-las como f "cavernas de malfeitores, templos de Moloch, sinagogas de perdição", foi J um grande fautor das escolas secundárias na Alemanha. Insistia em que a ju ventude estudasse o latim, o grego e o hebraico, a fim de ler os textos escriturísticos no original grego e hebraico O latim era estudado para acompanhar a ebulição humanística.

Os jesuítas dedicàvam-sé às mesmas línguas, com a finalidade de pode rem competir com os humanistas leigos de sua época e para melhor compreen derem a exegese das Escrituras. Nadai, de quem se diz ter sido idiomatum Latini, Graeci Hebraicique peritissimus, tencionava introduzir em Messina também "o árabe, o turco e outras línguas", com finalidade missionária. Mas o estudo do árabe, nos colégios dos jesuítas, deve ter constituído um fe nómeno esporádico, até ser introduzida uma cadeira de árabe no Colégio Ro mano, em 1565. Ao que se vê, os estudos convergiam para honra e glória deDeus, .Uma pergunta que certamente aflora aos lábios é esta: Liam-se indistin tamente aos autores clássicos? Não. Sturm, notável educador, declara que não se deve introduzir nos espíritos dos jovens nada senão decente, piedoso, ele gante e nobre, referindo-se a Catulo, Tibulo e Horácio. Mas, na escolha dos textos dos autores, procedeu com certo laxismo. Cabe, no entanto, ao colégio de Estrasburgo, o mérito de ter sido um dos primeiros da Renascença a dispor de textos próprios, em função do programa e da educação dos jovens. Em ou tras palavras, Sturm fazia expurgo nos textos a serem manuseados pelos alu nos.

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O critério dos jesuítas, para seleção de textos clássicos, vai em busca dos autores mais conceituados: a época ciceroniana, para o latim; o século de De-mosténes, para o grego. Em contraposição aos protestantes, que alimentavam menosprezo aos autores da Patrística, como Jerônimo, Próspero, Ambrósio e Agostinho, verdadeiros luminares da eloquência cristã, os jesuítas não lhes fe charam as portas. Mas, efetivamente não os introduziram nos programas de seus colégios. Plauto, Ovídio, Horácio, Marcai, Terêncio e outros pagãos eram lidos indistamente, nos colégios da Companhia? Absolutamente. Nadai optou por uma expurgar/o. Ao Pé. Frusius, renomado humanista, atribui-se a primei ra edição; de autores expurgados. Servia para Messina. Inácio, sem demora, encarregou dito padre da preparação de edições semelhantes para os colégios -da Companhia. "Castrar los libros de humanidad" é a expressão usada por Inácio. Na realidade. Nada) não era lá muito favorável a cortes e expurgos dos clássicos.

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Queria, antes, delegar aos mestres a responsabilidade e a sensibi lidade de preparar o espírito dos alunos para ler passos menos edificantes. Não menos perigoso do que a leitura de tais autores, dizia ele, é o mau exem plo. Nadai mostra, sem_ dúvida, grande abertura de espírito. Não se opôs, no entanto, às expurgações. Mais tarde, tornou-se francamente favorável a não ler tais autores senão depois de feitos os devidos cortes. Aliás, nas Constituições, Parte Quarta, capítulo 14, intitulado Dos livros que se hão de ler. está consig nado que, dos livros de humanidade, latinos e gregos, "evite-se que a juventu-QeJeia algum em que haja coisas ofensivas aos bons costumes, sem primeiro limpá-los das coisas e palavras desonestas".

Quanto às obras de Erasmo e de Vives (filósofo, humanista e pedagogo, amigo de Erasmo), Inácio os proibiu, por causa do perigo de heresia. Dado, porém, o valorYiumanfsticode Erasmo, Nadai conseguiu, mediante um proces so hoje de todo em todo reprovável, que este autor fosse lido, com partes ex purgadas, mas sem indicar, no texto, o nome do autor. Nas obras dos autores pagãos, expurgadas, foram conservados os nomes.

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Em 1559, Paulo IV publicou o Index, condenando, entre outras, as obras de Erasmo bem como todos os livros que contivessem comentários e interpretações ou que fossem traduções de hereges, mesmo obras que não ti vessem relação nenhuma com a f é e a religião. E mais do que isto. Todos os livros saídos de editoras, que algum dia tivessem impresso livros de autores heréticos, automaticamente estavam contidos no interdito. O que fazer? Ha veria ainda algum livro utilizável nas escolas? Nadai dirigiu-se à Inquisição e conseguiu que os jesuftas pudessem conservar certos livros, deletis authorum nominibus et erroribus (depois de eliminados os nomes e os erros dos auto res). Deve-se, indubitavelmente, a Nadai o fato de os primeiros colégios da Companhia não se acantonarem num humanismo piedoso e timorato, com exclusão dos tesouros do humanismo antigo e moderno.

