Nietzsche - Aurora

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  • NIETZSCHE

    AURORA

  • COLEO GRANDES OBRAS DO PENSAMENTO UNIVERSAL

    1 Assim Falava Zaratustra Nietzsche2 A Origem da Famlia, da Propriedade Privada e do Estado Engels3 Elogio da Loucura Erasmo de Rotterdam4 A Repblica (parte I) Plato5 A Repblica (parte II) Plato6 As Paixes da Alma Descartes7 A Origem da Desigualdade entre os Homens Rousseau8 A Arte da Guerra Maquiavel9 Utopia Thomas More10 Discurso do Mtodo Descartes 11 Monarquia Dante Alighieri12 O Prncipe Maquiavel13 O Contrato Social Rousseau14 Banquete Dante Alighieri15 A Religio nos Limites da Simples Razo Kant16 A Poltica Aristteles17 Cndido ou o Otimismo O Ingnuo Voltaire18 Reorganizar a Sociedade Comte19 A Perfeita Mulher Casada Luis de Len20 A Genealogia da Moral Nietzsche21 Reflexes sobre a Vaidade dos Homens Mathias Aires22 De Pueris A Civilidade Pueril Erasmo de Rotterdam23 Caracteres La Bruyre24 Tratado sobre a Tolerncia Voltaire25 Investigao sobre o Entendimento Humano David Hume26 A Dignidade do Homem Pico della Mirndola27 Os Sonhos Quevedo28 Crepsculo dos dolos Nietzsche29 Zadig ou o Destino Voltaire30 Discurso sobre o Esprito Positivo Comte31 Alm do Bem e do Mal Nietzsche32 A Princesa de Babilnia Voltaire33 A Origem das Espcies (Tomo 1) Darwin34 A Origem das Espcies (Tomo II) Darwin35 A Origem das Espcies (Tomo III) Darwin36 Solilquios Santo Agostinho37 Livro do Amigo e do Amado Llio 38 Fbulas Fedro39 A Sujeio das Mulheres Stuart Mill40 O Sobrinho de Rameau Diderot 41 O Diabo Coxo Guevara42 Humano, Demasiado Humano Nietzsche 43 A Vida Feliz Sneca44 Ensaio sobre a Liberdade Stuart Mill45 A Gaia Cincia Nietzsche46 Cartas Persas 1 Montesquieu47 Cartas Persas II Montesquieu48 Princpios do Conhecimento Humano Berkeley49 O Ateu e o Sbio Voltaire50 Livro das Bestas Llio51 A Hora de Todos Quevedo52 O Anticristo Nietzsche53 A Tranqilidade da Alma Sneca54 Paradoxo sobre o Comediante Diderot55 O Conde Lucanor Juan Manuel56 O Governo Representativo Stuart Mill57 Ecce Homo Nietzsche58 Cartas Filosficas Voltaire59 Carta sobre os Cegos Endereada queles que Enxergam Diderot60 A Amizade Ccero61 Do Esprito Geomtrico Pensamentos Pascal62 Crtica da Razo Prtica Kant63 A Velhice Saudvel Ccero64 Dos Trs Elementos Lpez Medel65 Tratado da Reforma do Entendimeno Spinoza66 Aurora Nietzsche67 Belfagor, o Arquidiabo A Mandrgora Maquiavel

  • FRIEDRICH NIETZSCHE

    AURORATEXTO INTEGRAL

    TRADUOANTONIO CARLOS BRAGA

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    NIETZSCHE AURORA

    TTULO ORIGINAL ALEMO MORGENRTHE

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    DIAGRAMAO: CIBELE LOTITO LIMAREVISO: DENISE SILVA ROCHA COSTA EMARIA NAZAR DE SOUZA LIMA BARACHO

    CAPA: CIBELE LOTITO LIMACOLABORADOR: LUCIANO OLIVEIRA DIAS

    COORDENAO EDITORIAL: CIRO MIORANZA

  • CONTRA CAPAAurora, o despertar de uma nova moralidade. Emancipao da razo diante da moral. Uma vez que a moralidade no outra coisa que a obedincia aos costumes, de qualquer natureza que estes sejam, Aurora quer romper essa maneira tradicional de agir e de avaliar. Portanto, medida que o sentido da causalidade aumenta, diminui a extenso do domnio da moralidade. De fato, a compreenso das ligaes efetivas da causalidade destri considervel nmero de causalidades imaginrias que foram sendo julgadas no decurso dos tempos como fundamentos da moral. O poder liberador da razo tem em si a capacidade de desmitificar significados sociais institudos pela tradio; o indivduo, em sua atividade racional, se descobre como criador de novos valores. O indivduo capaz, portanto, de romper o elo histrico que une tradio e moralidade, opondo-lhe o binmio razo e afirmao de si. Com essas principais referncias, em Aurora, Nietzsche discute a histria dos costumes e da moralidade, a histria do pensamento e do conhecimento, alm de ressaltar os preconceitos cristos que vararam a histria da humanidade. A seguir, se concentra em analisar a natureza e a histria dos sentimentos morais, dos preconceitos filosficos e dos preconceitos da moral altrusta. Continua depois estabelecendo o contraponto entre cultura e culturas ou civilizao e civilizaes, para ressaltar a interveno do. Estado, da poltica e dos povos na histria. Finalmente, parece divertir-se ao apresentar coisas essencialmente humanas e corriqueiras e pintar o universo do pensador. Como a aurora anuncia um novo dia, Aurora, para Nietzsche, tambm um novo despertar para uma verdadeira vida do homem e da humanidade inteira.

  • NDICE

    APRESENTAO ...................................................................... 8VIDA E OBRAS DO AUTOR ........................................................ 11PREFCIO ............................................................................ 14

    LIVRO PRIMEIRO .............................................................. 22LIVRO SEGUNDO .............................................................. 95LIVRO TERCEIRO ........................................................... 149LIVRO QUARTO .............................................................. 202LIVRO QUINTO ............................................................... 272

  • APRESENTAOAurora significa o despertar de uma nova moralidade. a

    emancipao da razo diante da moral. Uma vez que a moralidade no outra coisa que a obedincia aos costumes, de qualquer natureza que estes sejam, Aurora quer romper essa maneira tradicional de agir e de avaliar. Portanto, medida que o sentido da causalidade aumenta, diminui a extenso do domnio da moralidade. De fato, a compreenso das ligaes efetivas da causalidade destri considervel nmero de causalidades imaginrias que foram sendo julgadas no decurso dos tempos como fundamentos da moral. O poder liberador da razo tem em si a capacidade de desmitificar significados sociais institudos pela tradio; o indivduo, em sua atividade racional, se descobre como criador de novos valores. O indivduo capaz, portanto, de romper o elo histrico que une tradio e moralidade, opondo-lhe o binmio razo e afirmao de si. O mundo da tradio essencialmente aquele em que os valores da autoridade so indiscutveis. Para reverter essa situao, para conferir humanidade um renovado status de independncia e liberdade, nada mais decisivo que a loucura. Com efeito, num mundo submisso tradio, idias novas e divergentes, apreciaes e juzos de valor contrrio s puderam surgir e se enraizar apresentando-se sob a figura da loucura. Quase em toda parte, a loucura que aplaina o caminho da idia nova, que condena a imposio de um costume, de uma

  • superstio venerada, como diz o prprio Nietzsche.Dentro dessa perspectiva, Aurora se configura realmente

    como um novo dealbar, como novos albores na histria da individualidade num contexto social. Um novo ser se desenha. Uma nova forma de pensar, de agir e de se comportar. Um novo ideal de si diante do outro, um novo ideal de cada um diante da sociedade. Um novo tempo. Uma nova vida. tudo o que o homem quer. Ser e ser ele prprio. Assumir o passado enquanto possa representar uma riqueza para o presente e uma projeo para um futuro livre, independente e dessacralizado das imposies, preconceitos e supersties do passado calcado na moralidade dos costumes. Isso significa tambm desmitificar a histria, libert-la de seu romantismo, de suas iluses, de suas crenas e de sua submisso aos ideais impostos pela f cega e pela religio. Isso significa ainda entrar em outro campo da tica e da esttica, ter outra viso do mundo e de suas antigas conquistas, como que mergulhar em nova perspectiva do possvel real, do racional, derrotando o irracional, o irrazovel, tudo o que foi imposto pela ditadura do pensamento ultrapassado, da ideologia preconceituosa, da religio impostora, nova perspectiva que deveria levar a repensar a finitude humana fora de todo enfoque teolgico e, por conseguinte, levar a libertar toda moralidade daquilo que ela representa, ou seja, o nus dos costumes, de uma tradio milenar, de uma religio sufocante.

    Com essas principais referncias, em Aurora, Nietzsche discute a histria dos costumes e da moralidade, a histria do pensamento e do conhecimento, alm de ressaltar os preconceitos cristos que vararam a histria da humanidade. A seguir, se concentra em analisar a natureza e a histria dos sentimentos morais, dos preconceitos filosficos e dos

  • preconceitos da moral altrusta. Continua depois estabelecendo o contraponto entre cultura e culturas ou civilizao e civilizaes, para ressaltar a interveno do Estado, da poltica e dos povos na histria. Finalmente, parece divertir-se ao apresentar coisas essencialmente humanas e corriqueiras e pintar o universo do pensador. Como a aurora anuncia um novo dia, Aurora, para Nietzsche, tambm um novo despertar para uma verdadeira vida do homem e da humanidade inteira.

    Ciro Mioranza

  • VIDA E OBRAS DO AUTORFriedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Rcken, Alemanha,

    no dia 15 de outubro de 1844. rfo de pai aos 5 anos de idade, foi instrudo pela me nos rgidos princpios da religio crist. Cursou teologia e filologia clssica na Universidade de Bonn. Lecionou Filologia na Universidade de Basilia, na Sua, de 1868 a 1879, ano em que deixou a ctedra por doena. Passou a receber, a ttulo de penso, 3.000 francos suos que lhe permitiam viajar e financiar a publicao de seus livros. Empreendeu muitas viagens pela Costa Azul francesa e pela Itlia, desfrutando de seu tempo para escrever e conviver com amigos e intelectuais. No conseguindo levar a termo uma grande aspirao, a de casar-se com Lou Andreas Salom, por causa da sfilis contrada em 1866, entregou-se solido e ao sofrimento, isolando-se em sua casa, na companhia de sua me e de sua irm. Atingido por crises de loucura em 1889, passou os ltimos anos de sua vida recluso, vindo a falecer no dia 25 de agosto de 1900, em Weimar. Nietzsche era dotado de um esprito irrequieto, perquiridor, prprio de um grande pensador. De ndole romntica, poeta por natureza, levado pela imaginao, Nietzsche era o tipo de homem que vivia recurvado sobre si mesmo. Emotivo e fascinado por tudo o que resplende vida, era ao mesmo tempo sedento por liberdade espiritual e intelectual; levado pelo instinto ao mundo irreal, ao mesmo tempo era apegado ao mundo concreto e real; religioso por

  • natureza e por formao, era ao mesmo tempo um demolidor de religies; entusiasta defensor da beleza da vida, era tambm crtico feroz de toda fraqueza humana; conhecedor de si mesmo, era seu prprio algoz; seu esprito era campo aberto em que irromperam as mais variadas tendncias, sob a influncia de sua agitada conscincia.

