GIACÓIA, Osvaldo- Nietzsche

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  • FOLHA

    EXPLICA

    NIETZSCHE OSWALDO GIACOIA JNIOR

    PUBLIFOLHA

  • 2000 Publifolha - Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A. 2000 Osvaldo Giacoia Jnior Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A. Editor: Arthur Nestrovski Capa e projeto grfico: Silvia Ribeiro Assistente de projeto grfico: Marilisa von Schmaedel Reviso: Mrio Vilela Editorao: eletrnica Picture

    Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil)

    Giacoia Jnior, Osvaldo Nietzsche / Osvaldo Giacoia Jnior. - So Paulo : PUBLIFOLHA, 2000. (Folha explica)

    ISBN 85-7402-212-8

    1. Filosofia alem 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844 1900 I. Ttulo II. Srie

    00-2125 CDD-193

    ndices paro catlogo sistemtico: 1. Nietzsche: Filosofia alem 193

    PUBLI FOLHA Diviso de Publicaes do Grupo Folha Av. Dr. Vieira de Carvalho, 40, II" andar, CEP 01210-010, So Paulo, SP Tels.:(11) 3351-6341/6342/6343/6344 - Site. www.publifolha.com.br

  • SUMRIO

    INTRODUO: POR QUE LER NIETZSCHE HOJE..................................9 1. A CRISE DOS VALORES.......................................... 15 2. NIETZSCHE E O FIM DA METAFSICA.....................21 3. O JOVEM NIETZSCHE...............................................27 4. UMA FILOSOFIA PARA ESPRITOS LIVRES............41 5. A DERRADEIRA FILOSOFIA, OU COMO TORNAR-SE O QUE SE .................................53 6. BREVE HISTRIA DA RECEPO DA OBRA DE NIETZSCHE.............................................71 7. DADOS BIOGRFICOS............................................. SUGESTES DE LEITURA............................................89

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  • para Rachel Cristina

    Todos esses pssaros audazes, que voam ao longe, ao mais longnquo

    certamente! em algum lugar no podero ir mais longe e pousaro sobre um mastro

    ou um msero recife , e, alm do mais, to gratos por esse deplorvel pouso! Mas

    quem poderia concluir disso que adiante deles no h mais nenhuma descomunal

    rota livre, que eles voaram to longe quanto se pode voar. Todos os nossos grandes

    mestres e precursores acabaram por se deter, e no com o gesto mais nobre e mais

    gracioso que o cansao se detm: tambm comigo e contigo ser assim! Mas que

    importa isso a mim e a ti! Outros pssaros voaro mais longe!... E para onde

    queremos ir? Queremos passar alm do mar? Para onde nos arrasta esse poderoso

    apetite que para ns vale mais do que qualquer prazer? Mas por que precisamente

    nessa direo, para l onde at agora todos os seus cia humanidade declinaram?

    Talvez um dia diro de ns que tambm ns, navegando para o Ocidente,

    espervamos alcanar ninas ndias mas que nosso destino era naufragar no

    infinito? Ou, meus irmos! Ou?

    Aurora, aforismo 575

    (Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho)

  • INTRODUO: POR QUE LER NIETZSCHE HOJE

    Dentre os clssicos da filosofia moderna, Nietzsche talvez seja o pensador mais

    incmodo e provocativo. Sua vocao crtica cortante o levou ao submundo de nossa

    civilizao, sua inflexvel honestidade intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaa

    ocultas em nossos valores mais elevados, dissimuladas em nossas convices mais

    firmes, renegadas em nossas mais sublimes esperanas. Essa atitude deriva do que

    Nietzsche entendia por filosofia.

    Para ele, filosofar um ato que se enraza na vida e um exerccio de liberdade.

    O compromisso com a autenticidade da reflexo exige vigilncia crtica permanente,

    que denuncia como impostura qualquer forma de mistificao intelectual. Por isso,

    Nietzsche no poupou de exame nenhum de nossos mais acalentados artigos de f. O

    destino da cultura, o futuro do ser humano na histria, sempre foi sua obsessiva

    preocupao. Por causa dela, submeteu crtica todos os domnios vitais de nossa

    civilizao ocidental: cientficos, ticos, religiosos e polticos.

    Nietzsche um dos grandes mestres da suspeita, que denuncia a moralidade e

    a poltica moderna como transformao vulgarizada de antigos valores metafsicos e

    religiosos, numa conjurao subterrnea que conduz ao amesquinhamento das

    condies nas quais se desenvolve a vida social. Nesse sentido, ele um dos mais

    intransigentes crticos do nivelamento e da massificao da humanidade. Para ele, isso

    era uma conseqncia funesta da extenso global da sociedade civil burguesa, tal como

    esta se configurou a partir da Revoluo Industrial.

    Nietzsche se ope a supresso das diferenas, a padronizao de valores que,

    sob o pretexto de universalidade, encobre, de fato, a imposio totalitria de interesses

    particulares; por isso, ele tambm um opositor da igualdade entendida como

    uniformidade. Assim, denunciou a transformao de pessoas em peas annimas da

    engrenagem global de interesses e a manipulao de coraes e mentes pelos grandes

    dispositivos formadores de opinio.

    O esforo filosfico de Nietzsche o levou a se confrontar com as grandes

    correntes histricas responsveis pela formao do Ocidente: a tradio paga greco-

    romana e a judaico-crist; e o que resultou da fuso entre as duas.

  • Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herana cultural de nossa

    tradio, Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que at hoje impregnam

    nosso vocabulrio e povoam nosso imaginrio poltico e artstico. Tais so, por exemplo,

    as noes de Apoio e Dionsio, transformadas em categorias estticas, os conceitos de

    vontade de poder, alm-do-homem (bermensch), eterno retomo e niilismo e a figura da morte

    de Deus.

    impossvel se colocar altura dos principais temas e questes de nosso

    tempo sem entender o pensamento de Nietzsche. Atesta radical, ele atribui ao homem a

    tarefa de se reapropriar de sua essncia e definir as metas de seu destino. Dele afirma o

    filsofo Martin Heidegger: "Nietzsche o primeiro pensador que, perante a histria

    universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a

    reflete internamente em toda a sua extenso metafsica. Essa pergunta reza: como

    homem, em sua essncia at aqui, est o homem preparado para assumir o domnio da

    terra?"1

    Nesse sentido, Nietzsche o pensador de nossas angstias, que no poupou

    nenhuma certeza estabelecida sobretudo as suas prprias convices e desvendou

    os mais sinistros labirintos da alma moderna. Com a paixo que liga a vida ao

    pensamento, Nietzsche refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna,

    sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens no fim do sculo 19. Dessa sua

    condio, postado entre o final e o incio de duas eras, Nietzsche esboou um quadro

    que, em todos os seus matizes, nos concerne ainda, na passagem a um novo milnio, em

    direo a um destino que ainda no se pode discernir.

    A despeito de sua viso sombria, Nietzsche tentou ser, ao mesmo tempo, um

    arauto de novas esperanas. Sua mensagem definitiva a criao de novos valores, a

    instituio de novas metas para a aventura humana na histria tambm um cntico

    de alegria. Essa uma das razes pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da

    combinao paradoxal de elementos antagnicos: sombra e luz, agonia e xtase,

    gravidade e leveza.

    Isso explica por que, para ele, o riso e a pardia so operadores filosficos

    inigualveis: eles permitem reverter perspectivas fossilizadas. Nietzsche, o impiedoso

    crtico das crenas cannicas, tambm um mestre da ironia. Sua ambio consiste em

  • tomar superfcie o que profundidade, restituir a graa ao peso da seriedade filosfica.

    Opositor ferrenho da dialtica socrtica, Nietzsche reedita, no mundo

    moderno, o gesto irnico do pai fundador da filosofia ocidental. Decisivo adversrio de

    Plato, sua filosofia talvez possa ser caracterizada como uma inverso pardica do

    platonismo. Definindo-se como o mais intransigente anticristo, d, no entanto, sua

    autobiografia intelectual, escrita no final de sua vida, o ttulo Ecce Homo ("Eis o

    Homem") expresso empregada por Pilatos ao apresentar Jesus a seus algozes, pouco

    antes da Paixo.

    Nietzsche, o filsofo-artista, um poeta que s acreditava numa filosofia que

    fosse expresso das vivncias genunas e pessoais, vendo na experincia esttica uma

    espcie de xtase e redeno, , por isso mesmo, um precursor da crtica a um tipo de

    racionalidade meramente tcnica, fria e planificadora. A despeito da profundidade e da

    gravidade das questes com que se ocupa, sempre as tratou em estilo artstico,

    poeticamente sugestivo; s acreditava na autenticidade de um pensamento que nos

    motivasse a danar. Ele mesmo imagina sobre sua porta a inscrio:

    Moro em minha prpria casa

    Nada imitei de ningum

    E ainda ri de todo mestre

    Que no riu de si tambm.2

    Sem extravasar os limites dos livros desta srie, Folha Explica Nietzsche se

    prope a ser uma apresentao geral do homem e do filsofo Friedrich Nietzsche. Seu

    objetivo fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos, as figuras e o estilo de

    Nietzsche no para depois encerr-los em qualquer cmara da memria, mas sim

    para despertar seu interesse e estimul-lo a seguir adiante. Aceitar o desafio de

    Nietzsche implica, sobretudo, pensar independentemente; e por isso, s vezes, tambm

    contra Nietzsche.

    1 Heidegger. "Wer ist Nietzsches Zarathustra?"; em: Vortrge und Aufstze. Pfullingen: Neske Verlag, 1954; p. 102. 2 Epgrafe de A Gaia Cincia; em Nietzsche. Obra Incompleta. Trad. Rubem Rodrigues Torres Filho. Col. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1974: p 195.

  • 1. A CRISE DOS VALORES

    O pensamento filosfico de Nietzsche pode ser comparado a uma espcie de

    sensor que registra e antecipa questes e desafios de nosso sculo. Sua ambio

    realizar um diagnstico fiel da situao do homem moderno. Para ele, no resta dvida

    de que, herdeiro dos progressos do Iluminismo, julgamo-nos liberados das cadeias da

    ignorncia e da superstio. Confiantes nas possibilidades advindas da utilizao

    industrial da cincia e da tcnica, estamos certos de poder descobrir todos os segredos

    do universo e construir uma sociedade expurgada de todas as formas de opresso,

    violncia, explorao. Afinal, somos devotos do deus Logos,3 confiantes em sua

    onipotncia.

    Nietzsche, porm, meditou sobre o lado obscuro, as conseqncias que

    poderiam resultar do otimismo desenfreado embutido nessa convico. Esse otimismo

    representa, para ele, a face resplandecente de um avesso sombrio: o mesmo progresso

    conduz inexoravelmente exausto dos valores herdados da tradio, sua

    impossibilidade de dar sustentao a futuros projetos viveis, no campo quer do

    conhecimento, quer da tica, quer da poltica.