Acabamos, com isto, de dar uma rápida vista de olhos sobre o modus parisiensis em geral e sua adoção pelos colégios da Renascença. "Jerônimo Na dai pode a justo título ser considerado como o fundador da pedagogia dos je suítas, pois é ele quem, inspirando-se no modus parisiensis, estabeleceu as ba ses sobre as quais devia repousar todo o edifício escolar da Companhia de Je-sus".

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Para completar o quadro do modo de Paris, é mister volver nossa aten ção para alguns aspectos como controle da disciplina, castigos e prémio, sem esquecer a formação religiosa. Assim como o método de Paris foi transferido para a pedagogia dos colégios renascentistas, o que diremos a seguir tem, igualmente, suas raízes na mesma metrópole cultural e se estendeu, com al gumas modificações, para os demais estabelecimentos da época, na Europa.

A fim de lograr êxito nos estudos, a disciplina, com justa razão, era con siderada imprescindível. Os estatutos dos colégios de Paris estão repletos de catálogos de sanções para os infratores.

a) Verbis et verberibus (com palavras e com varas) era um binómio que os alunos tinham permanentemente diante dos olhos. À advertência verbal, se nâ"o surtisse efeito, seguia-se a vara. Famoso tornou-se o colégio de Montaigu por sua severidade nos castigos. "Os alunos eram vergastados desnudos" e "deixava-se o dorso em sangue" E os pais, o que diziam a isto? Até faziam questâo de que seus filhos fossem castigados corporalmente, para serem re conduzidos aos caminhos da virtude. Em Messina, quando os pais matriculavam os seus filhos no colégio dos jesuítas, já eram informados de que, sendo necessário, seria aplicado castigo corporal aos seus pupilos. Ninguém se opu nha. "Peio contrário, quando, em 1557, se tratou de suprimir os castigos cor porais, os pais foram os primeiros a pedirem aos padres que restabelecessem a antiga disciplina, a fim de manter seus filhos 'in paura' (em clima de medo).

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Inácio concordava em que, sendo necessário, se recorresse à vara, mas não achava conveniente "que nós (os jesuítas) apliquemos o castigo com nos sas mãos". Não desconhecia Inácio que há temperamentos os quais só se deixam levar pela dor corporal. Em vez de os jesuítas aplicarem os castigo da vara, sugere Inácio corretores, isto é, leigos que, por um salário honesto, exe cutem a tarefa de surrar os alunos. A figura do corretor tornou-se lei geral nos colégios dos jesuítas. "Nem todos os colégios parecem ter aceito, com igual prontidão, esta transferência ao braço secular, em parte por motivos econó micos". Em todo o caso, os jesuítas não queriam que os golpes fossem de masiado numerosos — no máximo seis. O rosto e a cabeça não podiam ser atingidos. E duas testemunhas sempre deviam presenciar o ato. Que isto cau sasse ressentimentos não é de estranhar. Mas Leonel França traz um testemu nho interessante relativamente a um corretor: "Conta-nos o Pé. Franco de um tal Sebastião Sequeira, corretor, durante quarenta anos, no Colégio de Bragança, que, no dia do seu falecimento, a 12 de março de 1694, quiseram os nobres da cidade levá-lo à sepultura sobre os próprios ombros em testemunho de gra tidão pelos castigos outrora recebidos". Para os padres da Companhia, o castigo físico era o derradeiro recurso. Tinham preeminência os apelos à hon ra e à dignidade.

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Em carta de 21 de janeiro de 1553, Inácio de Loyola chega a proibir, em virtude de santa obediência, que os jesuítas dêem, com suas mãos, castigo corporal.

A título de curiosidade, é interessante aduzir mais um caso. Baduel, diretor do colégio Nímes, até para formar professores habilitados, obrigava-os a assistir às aulas, submetendo-os a insano rigorismo. Ele quer que tais profes sores "sejam tratados com uma disciplina severa e tangidos (coniiciantur) para a aula como são tangidos para o estábulo cavalos muito selvagens (praeferoces) e indómitos; e assim sejam mantidos em ordem para que não possam pre judicar nem a si mesmos nem as demais classes dos alunos, nem as regras discj-plinares". Esta atitude não se diferencia de uma verdadeira doma .. .

b) Uma prática de origem medieval, incorporada pelos colégios renas centistas, é a dos observatores ou exploratores. Eram alunos-vigias, encarrega dos pelo diretor do colégio, para denunciar as faltas dos colegas. Que faltas? Uma das mais comuns era a de não falar latim, no tempo devido, ou falar mal. Devido à sua odiosa função, foram os observadores apelidados de lupi. Os jesuitas tinham cargo semelhante. Eram os exactores (vigias), incumbidos de tomarem nota dos ausentes à missa, aos sermões e ao catecismo.