    Esprito irrequieto e insatisfeito, conscincia eruptiva e crtica, vivia uma vida de lutas contra si mesmo, de choques com a humanidade, de paradoxos sem limite. Assim era Nietzsche.

    PRINCIPAIS OBRAS

    A gaia cincia (1882)A genealogia da moral (1887)Alm do bem e do mal (1886)A origem da tragdia (1872)Assim falava Zaratustra (1883)Aurora (1881)Ecce Homo (1888)Humano, demasiado humano (1878)O anticristo (1888)O caso Wagner (1888)Crepsculo dos dolos (1888)Opinies e sentenas misturadas (1879)O viajante e sua sombra (1879)Vontade de potncia (1901)

  • AURORAREFLEXES SOBRE OS PRECONCEITOS MORAIS

  • PREFCIO

    1Neste livro encontra-se agindo um ser subterrneo que

    cava, perfura e corri. Ver-se-, desde que se tenha olhos para tal trabalho nas profundezas, como avana lentamente, com circunspeco e com uma suave inflexibilidade, sem que se perceba em demasia a angstia que acompanha a privao prolongada de ar e de luz; poder-se-ia at julg-lo feliz por realizar esse trabalho obscuro. No parece que alguma f o guie, que alguma consolao o compense? Talvez queira ter para ele uma longa obscuridade, coisas que lhe sejam prprias, coisas incompreensveis, secretas, enigmticas, porque sabe o que ter em troca: sua manh s para ele, sua redeno, sua aurora?... Certamente voltar: no lhe perguntem o que procura l em baixo; ele mesmo o dir, esse Trofnio, esse ser de aparncia subterrnea, uma vez que de novo se tenha tornado homem. Costuma-se esquecer inteiramente o silncio quando se esteve soterrado tanto tempo como ele, s tanto tempo como ele.

    2Com efeito, meus pacientes amigos, vou dizer-lhes o que

    procurei l embaixo, vou dizer-lhes neste prefcio tardio, que poderia ter-se facilmente tornado um ltimo adeus, uma orao

  • fnebre, pois voltei e re-emergi. No pensem que pretendo envolv-los em semelhante empresa feliz ou mesmo somente em semelhante solido! De fato, quem percorre tais caminhos no encontra ningum: isso peculiar aos caminhos particulares. Ningum vem em seu auxlio; ele prprio deve livrar-se, completamente s, de todos os perigos, de todos os acasos, de todas as maldades, de todas as tempestades que sobrevm. De fato, tem seu caminho que prprio dele e, em acrscimo, a amargura, por vezes o desdm, que lhe causam esse prprio dele; deve-se enumerar, entre esses elementos de amargura e de desprezo, a incapacidade, por exemplo, em que se encontram seus amigos de adivinhar onde ele est ou para onde vai, a ponto de perguntarem s vezes: Como? Ser que isso avanar? Ser que ainda tem um caminho?

    Foi ento que empreendi uma coisa que no podia ser para todos: desci para as profundezas; passei a perfurar o cho, comecei a examinar e a minar uma velha confiana sobre a qual, h alguns milhares de anos, ns, os filsofos, temos o costume de construir, como sobre o terreno mais firme e reconstruir sempre, embora at hoje toda construo tenha rudo: comecei a minar nossa confiana na moral. Mas ser que no me compreendem?

    3Foi sobre o bem e o mal que at hoje refletimos mais

    pobremente: esse foi sempre um tema demasiado perigoso. A conscincia, a boa reputao, o inferno, e s vezes mesmo a polcia, no permitiam nem permitem imparcialidade; que, perante a moral, como perante qualquer autoridade, no permitido refletir e, menos ainda, falar: nesse ponto se deve obedecer! Desde que o mundo existe, nunca uma autoridade

  • quis ser tomada por objeto de crtica; e chegar ao ponto de criticar a moral, a moral enquanto problema, ter a moral por problemtica: como? Isso no foi isso no imoral? A moral, contudo, no dispe somente de toda espcie de meios de intimidao para manter distncia as investigaes e os instrumentos de tortura: sua segurana se baseia ainda mais numa certa arte de seduo que possui ela sabe entusiasmar. Ela consegue muitas vezes com um simples olhar paralisar a vontade crtica e at atra-la para seu lado, havendo casos em que a lana mesmo contra si prpria: de modo que, como o escorpio, crava o aguilho em seu prprio corpo. De fato, h muito tempo que a moral conhece toda espcie de loucuras na arte de persuadir: ainda hoje, no h orador que no se dirija a ela para lhe pedir ajuda (basta, por exemplo, ouvir nossos anarquistas: como falam moralmente para convencer! Chegam at a chamar-se a si prprios os bons e os justos). que a moral, desde sempre, desde que se fala e se persuade sobre a terra, se afirmou como a maior mestra da seduo e no que diz respeito a ns, filsofos, como a verdadeira Circe dos filsofos. Para que serve isso se, desde Plato, todos os arquitetos filosficos da Europa construram em vo? Se tudo ameaa ruir ou j se acha perdido nos escombros tudo o que eles consideravam leal e seriamente como aere perenius1? Ai! Como falsa a resposta que ainda se d hoje a semelhante pergunta: Porque todos eles negligenciaram admitir a hiptese, o exame dos fundamentos, uma crtica de toda a razo. A est a nefasta resposta de Kant2 que realmente no nos jogou a ns, filsofos, num terreno mais firme e menos enganador! ( e, dito de passagem, no seria um pouco estranho exigir que um instrumento se pusesse a criticar sua prpria perfeio e sua prpria competncia? Que o

  • prprio intelecto reconhecesse seu valor, sua fora, seus limites? No seria at um pouco absurdo? ). A verdadeira resposta teria sido, ao contrrio, que todos os filsofos construram seus edifcios sob a seduo da moral, inclusive Kant que a inteno deles s aparentemente se dirigia certeza, verdade, mas na realidade se dirigia a majestosos edifcios morais: para nos servirmos ainda uma vez da inocente linguagem de Kant que considerava como sua tarefa e seu trabalho, uma tarefa menos brilhante, mas no sem mrito, aplanar e consolidar o terreno onde seriam construdos esses majestosos edifcios morais (Crtica da razo pura, II). Infelizmente, no conseguiu, bem pelo contrrio preciso confess-lo hoje. Com intenes to exaltadas, Kant era o digno filho de seu sculo que pode ser chamado, mais que qualquer outro, o sculo do entusiasmo: como Kant ainda o , e isso bom, com relao ao aspecto mais precioso de seu sculo (por exemplo, por esse bom sensualismo que introduziu em sua teoria do conhecimento). Foi ainda mordido por essa tarntula moral, que era Rousseau3, e tambm sentia pesar em sua alma o fanatismo moral, do qual outro discpulo de Rousseau se sentia e se proclamava seu executor, refiro-me a Robespierre4

    que queria fundar na terra o imprio da sabedoria, da justia e da virtude (Discurso de 7 de julho de 1794). Por outro lado, com um tal fanatismo francs no corao, no era possvel agir de modo menos francs, mais profundo, mais slido, mais alemo se que em nossos dias a palavra alemo ainda permitida nesse sentido como o fez Kant: para dar lugar a seu imprio moral, viu-se obrigado a acrescentar um mundo indemonstrvel, um para alm lgico por isso que teve necessidade de sua crtica da razo pura! Em outras palavras: ele no teria tido necessidade dela, se no houvesse uma coisa

  • que lhe importasse mais que tudo tornar o mundo moral inatacvel, melhor ainda, inatingvel para a razo pois ele sentia com extrema violncia a vulnerabilidade de uma ordem moral perante a razo! Com relao natureza e histria, com relao inata imoralidade da natureza e da histria, Kant, como todo bom alemo, desde a origem, era um pessimista; acreditava na moral, no porque fosse demonstrada pela natureza e pela histria, mas apesar de ser incessantemente contradita pela natureza e pela histria. Para compreender este apesar de, talvez se poderia recordar qualquer coisa semelhante em Lutero, esse outro grande pessimista que, com toda a intrepidez luterana, quis um dia torn-lo sensvel a seus amigos: Se se pudesse compreender pela razo como o Deus que mostra tanta clera e maldade pode ser justo e bom, para que serviria ento a f? De fato, desde sempre, nada impressionou mais profundamente a alma alem, nada a tentou mais que esta deduo, a mais perigosa de todas, uma deduo que constitui para todo verdadeiro latino um pecado contra o esprito: credo quia absurdum est5. Com ele, a lgica alem entra pela primeira vez na histria do dogma cristo; mas ainda hoje, mil anos depois, ns, alemes de hoje, alemes tardios sob todos os pontos de vista pressentimos algo da verdade, uma possibilidade de verdade, por trs do clebre princpio fundamental da dialtica, pelo qual Hegel6 ajudou recentemente para a vitria do esprito alemo sobre a Europa a contradio o motor do mundo, todas as coisas se contradizem a si prprias : porque somos, at em lgica, pessimistas.

    4Mas os juzos lgicos no so os mais profundos e os mais

  • fundamentais, para os quais possa descer a coragem de nossa suspeita: a confiana na razo, que inseparvel da validade desses juzos, enquanto confiana um fenmeno moral... Ter talvez o pessimismo alemo que dar ainda um ltimo passo? Talvez dever ainda uma vez confrontar seu credo e seu absurdum? E se este livro, at na moral, at para alm da confiana na moral, um livro pessimista no ser precisamente nisso um livro alemo? De fato, ele representa efetivamente uma contradio e no teme essa contradio: denuncia-se aqui a confiana na moral mas por qu? Por moralidade! Ou como deveramos chamar o que se passa neste livro, o que se passa em ns? pois, para nosso gosto preferiramos expresses mais modestas. Mas no h nenhuma dvida, tambm a ns se dirige um tu deves, tambm ns obedecemos a uma lei severa acima de ns e essa a ltima moral que ainda se torna inteligvel para ns, a ltima moral que, ns tambm, poderamos ainda viver, se em alguma coisa somos ainda homens de conscincia, precisamente nisso: pois, no queremos voltar ao que consideramos como ultrapassado e caduco, a alguma coisa que no consideramos como digno de f, qualquer que seja o nome que lhe for conferido: Deus, virtude, justia, amor ao prximo; no queremos estabelecer uma ponte mentirosa para um ideal antigo; temos uma averso profunda contra tudo o que em ns quisesse reaproximar e se intrometer; somos os inimigos de toda espcie de f e de cristianismo atuais; inimigos das meias medidas de tudo o que romantismo e de tudo o que esprito patrioteiro; inimigos tambm do refinamento artstico, da falta de conscincia artstica que gostaria de nos persuadir a adorar aquilo em que j no cremos pois somos artistas; inimigos, numa palavra, de todo feminismo europeu (ou idealismo, se houver preferncia

  • para que eu o diga assim) que eternamente atrai para as alturas e que, por isso mesmo, eternamente rebaixa. Ora, como homens possuidores desta conscincia, cremos ainda remontar retido e piedade alems milenares, embora sejamos seus descendentes incertos e ltimos, ns, imoralistas e ateus de hoje, nos consideramos, em certo sentido, como os herdeiros dessa retido e dessa piedade, como os executores de sua vontade interior, de uma vontade pessimista, como j indiquei, que no teme em se negar a si mesma, porque nega com alegria! Em ns se cumpre no caso de desejarem uma frmula a auto-ultrapassagem da moral.