    Nietzsche se encontrava no limiar de uma experincia do mundo em que, como

    conseqncia dos progressos do conhecimento, noes como Verdade, Falsidade,

    Justia, Bem, Mal, Virtude tinham sido relativizadas, no podendo mais responder a

    nossa eterna pergunta pelo sentido da existncia. Para ele, no cabia ao filsofo

    justificar ou condenar esse estado de coisas, mas constat-lo; essa constatao seria,

    ento, o nico caminho que permite vislumbrar uma sada. Toda tentativa de negar essa

    condio representa no apenas uma desonestidade intelectual e moral, mas sobretudo

    o risco da catstrofe; ou seja, a possibilidade de que o esvaziamento de valores

    autnticos nos conduza de volta barbrie, destruio daquilo que de mais precioso a

    humanidade conquistou ao longo da histria: a dignidade da pessoa humana.

    Por essa razo, Nietzsche dedicou sua vida a realizar trs tarefas principais:

    compreender a lgica desse movimento contraditrio ao longo do qual o progresso do

    3 Logos: palavra grega que significa "palavra", "discurso" e "razo"; termo que d origem palavra lgica e que, em sentido amplo, equivalente racionalidade.

  • conhecimento leva perda de consistncia dos valores absolutos; a partir da, denunciar

    todas as formas de mistificao pelas quais o homem moderno oblitera sua viso dos

    perigos de sua condio; por fim, destrudos os falsos dolos e esses so os valores

    mais venerados pelo homem moderno assumir corajosamente o risco de pensar novos

    valores, abrir novos horizontes para a experincia humana na histria.

    Nietzsche viveu e pensou em profundidade a crise que se abatia sobre a

    Europa ao final do sculo 19. Filha de seu prprio tempo, sua obra submete a uma

    crtica impiedosa todas as esferas da cultura. Porm, ao exigir do homem moderno que

    tome conscincia das conseqncias, das possibilidades e dos limites de seu saber e agir,

    Nietzsche coloca questes que at hoje prosseguem conosco. Num de seus mais belos e

    clebres textos, pe em cena o drama de nossa condio:

    "No ouvistes falar daquele homem louco que, em plena manha clara, acendeu

    um candeeiro, correu para o mercado e gritava incessantemente: 'Procuro Deus!

    Procuro Deus?' E, como l se reunissem justamente muitos daqueles que no

    acreditavam em Deus, provocou ele ento grande gargalhada. 'Perdeu-se ele, ento?',

    dizia um. 'Ter-se-ia extraviado, como uma criana?', dizia outro.'Ou se mantm oculto?

    Tem ele medo de ns? Embarcou no navio? Emigrou?' desse modo gritavam e riam

    entre si. O homem louco saltou em meio a eles e trespassou-os com o oUiar. 'Para onde

    foi Deus?', clamou ele,'eu vos quero dz-lo! Ns o matamos, vs e eu! Ns todos somos

    seus assassinos? Como, porm, fizemos isso? Como pudemos tragar o oceano? Quem

    nos deu a esponja para remover o horizonte inteiro? Que fizemos ns quando

    desprendemos esta Terra de seu sol? Para onde se move ela, ento? Para onde nos

    movemos ns? Longe de todos os sis? No nos precipitamos sem cessar? E para trs,

    para o lado, para frente, de todos os lados? H ainda um alto e um baixo? No erramos

    como atravs de um nada infinito? No nos bafeja o espao vazio? No ficou mais frio?

    No vem, sem cessar, sempre a noite e mais noite? No se tem que acender candeeiros

    pela manh? Nada ouvimos ainda do rumor dos coveiros,que sepultam Deus? Nada

    sentimos ainda do cheiro da decomposio divina? tambm os deuses se

    decompem! Deus morreu! Deus permanece morto! E ns o matamos! Como que nos

    consolamos, ns os assassinos de todos os assassinos? Aquilo de mais santo e poderoso

    que o universo possuiu at agora sangrou sob nossos punhais quem enxuga de ns

  • esse sangue? Com que gua poderamos nos purificar? Que cerimnias de expiao,

    que divinos jogos teramos de inventar? A grandeza desse feito no demasiado grande

    para ns? No teramos que nos tomar, ns prprios, deuses, para apenas parecer

    dignos dele? Jamais houve um feito maior e sempre quem tenha apenas nascido

    depois de ns pertence, por causa desse feito, a uma histria mais elevada do que foi

    toda histria at agora!' Aqui, calou-se o homem louco e mirou de novo seus

    ouvintes. Tambm estes silenciavam e olhavam-no com estranhamento. Finalmente, ele

    arrojou o candeeiro ao solo, de modo que este se estilhaou e apagou.'Chego cedo

    demais', disse ele ento; 'no estou ainda no tempo oportuno. Esse acontecimento

    formidvel est ainda a caminho e peregrina ele ainda no penetrou nos ouvidos dos

    homens. Relmpago e trovo precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo,

    feitos precisam de tempo, mesmo depois de consumados, para serem vistos e ouvidos.

    Este feito est ainda mais distante deles do que os astros mais remotos , e todavia eles

    o consumaram'. Conta-se ainda que, no mesmo dia, o homem louco teria entrado em

    diversas igrejas e nelas entoado seu requiem aetemam Deo. Conduzido para fora e instado

    a falar, teria ele replicado sempre apenas isto: 'O que so, ento, as igrejas, se no criptas

    e mausolus de Deus? 4

    A passagem descreve o sentimento de abandono que, como vazio opressivo,

    esmaga a conscincia do homem moderno. Os cnicos escarnecedores, reunidos na

    praa do mercado, somos tambm ns, vencedores do combate da cincia contra as

    trevas da ignorncia. Apenas ns, homens modernos, no estvamos conscientes da

    dimenso pica de nosso prprio feito, nada sabamos da tragdia que

    desencaderamos, nela precipitando nosso mundo.

    Friedrich Nietzsche o pensador a quem coube apreender filosoficamente a

    experincia intelectual que marca nosso destino, ao tentar levar at suas conseqncias

    extremas o impulso crtico que anima o pensamento filosfico da modernidade. No se

    pode, porm, extrair as ltimas concluses desse impulso crtico sem retomar sua

    origem, isto , para Nietzsche, metafsica de Plato. Por essa razo, uma das primeiras

    e mais fundamentais tarefas que Nietzsche se atribui a de refutar e destruir a

    metafsica platnica.

    4 Nietzsche, Gaia Cincia; aforismo 125: O Homem louco

  • 2. NIETZSCHE E O FIM DA METAFSICA

    Para Nietzsche, pode-se tomar a filosofia de Plato como modelo da metafsica.

    Esta se fundamenta numa concepo dualista do universo, estabelecendo uma oposio

    de valores entre duas esferas distintas da realidade ou do ser: de um lado, existe um

    domnio ideal, considerado como o verdadeiro mundo ou a realidade verdadeira, assim

    denominado por ser o plano das essncias, isto , aquilo que, em todo e qualquer

    fenmeno constitui sua pura forma ou conceito. Assim, por exemplo, a humanidade

    constitui a essncia de cada ser humano particular, ou a triangularidade determina a

    natureza de toda e qualquer figura triangular que vemos ou traamos. Todos os

    indivduos humanos concretos so limitados e finitos, mas a humanidade uma

    entidade intelectual, que em nada se altera em virtude da sucesso dos indivduos

    singulares.

    Tais formas puras, denominadas tecnicamente idias por Plato, teriam sua

    origem na idia do Bem ou de Deus que a causa produtora de todas as outras

    idias que so as formas gerais do universo.Tais entidades so inacessveis a nossos

    rgos dos sentidos; e imutveis, uma vez que no esto submetidas s leis do espao e

    do tempo. Por serem as responsveis pela realidade de todo real, foram

    tradicionalmente denominadas realidade inteligvel, em contraposio a uma segunda

    ordem de realidade, a realidade aparente ou sensvel, que aquela de que temos

    experincia ordinria.

    Contraposto s essncias inteligveis, o mundo sensvel tradicionalmente

    considerado um plano de realidade deficitria, enganosa, mera aparncia ou simulacro

    das formas puras, que so como originais ou modelos dos quais toda realidade

    emprica, sensvel, constitui uma cpia, necessariamente imperfeita e corruptvel. E a

    essa realidade degradada, sujeita s condies do espao e do tempo, que pertence

    nossa existncia terrena e corporal.

    Nossa alma ou esprito, nossa verdadeira essncia e princpio inteligvel, estaria

    como se prisioneira de nosso corpo, sendo por isso induzida ao erro e ao engano pelos

    sentidos, que nos arrastam para o plano das aparncias, desviando-nos do que seria

    nossa verdadeira destinao: a contemplao das formas puras. Em virtude de nossa

    akna racional, imortal, somos aparentados com as puras idias e participantes do

  • mundo inteligvel.

    Todo conhecimento verdadeiro seria, pois, uma espcie de recordao do que

    outrora, antes do cativeiro de nossa alma pelo corpo e no mundo terrestre,

    contemplramos do verdadeiro e divino mundo das idias. Um esprito, ou razo pura,

    e um bem em si (um bem ou valor cuja vigncia universal e necessria) constituem as

    referncias metafsicas que do sustentao tanto ao conhecimento cientfico quanto s

    aes morais do ser humano no mundo.

    O anncio, por Nietzsche, da morte de Deus significa o fim do modo

    tipicamente metafsico de pensar, na medida em que, para ele, o cristianismo, tanto

    como religio quanto como doutrina moral, constitui uma verso vulgarizada do

    platonismo, adaptada s necessidades e anseios de amplas massas populares. Por sua

    vez, o cristianismo constitui, para Nietzsche, a medula tica do mundo ocidental; da

    seiva moral do cristianismo que se nutrem todas as esferas importantes de nossa

    cultura, desde a mais abstrata e rarefeita investigao das cincias formais at o plano

    material de organizao da vida e do trabalho.

    Para Nietzsche, a morte de Deus uma expresso simblica do

    desaparecimento desse horizonte metafsico, baseado na oposio entre aparncia e

    realidade, verdade e falsidade, bem e mal. Isso significa que no podemos mais

    sustentar a crena num conhecimento objetivo, que ultrapasse a particularidade de

    nossos afetos.

    Para Nietzsche, todo conhecimento inevitavelmente guiado por interesses e

    condicionamentos subjetivos, ideolgicos; o conhecimento resulta da projeo de nossos

    impulsos e anseios, razo pela qual Nietzsche o considera sempre determinado por

    certa perspectiva, seja individual, seja scio-culturalmente determinada. Se, como

    resultado do desenvolvimento das cincias e do aprofundamento do esclarecimento,

    chegamos experincia da morte de Deus, ento lcito colocar tambm em questo o

    nico valor absoluto que ainda permanece reconhecido pela conscincia cientfica

    contempornea: o valor absoluto da verdade. A morte de Deus implica, portanto, a

    possibilidade de colocar em questo a crena na origem divina e no valor absoluto da verdade.