Devem ademais citar-se os decani ou notatores. Quem eram e que faziam? Eram alunos, dentre os melhores, que presidiam grupos de dez alunos, companheiros da mesma classe, para vigiá-los e denunciar suas faltas! ao superior.

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Na própria decúria, presidida por um decanus, uns vigiavam os f outros bem como uma decúria cuidava do comportamento da outra. Não? havia, pelo visto, como fugir aos olhos dos notatores. A divisão de grupos de l dez alunos nâb visava somente à disciplina. As decúrias tinham também a fun-f; cão de trabalharem e estudarem em conjunto. As tabellae delatoriae, elabora-1 das pelos decani, com o nome dos ihfratores, eram presságio de consequências f inevitáveis: castigos! As decúrias também vigoravam em Messina.30 Asistemá-f tica dos decani tomou incremento já em tempos remotos, entre os monges, no | Egito, por exemplo. Recua até o tempo dos exércitos romanos e sua raiz tal vez devamos procurá-la nas tribos bíblicas (Dt. 1,13).

Em Messina, os jesuítas deram o nome de síndico ou censor ao aluno encarregado de vigiar os colegas. Cada sábado, o síndico levava as informações ao Reitor. Sua nomeação era secreta. Os pais sabiam que seus filhos podiam ser delatados aos superiores, se cometessem alguma falta, quer no uso do la tim, quer infringindo o estatuto. Era mais uma forma de ajudar para os alunos corrigirem seus defeitos. Na Companhia de Jesus, qualquer um pode acusar ao superior os defeitos dos coirmãos. Isto encontra-se assinalado no Livro do Exame que é como que o pórtico das Constituições da Companhia de Jesus.

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De passagem, diga-se que o colégio de Messina era externato, onde, além do curso colegial, funcionavam os de filosofia e teologia. Nadal opunha-se a que os jesuítas tivessem internos, salvo em casos muito especiais, como na Alemanha e na França, para obviar a inoculação de heresias nas sensíveis al mas juvenis. No tempo de Inácio, os internatos da Companhia eram, predominantemente, seminários, maxime nos países de missão.

d) Não podemos omitir o famoso castigo da sala, em vigor na universi dade de Paris e em colégios da mesma cidade. Eis como a ele se procedia: ao som de um sino, era convocado todo o colégio para uma reunião no refeitório a fim de ser executado o castigo no dorso do culpado. O castigo devia servir de exemplo e terror para os demais. E não se aplicava tão somente aos meninos, não; Inácio, com mais de trinta anos de idade, só não sofreu o castigo da sala, porquanto o diretor Gouveia pressentiu que 'tal penalidade, imposta a Inácio, geraria agitação no colégio de Santa Bárbara. "O castigo da sala consistia em açoitar os alunos que tinham transgredido gravemente os estatutos do colégio. Aplicava-se numa sala (refeitório, dizem outros), na presença dos prófessores e dos alunos".31 Não há notícia de que os jesuítas se valessem deste meio.

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Nem, por certo, empregaram a humilhante nota asini (o distintivo de asno). Vigorou no colégio de Lausanne e em colégios de reformadores da Ale manha. Em que consistia? Em que o aluno mais preguiçoso da sala de aula portasse no pescoço uma cabeça de asno, feita de madeira, ou um boné na ca beça, com figura asinina. É uma reminiscência do medievo. Quem era "galar doado" com tal distinção devia esforçar-se (e porventura não o faria?) por passar a outro colega ainda mais preguiçoso a nota asini. Sobre carregarem esta marca nefanda, os respectivos ainda eram castigados verbalmente ou com a vara, no término das aulas.

Basta isto sobre os castigos. Vamos aos prémios que se conferiam noscolégios.

Com os demais estabelecimentos de ensino da Renascença, os jesuítas instituiram o sistema das contentiones ou competições entre os alunos. Nou tras palavras, recorreram à emulação como força psicológica profundamente estimutedora. A aula era dividida em dois campos, v.g., romanos e cartagine ses. Cada aluno tinha no campo oposto um emulo. A este cabia "advertir-lhe os erros é contar, corrigindo-os, uma vitória para sua bandeira". Os educa dores jesuítas, como também Sturm, cuidavam para a competição transcorrer com honestidade e não descambar para rivalidades odiosas. O Ratio Studiorum fala em honesta aemulatio foveatur.