    5 No final das contas, contudo: por que devemos

    proclamar em alta voz e com tanto ardor o que somos, o que queremos e o que no queremos? Consideremos isso mais friamente e mais sabiamente, de mais longe e de mais alto, vamos diz-lo como isso pode ser dito entre ns, com voz to baixa que o mundo inteiro no o oua, que o mundo inteiro no nos oua! Antes de tudo, vamos diz-lo lentamente... Este prefcio chega tarde, mais no muito tarde; que importam, realmente, cinco ou seis anos? Um tal livro e um tal problema no tm pressa; e, alm disso, somos amigos do lento, eu bem como meu livro. No foi em vo que fui fillogo, e talvez ainda o seja. Fillogo quer dizer professor de leitura lenta: acaba-se por escrever tambm lentamente. Agora isso no s faz parte de meus hbitos, mas at meu gosto se adaptou a isso um gosto maldoso talvez? No escrever nada que no deixe desesperada a espcie dos homens apressados. De fato, a filologia essa arte venervel que exige de seus admiradores antes de tudo uma coisa: manter-se afastado, tomar tempo,

  • tornar-se silencioso, tornar-se lento uma arte de ourivesaria e um domnio de ourives aplicado palavra, uma arte que requer um trabalho sutil e delicado e que nada realiza se no for aplicado com lentido. Mas precisamente por isso que hoje mais necessrio que nunca, justamente por isso que encanta e seduz, muito mais numa poca de trabalho: quero dizer, de precipitao, de pressa indecente que se aquece e quer acabar tudo bem depressa, mesmo que se trate de um livro, antigo ou novo. Essa prpria arte no acaba facilmente com o que quer que seja, ensina a ler bem, isto , lentamente, com profundidade, com prudncia e precauo, com segundas intenes, portas abertas, com dedos e olhos delicados... Amigos pacientes, este livro no deseja para ele seno leitores e fillogos perfeitos: aprendam a me ler bem!

    Ruta, perto de Gnova, outono do ano de 1886.

    1 Expresso latina extrada de Odes (III, 30.1) do poeta Quintus Horatius Flaccus (65-8 a.C.) e que significa mais perene que o bronze (NT).

    2 Immanuel Kant (1724-1804), filsofo alemo; entre suas obras, A religio nos limites da simples razo e Crtica da razo prtica j foram publicadas nesta coleo da Editora Escala (NT).

    3 Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filsofo e escritor suo; entre suas obras, O contrato social e A origem da desigualdade entre os homens j foram publicadas nesta coleo da Editora Escala (NT).

    4 Maximilien de Robespierre (1758-1794), advogado e poltico francs, um dos principais lderes da Revoluo Francesa de 1789 (NT).

    5 Frase latina do escritor romano e cristo Quintus Septimius Florens Tertulianus (155-220) e que significa creio porque absurdo (NT).

    6 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filsofo alemo (NT).

  • LIVRO PRIMEIRO

  • 1. RAZO ULTERIORTodas as coisas que duram muito tempo de tal modo se

    impregnam aos poucos de razo que a origem que tiram da desrazo se torna inverossmil. A histria exata de uma origem no quase sempre sentida como paradoxal e sacrlega? O bom historiador no est, no fundo, incessantemente em contradio com seu meio?

    2. PRECONCEITO DOS SBIOSOs sbios tm razo quando pensam que os homens de

    todas as pocas imaginavam saber o que era bom e mau. Mas um preconceito dos sbios acreditar que agora estamos mais bem informados a respeito do que em qualquer outra poca.

    3. TUDO TEM SEU TEMPOQuando o homem atribua um sexo a todas as coisas, no

    via nisso um jogo, mas acreditava ampliar seu entendimento: s muito mais tarde descobriu, e nem mesmo inteiramente ainda hoje, a enormidade desse erro. De igual modo o homem atribuiu a tudo o que existe uma relao moral, jogando sobre os ombros do mundo o manto de uma significao tica. Um dia, tudo isso no ter nem mais nem menos valor do que possui hoje a crena no sexo masculino ou feminino do sol.

    4. CONTRA A PRETENSA FALTA DE HARMONIA DAS ESFERASDevemos novamente fazer desaparecer do mundo a

  • abundncia de falsa sublimidade, porque contrria justia que as coisas podem reivindicar! Por conseguinte, preciso no procurar ver o mundo com menos harmonia do que realmente tem.

    5. SEJAM RECONHECIDOS!O grande resultado que o homem obteve at hoje que

    no temos mais necessidade de viver no temor contnuo dos animais selvagens, dos brbaros, dos deuses e de nossos sonhos.

    6. O PRESTIDIGITADOR E SEU CONTRRIOO que espanta na cincia o contrrio do que espanta na

    arte de prestidigitador. De fato, este quer levar-nos a ver uma causalidade muito simples onde, na realidade, uma causalidade muito complicada est em jogo. Pelo contrrio, a cincia nos obriga a abandonar a crena na causalidade simples, nos casos em que tudo parece extremamente simples e em que no passamos de vtimas da aparncia. As coisas mais simples so muito complicadas no podemos espantar-nos suficientemente com elas!

    7. MODIFICAO DO SENTIMENTO DO ESPAOSo as coisas verdadeiras ou as coisas imaginrias que

    mais contriburam para a felicidade humana? O que certo que a distncia existente entre a maior felicidade e a mais profunda infelicidade somente assumiu toda a sua amplitude com o auxlio das coisas imaginadas. Por conseguinte, esta espcie de sentimento do espao, sob a influncia da cincia, se torna sempre menor: da mesma maneira que a cincia nos ensinou e nos ensina ainda a ver terra como pequena e o todo o

  • sistema solar como um ponto.

    8. TRANSFIGURAOSofrimento sem esperana, sonhos confusos, encontros

    supra-terrestres a esto os trs nicos graus que Rafael estabelece para dividir a humanidade. Ns no olhamos mais o mundo desta maneira e tambm Rafael no teria mais o direito de v-lo assim: com seus prprios olhos veria uma nova transfigurao.

    9. CONCEITO DA MORALIDADE DOS COSTUMESSe compararmos nossa maneira de viver com aquela da

    humanidade durante milhares de anos, constataremos que ns, homens de hoje, vivemos numa poca muito imoral: o poder dos costumes enfraqueceu de uma forma surpreendente e o sentido moral sutilizou e se elevou de tal modo que podemos muito bem dizer que se volatilizou. por isso que ns, homens tardios, to dificilmente penetramos nas idias fundamentais que presidiram a formao da moral e, se chegarmos a descobri-las, rejeitamos ainda em public-las, tanto nos parecem grosseiras! Tanto aparentam caluniar a moralidade! Veja-se, por exemplo, a proposio principal: a moralidade no outra coisa (portanto, antes de tudo, nada mais) seno a obedincia aos costumes, sejam eles quais forem; ora, os costumes so a maneira tradicional de agir e de avaliar. Em toda parte onde os costumes no mandam, no h moralidade; e quanto menos a vida determinada pelos costumes, menor o cerco da moralidade. O homem livre imoral, porque em todas as coisas quer depender de si mesmo e no de uma tradio estabelecida: em todos os estados primitivos da humanidade, mal sinnimo de individual, livre, arbitrrio, inabitual, imprevisto,

  • imprevisvel. Nesses mesmos estados primitivos, sempre segundo a mesma avaliao: se uma ao executada, no porque a tradio assim o exija, mas por outros motivos (por exemplo, por causa de sua utilidade individual) e mesmo pelas razes que outrora estabeleceram o costume, a ao classificada como imortal e considerada como tal at mesmo por aquele que a executa: pois este no se inspirou na obedincia para com a tradio. E o que a tradio? Uma autoridade superior qual se obedece, no porque ordene o til, mas porque ordena. Em que esse sentimento da tradio se distingue de um sentimento geral do medo? o temor de uma inteligncia superior que ordena, de um poder incompreensvel e indefinido, de alguma coisa que mais que pessoal h superstio nesse temor. Na origem, toda a educao e os cuidados do corpo, o casamento, a medicina, a agricultura, a guerra, a palavra e o silncio, as relaes entre os homens e as relaes com os deuses, pertenciam ao domnio da moralidade: esta exigia que prescries fossem observadas, sem pensar em si mesmo como indivduo. Nos tempos primitivos, tudo dependia, portanto, do costume e aquele que quisesse se elevar acima dos costumes devia tornar-se legislador, curandeiro e algo como um semi-deus: isto , deveria criar costumes coisa espantosa e muito perigosa! Qual o homem mais moral? Em primeiro lugar, aquele que cumpre a lei com mais freqncia: por conseguinte, aquele que, semelhante ao brmane, em toda a parte e em cada instante conserva a lei presente no esprito de tal maneira que inventa constantemente ocasies de obedecer a essa lei. Em seguida, aquele que cumpre a lei tambm nos casos mais difceis. O mais moral aquele que mais sacrifica aos costumes; mas quais so os maiores sacrifcios? Respondendo a esta pergunta, chega-se a

  • desenvolver vrias morais distintas; contudo, a diferena essencial continua sendo aquela que separa a moralidade do cumprimento mais freqente da moralidade do cumprimento mais difcil. No nos enganemos acerca dos motivos dessa moral que exige como sinal de moralidade o cumprimento de um costume nos casos mais difceis! A vitria sobre si prprio no exigida por causa das conseqncias teis que tem para o indivduo, mas para que os costumes, a tradio apaream como dominantes, apesar de todas as veleidades contrrias e todas as vantagens individuais: o indivduo deve se sacrificar assim o exige a moralidade dos costumes. Em compensao, esses moralistas que, semelhantes aos sucessores de Scrates, recomendam ao indivduo o domnio de si e a sobriedade, como suas vantagens mais especficas, como a chave mais pessoal de sua felicidade, esses moralistas constituem a exceo e se vemos as coisas de outro modo porque simplesmente fomos criados sob a influencia deles: todos seguem uma via nova que lhes vale a mais severa reprovao dos representantes da moralidade dos costumes eles se excluem da comunidade, uma vez que so imorais, e so, na acepo mais profunda do termo, maus. Da mesma forma que um romano virtuoso de velha escola considerava como mau todo cristo que aspirava, acima de tudo, sua prpria salvao. Em toda a parte onde existe comunidade e, por conseguinte, moralidade dos costumes, reina a idia de que a punio pela violao dos costumes recai em primeiro lugar sobre a prpria comunidade: esta pena uma punio sobrenatural, cuja manifestao e limites so to difceis de captar para o esprito, que os analisa com um medo supersticioso. A comunidade pode obrigar o indivduo a reparar, em relao a outro indivduo ou prpria comunidade, o dano imediato que a conseqncia de seu ato,