    Fazer com que a verdade aparea como um problema implica, para Nietzsche,

    problematizar tambm conceitos como o bem e o mal, o justo e o injusto, o lcito e o

    proibido, na medida em que verdade, beleza e bondade (justia) sempre foram termos

  • que mantiveram ntima correlao. Nietzsche , pois, o filsofo que ousa colocar em

    questo o valor dos valores. Sua preocupao consiste em trazer luz as condies

    histricas das quais emergiram nossos supostos valores absolutos, colocando em

    dvida a pretensa sacralidade de sua origem. Em sua genealogia da moral, Nietzsche

    pretende tambm submeter a julgamento o valor desses mesmos valores: foram eles

    propcios ou nocivos ao florescimento e intensificao da vida humana na terra?

  • 3. O JOVEM NIETZSCHE

    Uma exposio geral do pensamento de Nietzsche constitui uma tarefa

    dificultada pelo variedade dos temas de que se ocupa, pela extraordinria multiplicao

    de pontos de vista por vezes dificilmente conciliveis -sobre um mesmo assunto, pela

    diversidade de estilos literrios presentes em sua obra e, sobretudo, pela natureza

    radicalmente crtica e polmica de seus escritos. Isso gerou a convico, quase unnime

    entre seus comentadores, de que o aspecto assistemtico constitui o trao essencial de seu

    pensamento.

    Um intrprete contemporneo da obra de Nietzsche, o americano Walter

    Kaufmann, escrevendo a respeito desse trao assistemtico, fez notar que Nietzsche

    seria mn pensador de problemas, e no pensador de sistemas; alis, de acordo com

    Kaufmann, o pensamento nietzscheano no poderia dar ensejo a um sistema. Em

    Nietzsche, "a investigao filosfica parte no de um feixe de pressupostos, mas de uma

    situao problemtica. Nela esto contidos alguns pressupostos, e outros so

    expressamente admitidos ao longo da investigao. O resultado final no tanto uma

    soluo do problema inicial, mas antes o discernimento de seus limites: em regra, o

    problema no resolvido; ns, porm, nos elevamos acima dele".5

    A despeito da diversidade temtica de seu contedo e da multiplicidade de

    seus estilos, pode-se facilmente reconhecer que as questes abordadas por Nietzsche

    remetem a um centro comum de preocupaes, que os conceitos e argumentos se

    renem em constelaes, que se arranjam e modificam ao longo de sua trajetria

    filosfica, sem, entretanto, jamais deixar de orbitar em tomo de um centro de gravidade.

    "Com a mesma necessidade com que uma rvore d seus frutos, crescem em ns nossos

    pensamentos, nossos valores, nossos sins e nos e quandos e ses aparentados e

    referidos todos eles entre si e testemunhas de uma nica vontade, de uma nica sade,

    de um nico terreno, de um nico sol.6

    Na literatura secundria, costuma-se dividir cronologicamente em trs fases a

    produo filosfica de Nietzsche. O primeiro perodo estaria situado,

    aproximadamente, entre os anos 1870 e 1876. Um segundo momento vai de 1876 a I 882,

    5 Kaufman, Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist, New Jersey: Princeton University, 1974, p. 82. 6 Para a Genealogia da moral. Prefcio, par. 2; em: Nietzsche. Obra Incompleta. Trad. Rubem Rodrigues Torres Filho. Col.

  • sendo seguido pela derradeira fase, iniciada em 1882 e abruptamente interrompida em

    1889. Essa periodizao sobretudo determinada pela seqncia das obras

    caractersticas de cada uma das fases.

    Contudo, essa diviso sempre foi objeto de debate entre os principais

    comentadores da obra de Nietzsche. Por um lado, no se pode negar que determinados

    grupos de idias se conservam presentes nos diferentes perodos, o que sugeriria uma

    idia de continuidade. Por outro, a trajetria filosfica de Nietzsche marcada por

    mudanas significativas, tanto de forma quanto de contedo. As principais vantagens

    dessa periodizao so sobretudo de ordem didtica, para fins expositivos.

    O primeiro momento se caracterizaria, sobretudo, pelos escritos do assim

    chamado "jovem Nietzsche" e coincidiria, em grande parte, com o tempo de docncia na

    Universidade de Basilia, como catedrtico de filologia clssica.Tal perodo marcado

    pela publicao de O Nascimento da Tragdia a partir do Esprito da Msica (1 872), Primeira

    Considerao Extempornea: David Strauss, o Devoto e o Escritor (1873), Da Utilidade e

    Desvantagem da Histria Para a Vida (1874), Schopenhauer como Educador (1874) e Richard

    Wagner em Bayrenth (1876).

    Entretanto, no se pode deixar de fazer meno a textos que permaneceram

    inditos durante a vida do autor, ou tiveram restrita circulao, uma vez que so de

    grande relevncia para uma interpretao do conjunto de seu pensamento. Dentre eles

    cabe citar: O Drama Musical Grego, Scrates e a Tragdia, A Cosmoviso Dionisaca, O

    Nascimento do Pensamento Trgico (todos de 1 870); Scrates e a Tragdia G,rega (1871);

    Sobre o litnro de Nossas Instituies de Ensino (1872); Cinco Prefcios Para Cinco Livros No

    Escritos (1872); A Filosofia na poca Trgica dos Gregos (1873); e, talvez o mais famoso dos

    inditos do jovem Nietzsche, Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral (1873).

    A PRIMEIRA FASE

    De um ponto de vista genrico, pode-se afirmar que i questo central da

    filosofia do jovem Nietzsche est ligada ao destino da arte e da cultura no mundo

    moderno. Nesse momento, ele se encontra profundamente influenciado pela metafsica

    da vontade de Schopenhauer (1788-1860), o terico do pessimismo, que considerava que

    Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1974: p. 305.

  • o universo no era expresso do intelecto e da vontade de Deus, nem efeito de outra

    espcie de princpio racional. Para ele, a essncia do universo um impulso cego,

    denominado Vontade, vida e insacivel, eternamente em busca de satisfao.

    Outra influncia decisiva para o jovem Nietzsche foi a teoria da arte de Richard

    Wagner (1813-83). Este tambm se inspirou em Schopenhauer, acreditando que a

    msica seria a mais adequada forma de manifestao daquela fora criadora do inundo,

    a Vontade. Tomando Wagner e Schopenhauer como seus aliados, Nietzsche empreende

    uma crtica radical das tendncias culturais dominantes em seu tempo, caracterizadas

    por uma confiana ingnua nas idias de evoluo e progresso lgico ou natural, no

    curso dos quais a humanidade teria alcanado um estgio de desenvolvimento em que

    estaria em condies de, humanizando a natureza e racionalizando a sociedade,

    aproximar-se do ideal da felicidade universal.

    Nietzsche se opunha tambm a outra tendncia de sua poca, que consistia em

    valorizar uma forma de intelectualidade erudita, burocrtica e estril que, em nome de

    uma pretensa neutralidade cientfica, se mantinha numa posio de distncia em

    relao aos interesses concretos de um povo, s necessidades e urgncias da vida.

    Em contraposio ao gosto dominante entre seus contemporneos, em matria

    tanto de filosofia quanto de cincia, arte, religio, moral e poltica, Nietzsche se volta

    para a Grcia pr-socrtica, com o propsito de nela buscar uma fora originria, de que

    esperava um renascimento do esprito trgico na Europa, um contramovimento em

    relao ao cientificismo otimista dos tempos modernos.

    Ctico quanto tese de que a natureza humana originariamente boa, no

    partilhando a confiana ilimitada na onipotncia da cincia e cia racionalidade,

    Nietzsche esperava da arte, especialmente da msica de Wagner, uma restaurao da

    cultura trgica, no mesmo esprito em que esta florescera entre os gregos, embalada por

    um senso artstico notavelmente desenvolvido e por uma postura corajosa perante o

    drama da existncia.

    Para Nietzsche, havia algo em comum entre a situao dos gregos, poca do

    florescimento da tragdia, e a situao da Europa no sculo 19. Se Schopenhauer tinha

    razo, com sua metafsica da Vontade, ento o corao pulsante do universo era um

    mpeto cego, desprovido de finalidade, eternamente sofredor, porque eternamente

    carente. Por conseguinte, no haveria mais lugar para as iluses consoladoras, at

  • aquela poca alimentadas pela tradio, de que a cincia, a religio ou a moral seriam

    capazes de responder a eterna pergunta pela razo de ser e pelo sentido da existncia

    humana no mundo.

    Assim, nem pela razo especulativa nem pela razo prtica nem pela via da

    cincia, nem pela da moralidade se poderiam justificar a existncia do universo e a

    razo de ser da vida humana. O Nascimento da tragdia a Partir do Esprito da Msica

    alis toda a metafsica de artista, que caracteriza esse primeiro perodo da filosofia de

    Nietzsche encontra nesse diagnstico da situao cultural da Europa seu horizonte

    de compreenso: "s como fenmeno esttico toma-se justificada a existncia do mundo [das

    Dasein der Welt]7

    O NASCIMENTO DA TRAGDIA

    E nesse sentido que os gregos do perodo trgico seriam exemplares. Eles

    pressentiram e vivenciaram de modo exacerbado as atrocidades da existncia e as

    "dores do mundo",sem necessidade cie subterfgios moralistas. Prova disso a

    ferocidade de que do mostras os combates entre as cidades-estados, assim como as

    agruras materiais e espirituais que estavam na base do florescimento da cultura grega.

    Entretanto, mesmo compreendendo que o sofrimento e a violncia da guerra se incluem

    entre as condies inexorveis da vida, souberam dar sua existncia a elevao e a

    beleza que encontramos presentes em todos os setores do mundo grego, no nvel tanto

    das instituies materiais, quanto das esferas superiores da cultura espiritual. Em outras

    palavras, os gregos souberam, exemplarmente, dominar o caos de seus impulsos,

    atingindo um domnio de si que Uies permitia transfigurar em beleza os horrores da

    existncia.

    O jovem Nietzsche ilustra essa sua teoria da "jovialidade" (Heiterkeit) grega8

    recorrendo proverbial lenda de Sileno, sbio acompanhante do deus Dionsio.i.

    Apolodoro narra que o rei Midas empreendeu caa a Sileno, para que este lhe revelasse

    o maior de todos os segredos: o que seria paia o homem o melhor e o mais digno de

    desejar. Finalmente apreendido e forado a falar, Sileno teria respondido: "Estirpe

    7 Nietzsche, O Nascimento da tragdia, cap. V. 8 Serenojovialidade, na excelente traduo brasileira, feita por Jac Guinsburg, de O Nascimento da tragdia. So Paulo: Companhia das letras, 1992, nota 2; p. 145.

  • miservel e transitria, filhos do acaso e da fadiga, por que me foras a dizer o que para

    ti seria mais vantajoso no ouvir? O melhor de tudo totalmente inatingvel para ti: no

    ter nascido, no ser, ser nada. E o melhor, em segundo lugar, , para ti, morrer logo".

    Esta a lio deixada pela tragdia grega: arte e cultura tm como finalidade a

    transformao desse horror em beleza, em poesia pica e lrica popular, em msica e

    ditirambos,9 em instituies tico-religiosas e polticas como a obra de arte do Estado

    grego. As narrativas mticas, em geral, so expresses de uma vivncia comum do

    mundo, fundamentadora da identidade de um povo. Esse , para Nietzsche, o mistrio

    de Apoio e Dionsio smbolos intuitivos das duas foras ou impulsos fundamentais da

    natureza, aos quais corresponde a dupla face da experincia grega do mundo.