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A emulação foi severamente censurada aos jesuítas, de parte dos janse-nistas e de parte dos seguidores da morai kantiana'; Estes, com exagero purita no, sustentavam que a busca do prémio desvirtuava os atos bons. Aqueles, com visão pessimista da natureza humana, diziam dever reprimir-se tudo quanto a afirmava ou desenvolvia.

Prémios eram conferidos aos alunos, por ocasião de eventos marcantes, como disputa ou conclusão do ano letivo. Este costume veio da Espanha e não de Paris. Na data aprazada, eram convidadas as famílias dos alunos às quais se associavam altas autoridades eclesiásticas e civis. Os prémios dados aos alunos de maior destaque despertavam o desejo de emulação. Ninguém pode pegar que esta constitui excelente preparação para as cruas concorrências da vida.

Floresceram também nos colégios dos jesuítas as academias, presididas por urn padre ou escolástico. Em reuniões frequentes, os alunos a elas filiados (e só podiam ser membros alunos de escol) apresentavam seus trabalhos de in vestigação literária. Um capítulo inteiro do Ratio é dedicado às academias, prescritas para os alunos dos colégios e para os estudantes de filosofia e de teologia. Estas últimas evidentemente versavam assuntos de seus campos de estudo.

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A emulação foi severamente censurada aos jesuítas, de parte dos janse-nistas e de parte dos seguidores da morai kantiana'; Estes, com exagero purita no, sustentavam que a busca do prémio desvirtuava os atos bons. Aqueles, com visão pessimista da natureza humana, diziam dever reprimir-se tudo quanto a afirmava ou desenvolvia.

Prémios eram conferidos aos alunos, por ocasião de eventos marcantes, como disputa ou conclusão do ano letivo. Este costume veio da Espanha e não de Paris. Na data aprazada, eram convidadas as famílias dos alunos às quais se associavam altas autoridades eclesiásticas e civis. Os prémios dados aos alunos de maior destaque despertavam o desejo de emulação. Ninguém pode pegar que esta constitui excelente preparação para as cruas concorrências da vida.

Floresceram também nos colégios dos jesuítas as academias, presididas por urn padre ou escolástico. Em reuniões frequentes, os alunos a elas filiados (e só podiam ser membros alunos de escol) apresentavam seus trabalhos de in vestigação literária. Um capítulo inteiro do Ratio é dedicado às academias, prescritas para os alunos dos colégios e para os estudantes de filosofia e de teologia. Estas últimas evidentemente versavam assuntos de seus campos de estudo.

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Escusado é dizer que, no colégio de Messina, protótipo dos colégios da Companhia de Jesus, o cultivo da vida espiritual tinha a preeminência, porquanto o ideal era a pietas litterata. Missa cotidiana, confissão mensal, comu nhão frequente, catecismo semanal e sermão aos domingos eram os exercícios de piedade praticados nas instituições dos padres da Companhia de Jesus. An tes das aulas,, mormente nas classes iniciais, professor e alunos diziam em com junto cinco vezes o Pai-Nosso e cinco vezes a Ave-Maria, de manhã e de tarde. À tarde, antes de os alunos voltarem a casa, um deles subia a um banco e reci tava em voz alta o Pai-Nosso, a Ave-Maria, o Creio, o Salve Rainha, os manda mentos, que todos repetiam em voz alta, palavra por palavra.

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Tendo visto os principais aspectos do modus parísiensis e sua aplicação pelos jesuítas, concluímos com as palavras do grande Boehmer: "Nehuma das inovações tornou-se tão importante para o futuro como os novos colégios que, por toda a parte, a Ordem, em rápida sequência, erigiu. O modelo de to-; das estas instituições era o Collegium Romanum.e o programa de estudos, váli do para todas, o fíatio Studiorum de Aquaviva, desde 1599". Na realidade, antes de entrar em vigor o Ratio, ele, na prática, já era aplicado, porque suas raízes devem ser procuradas, em última análise, no colégio messinense. Boehmer alude ao Collegium Romanum e não ao de Messina, porque, por um| clássico processo de assimilação e substituição, na medida em que o tempo foi passando, nâio mais se fala em modus parísiensis e, sim, no modus Collegii Romani, por assumir a liderança dos estabelecimentos de ensino dos jesuítas, mas obedecendo ao modo de Paris. Na base de tudo encontra-se o genial espí rito de organização do Pé. Jerônimo Nadal.”

TEOCOMUNICAÇÃO, Porto Alegre v. 20 nº. 879 - Set. 1990 - p. 215-226.9