  • pode igualmente exercer uma espcie de vingana sobre o indivduo porque, por causa dele como uma pretensa conseqncia de seu ato as nuvens divinas e as exploses da clera divina se acumularam sobre a comunidade mas ela considera, no entanto, acima de tudo, a culpabilidade do indivduo como culpabilidade prpria dela e suporta sua punio como sua prpria punio: Os costumes esto relaxados, assim geme a alma de cada um, uma vez que tais atos se tornaram possveis. Toda ao individual, toda maneira de pensar individual fazem tremer; totalmente impossvel determinar o que os espritos raros, escolhidos, originais tiveram de sofrer no curso dos tempos por serem assim sempre considerados como maus e perigosos, mais ainda, por se terem sempre eles prprios considerado assim. Sob o domnio da moralidade dos costumes, toda forma de originalidade tinha m conscincia; o horizonte dos melhores tornou-se ainda mais sombrio do que deveria ter sido.

    10. MOVIMENTO RECPROCO ENTRE O SENTIDO DA MORALIDADE E O SENTIDO DA CAUSALIDADE

    medida que o sentido da causalidade aumenta, diminui a extenso do domnio da moralidade: pois, sempre que foram compreendidos os efeitos necessrios, que se chega a imagin-los isolados de todos os acasos, de todas as conseqncias ocasionais (post hoc), de imediato foi destrudo um nmero enorme de causalidades imaginrias, dessas causalidades que, at ento, eram consideradas como os fundamentos da moral o mundo real muito menor que o mundo da imaginao a cada vez se conseguiu fazer desaparecer do mundo uma parte do temor e da coao, a cada vez tambm uma parte da venerao e da autoridade de que gozavam os costumes: a

  • moralidade sofreu uma perda em seu conjunto. Aquele que, pelo contrrio, quiser aumentar a moralidade deve saber evitar que os resultados possam tornar-se controlveis.

    11. MORAL POPULAR E MEDICINA POPULARDesenvolve-se, na moral que reina numa comunidade, um

    trabalho constante, ao qual cada um participa: a maioria das pessoas quer acumular exemplos sobre exemplos que demonstrem a pretensa relao entre a causa e o efeito, o crime e a punio; contribuem a confirmar assim a legalidade dessa relao e aumentam seu crdito: alguns fazem novas observaes sobre os atos e as conseqncias desses atos, tiram deles concluses e leis: uma minoria tropea aqui e acol e enfraquece a crena sobre este ou aquele ponto. Mas todos se renem na forma grosseira e anti-cientfica de sua ao; quer se trate de exemplos, de observaes ou de reticncias, quer se trate da demonstrao, da afirmao, da enunciao ou da refutao de uma lei, so sempre materiais sem valor, sob uma expresso sem valor, como os materiais e a expresso de toda medicina popular. Medicina popular e moral popular vo sempre juntas e no deveriam mais, como sempre se faz, ser apreciadas de forma to diferente: ambas so cincias aparentes da mais perniciosa espcie.

    12. A CONSEQENCIA COMO COADJUVANTEOutrora se considerava o sucesso de uma ao no como

    uma conseqncia dessa ao, mas como um livre coadjuvante vindo de Deus. Pode-se imaginar confuso mais grosseira? Era necessrio esforar-se diversamente em vista da ao e em vista do sucesso, com prticas e meios totalmente diferentes!

  • 13. PARA A EDUCAO NOVA DO GNERO HUMANOColaborem numa obra, vocs que so prestativos e

    liberais: ajudem a eliminar do mundo a idia de punio que em toda parte se tornou infestante! No h erva daninha mais perigosa! Essa idia foi introduzida no somente nas conseqncias de nossa maneira de agir e que poderia haver de mais nefasto e mais irrazovel que interpretar a causa e o efeito como causa e como punio! Mas muito pior que isso foi feito ainda, os acontecimentos puramente fortuitos foram privados de sua inocncia, servindo-se dessa maldita arte de interpretao por meio da idia de punio. A loucura foi impelida at mesmo o ponto de levar a ver na prpria existncia uma punio. Dir-se-ia que a imaginao extravagante de carcereiros e de carrascos que dirigiu at o presente a educao da humanidade!

    14. SIGNIFICAO DA LOUCURA NA HISTRIA DA HUMANIDADESe, apesar desse formidvel jugo da moralidade dos

    costumes, sob o qual viveram todas as sociedades humanas, se durante milnios antes de nossa era e mesmo no curso desta at nossos dias (ns mesmos vivemos num pequeno mundo de exceo e, de algum modo, na zona m) idias novas e divergentes, avaliaes e juzos de valor contrrios nunca deixaram de surgir, isso s ocorreu porque estavam sob a gide de um salvo-conduto terrvel: quase em toda parte, a loucura que aplana o caminho da idia nova, que levanta a proibio de um costume, de uma superstio venerada. Compreendem por que foi necessria a assistncia da loucura? De qualquer coisa que fosse to terrificante e to incalculvel, na voz e nos gestos, como os caprichos demonacos da tempestade e do mar e, por conseguinte, to dignos como eles do temor e do respeito? De

  • qualquer coisa que levasse, como as convulses e a baba do epilptico, o sinal visvel de uma manifestao absolutamente involuntria? De qualquer coisa que parecesse imprimir ao alienado o sinal de alguma divindade, da qual ele parecesse ser como a mscara e o porta-voz? De qualquer coisa que inspirasse, mesmo ao promotor de uma idia nova, a venerao e o temor dele prprio e no j remorsos, e que o impelisse a ser o profeta e o mrtir dessa idia? Enquanto em nossos dias nos do sem cessar a entender que o gnio possui, em lugar de um gro de bom senso, um gro de loucura, os homens de outrora estavam muito mais perto da idia de que l onde houver loucura, h tambm um pouco de gnio e de sabedoria qualquer coisa de divino, como se murmurava ao ouvido. Ou melhor, afirmava-se mais claramente: Por meio da loucura, os maiores benefcios foram derramados sobre a Grcia, dizia Plato1 com toda a humanidade antiga. Avancemos ainda um passo: a todos esses homens superiores, impelidos irresistivelmente a romper o jugo de uma moralidade qualquer e a proclamar leis novas, no tiveram outra soluo, se no eram realmente loucos, que se tornarem loucos ou simular a loucura. Isso vale para todos os inovadores em todos os domnios e no somente naqueles das instituies sacerdotais e polticas: at mesmo o inventor da mtrica potica teve de se impor por meio da loucura2. (At pocas bem mais tranqilas, a loucura permaneceu como uma espcie de conveno entre os poetas: Slon recorreu a ela quando inflamou os atenienses para reconquistar Salamina3). Como algum se torna louco quando no o e quando no tem a coragem de fingir que o ? Quase todos os homens eminentes das antigas civilizaes se entregaram a esse espantoso raciocnio; uma doutrina secreta, feita de artifcios e de indicaes dietticas, se conservou a esse

  • respeito, acompanhada do sentimento da inocncia e mesmo da santidade de tal inteno e de tal sonho. As frmulas para se tornar homem-medicina entre os ndios, santo entre os cristos da Idade Mdia, angucoque entre os groenlandeses, paj entre os brasileiros so, em suas linhas gerais, as mesmas; o jejum alm dos limites, a prolongada abstinncia sexual, o retiro no deserto ou no cimo de uma montanha ou ainda no alto de uma coluna ou tambm a permanncia num salgueiro velho margem de um lago e a ordem de no pensar em outra coisa seno naquilo que pode desencadear o xtase e a desordem do esprito. Quem ousaria, portanto, lanar um olhar no inferno das angstias morais, as mais amargas e as mais inteis, onde provavelmente definharam os homens mais fecundos de todos os tempos! Quem ousaria escutar os suspiros dos solitrios e dos transviados: Ah! Dem-me ao menos a loucura, poderes divinos! A loucura para que termine finalmente por acreditar em mim mesmo! Dem-me delrios e convulses, horas de claridade e de trevas repentinas, aterrorizem-me com arrepios e ardores que jamais mortal algum experimentou, cerquem-me de rudos e de fantasmas! Deixem-me uivar, gemer e rastejar como um animal: contanto que adquira a f em mim mesmo! A dvida me devora, matei a lei e tenho por lei o horror dos vivos por um cadver; se no sou mais do que a lei, sou o ltimo dos rprobos. De onde vem o esprito novo que est em mim, se no vem de vocs? Provem-me, portanto, que eu lhes perteno! S a loucura a mim o demonstra. E muitas vezes esse fervor atingia seu objetivo: na poca em que o cristianismo dava amplamente prova de sua fecundidade, multiplicando os santos e os anacoretas, imaginando assim que se afirmava a si mesmo, havia em Jerusalm grandes estabelecimentos de alienados para os santos naufragados, para aqueles que haviam

  • sacrificado seu ltimo gro de razo.

    15. OS MAIS ANTIGOS MEIOS DE CONSOLAOPrimeira etapa: o homem v em todo mal-estar, em todo

    revs da sorte, alguma coisa pela qual deve fazer sofrer qualquer outro, no importa quem assim que se d conta do poder que ainda lhe resta e isso o consola. Segunda etapa: o homem v em todo mal-estar e em todo revs da sorte uma punio, isto , a expiao da falta e o meio de escapar ao feitio malfico de uma parcialidade real ou imaginria do destino. Se percebe essa vantagem que consigo traz a infelicidade, deixa de acreditar na necessidade de fazer sofrer outro qualquer por essa infelicidade vai renunciar a esse tipo de satisfao porque agora tem outro.

    16. PRIMEIRO PRINCPIO DA CIVILIZAONos povos selvagens h uma categoria de costumes que

    parece visar a tornar-se um costume geral: so regulamentaes penosas e, no fundo, suprfluas (por exemplo, o costume difundido entre os Kamtchadales de jamais raspar com uma faca a neve grudada nos calados, de jamais usar uma faca para ajeitar as brasas do fogo, de nunca pr um ferro no fogo e a morte atinge aquele que infringir esses costumes!) mas essas regulamentaes mantm permanentemente na conscincia a idia do costume, a obrigao ininterrupta de obedecer a ele, com o objetivo de reforar o grande princpio pelo qual a civilizao comea: todo costume vale mais do que a ausncia de costumes.