    Apolo e Dionsio Apolo representa o lado luminoso da existncia, o impulso para gerar as

    formas puras, a majestade dos traos, a preciso das linhas e limites, a nobreza das

    figuras. Ele o deus do principio de individuao, da sobriedade, da temperana, da justa

    medida, o deus do sonho das belas vises. Dionsio, por sua vez, simboliza o fundo

    tenebroso e informe, a desmedida, a destruio de toda figura determinada e a

    transgresso de todos os limites, o xtase da embriaguez. Apolo o patrono das artes

    figurativas, Dionsio o deus da msica.

    A tragdia a sntese dessas foras antitticas: nela se conciliam, por um lado, a

    fora cega e inexorvel do destino, que a tudo destri, e, por outro, a intensidade

    mxima do que resiste ao destino, a figura colossal do heri. Por essa reconciliao, a

    tragdia transfigura em drama artstico aquela sabedoria pessimista de Sileno, segundo

    a qual tudo o que nasce mesmo o que h de mais grandioso tem de perecer, para

    que o ciclo da vida se perpetue. Sem destruio, no h criao; sem trevas, no h luz;

    sem barbrie e crueldade, no h beleza nem cultura.

    Scrates e o pensamento cientfico

    Em relao ao perodo herico da tragdia tica, a tendncia representada pela

    figura de Scrates significou uma ruptura radical. O surgimento da escola socrtica,

    9 Gnero potico grego, sobretudo ligado ao cntico coral religioso em culto a Dionsio.

  • com a extrema valorizao do pensamento lgico e da dialtica, representaria no um

    progresso em relao Grcia pr-socrtica, porm o contrrio disso. A racionalidade

    de tipo socrtico matriz cio cientificismo moderno tem como pressuposto a

    negao da experincia arcaica e genuinamente grega. Scrates e seus contemporneos

    j no estariam mais altura da experincia trgica do mundo, no conseguindo

    suportar o racionalmente incompreensvel o absurdo da existncia.

    Para poder viver, o homem terico busca refgio na mesma f ilusria que est

    na raiz da cincia moderna; isto , ele se nutre no otimismo metafsico que est na base

    da racionalidade dialtica: a crena na onipotncia do logos cientfico. O tipo de homem

    terico, encarnado por Scrates, acredita ser possvel, mediante o princpio de

    causalidade, desvendar os segredos mais abissais da realidade no somente conhec-

    los, como tambm corrigi-los. O otimismo terico considera a cincia um remdio

    universal, que cura a ferida eterna do existir, e identifica no erro e na ignorncia a fonte

    de todo mal.

    Uma cultura de tipo socrtico necessariamente iluminista e, portanto, hostil

    arte e ao mito, considerados uma forma de ignorncia e de iluso, unia vez que no

    explicam as verdadeiras causas das coisas. Entretanto, essa mesma cultura se converte

    em seu contrrio isto , abre espao para um renascimento da iluso artstica

    quando a conscincia do homem terico admite que nem tudo acessvel

    racionalidade lgica; mais ainda, que o essencial em nossa existncia permanece envolto

    num mistrio impenetrvel a qualquer explicao racional. Tal experincia teria sido

    vivida na Grcia e estaria simbolizada no enigma de Scrates ao mesmo tempo sendo

    inimigo dos artistas e, no final da vida, compondo msica e pondo em versos algumas

    fbulas de Esopo. Isto : retomando ao mito. Essa seria, pois, a catstrofe da razo

    socrtica.

    Se, em O Nascimento da Tragdia, Nietzsche recorre Grcia como paradigma de

    cultura, no com o propsito de oferecer ao pblico um tratado erudito de filologia

    clssica. O retomo aos gregos tem os olhos postos no presente, na cultura alem de seu

    tempo. Esta representa, para o jovem Nietzsche, o prolongamento, mas tambm a

    agonia, de um modelo de cultura que tem em Scrates sua figura emblemtica. Trata-se

    de um tipo de cultura essencialmente lgica e dialtica, que, como Scrates, deposita

    toda a sua esperana na onipotncia do conhecimento cientfico, no valor absoluto da

  • verdade a qualquer preo. Tal como Scrates, a cultura moderna sucumbe sua

    catstrofe quando chega ao discernimento de suas prprias fronteiras e limites, isto ,

    quando reconhece, a partir dos recursos e das exigncias mais avanadas da prpria

    cincia, que a razo tcnico-cientfica no onipotente. Mais ainda, que a confiana

    nessa onipotncia uma forma poderosa de iluso.

    O renascimento do esprito trgico Esse discernimento constitui, para Nietzsche, o principal resultado do

    desenvolvimento da filosofia alem desde Kant. A filosofia crtica culminaria com a

    descoberta de que os interesses essenciais da vida humana a crena em Deus, na

    liberdade e na imortalidade da alma - so racionalmente inexplicveis. Por essa razo,

    Nietzsche espera, de uma aliana contrada entre a tradio espiritual da filosofia

    alem, simbolizada em Schopenhauer, e o poder irresistvel da msica alem,

    simbolizada em Wagner, um renascimento do esprito trgico, que dana novo alento e

    autenticidade a uma cultura depauperada, que vive do consumo da cultura de todos os

    povos e pocas, numa confuso brbara de todos os estilos; uma cultura consumida

    pela erudio vazia, desprovida de identidade prpria e de vitalidade.

    Do mesmo modo que, na Grcia, foi a partir do solo sagrado da arte

    especialmente da tragdia nascida do esprito da msica que floresceu o melhor da

    cultura helnica, assim seria tambm, na Alemanha, o esprito da msica de Wagner o

    que redespertaria o vigor originrio dos mitos germnicos, fazendo renascer a cultura

    trgica alem e, com ela, como farol para os outros povos da Europa, as possibilidades

    de elevar o ser humano bem acima do que eleja realizara ao longo de sua histria.

    CONSIDERAES EXTEMPORNEAS Esse constitui todo o sentido da vigorosa polmica que Nietzsche manteve com

    as principais correntes intelectuais de seu tempo, num programa com o ttulo

    Consideraes Extemporneas. Nestas, Nietzsche pe impiedosamente a nu a hipocrisia, o

    artificialismo, a aridez e a cndida auto-satisfao que caracterizam a moderna cultura

    europia, em todas as suas esferas. Justamente por ser privada de autntica conscincia

    de si, a moderna cultura europia , no mau sentido do termo, artifcio, "filistesmo".

    Em razo da hipertrofia do conhecimento histrico, a cultura moderna uma

  • mistura catica das formas culturais de todas as pocas a que tem acesso; nesse sentido,

    o termo que a designa ,para Nietzsche, "barbrie civilizada". Falta-lhe, pois, a

    caracterstica que constitui o trao essencial de toda verdadeira cultura: "Cultura ,

    sobretudo, a unidade do estilo artstico em todas as manifestaes da vida de um

    povo".10

    O projeto wagneriano de uma "obra de arte total" seria, portanto, essa fora

    geradora de uma nova cultura, expresso artstica das experincias fundamentais que

    do origem a uma conscincia de si. Esta, por sua vez, seria nutrida pela energia mgica

    do mito e da msica, atuando, na qualidade de potncia tica, como substituto da

    moderna religiosidade caduca, que restauraria os laos efetivos de solidariedade,

    imprimindo ao povo a unidade de um estilo. E a unidade desse estilo artstico,

    marcando todas as formas de manifestao da vida de um povo, desde a produo e

    reproduo da vida material at as esferas superiores da cultura, o que

    verdadeiramente constitui sua identidade.

    Essa a razo de ser da aproximao entre a tragdia grega e o drama musical

    wagneriano. Os gregos podem servir de exemplo porque aprenderam, pouco a pouco, a

    organizar o caos de elementos que se misturavam confusamente na histria de sua

    civilizao: elementos semticos, babilnicos, ldios, persas, egpcios etc. Ao faz-lo, eles

    nos indicaram o caminho de superao de nossa barbrie civilizada.

    Esse background esttico-metafsico caracterstico do primeiro perodo da

    trajetria filosfica de Nietzsche. E justamente nesse horizonte que se deve apreciar a

    crtica do jovem Nietzsche s idias modernas de liberdade individual e igualitarismo,

    democracia, ao liberalismo, cuja exacerbao ele via se configurar nos movimentos

    revolucionrios socialistas e anarquistas. Sua crtica da modernidade poltica, seus

    estudos sobre o Estado grego so determinados, antes de tudo, por essa preocupao

    com a cultura entendida como transfigurao artstica da natureza.

    A motivao fundamental de sua filosofia poltica pode ser buscada no em

    alguma identificao com os interesses de uma classe social ou movimento poltico, mas

    na compreenso da cultura como redeno da natureza e da vida. Essa mesma

    observao vale para as fases ulteriores de seu filosofar. So equivocadas, portanto, as

    10 Consideraes Extemporneas III em: Nietzsche, Smtliche Werke, ed. G. Colli/M.Montinari (Kritische Studienausgabe doravante KSA). Berlin/New York?Mnchen: De Gruyter/DTV, 1890, vol. 1, 1; p. 163.

  • interpretaes que consideram sua obra uma apologia da aristocracia e da escravido.

    Nietzsche, de fato, no acreditava que uma organizao racional das relaes

    sociais faria desaparecer completamente da sociedade moderna as figuras negativas da

    violncia, opresso e explorao. Suas razes para isso consistem em que o ser humano

    , sobretudo, uni animal impulsivo, dominado por foras que escapam ao controle

    integral e autrquico de sua conscincia. Para Nietzsche, a racionalidade uma forma

    refmada da vontade de poder, e no ainda suficientemente vigorosa para exercer pleno

    domnio sobre figuras menos espiritualizadas dessa mesma vontade que, na forma de

    paixes arrebatadoras, ameaam permanentemente arrastar o homem s experincias

    mais terrveis de violncia e destruio.

    Num fragmento pstumo que permaneceu indito, escrito no ano de 1883,

    Nietzsche registra esta sua viso pessimista da histria da humanidade: "Cultura

    apenas uma delgada pelinha de ma sobre um caos incandescente".11 Mas isso no

    implica uma justificao terica da fora bruta. Pelo contrrio: em sua opinio, a aposta

    fundamental no jogo da cultura sempre consistiu, e consiste ainda, na organizao do

    caos, na sublimao das foras vulcnicas que se agitam no interior do homem. No a

    apologia do monstruoso e do irracional, mas o reconhecimento sem disfarces de que,

    sem a energia poderosa desse caos pulsional, nenhuma elevao e grandeza teria sido

    possvel na Terra. Entretanto, a tarefa da cultura consiste justamente em transfigurar

    essa matria incandescente em esprito, transformar monstros selvagens em animais

    domsticos, com os quais belo e agradvel viver.

