Floriano Martins e Viviane de Santana Paulo - Abismanto

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Poemas de Floriano Martins e Viviane de Santana Paulo editados pela Sol Negro Edições | Poems from Floriano Martins and Viviane de Santana Paulo edited by Sol Negro Edições.

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Viviane de Santana Paulo, Floriano Martins © Abismanto, 2012

Imagem da capa e vinheta interna: Floriano Martins

Organização, design e editoração: Márcio Simões

Sol Negro Edições – Natal – RN – Brasil

[email protected]

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2012

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ABISMANTOVIVIANE DE SANTANA PAULO

FLORIANO MARTINS

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ABISMANTO

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LUVNIS

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argolas de espera nos arrastam

ou somos nós que as arrastamos? criamos estes aros?

me solto do não saber do abandono para cair

no falso que invento todo esse tempo

e as pequenas formas do cotidiano que a gente não

percebe

e que estão por aí tão leves vozes ao vento

a noite amiúda os truques de nossa busca

ou somos nós que nos despistamos?

ao mastigar a engrenagem dos ecos

deixamos que soletrem em nosso íntimo as imagens

que reservamos às ilusões mais comuns

a noite sussurra como uma lâmina em minha pele

e me desvio do real

para te encontrar iniciando as formas

grifando os pronomes diante dos verbos

não sou maiúscula me desfaço dos pontos e

vírgulas

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e me atiro no poço que a paixão enche

de querer de busca de sede de pressa

de dor de cabeça de naipes de coisa

indecifrável

de inédito dito exorbitado demandamos

a farsa da lua que mostra algo outro

o perspectivo impostor das sombras

o embuste de nossos corpos distantes

trabalhamos árduos para sermos a antera desta

ilusão e as pequenas formas do cotidiano que a gente

não percebe

e que estão por aí tão leves gota de suor de

espera

de indagação se derramando nas teclas do pensado

e trago a tua voz para dentro da noite

para o centro da trama em que tudo se esquece

deixo tuas palavras crescerem no interior desse

mundo perdido

o corpo descarnado da memória

a luz esmagada pelas sombras

as janelas retorcidas impedindo que qualquer coisa

entre ou saia

trago a tua voz para que se revire toda

como a pedra inflamada de suores negros

e ouço o silêncio aflito dos móveis pela casa inteira

deixo a voz silabar vultos nos espelhos

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não quero escutar a distância de nossos corpos

mas as raias da palma da mão coberta de palavras

sublinhando seu peso nas fendas do que criamos

colho a solidão de cada sala vazia

para desenhá-la no vaso sobre a cômoda do que não

se faz necessário

ou para ruminá-la com os aros os ecos o silêncio

a distância

é preciso continuar dilatando os poros na pele das

horas

resgatar as pálpebras fechadas ante o sentir

e deixar de flagrar no espelho a vida de um reflexo

de lâmpada

acesa na calçada que continuou indiferente

minha pele se destaca assim abrindo um lírio

dentro da noite

e vou buscar um novo sítio para a mobília extraviada

intuindo o cheiro com que se revelam as novas

sobras do vivido

essa miudeza com que por vezes esquecemos de

celebrar o instante

quantas vezes o verbo quer ir e vir de uma face a

outra do abismo?

quantas vezes dizemos às pequenas formas do

cotidiano

que não se ausentem de si?

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FALHADRAS

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um a um os objetos foram desaprendendo suas

formas

compondo um esqueleto invisível em que novas

sombras se traduzem

o vento intimida a ideia que fazemos do tempo

tudo dentro da casa se esgueira como se tateasse

outro mapa de enredos

nada mais se reconhece como a composição do lugar

eu mesmo sou estrangeiro buscando entender esta

nova cartografia

e fugir deste interior limítrofe procurando minhas

fronteiras

minha falange no meio do dia das pessoas do

trabalho

da família descobrir as falhas que me acertam

que me dirimem que me denegam que me

refazem

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as falhas que carrego e as que colho no equívoco