    17. A NATUREZA BOA E MOs homens comearam por substituir a natureza por sua

  • prpria pessoa: eles se viam em toda a parte a si mesmos, a seus semelhantes, isto , viam seu carter mau e caprichoso, escondido de alguma forma por trs das nuvens, das tempestades, dos animais ferozes, das rvores e das plantas: foi ento que inventaram a natureza m. Depois disso veio outra poca em que quiseram se diferenciar da natureza, a poca de Rousseau4: estavam to cansados uns dos outros que quiseram absolutamente possuir um recanto do mundo em que o homem no pudesse se incomodar com sua misria: inventou-se a natureza boa.

    18. A MORAL DO SOFRIMENTO INVOLUNTRIOQual a alegria mais elevada para os homens em guerra

    nessa pequena comunidade constantemente em perigo, onde reina a moralidade mais rigorosa? Quero dizer, para as almas vigorosas, vingativas, odiosas, prfidas, desconfiadas, preparadas para o pior, endurecidas pelas privaes e pela moral? A alegria da crueldade. De igual modo, em semelhantes almas, em tais circunstncias, uma virtude ser inventivo e insacivel na crueldade. A comunidade se diverte com as aes do homem cruel, esquece nele, de vez, a austeridade do temor e das contnuas precaues. A crueldade uma das mais antigas alegrias da humanidade. Julga-se, por conseguinte, que tambm os prprios deuses se reconfortam e se divertem quando lhes oferecido o espetculo da crueldade de tal modo que a idia do sentido e do valor superior que h no sofrimento voluntrio e no martrio escolhido livremente introduzida no mundo. Pouco a pouco o costume estabelece na comunidade uma prtica conforme a essa idia: doravante se desconfia de todo bem-estar exuberante e se recobra confiana cada vez que se est num estado de grande dor; ento se diz

  • que os deuses poderiam ser desfavorveis por causa da felicidade e favorveis por causa da infelicidade desfavorveis e de modo algum, compassivos! De fato, a compaixo considerada desprezvel e indigna de uma alma forte e temvel; mas os deuses so favorveis porque o espetculo das misrias os diverte e os deixa de bom humor: pois, a crueldade produz sempre o mais voluptuoso sentimento de poder. Foi assim que se introduziu na noo do homem moral, tal como existe na comunidade, a virtude do sofrimento freqente, da privao, da vida difcil, da mortificao cruel no, para repeti-lo ainda, como meio de disciplina, de domnio de si, de aspirao felicidade pessoal mas como uma virtude que dispe favoravelmente para a comunidade os deuses maus, porque ela eleva incessantemente a eles a fumaa de um sacrifcio expiatrio. Todos os chefes espirituais dos povos que se mostraram capazes de pr em movimento o lodo preguioso e terrvel dos costumes tiveram necessidade, alm da loucura, do martrio voluntrio para ter crdito e, como sempre, antes e acima de tudo, crdito neles mesmos! Quanto mais seu esprito seguia novos caminhos, sendo conseqentemente atormentado por remorsos e temor, mais eles lutavam cruelmente contra sua prpria carne, contra seus prprios desejos e sua prpria sade como para oferecer divindade uma compensao em alegrias, para o caso de ela se irritar por ver os costumes negligenciados e combatidos em favor de objetivos novos. No se deve imaginar, contudo, com demasiada complacncia, que hoje estamos inteiramente desembaraados de semelhante lgica do sentimento! Que as almas mais hericas se interroguem a respeito em seu foro ntimo! O menor passo frente no domnio do livre pensamento e da vida individual foi conquistado, em todas as pocas, com

  • torturas intelectuais e fsicas: e no apenas a marcha para a frente, no! Toda espcie de marcha, de movimento, de mudana necessitou de inumerveis mrtires ao longo desses milnios que procuravam seus caminhos e que edificavam bases, nos quais, claro, no se pensa quando se fala desse espao ridiculamente diminuto na existncia da humanidade e que chamado histria universal; e mesmo no domnio dessa histria universal que no , no fundo, seno o barulho que se faz em torno das ltimas novidades, no existe tema mais essencial e mais importante que a antiga tragdia dos mrtires que queriam pr o lodo em movimento. Nada foi pago mais caro que essa pequena parcela de razo humana e de sentimento de liberdade que constitui hoje nosso orgulho. Mas por causa deste orgulho que nos praticamente impossvel hoje ter o senso desse enorme lapso de tempo em que remava a moralidade dos costumes e que precede a histria universal, poca real e decisiva, de primordial importncia histrica, que fixou o carter da humanidade, poca em que o sofrimento era uma virtude, a crueldade uma virtude, a vingana uma virtude, a negao da razo uma virtude, em que, pelo contrrio, o bem-estar era um perigo, a sede de saber um perigo, a paz um perigo, a compaixo um perigo, a incitao piedade era uma vergonha, o trabalho uma vergonha, a loucura algo de divino, a mudana algo de imoral, prenhe de perigo! Pensais que tudo isso se modificou e que, por conseguinte, a humanidade mudou de carter? Oh! conhecedores do corao humano, aprendam a conhecer-se melhor!

    19. MORALIDADE E EMBRUTECIMENTOOs costumes representam as experincias dos homens

    anteriores acerca do que consideravam til ou prejudicial mas

  • o sentimento dos costumes (moralidade) no se refere a suas experincias, mas antiguidade, santidade, indiscutibilidade dos costumes. A est porque esse sentimento se ope a que se faam novas experincias e se corrijam os costumes: o que quer dizer que a moralidade se ope formao de costumes novos e melhores: ela embrutece.

    20. LIVRES ATORES E LIVRES PENSADORESOs livres atores esto em desvantagem em relao aos

    livres pensadores, pois os homens sofrem de maneira mais visvel conseqncias dos atos do que conseqncias dos pensamentos. Mas se considerarmos que uns e outros procuram sua satisfao e que os livres pensadores j a encontram no fato de refletir nas coisas proibidas e exprimi-las, verificamos que, quanto aos motivos, eles so perfeitamente idnticos; e quanto aos resultados, os livres atores vencero os livres pensadores, partindo do principio que no julgamos de acordo com a visibilidade mais prxima e mais grosseira isto , como todo o mundo. H sempre lugar para rever as calnias que oprimiram aqueles que por seus atos quebraram a autoridade de um costume geralmente chamamos estes de criminosos. Todos aqueles que subverteram a lei moral estabelecida sempre foram considerados em primeiro lugar como homens maus: mas quando j no era possvel restabelecer essa lei e quando a mudana se tornou um hbito, o atributo se transformava pouco a pouco; a histria trata quase exclusivamente desses homens maus que, mais tarde, foram declarados bons.

    21. CUMPRIMENTO DA LEIQuando a observncia de um preceito moral atinge um

    resultado diferente daquele que se havia prometido e esperado

  • e no traz ao homem moral a felicidade prometida, mas, contra toda expectativa, a infelicidade e a misria, resta sempre aos conscienciosos e aos inquietos a desculpa de dizer: Cometemos um erro na execuo. No pior dos casos, uma humanidade oprimida que sofre profundamente acabar mesmo por decretar: impossvel executar o preceito corretamente, somos fracos e pecadores at o fundo da alma e profundamente incapazes de moralidade; por conseguinte, no podemos ter nenhuma pretenso felicidade e ao sucesso. As promessas e os preceitos morais so para seres melhores do que ns.

    22. AS OBRAS E A FOs doutores protestantes continuam a propagar este erro

    fundamental, ou seja, que s a f conta e que as obras so uma conseqncia natural da f. Esta doutrina no absolutamente verdadeira,, mas tem a aparncia to sedutora que j fascinou muitas outras inteligncias, alm daquela de Lutero (penso nas de Scrates e Plato): ainda que a evidncia e a experincia de todos os dias prove o contrrio. O conhecimento e a f, apesar de todas as promessas que encerram, no podem dar nem a fora nem a habilidade necessrias ao. No podem substituir o hbito desse mecanismo sutil e complexo que deveria ter sido posto em movimento para que qualquer coisa possa passar da representao ao. Primeiro e antes de tudo, as obras! Quer dizer, o exerccio, o exerccio, e sempre o exerccio! A f adequada surgir por si prpria estejam certos disso.

    23. EM QUE SOMOS MAIS SUTISPelo fato de, durante milnios, se ter considerado as coisas

    (a natureza, os instrumentos, a propriedade de toda espcie)

  • como vivas e animadas, com a fora de prejudicar e de subtrair s intenes humanas, o sentimento de impotncia, entre os homens, foi muito mais forte e mais freqente do que poderia ter sido: pois, era necessrio manter sob controle as coisas, bem como os homens e os animais, por meio da fora, da coao, da lisonja, de pactos, de sacrifcios esta a origem da maior parte das prticas supersticiosas, quer dizer, de uma parte, talvez a preponderante, contudo a mais inutilmente desperdiada, da atividade humana. Mas, uma vez que o sentimento de impotncia e de temor estava num estado de irritao to violento, to contnuo e quase permanente, o sentimento de poder se desenvolveu de forma to sutil, que o homem pode agora, nessa matria, pes-lo na mais sensvel das balanas. Esse sentimento se tomou sua inclinao mais violenta; os meios descobertos para o atingir formam quase a histria da cultura.

    24. A DEMONSTRAO DO PRECEITODe forma geral, o valor ou o no-valor de um preceito

    por exemplo, aquele de assar o po demonstrado pelo fato de que o resultado prometido aparece ou no, desde que, no entanto, seja executado minuciosamente. Tudo se passa diversamente com os preceitos morais: pois, nesse caso particular, no possvel dar-se conta dos resultados, interpret-los e defini-los. Estes preceitos repousam em hipteses de valor cientfico muito fraco, cuja demonstrao ou refutao pelos resultados igualmente impossvel; mas outrora, quando toda a cincia era rude e primitiva e quando se tinha tnues pretenses de considerar uma coisa como demonstrada outrora o valor ou o no-valor de um preceito de moralidade eram determinados da mesma maneira que

  • qualquer outro preceito: invocando os resultados. Entre os indgenas da Amrica russa h um preceito que diz: No deves lanar ao fogo os ossos dos animais, nem d-los aos ces e este preceito demonstrado, acrescentando-se: Se o fizeres, no ters sorte na caa. Ora, num sentido ou em outro, acontece quase sempre que no se tem sorte na caa; no fcil, portanto, refutar dessa maneira o preceito, sobretudo quando a comunidade inteira, e no somente o indivduo, que suporta o peso da falta; haver, por conseguinte, sempre uma circunstncia que parecer demonstrar o valor do preceito.