    11 Fragmento pstumo de 1883, nmero 9(48); em: KSA, vol. 10; p. 362.

  • 4. UMA FILOSOFIA PARA ESPRITOS LIVRES

    A ruptura com a metafsica de artista, descrita no captulo anterior, tambm

    um distanciamento crtico em relao filosofia de Schopenhauer e uma desiluso com

    as esperanas de renovao cultural depositadas no projeto wagneriano. Isso origina a

    nova configurao de temas e problemas, caracterstica do segundo perodo de sua

    filosofia, no qual h uma predominncia do estilo aforstico, inspirado nos moralistas

    franceses.12

    No vero de 1876, deu-se a inaugurao solene do Teatro Wagner, na cidade de

    Bayreuth, na Baviera, epicentro do projeto cultural denominado "obra de arte total". O

    quarto opsculo da srie Consideraes

    Extemporneas, tendo por ttulo "Richard Wagner em Bayreuth", foi escrito

    como artigo de apresentao, explicitando o significado cultural do empreendimento

    wagneriano. Contudo, a despeito dessa sua origem, o texto no deixa de sugerir

    avaliaes profundamente ambguas a respeito da obra de Wagner.

    Quanto a Schopenhauer, seu nome no sequer mencionado no prximo livro

    escrito por Nietzsche, a coletnea de aforismos que constituem os dois volumes de

    Humano, Demasiado Humano, publicado em 1878 e unanimemente considerado o marco

    inicial de seu segundo perodo de produo. E, no entanto, o livro inteiro um ajuste de

    contas definitivo com as idias fundamentais do sistema filosfico do autor de O Mundo

    Como Vontade e Representao.

    HUMANO, DEMASIADO HUMANO

    Dedicando o livro memria do filsofo francs Voltaire e escolhendo como

    epgrafe uma citao de O Discurso do Mtodo para bem conduzir a prpria razo e buscar a

    verdade na cincia, de Ren Descartes, Nietzsche j o insere simbolicamente na tradio

    da filosofia das Luzes, caracterizada pela confiana no poder emancipatrio da cincia,

    12 Corrente filosfica francesa dos sculos 16 e 17 que se notabilizou pela capacidade de observao psicolgica dos problemas da moralidade e dos costumes, expressos em estilo literrio caracteristicamente breve, denominado aforismo, ou em mximas e sentenas morais. Franois de Ia Rochefoucauld (1613-80) foi um de seus principais representantes. O aforismo tem extraordinria importncia no modo de pensar e escrever de Nietzsche.

  • em seu triunfo contra as trevas da ignorncia e da superstio. No por acaso, portanto,

    a obra tem como subttulo Um Livro Para Espritos Livres.

    Se, para o jovem Nietzsche, era a arte e no a cincia ou a moralidade o

    que constitua a atividade verdadeiramente metafsica do homem, permitindo a ele

    aproximar-se da dimenso "essencial" da existncia, em Humano, Demasiado Humano ela

    destituda desse privilgio. Fazendo uma referncia velada a pressupostos

    fundamentais da filosofia de Schopenhauer, dos quais partilhara, Nietzsche toma agora

    o cuidado de se afastar criticamente deles: "Que lugar ainda resta agora para a arte?

    Antes de tudo, ela ensinou, atravs de milnios, a olhar com interesse e prazer a vida,

    em todas as suas formas, e alargar tanto nosso sentimento que por fim brademos:

    'Como quer que seja a vida, ela boa'. Essa doutrina da arte sentir prazer na

    existncia e considerar a vida humana uma parte da natureza [...] essa doutrina foi

    implantada em ns; ela vem luz novamente agora como irresistvel necessidade de

    conhecer. O homem cientfico o desenvolvimento do homem artstico".13

    Essa segunda fase na trajetria filosfica de Nietzsche pode ser caracterizada,

    assim, por uma valorizao do conhecimento cientfico e um abrandamento da oposio

    entre arte e cincia que, com seus diferentes matizes, caracterizava a metafsica de

    artista do jovem Nietzsche. Agora, o homem terico cujos modelos eram Scrates e

    Plato no se ope mais ao artista; pelo contrrio, pensado como seu

    desenvolvimento, assim como o prprio artista passa a ser interpretado como

    desenvolvimento do homem religioso. O prazer de viver, a satisfao fluda na

    contemplao das formas da existncia, cultivados na humanidade sob influncia da

    arte, desafogam-se na "irresistvel necessidade de conhecimento".

    Se, para o jovem Nietzsche, o aprofundamento do conhecimento cientfico

    conduzia a proliferao de um saber erudito e estril, que sufocava a vida, para o

    Nietzsche do perodo intermedirio o conhecimento cientfico toma livre o esprito e,

    como herdeiro da riqueza e da elevao de nimos produzidas pela arte, passa a

    assumir uma funo transfiguradora, embelezadora da existncia.

    Pouco mais tarde, em Aurora: Pensamentos Sobre os Sentimentos Morais (1881),

    Nietzsche desenvolveria e aprofundaria seu novo entendimento relativo ao papel da

    cincia e oposio entre esta e a arte. Contrapondo-se queles que valorizam apenas a

  • imaginao e as obras-primas do disfarce esttico, que acreditam s reconhecer beleza

    no abandono da realidade nua e crua, Nietzsche nos fala de um frisson brotado do

    menor e mais seguro passo no progresso do conhecimento. O aforismo em questo tem

    como ttulo "Conhecimento e Beleza":

    "Eles pensam que a realidade horrvel; contudo, no pensam que o

    conhecimento at mesmo da mais horrvel realidade belo, do mesmo modo que aquele

    que conhece bastante e amide est, por fim, muito longe de considerar horrvel o

    grande todo da realidade, cuja descoberta lhe proporciona sempre felicidade. A

    felicidade do homem do conhecimento aumenta a beleza do mundo e toma mais

    ensolarado tudo o que ; o conhecimento espalha sua beleza no apenas em tomo das

    coisas, como tambm, com o tempo, dentro das prprias coisas".14

    Data desse perodo intelectualista a valorizao da disciplina dos mtodos

    cientficos, que marcar daqui em diante toda a sua obra. Por essa razo, Nietzsche

    procurar desenvolver at o mximo de refinamento seus dotes de fillogo, de

    psiclogo a ponto de considerar a si mesmo, anos mais tarde, o primeiro psiclogo

    da Europa , de historiador-filsofo, de genealogista da moral. Tambm intensifica

    seus estudos de cincias naturais, de fisiologia e biologia, e procura tomar contato com

    os ltimos desenvolvimentos das disciplinas mdicas e neurolgicas.

    Em 1877, seu amigo Paul Re publica A Origem dos Sentimentos Morais. Pode-se

    afirmar que foi em oposio a esse livro que surgiram as hipteses genuinamente

    metzscheanas a respeito da gnese de nossos conceitos e sentimentos morais.

    E nessa curiosidade histrico-psicolgica a propsito do surgimento de nossos

    sentimentos e categorias morais que podemos surpreender em Humano, Demasiado

    Humano um procedimento caracterstico, que no abandonar mais a trajetria de seu

    pensamento. Trata-se de um tipo de explicao que passa a constituir para Nietzsche,

    desde ento, um modelo de conhecimento cientfico: a explicao genealgica.

    13 Humano, demasiado humano, I, aforismo 222. 14 Aurora, V, Aforismo 550.

  • A EXPLICAO GENEALGICA

    De acordo com esse mtodo, a explicao de um fenmeno qualquer depende

    sempre da reconstituio dos momentos constitutivos de seu vir-a-ser, de tal maneira

    que o sentido atual desse fenmeno no pode ser obtido sem o conhecimento da srie

    histrica de suas transformaes e deslocamentos.

    Aplicando-o gnese dos sentimentos morais, Nietzsche afirma que aquilo

    que, a um olhar no suficientemente adestrado, pode aparecer como uma oposio

    entre contrrios por exemplo, entre bom e mau, egosta e altrusta, mas tambm entre

    belo e feio, verdadeiro e falso, objetivo e subjetivo , sempre se revela, luz de sua

    considerao histrico-genealgica, como uma transformao do oposto em seu outro.

    Sugestivamente, Nietzsche d a isso o nome de "qumica cios conceitos e dos

    sentimentos", na medida em que o ilustra a partir do fenmeno qumico da sublimao:

    "A filosofia histrica que, de modo algum, pode mais ser pensada

    separadamente da cincia natural, o mais jovem de todos os mtodos filosficos,

    revelou em casos singulares (c supostamente ser este seu resultado em todos os casos)

    que no existem contrrios, a no ser no habitual exagero da concepo popular ou

    metafsica, e que um erro da razo subjaz a essa contraposio: nos termos de sua

    explicao, no existe, rigorosamente falando, nem um agir no-egosta, nem uma

    contemplao desinteressada; ambos so sublimaes, nas quais o elemento

    fundamental, quase volatilizado, demonstra-se como existente apenas para a mais

    refinada observao".15

    Dessa maneira, no somente desaparecem as antteses entre plos opostos,

    como tambm se dissolvem as entidades estveis, as substncias fixas e permanentes. O

    conjunto inteiro dos fenmenos, seja no domnio da natureza, seja no do esprito,

    constitui-se como um universo em constante transformao, um vir-a-ser (ou "devir"). O

    carter especfico da abordagem histrico-genealgica nietzscheana constitudo pela

    direo de seu olhar investigativo: a perspectiva se orienta de cima para baixo, das

    figuras mais solenes e refinadas onde no se percebe a matria grosseira - a suas

    condies de possibilidade.

    A partir de Humano, Demasiado Humano, Nietzsche passa a proceder

  • metodicamente nesse sentido, sempre escavando os subterrneos das mais requintadas

    formaes culturais, especialmente da moral.

    "Quem contempla aqueles temveis despenhadeiros escarpados onde geleiras

    se acumulam considera impossvel que venha um tempo em que, no mesmo stio, se

    instale um vale de relvado e floresta, com regatos. Assim tambm na histria da

    humanidade: as foras mais selvagens abrem caminho, e, embora destrutivas, de incio

    a atividade delas foi necessria para que, mais tarde, um modo de vida mais suave a

    erguesse sua morada. As energias terrveis aquilo que se chama o Mal so os

    ciclpicos arquitetos e construtores de caminho da humanidade." 16

    Percebe-se atuando aqui um ideal de filosofia histrica que no pode prescindir

    da colaborao das demais cincias, na medida em que, para estar altura de seu

    tempo, o filsofo deve ser capaz de fazer uso dos mais avanados resultados das

    disciplinas cientficas, com o propsito de se elevar a uma concepo de mundo

    liberada das fantasias e supersties engendradas pela religio, pela moral e pela

    metafsica. Nesse sentido, o homem terico no representa apenas o desenvolvimento

    do artista, mas, sobretudo, a passagem da infncia religioso-metafsica, atravs do

    perodo de adolescncia representado pela arte, para a plena maturidade conferida pelo

    esprito cientfico.