do jogo

das cenas das quais faço parte e das outras que me

apresentam

em palcos improvisados na fímbria das tragédias

íntimas

as sobras do lar a memória desfolhada o baile

de fantasmas

louças esvoaçantes que atuam como bailarinas loucas

o armário desabando em conflitos

o instinto desfiando antigas visões por cômodos que

se multiplicam

trama de portas que sussurram ao ritmo convulsivo

das luzes

parentes mortos solidão destroçada por mais

solidão

meu corpo tropeçando na falta que sente de tudo

este corpo estrangeiro que não reconhece o vazio de

sua nova morada

e desespera ao encontrar janelas fora de lugar com

paisagens que nunca estiveram aqui

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ALMAVAGAVA

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o teu olhar rascunhava um estranho destino na pele

de meu sonho carvão aflito por repetidas noites

incompreendido

mensagem a expulsar-me do sítio em que me

encontrava preso nas geometrias dos nossos

soluços silenciosos

dos sinônimos retorcidos nas linhas verticais do

passado tu me entregaste as retas que nunca

fizeram

parte de mim e sim das grades do teu abandonar-me

e quanto mais esboças a ausência de teus pequenos

truques eu me deixo atrair por esses recursos

famélicos do dia

a linha falaz do horizonte por trás das ruínas urbanas

a corredeira metálica das ansiedades a catedral do

silêncio suspensa em pleno centro do nada

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e por mais que tente sair de ti ali te encontras uma

vez mais como uma incógnita que não se esgota

acidente a represar minha alegria de viver

e por mais que eu não me entregue ao reverso

do cotidiano à correnteza que desloca as

demandas intrínsecas foram invertidos os

nossos papéis somos um os traços do outro

e criamos o outro dentro de nós com os meros

rabiscos que os olhos extraem do amálgama da

realidade

o mercúrio que separa o ouro da areia separa a alma

que vaga

na sola dos pés sonâmbulos embora gasto o

mecanismo

não encerra sua jornada buscar as pegadas mais

profundas e a riqueza do carvão sobre uma folha

de dia claro

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NUDISFORME

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eu quis te esquecer e não estavas dentro de nada que

me lembrasse de mim

a vida eu a fui levando para bem longe e por ali não

retornavas a parte alguma

quando me pus a minerar a memória destroçada

descobri que há muito

não significavas nada em minha vida

não havia senão vazio

em muitos lugares a que fui levado pensando em ti

deixar-te foi um navegar sem âncora mar adentro

que te desfez no interior dos encontros fortuitos nas

calçadas nas filas dos supermercados

dos bancos no meado dos sábados na velocidade dos

ônibus das ruas

e das cidades despojadas de tua imagem fragmentada

silenciada pelos murmúrios dos passantes

reclamando de pedregulhos e buracos dessa

época

e pombos cagando em cabeças inocentes e culpadas

em pleno horário de almoço

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não significavas nada

nem a lembrança fugaz de uma ereção ou a surpresa

da chuva imbecil

molhando-me os sapatos meu rosto distorcido na

água

meus olhos alagados da secura trazida pelo outro

lado das paredes que as pessoas carregam consigo

esbarrando em mim desconfiança e disfarce

a vitrine ensopada de estilhaços líquidos do que

fomos em outros tempos

a lembrança roçando em minha pele uns últimos

conflitos e pronto

o dia recomeçava como se jamais houvesse

reconhecido uma sombra tua descorada na

esquina

até as letras por onde anteriormente se podia

vislumbrar um nome se desfazem a cada olhar

pousado nelas

o que fica de um amor quando acaba cumpre o

estranho desígnio de descompor o mundo que

habitou

já não sei quem és nem mesmo na silhueta errante

do esquecimento

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SUSPIRANÇA

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jamais soube que nome dar à vegetação do silêncio

estendida diante de si permitindo que o caminho

ao mar lhe oferecesse uma provável resposta

por vezes rabiscava na areia umas primeiras tentativas

de esquecer o tempo

e o tempo se expandia sob suas pegadas acesas

o nome que pretendia escrever não cabia na areia

gotejava solidão das letras desencontradas

como insetos que houvessem perdido as asas

vaga-lumes sem rumo apagados como segredos

no azinhavre das tentativas que vêm e vão

segredos esquecidos na ferrugem dos pêndulos

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jamais soube lidar com a imensidão da folhagem