    25. COSTUMES E BELEZAEm defesa dos costumes preciso confessar que, em cada

    um daqueles que se submetem totalmente a eles, do fundo do corao e desde o incio, os rgos de ataque e de defesa fsicos e espirituais se atrofiam: o que permite a esse indivduo tornar-se sempre mais belo! De fato, o exerccio destes rgos, e o sentimento correspondente, que tornam feio e que conservam a feira. assim que o velho babuno mais feio que o jovem, e a jovem fmea de babuno tanto se parece com o homem: e , portanto, a mais bela. Que se tire disso uma concluso sobre a origem da beleza da mulher!

    26. OS ANIMAIS E A MORALAs prticas que so exigidas na sociedade mais refinada,

    evitar com precauo tudo o que ridculo, bizarro, pretensioso, refrear as virtudes bem como os desejos violentos, mostrar-se semelhante aos outros, submeter-se a regras, diminuir-se tudo isso, enquanto moral social, se encontra at na escala mais baixa da espcie animal e s neste nvel inferior que vemos as idias ocultas de todas essas amveis disposies: pretende-

  • se escapar aos perseguidores a ser favorecido na busca da presa. E por isso que os animais aprendem a dominar-se e a disfarar-se de tal maneira que alguns deles, por exemplo, se adaptam sua cor cor do ambiente (por meio do que chamamos a funo cromtica), chegam a simular a morte, a assumir as formas e as cores de outros animais ou o aspecto da areia, das folhas, dos lquenes, das esponjas (o que os naturalistas ingleses denominam mimicry mimetismo). E assim que o indivduo se dissimula sob a universalidade do termo genrico homem ou no meio da sociedade ou ainda, se adapta e se assimila aos prncipes, s castas, aos partidos, s opinies de seu tempo ou de seu meio: e a todas nossas formas sutis de nos fazermos passar por felizes, reconhecidos, poderosos, amveis, encontraremos facilmente o equivalente animal. O sentido da verdade tambm que, no fundo, no outra coisa seno o sentido da segurana, o homem o tem em comum com o animal: no queremos nos deixar enganar, nem perder-nos a ns prprios, escutamos com desconfiana os encorajamentos de nossas prprias paixes, dominamo-nos e ficamos desconfiados conosco mesmos; tudo isso tambm o animal faz; nele tambm o domnio de si provm do sentido da realidade (da inteligncia). De igual modo, o animal observa os efeitos que produz na imaginao dos outros animais, aprende a olhar-se atravs disso, a considerar-se objetivamente, a possuir, em certa medida, o conhecimento de si. O animal julga movimentos de seus adversrios e de seus amigos, aprende de cor suas particularidades: contra os representantes de certas espcies, renuncia definitivamente ao combate, tal como adivinha simples aproximao as intenes pacficas e conciliadoras de muitas espcies de animais. As origens da justia e da inteligncia, da ponderao, da valentia numa palavra, de

  • tudo o que designamos de virtudes socrticas so animais: essas virtudes so uma conseqncia dos instintos que ensinam a procurar o alimento e a escapar do inimigo. Se considerarmos, pois, que mesmo o homem superior no fez outra coisa que elevar-se e se aperfeioar na qualidade de seu alimento e na idia do que considera como oposto sua natureza, nada poder impedir de qualificar de animal o fenmeno moral por inteiro.

    27. VALOR DA CRENA NAS PAIXES SOBRE-HUMANASA instituio do casamento mantm obstinadamente a

    crena que o amor, embora seja uma paixo, , contudo, suscetvel de durar enquanto paixo, a crena que o amor duradouro, o amor por toda a vida pode ser considerado como a regra. Por essa tenacidade de uma nobre crena, mantida apesar das refutaes to freqentes que so quase a regra e que fazem dela, por conseguinte, uma pia fraus5, a instituio do casamento conferiu ao amor uma nobreza superior. Todas as instituies que concederam a uma paixo a crena em sua durao e a tornam responsvel por essa durao, contra a prpria essncia da paixo, reconheceram-lhe uma nova ordem: doravante aquele que prisioneiro de uma paixo no v mais nisso, como outrora, uma degradao ou uma ameaa, mas, pelo contrrio, se sente elevado por ela perante si prprio e diante de seus semelhantes. Pensemos nas instituies e nos costumes que fizeram do abandono fogoso de um instante uma fidelidade eterna, do prazer da clera a eterna vingana, do desespero o luto eterno, da palavra sbita e nica o compromisso eterno. Por semelhantes transformaes, muita hipocrisia e mentira cada vez mais foram introduzidas no mundo: cada vez tambm, e a esse preo somente, um conceito

  • sobre-humano que eleva o homem.

    28. A DISPOSIO DE ESPRITO COMO ARGUMENTOQual a causa de uma alegre determinao que se

    apodera de ns diante da ao? Esta uma questo que tem preocupado muito os homens. A resposta mais antiga, que permanece sempre corrente, que se deve fazer remontar a causa a Deus que nos permite compreender com isso que aprova nossa deciso. Quando outrora se interrogavam os orculos, desejava-se trazer de l para si esta alegre resoluo; e todos respondiam s dvidas que lhes sobrevinham, quando se apresentam sua alma diversas aes possveis, dizendo: Eu quero realizar a ao que for acompanhada desse sentimento. Por conseguinte, os homens no se decidiam pela soluo mais razovel, mas pelo projeto cuja imagem tornava a alma mais corajosa e cheia de esperana. A boa disposio pesava na balana como um argumento mais decisivo que a razo: porque a disposio de esprito era interpretada de forma supersticiosa, como o efeito de um deus que promete o xito e que quer assim levar a falar, sua razo, a linguagem da sabedoria superior. Ora, considerem as conseqncias de semelhante preconceito quando homens astutos e sequiosos de poder se serviram dele quando se servem ainda! Dispor favoravelmente os espritos! com isso se pode substituir todos os argumentos e vencer todas as objees!

    29. OS COMEDIANTES DA VIRTUDE E DO PECADOEntre os homens da antiguidade que se tornaram clebres

    por sua virtude houve, parece, um nmero considervel deles que representava a comdia para si mesmos: sobretudo os gregos, esses comediantes natos, tiveram de simular assim de

  • um modo inteiramente involuntrio e teriam achado que era bom simular. Por outro lado, cada um se via em competio por sua virtude com a virtude de outro ou de todos os outros: como seria possvel que no utilizassem todos os artifcios para dar a virtude como espetculo a si mesmos em primeiro lugar, fosse isso simplesmente para se acostumar! Para que servia uma virtude que no pudesse ser mostrada ou que no se prestasse a ser mostrada! O cristianismo ps um freio a essa comdia da virtude: inventou o costume de exibir os prprios pecados de uma forma repugnante, de faz-los desfilar, introduziu no mundo a culpabilidade afetada (considerada at hoje de bom tom entre os bons cristos).

    30. A CRUELDADE REFINADA COMO VIRTUDEA est uma moralidade que repousa inteiramente na

    necessidade de se distinguir no tenham dela uma opinio muito boa! Que inclinao essa, pois, no fundo e qual a segunda inteno que a dirige? Pretendemos que nosso simples olhar faa mal a nosso vizinho e a seu esprito de inveja, desperte nele um sentimento de impotncia e de desgraa; queremos faz-lo saborear a amargura do seu destino, derramando em sua lngua uma gota de nosso mel e, enquanto o fazemos degustar esse pretenso benefcio, o fitamos diretamente nos olhos, fixamente e com um ar de triunfo. A est ele que se tornou humilde e perfeito agora em sua humildade procurem aqueles que, por sua humildade, durante muito tempo ele lhes preparou uma tortura; e havero de encontr-los facilmente! Ele se mostra Compassivo para com os animais e ns o admiramos mas ele pretende assim dar livre curso sua crueldade em relao a certas pessoas. A est um grande artista: a volpia que degusta antecipadamente,

  • imaginando a inveja dos rivais subjugados, impediu sua fora de adormecer at que se tenha tornado um grande quantos momentos amargos no fez pagar a outros espritos para atingir essa grandeza! A castidade da religiosa: com que olhar vingador contempla as mulheres que vivem diferentemente! Que alegria vingadora h em seus olhos! O tema curto, mas as variaes poderiam ser inumerveis, sem risco de provocar o enfado pois sempre uma novidade, por mais paradoxal e dolorosa que seja, que a moralidade da distino no seja, em ltima instncia, seno o prazer de uma crueldade refinada. Em ltima instncia, quero dizer, sempre na primeira gerao. De fato, quando o hbito de uma ao que distingue se torna hereditrio, a segunda inteno no se transmite (herdamos apenas sentimentos e no pensamentos): e, supondo que no seja introduzida a segunda inteno novamente pela educao, na segunda gerao o prazer da crueldade, na ao que distingue, j no existe mais: mas somente o prazer que o hbito dessa ao proporciona. Mas precisamente esse prazer o primeiro grau do bem.

    31. A ALTIVEZ DO ESPRITOA altivez do homem que se insurge contra a tese de sua

    ascendncia animal e que estabelece entre a natureza e o homem um grande abismo essa altivez provm de um preconceito sobre a natureza do esprito e este preconceito relativamente recente. Durante o longo perodo pr-histrico da humanidade supunha-se que o esprito estava em toda parte e no se pensava de forma alguma em vener-lo como uma prerrogativa do homem. Porque se considerava, pelo contrrio, o espiritual (assim como todos os instintos, as maldades, as tendncias) como pertencente a todos, como, portanto, de

  • essncia comum, e no se tinha vergonha de descender de animais ou de rvores (as raas nobres se sentiam honradas com essas lendas); via-se no esprito aquilo que nos une natureza e no o que dela nos separa. Assim, todos eram criados na modstia e era tambm a partir de um preconceito.

    32. O ENTRAVESofrer moralmente e ficar sabendo depois que esta espcie

    de sofrimento repousa num erro, isso que revolta. De fato, h uma consolao nica em afirmar, por meio do sofrimento, um mundo de verdade mais profundo que qualquer outro mundo, e infinitamente prefervel sofrer e sentir-se superior realidade (pela conscincia de se aproximar assim desse mundo de verdade mais profundo) do que viver sem sofrimento e ser privado desse sentimento de superioridade. Por conseguinte, a altivez e a maneira habitual de satisfaz-lo so que se opem nova concepo da moral. Que fora ser necessrio utilizar, portanto, para eliminar esse entrave? Mais altivez? Uma nova altivez?