    Retomando uma metfora comum ao pensamento clssico, que pe em

    correspondncia as fases de desenvolvimento da cultura de cada indivduo com as

    etapas de evoluo histrico-cultural da humanidade, Nietzsche d a seguinte

    expresso sua prpria idia do desenvolvimento humano:

    "Os homens retomam cada vez mais rpido as fases costumeiras da cultura

    espiritual que foram alcanadas ao longo da histria. Eles atualmente comeam por

    fazer seu ingresso na cultura como crianas religiosamente motivadas e desenvolvem

    essa sensibilidade em sua suprema vivacidade at o dcimo ano de viela; passam,

    ento, por formas cada vez mais enfraquecidas (pantesmo), enquanto se aproximam da

    cincia; superam inteiramente Deus, imortalidade e coisas similares, mas sucumbem

    magia de uma filosofia metafsica; por fim, esta tambm se tona desacreditada; a arte

    parece, ao contrrio, cada vez mais confivel, de modo que, durante algum tempo, a

    15 Humano, demasiado humano, I, 1 16 ld..246; em: KSA vol. 2: p. 205.

  • metafsica apenas pode permanecer e seguir vivendo numa espcie de transmutao em

    arte, ou numa disposio artstico-transfiguradora. Todavia, o senso cientfico se toma

    cada vez mais imperioso e conduz o homem para a cincia natural, a histria e,

    nomeadamente, para os mais severos modos de conhecimento, ao passo que arte

    atribuda uma significao cada vez mais leve e despretensiosa. Isso tudo costuma

    ocorrer agora nos primeiros 30 anos de um homem. E a recapitulao de uma tarefa

    para a qual a humanidade trabalhou sobre si durante talvez 30 mil anos".17

    Pode-se afirmar, considerando o nvel de generalidade exigido por esta

    apresentao, que os dois livros publicados a seguir Aurora: Pensamentos Sobre os

    Preconceitos Morais (1881) e A Gaia Cincia (1882) permanecem sob a influncia do

    mesmo esprito intelectualista que descrevemos como caracterstico do segundo perodo

    da filosofia nietzscheana.18

    AURORA E A GAIA CINCIA

    Em Aurora, Nietzsche lana mo cia penetrao psicolgica, do rigor de sua

    filosofia histrica, para escavar o campo da moralidade e da religio, com o propsito

    de examinar as fundaes sobre as quais foram erigidos os majestosos edifcios ticos da

    tradio ocidental. Esse trabalho de topeira no subsolo insalubre dos sentimentos

    morais visa trazer superfcie de um conhecimento livre de preconceitos as condies e

    os propsitos, as motivaes inconfessveis, que esto na origem dos valores ticos

    prctensamente absolutos. Trata-se de um livro marcado por uma disposio de nimo

    ao mesmo tempo grave e libertria: um livro das profundezas sombrias, que aspira pela

    luz da superfcie.

    Nele Nietzsche se considera a si mesmo representante e legtimo herdeiro da

    tradio metafsica ocidental; trata-se, porm, daquele herdeiro em cujo pensamento

    essa tradio tomou conscincia de si, por meio do conhecimento de sua prpria

    origem. For isso, ela no pode mais se furtar confisso franca das condies

    problemticas de surgimento de seus valores mais elevados. A honestidade intelectual,

    17 Id., 272; p. 224s. 18 Aqui seria impossvel excluir o livro V A Gaia Cincia, escrito em 1886 e acrescido obra na segunda edio, ocorrida naquele ano. Tanto cronolgica quanto tematicamente, esse livro V A Gaia Cincia pertence ao terceiro

  • caracterstica da moderna conscincia cientfica, a instncia que impe, como um

    dever, a tarefa paradoxal de superar as formas e valores da moralidade ocidental.

    Aurora sugere, pois, o surgimento de uma nova luz para a humanidade, um novo

    tempo, que pode sonhar com a esperana brotada da liberdade espiritual.

    A Gaia Cincia (1882), por sua vez, pode ser considerado um livro que, mesmo

    ainda permanecendo no interior da "filosofia para espritos livres", j anuncia a

    transio para a terceira etapa do filosofar nietzscheano. Nele permanece dominante a

    perspectiva de valorizao da racionalidade cientfica, mas de uma cincia alegre

    ("gaia"), que pode se dar ao luxo intelectual de percorrer, com graa e leveza, os

    caminhos mais pedregosos, levar sobre os ombros os mais penosos fardos de nossa

    tradio, sem negatividade ou rancor, esforando-se por multiplicar as perspectivas,

    para poder compor uma imagem mais plena das coisas, embora nunca total.

    Em A Gaia Cincia - ao lado dos temas sempre presentes na filosofia de

    Nietzsche, como a crtica do conhecimento, da arte, da religio, da metafsica e da moral

    , pode-se perceber claramente um aprofundamento e intensificao das preocupaes

    pedaggicas, a inteno de organizar o pensamento de forma tal que uma leitura

    conveniente da obra seja o caminho para a libertao suprema. Para esse leitor ideal, o

    livro no visa ensinar uma doutrina; sua lio fundamental a responsabilidade do

    pensamento independente. O mestre aqui, sobretudo, aquele que prepara o discpulo

    para abandon-lo, para que este empreenda por si mesmo a aventura do esprito.

    A filosofia dos espritos livres se toma, em A Gaia Cincia, uma ascese e

    preparao para o surgimento da personalidade autntica que, pela disciplina crtica,

    aprendeu a discriminar entre as necessidades e aspiraes que brotam de sua natureza

    singular e aquelas que lhe so impostas do exterior, afastando-a do caminho que a

    poderia conduzir a si mesma. Nietzsche acredita que esse caminho est reservado apenas

    para aqueles poucos que tm a ousadia de pensar e responder por si prprios.

    perodo da filosofia de Nietzsche.

  • 5. A DERRADEIRA FILOSOFIA, OU COMO TORNAR-SE O QUE SE

    Publicado em quatro partes, entre 1883 e 1885, Assim Falou Zaratustra: um Livro

    Para Todos c Para Ningum o trabalho de Nietzsche que mais dificuldades apresenta

    interpretao. Nele os ensinamentos e experincias do personagem-ttulo so

    apresentados como um drama em prosa, em cuja narrativa se combinam os mais

    variados elementos estticos de gnero, forma e estilo. Nietzsche explora ao infinito a

    rtmica, a sonoridade e os matizes da lngua alem, ao mesmo tempo que recorre

    encenao teatral, a formas diversas de narrao, poesia, ao canto, dana, stira e

    pardia, assim como, sobretudo, "intertextualidade". Esse procedimento consiste, no

    caso de Nietzsche, em criar novas e surpreendentes significaes, a partir da

    apropriao seletiva de textos consagrados pela tradio, ou at mesmo de argumentos

    de adversrios, deslocando-lhes o sentido original.

    Assim Falou Zaratustra condensa efetivamente todos os focos de interesse que

    constituem o mago do pensamento de Nietzsche: a desconstruo da metafsica, a

    denncia da hipocrisia moral, as preocupaes com a educao, a poltica e o destino da

    cultura, a crtica do Estado.

    O livro contm passagens que, desde seu aparecimento, pertencem ao acervo

    clssico da filosofia moderna. Alguns fragmentos so o bastante para ilustrar sua

    riqueza; num deles, Nietzsche faz implodir o dualismo metafsico que separa corpo e

    alma, matria e esprito:

    "O corpo uma grande razo, uma pluralidade dotada de um sentido, uma

    guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.

    Instrumento de teu corpo tambm tua pequena razo, meu irmo, a que

    chamas 'esprito', um pequeno instrumento e um pequeno joguete de tua grande razo.

    Instrumentos e joguetes so o sentido e o esprito; por detrs deles est, porm, o si

    mesmo (Selbst). Por detrs de teus pensamentos e sentimentos, meu irmo, encontra-se

    um soberano poderoso, um sbio desconhecido ele se chama si mesmo. Em teu corpo

  • habita ele, ele o teu corpo".19

    Em outro fragmento, Nietzsche condensa suas idias acerca da vocao

    pedaggica, essencialmente crtica, de sua filosofia. Seus esforos devero confluir para

    o cultivo da personalidade autntica: "Meu irmo! Queres caminhar para a solido?

    Queres procurar o caminho que conduz a ti mesmo? Detm-te um pouco e escuta-me.

    'Aquele que procura, facilmente se perde a si mesmo. Todo partir para a solido

    culpa assim fala o rebanho. E tu fizeste parte do rebanho durante muito tempo. A voz

    do rebanho continuar ressoando dentro de ti. Queres, porm, percorrer o caminho de

    tua tribulao, que o caminho para ti mesmo? Mostra-me, ento, teu direito e tua fora

    para faz-lo".20

    No Zaratustra, com a intransigncia do profeta, Nietzsche reedita sua crtica a

    todas as esferas da tradio cultural. O personagem central da obra se faz porta-voz de

    doutrinas fundamentais para o futuro do homem: a vontade de poder, o eterno retomo do

    mesmo e o alm-do-homem.21 A ao combinada desses trs ensinamentos dever

    produzir o desmascaramento e a runa da hipocrisia que caracteriza a cultura moderna.

    Por essa razo, o livro pode ser compreendido como uma das mais estridentes recusas

    dos valores e idias de que se orgulha o homem moderno. Para ele, Nietzsche cunha a

    denominao sarcstica "o ltimo homem".

    O ltimo homem simboliza a modernidade, que considera a si mesma o ponto

    mais avanado do desenvolvimento histrico da humanidade, acreditando que a

    finalidade dessa histria consistia precisamente na chegada do moderno. Orgulhoso de

    sua cultura e formao, que o elevaria acima de todo passado, o ltimo homem cr na

    onipotncia de seu saber e de seu agir.

    Para Zaratustra, entretanto, o ltimo homem representa o mais inquietante

    rebaixamento de valor do ser humano, a transformao do homem numa massa

    impessoal de seres uniformes. O bem supremo almejado pelo ltimo homem sua

    concepo de felicidade uma combinao de mediocridade, conforto, bem-estar,

    ausncia de sofrimento e grandeza:

    "Que amor? Que 6 criao? Que 6 nostalgia? Que estrela? ^Assim

    19 Assim falou Zaratustra, I, "Dos desprezadores do corpo". 20 Id . "Do Caminho do criador". 21 O termo original empregado por Nietzsche bermensch, que tambm costuma ser traduzido por "super-homem". Preferimos a traduo proposta por Rubens Rodrigues Torres Filho: Obras Incompletas, op. cit., p. 236 s. As razes da

  • pergunta o ltimo homem, e pisca os olhos. A Terra se tomou pequena, ento, e sobre

    ela saltita o ltimo homem, que toma tudo pequeno. Sua estirpe indestrutvel, como a

    pulga; o ultimo homem o que vive mais tempo. 'Ns inventamos a felicidade' dizem

    os ltimos homens, e piscam os oUios. Nenhum pastor e um s rebanho! Todos querem

    o mesmo, todos so iguais. Quem sente de outra maneira vai voluntariamente para o

    hospcio. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite, mas

    prezamos a sade. 'Ns inventamos a felicidade', dizem os ltimos homens, e piscam os

    olhos".22

    O alm-do-homem

    Alm-do-homem um conceito que s pode ser corretamente apreendido em

    antagonismo com a figura do ltimo homem, pois ele constitui um contra-ideal da

    tendncia ao nivelamento e uniformizao que, para Nietzsche, caracteriza a moderna

    sociedade de massa. Para ele, o homem pode ser visto no como um fim como o

    deseja o ltimo homem , mas como um meio para conquistar possibilidades mais

    sublimes de existncia.