que recolhia como uma relíquia

e a transformava em imprevisível queda no salto

do louva-a-deus no instante do perigo

atingir o desconhecido repentino as ciladas que os

anseios iminentes criam

conforme o avanço incerto de cada um de nós

jamais soube lidar

com a linguagem da névoa nas primeiras palavras do

amanhecer

na qual o tempo lhe recalcava como um nome na

areia breve mas por um momento infenso às

línguas ininterruptas do silêncio e do efêmero

nada poderia fazer pelas luzes queimadas em seu

íntimo

nem mesmo mudando o tempo dos verbos

sangrando antes da ferida soluçando sem

motivo aparente saltando da ponte antes de sua

construção

a memória queima em cima do telhado sem saber

como descer

um prato de lentilhas o beijo no rosto da filha o

emprego na padaria não importa quem tenha

sido um dia quem venha a ser ou quem nunca

seja

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jamais soube dar nome a suas emoções caiadas no

chumbo das horas

expostas na epiderme dos gestos

restava-me rabiscar no indumento das folhas o mapa

que poderia desvendar os segredos de cada

desencontro das letras

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PASSAGUADA

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a imagem do homem inerte em cima da ponte

aferrava-se ao fino esverdeado do rio

constantemente passando

percorrendo seu caminho prescrito seguindo sem

arrependimento

sem retorno sem carregá-la consigo despedindo-

se dela logo

do outro lado da ponte a imagem continuava ali

turva torta tácita

o homem continuava ali estático o rio

continuava ali transitando

a ponte continuava ali atravessando os

pensamentos passavam percorriam seu

caminho indefinido sem arrependimento

retornando carregando vultos inomináveis

despedindo-se e resgatando

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um céu talvez impróprio não encontrava solução

para tamanha inércia

começam a surgir então as primeiras margens do

vazio

anotações em tecido quase invisível minúcias

ainda de pouco crédito nas vértebras da tarde

uma quebra de vozes que percebem naquela imagem

um risco menor de desapego

não não está ali como quem busca algum

mecanismo de punição

quer apenas silêncio povoar o esqueleto do

silêncio com as figuras minúsculas

das últimas descobertas que fez de si mesmo

distinguir

o transitório no crespo da correnteza a fala dos

murmúrios brilhando nos reflexos

o imanente da imagem fixa no deslocamento daquilo

que passa

saber dos pequenos rebuliços da água das

transformações que o atravessam

que o movimentam saber que é o rio que cria as

raízes flutuantes na imagem do homem

prendendo-o àquilo que o transpõe

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soletrar essa aprendizagem como quem recobra os

mais insondáveis personagens

em irreconhecível gaveta entulhada de fotos sem

nome uma visão ondulante

enredo em descompasso com o que ainda pode lhe

significar a vida

trama sagaz de ondulações quantos ainda ousará

ser antes que o rio

se converta em imagem do que teve diante de si e

perdeu?

quantos ainda restarão quando as margens forem

tragadas por esse mistério

e não houver mais ponte de onde possa contemplar

seu naufrágio?

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TREVILOCUS

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a casa está perdida dentro deles como um bosque

naufragado

vasculham a extensão da queda à procura de motivos

escadaria de sombras que leva de uma dúvida a

outra

da última vez que se foram dali era outra a

perspectiva da memória

a infância lançava as propostas do futuro no assoalho

reluzente

as brincadeiras cresciam como as roupas que

perdiam folhas secas caídas adubando a

vivência

o buraco na meia porque o dedão do pé era a lesma

espiando do caracol a distância a ser percorrida

e corriam em volta da casa o miolo as abelhas

zunindo ao néctar das primeiras descobertas

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cada um carrega a sua casa dentro de si a casa

construída de invento e vivido

de medo e luz acendida de brincadeiras

monstros embaixo da cama e leite fervido

a casa por um tempo esquecida no álbum de

fotografias revelada em cinzas ressurgida

após o incêndio de 1970

pequenos vultos ainda percorriam seus vazios o

conhecimento do fogo na própria pele

calor de maravilhas sutilezas tremeluzindo

era um era dois era três a magia pendida no varal

a alegria florescendo

um dia não se sabe como a casa foi esmaecendo até

ser beijada pelo invisível

tentam resgatá-la no meio do bosque labiríntico

das incertezas crescidas que sempre invadem nossa

vida

vislumbram arbustos gigantescos engolindo o

telhado as paredes as portas as janelas

tentam encontrar novamente a casa no meio dos

galhos grossos e finos

que se alastram e emaranham no ar confundido

visões

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tentam reconstruir a casa dos escombros das perdas