    33. O DESPREZO DAS CAUSAS, DAS CONSEQENCIAS E DA REALIDADEEsses acasos nefastos que se abatem sobre uma

    comunidade, tempestades sbitas, secas ou epidemias, despertam em todos os seus membros a suspeita de que faltas contra os costumes foram cometidas ou fazem crer que preciso inventar novos costumes para apaziguar um novo poder e um novo capricho dos demnios. Este gnero de suspeita e de raciocnio evita justamente, portanto, aprofundar a verdadeira causa natural e considera a causa demonaca como razo primeira. H nisso uma das fontes da m formao hereditria

  • do esprito humano; e a outra fonte se encontra bem ao lado, pois, de igual modo e tambm sistematicamente, se presta uma ateno muito menor s verdadeiras conseqncias naturais de uma ao do que a suas conseqncias sobrenaturais (o que chamado de punies e graas da divindade). Prescreve-se, por exemplo, tomar certos banhos em determinados momentos: no se toma banho por uma questo de higiene, mas porque isso foi prescrito. No se aprende a fugir das verdadeiras conseqncias da sujeira, mas o pretenso descontentamento que a divindade teria ao ver algum negligenciar o banho. Sob a presso de um temor supersticioso, suspeita-se que esse lavar do corpo sujo tem mais importncia do que o ar, depois so introduzidos significados de segunda e de terceira mo, estraga-se a alegria e o sentido da realidade e se termina por no conferir a esse lavar seno enquanto pode ser um smbolo. Assim, sob o imprio da moralidade dos costumes, o homem despreza primeiramente as causas, depois as conseqncias, em terceiro lugar a realidade e liga todos os seus sentimentos elevados (de venerao, de nobreza, de altivez, de reconhecimento, de amor) a um mundo imaginrio: que chama de mundo superior. E hoje ainda vemos as conseqncias disso: desde que os sentimentos de um homem se elevam de uma forma ou de outra, esse mundo imaginrio est em jogo. triste dizer, mas provisoriamente todos os sentimentos elevados devem ser suspeitos ao homem de cincia, to ilusrios e extravagantes se mostram. No que esses sentimentos devessem ser suspeitos em si e para sempre, mas, de todas as depuraes progressivas que esperam a humanidade, a depurao dos sentimentos elevados ser uma das mais lentas.

    34. SENTIMENTOS MORAIS E CONCEITOS MORAIS

  • evidente que os sentimentos morais so transmitidos pelo fato que as crianas notam nos adultos predilees violentas e fortes antipatias com relao a certas aes e que, macacos de nascena, imitam essas predilees e essas antipatias; mais tarde, no decorrer de sua existncia, quando estiverem repletos desses sentimentos bem adquiridos e bem exercidos, acham conveniente proceder a um exame tardio, a uma espcie de exposio dos motivos que iro justificar essas predilees e dessas antipatias. Mas essa exposio dos motivos nada tem a ver neles com a origem nem com a intensidade desses sentimentos: contenta-se de se pr em dia com a convenincia quem quiser que um ser racional conhea as razes de seus prs e de seus contras, razes confessveis e aceitveis. Neste sentido, a histria dos sentimentos morais inteiramente diferente da histria dos conceitos morais. Os primeiros so poderosos antes da ao, os segundos, sobretudo depois, defronte da necessidade de se explicar a respeito dela.

    35. OS SENTIMENETOS E SUA PROVENINCIA DOS JUZOSConfia em teu sentimento! Mas os sentimentos no

    so nada de definitivo, nada de original; por trs dos sentimentos h os juzos e as apreciaes que nos so transmitidos sob forma de sentimentos (predilees, antipatias). A inspirao que decorre de um sentimento neta de um juzo muitas vezes de um juzo errneo! mas, em qualquer caso, no de um juzo que te seja pessoal! Confiar nos prprios sentimentos significa obedecer mais ao av, av e aos antepassados do que obedecer aos deuses que esto em ns, nossa razo e nossa experincia.

    36. UMA TOLICE DA PIEDADE REPLETA DE SEGUNDAS INTENES

  • O qu? Os inventores das antigas culturas, os primeiros construtores de utenslios e de cordas, de carroas, de barcos e de casas, os primeiros observadores da conformidade das leis celestes e das regras da multiplicao seriam diferentes dos inventores e dos observadores de nosso tempo e superiores a estes? No teriam os primeiros um valor que todas as nossas viagens, todas as nossas navegaes circulares no domnio das descobertas no chegariam a igualar? Assim fala a voz do preconceito; assim se argumenta para rebaixar o esprito moderno. E, no entanto, evidente que outrora o acaso foi o maior inventor e o maior observador, o inspirador benevolente dessa poca engenhosa e que, para as mais insignificantes invenes que ora se fazem, exige-se mais esprito, mais energia e mais imaginao cientfica do que houve outrora durante longos perodos.

    37. FALSAS CONCLUSES TIRADAS DA UTILIDADEQuando se demonstrou a extrema utilidade de uma coisa,

    no se fez ainda um passo para explicar sua origem: o que significa que jamais se pode explicar, por meio da utilidade, a necessidade da existncia. Mas precisamente o juzo inverso que dominou at o presente e at mesmo no domnio da cincia mais rigorosa. Os astrnomos no chegaram a pretender que a utilidade (suposta) na economia dos satlites (suprir a luz enfraquecida por uma distncia demasiado grande do sol, para que os habitantes dos astros no tivessem falta de luz) era o objetivo final dessa economia e explicava sua origem? Isto faz lembrar tambm o raciocnio de Cristvo Colombo: a terra feita para o homem; portanto, se h terras, elas devem ser habitadas. Ser possvel que o sol derrame seus raios sobre o nada e que a viglia noturna das estrelas seja prodigalizada em

  • vo a mares sem velas e a regies desabitadas?

    38. OS INSTINOS TRANSFORMADOS PELOS JUZOS MORAISO prprio instinto se torna um sentimento penoso de

    covardia, sob a impresso da censura que os costumes fizeram repousar sobre ele: ou um sentimento agradvel de humildade, se uma moral, como a crist, o adotou e o declarou bom. Quer dizer que esse instinto gozar sempre de uma boa ou de uma m conscincia! Em si, como todo instinto, independente da conscincia, no possui nem um carter, nem uma designao moral e tampouco acompanhado de um sentimento de prazer ou de desprazer determinado: s adquire tudo isso como uma segunda natureza, a partir do momento em que se relaciona com outros instintos que j receberam o batismo do bem e do mal, ou se reconhecido como o atributo de um ser que o povo j definiu e avaliou do ponto de vista moral. Assim, os antigos gregos tinham outra opinio sobre a inveja, diferente da nossa: Hesodo6 a menciona entre os efeitos da boa e benfazeja Eris e no ficava chocado com o pensamento de que os deuses tivessem alguma coisa de invejoso: fenmeno compreensvel num estado de coisas em que a emulao era a alma; emulao que era considerada como boa e apreciada como tal. De igual modo, os gregos se distinguiam de ns na avaliao da esperana: consideravam-na como cega e prfida; Hesodo mostrou numa fbula o que se pode dizer de mais violento contra ela e o que ele diz to estranho, que nenhum intrprete novo compreendeu alguma coisa pois contrrio ao esprito moderno que aprendeu do cristianismo a considerar a esperana uma virtude. Ao contrrio, para os gregos o conhecimento do futuro no parecia inteiramente fechado e a interrogao do futuro se tinha tornado, em inumerveis casos,

  • um dever religioso; enquanto ns nos contentamos com a esperana, os gregos, graas s predies de seus adivinhos, tinham muito pouca estima pela esperana e a rebaixavam ao nvel de um mal ou de um perigo. Os judeus, que consideravam a clera de um modo diferente de ns, declararam-na sagrada: por isso que colocaram a sombria majestade que a acompanhava num grau to elevado que um europeu sequer poderia imagina: eles conceberam a santidade de seu Jav colrico segundo a santidade de seus profetas colricos. Os grandes encolerizados entre os europeus, se forem avaliados segundo semelhante medida, no passam, de algum modo, de criaturas de segunda mo.

    39. O PRECPNCEITO DO ESPRITO PUROEm toda parte onde reina a doutrina da espiritualidade

    pura, ela destruiu com seus excessos a fora nervosa: ensinava a desprezar o corpo, a negligenci-lo ou a atorment-lo, a atormentar e desprezar o prprio homem, por causa de todos os seus instintos; produzia almas sombrias, tensas, oprimidas que, alm disso, acreditavam conhecer a causa de seu sentimento de misria e esperavam poder suprimi-la! no corpo que ela se encontra! E sempre ainda demasiado vioso! assim concluam eles, enquanto na realidade o corpo, com suas dores, no cessava de se rebelar contra o contnuo desprezo que lhe mostravam. Um extremo nervosismo, que se tornou geral e crnico, acabava por ser o apangio desses virtuosos espritos puros: eles s conheciam o prazer sob a forma de xtase e de outros fenmenos da loucura e seu sistema atingia seu apogeu quando consideravam o xtase como ponto culminante da vida e como critrio para condenar tudo o que terrestre.

  • 40. A INCESSANTE REFLEXO SOBRE OS COSTUMESOs numerosos preceitos morais que eram extrados, s

    pressas, de um acontecimento nico e inslito, acabavam por tornar-se rapidamente incompreensveis: era to difcil deduzir deles intenes como reconhecer a penalidade que devia ser aplicada a uma infrao; a dvida pesava mesmo no desenrolar das cerimnias; mas, enquanto tudo era concertado em torno desse assunto, o objeto de semelhante investigao crescia em valor e o que havia precisamente de absurdo num costume acabava por se tornar sacrossanto. No se deve julgar levianamente a fora que a humanidade despendeu nisso durante milhares de anos sobretudo o efeito que produziam essas incessantes reflexes sobre os costumes! Chegamos assim a um imenso terreno de manobra da inteligncia: no somente as religies nele se desenvolvem e se completam, mas tambm a cincia encontra ali seus precursores venerveis, embora ainda terrveis; ali que o poeta, o pensador, o mdico, o legislador cresceram! O medo do incompreensvel que, de uma forma equivocada, exige de ns cerimnias revestiu aos poucos o atrativo do hermetismo e, quando no se chegava a aprofundar, se aprendia a criar.

    41. PARA DETERMINAR O VALOR DA VIDA CONTEMPLATIVANo esqueamos, sendo homens da vida contemplativa, de

    que gnero foram as desgraas e as maldies que atingiram os homens da vida ativa por meio dos diferentes contragolpes da contemplao numa palavra, que conta a vida ativa teria de nos apresentar, a ns que nos vangloriamos com todo o orgulho de nossos benefcios. Em primeiro lugar, ela nos oporia: as naturezas ditas religiosas que, por seu nmero, predominam

  • entre os contemplativos e representam, por conseguinte, a espcie mais corrente; agiram, desde sempre, de modo a tornar a vida difcil para os homens prticos, a desgost-los com isso se possvel: obscurecer o cu, apagar o sol, tornar a alegria suspeita, depreciar as esperanas, paralisar a mo ativa assim que elas foram entendidas e por isso tiveram, para as pocas e os sentimentos miserveis, suas consolaes, suas esmolas, suas mos estendidas e suas bnos. Em segundo lugar: os artistas, uma espcie de homens da vida contemplativa mais rara que a religiosa, mas ainda bastante freqente; como indivduos tm sido geralmente insuportveis, caprichosos, invejosos, violentos, briguentos: essa impresso deve ser deduzida da impresso tranqilizadora e exaltante de suas obras. Em terceiro lugar: os filsofos, uma espcie em que se encontram reunidas foras religiosas e artsticas, mas de tal modo que um terceiro elemento pode ser acrescido, o dialtico, o prazer de discutir; estiveram na origem dos mesmos males como os religiosos e os artistas e, alm disso por causa de sua inclinao dialtica, produziram o aborrecimento em muita gente; seu nmero, contudo, foi sempre reduzido. Em quarto lugar: os pensadores e os trabalhadores cientficos; raramente procuraram produzir efeitos, contentando-se em escavar silenciosamente suas tocas de toupeira, o que os levou a suscitar pouco aborrecimento e prazer; tendo sido objeto de hilaridade e zombaria, chegaram at, sem o saber, a aliviar a existncia dos homens da vida ativa. Finalmente, a cincia acabou por tornar-se uma coisa muito til para todos: se, por causa dessa utilidade, muitos homens predestinados vida ativa trilham o caminho da cincia com o suor de seu rosto, no sem maldies e dores de cabea, a multido dos pensadores e dos trabalhadores cientficos no tem culpa de seus dissabores:

  • esse um sofrimento infligido a si prprio.