    "Eu vos ensino o alm-do-homem. O homem algo que deve ser superado.

    Que tendes feito para super-lo? Todos os seres at agora criaram algo acima deles

    prprios: quereis vs ser o refluxo dessa grande mar e retroceder ao animal, ao invs

    de superar o homem? Que o macaco para o homem? Uma zombaria e uma dolorosa

    vergonha. E justamente isso o que o homem deve ser para o alm-do-homem: uma

    zombaria e uma dolorosa vergonha. O homem uma corda estendida entre o animal e

    o alm-do-homem uma corda sobre o abismo. Um perigoso passar para o outro lado,

    um perigoso caminhar, um perigoso olhar para trs, um perigoso estremecer e parar. A

    grandeza do homem est em ser ele uma ponte, e no um fim: o que se pode amar no

    homem que ele uma passagem e um crepsculo.23

    Essa perigosa travessia que conduz do animal ao alm-do-homem s pode ser

    empreendida pelo homem moderno renunciando ao conformismo de sua mediocridade

    e auto-satisfao. Fixar o alm-do-homem como alvo de sua nostalgia uma tarefa

    escolha se esclarecero abaixo. 22 Assim falou Zaratustra. Prlogo. 23 Id. p. 14 e l6.

  • qual a humanidade s pode ser conduzida por intermdio dos dois outros

    ensinamentos de Zaratustra: a vontade de poder e o eterno retomo. Para Nietzsche,

    Schopenhauer tivera razo quando identificou na Vontade o elemento fundamental em

    todo o universo. Todavia, do ponto de vista de Nietzsche, ela no pode ser pensada,

    como ainda o fizera Schopenhauer, como um mpeto cego, desprovido de finalidade. Se

    a Vontade que determina o surgimento e a transformao de todo estado de coisas do

    universo, tal Vontade possui uma qualidade fundamental: ela vontade de poder.

    A vontade de poder

    "Onde encontrei um ser viveu te, l encontrei vontade de poder. E este mistrio

    segredou-me a prpria vida:'Veja', disse ela,'eu sou aquela que sempre tem de superar a si

    mesma'." Essa superao, a humanidade a realiza por meio das "tbuas de valor", que

    traam o rumo para o trabalho civilizatrio dos povos: "Muitos pases viu Zaratustra, e

    muitos povos: dessa maneira, ele descobriu de muitos povos o Bem e o Mal. Zaratustra

    no encontrou sobre a terra nenhum poder maior do que Bem e Mal. Uma tbua de

    valores est suspensa sobre cada povo. Olha, a tbua de suas superaes; olha, a voz

    de sua vontade de poder".24

    Para que o homem moderno possa ainda criar para alm dele mesmo,

    necessrio que se aproprie dessa natureza, ou seja, de sua vontade de poder. Somente

    desse modo poder realizar aquilo que, por meio dele, constitui o fervoroso desejo da

    vida: superar-se a si mesmo, rompendo a camisa-de-fora em que a encerrou a moderna

    civilizao ocidental a rigidez da autoconservao a qualquer custo.

    Todavia, para que o homem moderno possa corresponder a esse desejo ntimo

    da vida e se colocar em sintonia com ela, antes de tudo necessrio que tenha se

    libertado daquele ressentimento que lhe foi inoculado pela tradio metafsica: o

    desprezo pela vida, pela terra, pelo mundo, pelo corpo, pelo vir-a-ser, por tudo aquilo

    que foi at agora caluniado em nome do "verdadeiro mundo". Somente quando sua

    existncia terrena puder deixar de ser vivida sob a tica do juzo e da condenao, como

    padecimento e expiao, como ascese, pela qual se conquista a felicidade eterna; somente

    24As duas citaes se referem, respectivamente a:. Assim Falou Zaratustra, segunda parte. "Da Auto-superaco", e primeira parte. "Das Mil Metas e da nica Meta".

  • ento poder o homem instituir para si um ideal que seja tambm o sentido da terra,

    liberto da fantasia transcendente de um alm-do-mundo, com a qual ele entorpece a dor

    de sua finitude, tragdia de sua existncia.

    O eterno retorno

    Somente quando o sofrimento no for mais vivido como uma objeo contra a

    vida e um motivo para conden-la que o homem poder superar seu desejo de um

    alm metafsico e seu rancor contra a passagem do tempo. Somente dessa maneira a

    totalidade da vida poder ser assumida, sem acrscimos ou subtraes, com todas as

    suas misrias e xtases firmemente encadeados entre si, pois eles se condicionam

    mutuamente e aquele que deseja, de fato, as venturas no pode amputar as dores do

    mundo.

    O ensinamento que conduz a essa forma de superao o eterno retomo do

    mesmo. No se trata de mera aceitao resignada dos acontecimentos do destino, mas

    de afirmao incondicional, que aceita e bendiz cada instante vivido. For meio desse

    ensinamento, o homem deve aprender a agir como se a mais nfima de suas aes

    devesse se repetir eternamente, de maneira a dar sua prpria existncia a bela forma

    da obra de arte. O eterno retorno a lio que imprime ao instante o selo da eternidade.

    Se para seu grande precursor, o filsofo Baruch de Spinoza (1632-77), o

    conhecimento verdadeiro conduzia ao amor intelectual de Deus, para Nietzsche o

    ensinamento do eterno retomo leva ao amor do destino (amor fati).

    "E se um dia ou uma noite um demnio se esgueirasse em tua mais solitria

    solido e te dissesse: 'Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, ters de

    viv-la ainda uma vez e ainda inmeras vezes; e no haver nela nada de novo, cada

    dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que h de indizivelmente

    pequeno e de grande em tua vida h de retomar, e tudo na mesma ordem e seqncia -

    e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as rvores, e do mesmo modo este

    instante e eu prprio. A eterna ampulheta da existncia ser sempre virada outra vez - e

    tu com ela, poeirinha da poeira!'- No te lanarias ao cho e rangerias os dentes e

    amaldioarias o demnio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante

    descomunal em que lhe responderias: 'Tu s um deus, e nunca ouvi nada mais divino!'

  • Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como s, ele te transformaria e

    talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa:'Quero isto ainda uma

    vez e ainda inmeras vezes?', pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou

    ento, como terias de ficar bem contigo mesmo e com a vida, para no desejar nada mais

    do que essa ltima, eterna confirmao e chancela?"25

    At ser completamente ensombrecido pelo colapso mental que o abateu no

    incio de 1889, Nietzsche no conseguiu se restabelecer totalmente da amarga

    experincia que significou, para ele, o silncio total que se seguiu publicao de Assim

    Falou Zaratustra. A obra no teve sequer a nfima parcela da repercusso que dela

    esperava seu autor, e no houve nem uma recepo negativa por parte de amigos e

    conhecidos nos quais o filsofo depositava ainda alguma esperana. Nietzsche a

    concebera em tal grau de expectativa que ele a considerava um "quinto Evangelho", ou

    Antievangelho. No entanto, a obra foi praticamente ignorada durante a vida de seu

    autor. Pode-se afirmar que o sofrimento causado por esse silncio constitui a raiz da

    preocupao obsessiva de Nietzsche para esclarecer e explicitar as idias fundamentais

    de Assim Falou Zaratnstra.

    PARA ALEM DE BEM E MAL

    As duas obras subseqentes, Para Alm de Bem c Mal (1886) e Para a Genealogia

    da Moral (1887), so os principais testemunhos da tentativa de divulgar, como uma

    espcie de glossrio conceitual, os temas e problemas do Zaratustra. No primeiro deles,

    Nietzsche expe sua hiptese de interpretao global da existncia com base na

    perspectiva fornecida pelo conceito de vontade de poder.

    Opondo-se ao mecanicismo e a todo positivismo26 que almeja explicar os

    fenmenos da natureza a partir de um conjunto de leis gerais, Nietzsche contesta at

    mesmo a legitimidade de pretender obter um conhecimento objetivo dos fenmenos da

    natureza.Todos os fenmenos do universo seriam explicveis a partir no de leis

    naturais, mas do conceito de vontade de poder. O mundo visto por dentro, dir

    provocativamente Nietzsche, seria vontade de poder, e nada alm disso. Sendo assim,

    25 Gaia Cincia. IV, 341 26 Doutrina filosfica que pretende rejeitar a metafsica e fundamentar o conhecimento unicamente em fatos e leis observveis.

  • tambm o prprio conhecimento seria expresso da vontade de poder e, portanto, nada

    de imparcial, de objetivo, de constatao e organizao lgica de uma lei natural.

    "Perdoem este velho fillogo, que no pode resistir maldade de pr o dedo

    sobre ms artes de interpretao: mas aquela 'legalidade da natureza de que vs fsicos

    falais com tanto orgulho s subsiste graas a vossa interpretao e 'filologia ruim no

    nenhum estado de coisas, nenhum 'texto', mas somente um arranjo ingenuamente

    humanitrio e uma distoro de sentido, com que dais plena satisfao aos instintos

    democrticos da akna moderna! 'For toda parte igualdade diante da lei nisso a

    natureza no cie outro modo, nem est melhor do que ns.' Mas, como foi dito, isso

    interpretao, no texto; e poderia vir algum que, com a inteno e a arte opostas,

    soubesse, na mesma natureza e tendo em vista os mesmos fenmenos, decifrar

    precisamente a imposio tiranicamente irreverente e inexorvel de reivindicaes de

    potncia que, contudo, terminasse por afirmar deste inundo o mesmo que vs afirmais,

    ou seja, que tem um decurso 'necessrio' e 'calculvel', mas no porque nele reinam leis,

    mas porque absolutamente faltam as leis, e cada potncia, a cada instante, tira sua

    ltima conseqncia. Posto que tambm isto seja somente interpretao - e sereis

    bastante zelosos para fazer essa objeo? -, ora, tanto melhor! "27

    PARA A GENEALOGIA DA MORAL

    Para a Genealogia da Moral talvez seja o livro mais conhecido de Nietzsche.

    Nessa obra, ele aprofunda e consolida a crtica da moral levada a efeito em seus escritos

    anteriores, especialmente em Humano, Demasiado Humano e Aurora. No entanto,

    Nietzsche est convencido de possuir agora maior maturidade e uma linguagem

    especial para os problemas que formulara antes. Principalmente, acredita ter fornecido

    agora ao mtodo genealgico uma dimenso especial. A genealogia nietzscheana no se

    contenta mais apenas com uma abordagem histrica dos sentimentos e conceitos

    morais. A gnese histrica tarefa preparatria para uma questo mais incisiva, mais

    radical: aquela que se pergunta pelo prprio valor dos valores e avaliaes da moral

    tradicional.