dos equívocos

e não conseguem senti-la dentro deles como a

concha no fundo do aquário

como o espectro que vagueia pelo vazio onde antes

a tábua corrida conduzia de um cômodo a outro

e agora as cinzas são recolhidas pelo vento em

ângulos absurdos

quase todas as cores se foram a luz é com um

pranto cego

algumas vozes ainda percorrem o íntimo de poucas

fotografias

os enormes tanques de criação de peixes no quintal

o quarto escuro com seus guardados misteriosos

o olhar ainda mais enigmático da Chica Gorda

mascando fumo enquanto punha a queimar

as castanhas talvez por ali a casa comece a

ressuscitar

pelas curvas dos afazeres domésticos o cheiro

de milho cozinhando os insetos circundando

risadas e frases talvez por ali pela fresta da

porta fechada e as coisas dos adultos reservadas

para o momento propício

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talvez por ali comece a ressuscitar a casa que cada

um carrega dentro de si submersa no mar da

memória ou no fundo do poço

onde os fantasmas enjaulados aparecem com cara

de palhaço e o eco de gargalhadas cínicas anula

o canto das Sirenes elas que sempre chegam

apertando a campainha vendendo cosméticos

e distribuindo o mapa do paraíso a duas estações

de metrô

mais cedo ou mais tarde a casa emerge

ou naufraga dentro dela ou simplesmente se entrega

à corredeira dos próprios dilemas

como um ofertório à obsessão desatada da

ressurreição

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CIRKUS

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eu não esqueci o teu nome quando estavas dentro da

pedra

o catálogo de vertigens encontrado à deriva com

outros pertences anônimos

truques rascunhados como se o mundo não passasse

de um cenário

a valise invisível de teus caprichos química de

ilusões solfejo de ardis

sinto ainda teu corpo passando pelo meu como

uma alegoria extraviada uma febre plantada

um bandido reinando no acaso de meus dias mais

suspeitos roubando meu equilíbrio

a recordação dos bem sucedidos malabarismos

teu corpo como uma imprevisível oscilação no alto

do trapézio inúmeras vezes ensaiamos a queda

no meio da tormenta contorcida dos nossos

anseios

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do salto da aventura que buscamos caímos nos

braços firmes do ilusório teci a minha rede de

segurança dos fios de palavra cuspidos pela tua

expectativa

mas foi desfeita pelas garras do rotineiro pela faca

de sol lançada dos confins desta época

e sempre que isso acontecia eu reacendia o teu anel

de fogo para circundar o meu querer enrijecido

roda da fortuna esfera de vertigens globo ocular

do abismo

por onde passas teu corpo estremece dentro do meu

com suas contorções de despenhadeiros dentro

de uma garrafa porém quando busco teu beijo

ele já está na outra margem

vislumbro as sombras que vão se multiplicando por

todo o picadeiro

quando refazes a máscara converto os lenços

manchados nas mais inocentes pombas da noite

teu corpo se enche de aplausos o meu desfia o

silêncio como um novelo encontrado na jaula do

tigre

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amanhã estaremos desfalecidos para a matinal

desfalecidos para a urgência daquilo que seja o

antônimo da libido ignoraremos tudo o que é

infenso à excitação e mais uma vez o despertar

recomeçar o espetáculo com os poros dilatados

entraremos novamente em cena

teu corpo me ensinará ainda mais os truques do

instinto aperfeiçoará o ofício das minhas mãos

sedentas

ora vamos rir dos nossos tombos fulgor de farsas

ora nos entregaremos à arriscada seriedade das

manobras e penetrarei

no profundo úmido quente estreito momento

da tesura

onde nossos corpos são as duas feras atravessando o

círculo de fogo

flutuando petrificadas na memória reaprendendo

seus nomes desaparecendo no fundo falso da

próxima cena

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CORTINAVIS

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ela prepara o fio o óleo as sementes azuladas