    42. ORIGEM DA VIDA CONTEMPLATIVADurante as pocas brbaras, quando reinam os juzos

    pessimistas sobre o homem e o mundo, o indivduo se aplica sempre, confiando na plenitude de sua fora, a agir em conformidade com esses juzos, isto , a colocar as idias em ao, atravs da caa, da pilhagem, da surpresa, da brutalidade e dos assassinatos, assim como atravs das formas enfraquecidas dessas aes, as nicas toleradas no interior da comunidade. Mas se o vigor do indivduo declina, se se sente fatigado ou doente, melanclico ou saciado e, portanto, momentaneamente sem desejos e sem apetites, torna-se ento um homem relativamente melhor, isto , menos perigoso, e suas idias pessimistas se exteriorizam apenas em palavras e reflexes, referentes, por exemplo, a seus companheiros, a sua mulher, a sua vida ou a seus deuses e os juzos que ento vai emitir sero juzos desfavorveis. Nesse estado de esprito, transforma-se em pensador e anunciador, ou ento sua imaginao vai desenvolver suas supersties, vai inventar novos costumes, vai zombar de seus inimigos: mas seja o que for que possa imaginar, todas as produes de seu esprito vo refletir necessariamente seu estado, quer dizer, um aumento de seu temor e de sua fadiga, uma diminuio de sua estima pela ao e pela alegria; ser necessrio que o contedo dessas produes corresponda ao estado de alma potico, imaginativo e sacerdotal: o juzo desfavorvel deve predominar. Mais tarde todos os que passaram a fazer de uma forma contnua o que outrora o indivduo s fazia por disposio, aqueles, pois, que emitiam juzos desfavorveis, viviam na melancolia e permaneciam pobres em aes e foram chamados poetas,

  • pensadores, padres ou milagreiros: por que no atuavam suficientemente, de boa vontade teriam sido desprezados ou at expulsos da comunidade tais homens; mas havia nisso um perigo eles tinham seguido as pegadas da superstio e as pegadas do poder divino, pelo que no havia dvida de que possussem meios de ao provenientes de foras desconhecidas. Nessa estima que se encontravam as mais antigas geraes de naturezas contemplativas desprezadas na medida em que no despertavam temor. sob essa forma disfarada, sob esse aspecto duvidoso, com um corao mau e um esprito muitas vezes atormentado, que a contemplao fez sua primeira apario na terra, desprezada em segredo e publicamente coberta de sinais de um respeito supersticioso! Aqui se deve dizer como sempre: pudenda origo7!

    43. QUANTAS FORAS O PENSADOR DEVE HOJE REUNIR NELETornar-se estranho s consideraes dos sentidos, elevar-

    se at a abstrao outrora isso era considerado como uma verdadeira elevao: mas no podemos mais ter as mesmas opinies. A embriaguez criada pelas mais plidas imagens das palavras e das coisas, o comrcio com seres invisveis, imperceptveis, intangveis, eram considerados como existncia em outro mundo superior, uma experincia nascida do profundo desprezo pelo mundo perceptvel aos sentidos, esse mundo sedutor e mau. Longe de nos seduzir, essas abstraes podem doravante nos conduzir! a essas palavras se lanavam como se quisessem galgar os cumes. No o contedo desses jogos espirituais, mas so os prprios jogos que foram a coisa superior na pr-histria da cincia. Da a admirao de Plato pela dialtica e sua f entusistica na relao necessria desta com o homem bom, liberto dos sentidos. No foram somente as

  • diferentes maneiras de conhecer que foram descobertas separadamente e aos poucos, mas tambm os meios do conhecimento em geral, as condies e as operaes que no homem precedem o ato de conhecer. E sempre parecia que a operao ultimamente descoberta ou os estados de alma novos fossem apenas meios para chegar a todo conhecimento, mas o objetivo desejado, o teor e a soma de tudo o que merece ser conhecido. O pensador tem necessidade da imaginao, do impulso, da abstrao, da espiritualizao, do sentido inventivo, do pressentimento, da induo, da dialtica, da deduo, da crtica, da reunio de materiais, do pensamento impessoal, da contemplao e da sntese, e no menos de justia e de amor em relao a tudo o que existe mas na histria da vida contemplativa, todos esses meios foram considerados, cada um em separado, como objetivo e como objetivo supremo, e proporcionaram a seus inventores essa felicidade que enche a alma humana, quando iluminada com o brilho de um objetivo supremo.

    44. ORIGEM E SIGNIFICAOPor que esse pensamento retorna sem cessar a meu

    esprito e toma cores sempre mais vivas? O pensamento que outrora os filsofos, quando estavam na via da origem das coisas, imaginavam sempre que fariam descobertas de uma significao inaprecivel para toda espcie de ao e de juzo; supunha-se at mesmo que a salvao dos homens devia depender do entendimento que possua da origem das coisas: hoje, pelo contrrio, quanto mais nos entregamos pesquisa das origens, menos nosso interesse participa dessa operao, ao contrrio, todas as avaliaes, todos os interesses que colocamos nas coisas comeam a perder sua significao

  • medida que recuamos no conhecimento para cercar de perto as prprias coisas; com o entendimento da origem a insignificncia da origem aumenta: enquanto o que est prximo, o que est em ns e em torno de ns comea aos poucos a se mostrar rico de cores, de belezas, de enigmas e de significaes, das quais a antiga humanidade nem sequer ousava sonhar. Outrora os pensadores giravam em crculo como animais presos, devorados por uma raiva secreta, lanando-se contra essas barras para quebr-las; e feliz parecia aquele que, por alguma fresta, julgava ver alguma coisa de fora, do alm e das coisas distantes.

    45. UM DESFECHO TRGICO DO CONHECIMENTODe todos os meios de exaltao, os sacrifcios humanos

    so os que, em todos os tempos, mais elevaram e espiritualizaram o homem. E talvez haja uma s idia prodigiosa que, ainda agora, poderia aniquilar qualquer outra aspirao, de modo que obtivesse a vitria sobre a mais vitoriosa quero dizer a idia da humanidade sacrificando-se a si mesma. Mas a quem deveria ela se sacrificar? Pode-se j jurar que, se algum dia a constelao dessa idia aparecesse no horizonte, o conhecimento da verdade se manteria como o nico objetivo ingente a que semelhante sacrifcio seria proporcional, porque para o conhecimento nenhum sacrifcio demasiado grande. Esperando por isso, o problema nunca foi posto, jamais algum se perguntou se a humanidade em seu conjunto era capaz de um movimento prprio para fazer o conhecimento progredir e, menos ainda, que necessidade de conhecimento impeliria a humanidade a se oferecer a si prpria em holocausto para morrer com a luz de uma sabedoria antecipada nos olhos. Talvez um dia, quando se chegar a confraternizar com os

  • habitantes de outros planetas, no interesse do conhecimento, e quando, alguns milhares de anos adiante, se tiver conseguido comunicar o prprio saber de estrela em estrela, talvez ento a onda de entusiasmo provocada pelo conhecimento ter atingido semelhante altura!

    46. DUVIDAR QUE SE DUVIDAQue travesseiro fofo a dvida para uma cabea bem

    feita! estas palavras de Montaigne8 sempre exasperaram Pascal9, pois ningum como ele tinha exatamente tanta necessidade de um travesseiro fofo. A que se referia isso, pois?

    47. AS PALAVRAS NOS BARRAM O CAMINHOEm toda parte onde os antigos dos primeiros tempos

    colocavam uma palavra creditavam ter feito uma descoberta. E como na realidade isso era diferente! eles tinham apenas tocado um problema e, julgando t-lo resolvido, haviam criado um obstculo sua salvao. Agora, para atingir o conhecimento, preciso tropear em palavras que se tornaram eternas e duras como pedras, e as pernas se quebraro mais facilmente que a palavra.

    48. CONHECE-TE A TI MESMO, ESSA TODA A CINCIAS depois de conhecer todas as coisas que o homem

    poder se conhecer a si mesmo. De fato, as coisas so simplesmente as fronteiras do homem.

    49. O NOVO SENTIMENTO FUNDAMENTAL:NOSSA NATUREZA DEFINITIVAMENTE PERECVEL

    Outrora procurava-se despertar o sentimento da soberania do homem mostrando sua origem divina; isso tornou-se hoje

  • uma via interditada, pois no incio est o macaco, cercado de alguma pessoa animal amedrontadora: range os dentes como para dizer: nenhum passo a mais nessa direo! So feitas, por conseguinte, tentativas na direo oposta: o caminho que a humanidade toma deve servir para provar sua soberania e sua natureza divina. Ai! isso tambm no leva a nada! No final desse caminho se encontra a urna funerria do ltimo homem que enterra os mortos (com a inscrio: Nihil humani a me alienum puto10). Por mais alto que sua evoluo possa levar a humanidade e talvez no fim seja inferior ao que havia sido no incio! no h para ela passagem a uma ordem superior, tal como a formiga e o mosquito no fim da sua carreira terrestre no entram na eternidade e no seio de Deus. O futuro arrasta atrs de si o que foi o passado: por que deveria haver, para uma pequena estrela qualquer e para uma pequena espcie vivendo nessa estrela, uma exceo nesse espetculo eterno? Afastemos de ns essas sentimentalidades!

    50. A F NA EMBRIAGUEZOs homens que conhecem instantes de sublime encanto e

    que, em momentos comuns, por causa do contraste e da extrema usura de suas foras nervosas, se sentem miserveis e desolados, consideram tais momentos como a verdadeira manifestao de si mesmos, de seu eu; pelo contrrio, a misria e a desolao como o efeito do no-eu; por isso que pensam em seu meio, em sua poca, em seu mundo todo, com sentimentos de vingana. A embria