    "Necessitamos uma critica dos valores morais, necessrio colocar alguma vez em

    27 Para alm do bem e do mal, aforismo 22.

  • questo o prprio valor desses valores -e para isso se tem necessidade de ter conhecimento

    das condies e circunstncias das quais surgiram aqueles valores, nas quais se

    desenvolveram e modificaram (a moral como conseqncia, como sintoma, como

    mscara, como tartufaria, como enfermidade, como mal-entendido; mas tambm a

    moral como causa, como remdio, como estmulo, como freio, como veneno), um

    conhecimento que no existiu at agora, nem sequer foi desejado."28

    Nas trs dissertaes que compem esse livro polmico, a gnese da moral

    ocidental enfocada de perspectivas distintas. Nelas Nietzsche antecipa muitas das

    mais importantes conquistas tericas da psicanlise de Freud, especialmente quando

    descreve a genealogia da conscincia moral. A segunda dissertao desenvolve a tese

    nietzscheana de acordo com a qual a cultura superior, com as severas figuras de

    moralidade que lhe so caractersticas, no pode ser entendida seno como o processo

    de internalizao e espiritualizao da crueldade. "Todos os instintos que no se

    descarregam para fora voltam-se para dentro isso que eu denomino interiorizao do

    homem: somente com isso que cresce no homem aquilo que mais tarde se denomina

    sua'alma'. "29

    Decadncia e niilismo

    Tambm em Para a Genealogia da Moral aflora um par de conceitos que ser de

    imensa importncia para o conjunto inteiro dos demais escritos de Nietzsche, todos de

    1888. So os conceitos de decadncia e niilismo, que desempenham uma funo central

    no s em O Crepsculo dos dolos, O Anticristo e Ecce Homo, mas tambm nos dois

    ensaios psicolgicos sobre Richard Wagner: O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner.

    Nesses escritos, Nietzsche interpreta a histria da cultura moderna como

    escalada do niilismo. Este, por sua vez, deve ser entendido como um sentimento

    opressivo e difuso, prprio s fases agudas de ocaso de uma cultura. O niilismo seria a

    expresso afetiva e intelectual da decadncia. Por meio dele, o homem moderno

    vivncia a perda de sentido dos valores superiores de nossa cultura. Por essa tica,

    niilismo seria o sentimento coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valorao,

    28 Para a Genealogia da Moral, Prefcio VI. 29 Id., II, 15.

  • tanto no plano do conhecimento, quanto no tico-religioso, ou sociopoltico, ficaram

    sem consistncia e j no podem mais atuar como instncias doadoras de sentido e

    fundamento para o conhecimento e a ao.

    Sintomas desse estado de prostrao podem ser detectados, segundo

    Nietzsche, em todos os setores da moderna vida social: na arte, plenamente

    instrumentalizada para fins de entretenimento, ou, como o chamaramos atualmente,

    capturada nos circuitos da indstria cultural; na poltica e na educao, empenhadas em

    estabelecer e perpetuar um ideal de homem completamente adaptado aos modos de

    produo e reproduo de uma sociedade de massas; na moral, na cincia e na filosofia,

    que se tomaram expresses ideolgicas desse desejo de rebaixamento e nivelao da

    humanidade, agenciado em escala planetria.

    Esse movimento de decadncia pode ser caracterizado no como um estado

    permanente, mas como um processo, que pode durar milnios. Um de seus traos mais

    caractersticos consiste em que ele inviabiliza a instaurao de um contra-ideal,

    expresso de um movimento ascendente de vida. A decadncia se manifesta sobretudo

    como ausncia de coeso orgnica, como independncia e destruio recproca de

    elementos e funes, cuja ao conjunta constitui o princpio de unidade na vida de um

    povo ou cultura. Por essa razo, o trao caracterstico da sociedade moderna o

    dilaceramento e a autonomizao de seus segmentos constitutivos, o individualismo

    patolgico, que a toma incapaz de se integrar numa totalidade viva, a partir de um

    projeto tico comum.

    principalmente nos trabalhos regidos pelo par decadncia/niilismo que

    Nietzsche se prope fazer o diagnstico dessa condio enferma da moderna Europa.

    nesse contexto tambm que se explicita sua crtica da modernidade poltica. Nesses

    escritos, Nietzsche diagnostica os movimentos sociais que marcam a histria recente da

    Europa tais como o desenvolvimento do socialismo e manifestaes mais violentas e

    radicais de anarquismo como aprofundamentos de um processo de decadncia de

    valores e instituies que teria tido origem na Reforma e na Revoluo Francesa, e aos

    quais ele contrape seu prprio entendimento de ao poltica. A este, Nietzsche d o

    nome "Cirande Poltica", pensada cm oposio ao acelerado processo de mediocrizao

    da humanidade e banalizao da existncia ("pequena poltica").

    O termo "poltica" tem, nesse contexto, um amplo horizonte de significao. A

  • tarefa consiste na criao das condies propcias ao surgimento de novos filsofos, que

    tenham fora e intrepidez suficientes para esculpir a figura futura do humano. Esses

    filsofos do futuro experimentados em todas as formas de auto-superao tero

    deixado para trs a impotncia do homem moderno em romper as amarras de

    moralismo e criar novos valores, como os "legisladores para os prximos milnios". A

    to discutida figura do aristocrata a que Nietzsche dedica um dos captulos de Para

    Alem de Bem e Mal - deve ser interpretada sobretudo na direo dessa tresvalorao30 do

    ideal platnico do filsofo legislador.

    Essa "Cirande Poltica" seria a legtima herdeira do que ainda restaria de foras

    vivas e potencialidades de grandeza em nossa civilizao ocidental, de que teramos

    exemplo na Grcia pr-socrtica e no Renascimento. Em oposio mediocridade dos

    nacionalismos polticos, blicos ou econmicos, essa "poltica" teria como alvo a unidade

    cultural da Europa; sua figura-smbolo seria, para Nietzsche, a dos bons europeus.

    Se, como perda de sentido e valor, o niilismo anuncia o crepsculo do projeto

    sociocultural da modernidade, ento a tarefa que Nietzsche atribui sua "Grande

    Poltica" est necessariamente ligada a uma tresvalorao de todos os valores.

    O ANTICRISTO As formas de avaliao que sempre foram determinantes para o destino atual

    de nossa cultura se revelam como o contrrio do que aparentam ser: no degraus para o

    crescimento do homem, mas foras comprometidas com um projeto coletivo de

    amesquinhamento das condies nas quais poderia prosperar, mais uma vez, a vida

    humana na Terra. E por esse caminho que se compreende como a tresvalorao de

    todos os valores est essencialmente vinculada ao livro O Anticristo. Para Nietzsche, o

    cristianismo em sua associao com o platonismo constitui a matriz de onde

    procedem todos os valores cardeais da civilizao europia. Se a condio atual de

    nossa cultura marcada pelo niilismo, a possibilidade de sua redeno seria

    vislumbrada a partir de uma inverso dos valores fundamentais dessa mesma cultura.

    Se ela se caracteriza, sobretudo, por ser uma cultura gerada e nutrida pelo cristianismo,

    sua superao seria a tarefa prpria de O Anticristo.

    30 Em suas tradues de obras de Nietzsche, Paulo Csar de Souza emprega o termo "tresvalorao" para traduzir Umwertung que significa inverso, reverso. A traduo sugere o movimento no apenas de inverter uma posio anteriormente dada, mas tambm de ultrapass-la, super-la.

  • Com essa autodesignao polmica e provocativa, Nietzsche se pretende

    definir menos como inimigo do Cristo do que inimigo do cristianismo dogmtico,

    tomado instituio e secularizado como doutrina filosfica, moral e poltica. Por essa

    razo, praticamente s vsperas de sua sncope mental, Nietzsche reformulou

    inteiramente seus projetos editoriais, identificando O Anticristo com a prpria obra

    Tresvalorao de Todos os Valores, de que originariamente ele seria apenas a primeira

    parte.

    Nietzsche destinou duas obras concludas nesse mesmo ano de 1888 para servir

    de preparao publicao de O Anticristo. O Crepsculo dos dolos e Ecce Homo teriam,

    antes de tudo, o objetivo de orientar o pblico filosfico para a leitura e compreenso de

    O Anticristo. As futuras geraes seriam conduzidas, por elas, condio de poder

    avaliar a profundidade e o significado histrico mundial dessa ltima obra, como se

    pode ler na seguinte passagem de Ecce Homo:

    "Conheo a minha sina. Um dia, meu nome ser ligado lembrana de algo

    tremendo de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda coliso

    de conscincia, cie uma deciso conjurada contra tudo o que at ento foi acreditado,

    santificado, querido. Eu no sou um homem, sou dinamite".31

    Nietzsche considerava, pois, at o fmal de sua vida lcida, que o silncio que

    pairava sobre sua obra no era casual. Sabia que nascera pstumo. Sabia que sua obra

    seria necessariamente fonte de mal-entendidos e apropriao indbita por parte de seus

    contemporneos.

    Por isso, sua confiana e sua esperana estavam nos leitores filosficos do

    futuro. No crepsculo de sua razo, importava-Uie, sobretudo, no ser confundido com

    uma caricatura daquilo que vivera e pensara. Da o grito com que inicia sua

    autobiografia intelectual: "Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me

    humanidade com a mais sria exigncia que jamais lhe foi colocada, parece-me

    indispensvel dizer quem sou. Nestas circunstncias existe um dever, contra o qual no

    fundo rebelam-se os meus hbitos, e mais ainda o orgulho de meus instintos, que

    dizer: Ouam-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo no me confundaml"32

    31 Ecce Homo. Por que sou um destino, 1. Trad Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras. 1995, p.109. 32 Id. Prlogo, 1.

  • 6. BREVE HISTRIA DA RECEPO DA OBRA DE NIETZSCHE

    A recepo da obra de Nietzsche, durante o perodo intelectualmente ativo da

    vida do filsofo, foi bastante modesta e, ainda assim, s se iniciou (significativamente)

    s vsperas da crise que o acometeu.

    O Nietzsche-Archiv: Nietzsche e o nazismo Uma primeira recepo, em grande estilo, coincide com os trabalhos do

    Nietzsche-Archiv, fundado pela irm do filsofo em 1894. Elisabeth Frster-Nietzsche,

    auxiliada por colaboradores (como, por exemplo, o fillogo Richard Oehler e o amigo e

    discpulo Peter Gast), ps em movimento uma intensa campanha de divulgao da obra

    de Nietzsche, com o propsito de trazer luz sua importncia decisiva para o

    pensamento mundial. Frster-Nietzsche e seus colaboradores, ento, procederam de

    forma injustificvel reunindo manuscritos de Nietzsche sob a rubrica de temas

    arbitrrios.

    So fragmentos e manuscritos oriundos de perodos e contextos heterogneos.

    Com base nesse procedimento, publicaram duas edies (uma em 1901 e outra em 1911)

    de um livro apcrifo, intitulado A Vontade de Poder, que deveria conter, segundo a

    verso oficial do Nietzsche-