o afago da névoa os sinais de que seu corpo o

deseja enquanto dure seu estoque de horizontes

ele a reconhece em cada sombra

suspende os véus no ponto mais alto instrui o

vento a não deixar de ser brando rabisca os

primeiros traços da nudez

os contornos nítidos da entrega desenha as formas

do ombro do dorso das pernas

sem mencionar o intervalo das mãos que caem

leves pela planície da epiderme o que antecipa

a ventania quente de um verão entrando pela

janela e alcança o voo breve das cortinas

transparentes

por onde a claridade atravessa e pousa na margem

da descoberta sobre os lençóis

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ela tem um frasco de vertigens com aromas do

próprio corpo ele sussurra palavras como

serpentes deslizantes pelas ondulações da cama

o calor que vem do exterior e abocanha o ambiente

se confunde com a melodia da transpiração de

ambos

ela transcreve no espelho todo um mapa de

excitações ele começa a decifrar-lhe o estojo de

abismos

antes que o furtivo tome conta das fronteiras e

o vazio chegue falando de coisas banais

despistando o final da página antes que o

depois venha com a simples atitude de levantar-se

e ir embora

a porta entreaberta como uma boca sem palavras

recuperar as roupas já doloridas jogadas no chão

duro

cães latem na vizinhança arruínam o eco dos

gemidos

ao tocar-lhe o corpo ela despista toda a nostalgia de

outras noites e faz com que o quarto abrigue

apenas um iluminado ramo de gozos

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quando ele a penetra um enxame de horizontes

infesta aquelas paredes

o esvoaçar das cortinas é como uma caligrafia das

delícias

ela desfia o enredo ele apura as tintas ela soletra

as carícias ele enternece os pincéis a noite

aprende a ler em seus corpos

as sílabas tangíveis do êxtase

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MILACORUM

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eu não esqueci o seu nome mas toda vez que ele

me visita parece ser outro

ao partir deixa sempre para trás duas ou três sombras

sem que as mesmas se reconheçam lado a lado

herdei ou cultivei já não cabe diferença uma

multidão delas a cada aparição sua

e com elas venho tecendo uma morada cujo

endereço jamais se conclui

e que me deixa enroscada nas estacas das palafitas de

minhas recordações

a água no pescoço o gosto de lama que me entra

pela boca

é então que me desfaço de paredes finas telhas

rachadas madeiras fracas

para me ver construindo logo em seguida a

fortaleza algo que o vento dos enganos não

derrube com três sopros de realidade

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forro as paredes com o lume silente das chegadas

com o murmúrio das paragens nos cantos e

no teto a cassiopeia sorri mostrando os dentes

cintilantes é então que me desfaço da vaidade

dos remansos desgastados e dos feixes de claridade

e vou buscar outro lugar onde refazer o casulo do

meu recomeço

mito ou constelação as águas invadem cada uma

das casas por onde passo procriam a ferrugem

em um ninho de grilhões iludo o meu outro

esquecido nas dobras do tempo

vastidão de penumbras espelho meu corpo para

que me possuas pangeia redimida que volta a

formar-se à nossa volta

ainda não esquecemos os nomes porém quanto

mais nos repetimos mais nos desconhecemos

avultamos uma geografia de degredos há muito

não somos mais homem e mulher

há muito não somos ninguém apenas a miragem

de uma placa indicando continuação

e nos encolhemos nas batidas do martelo cravando

os liames das semanas

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um anfíbio assustado procurando proteção debaixo

de enredos interrompidos com o eco dos

refrões soando no alto das torres que se desfazem

tão logo tocam o céu

retalhos de asas utensílios cegos mobília

descorada

os nomes permanecem espalhados pelos abismos da

casa mascando o salitre da espera

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LUNÍSSONO

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quando a pusemos dentro da caixa estava envolta em

silêncio e mistério o corpo delicado parecia

uma miniatura de como a imagináramos

a pele era como um rio em sua fluidez constante

porque a levamos dali é algo que ainda hoje

nos inquieta em seu lugar brotou a hera

escalando as vigas da realidade virtual

agora naquele canto a luz transborda imagens

tortas o dia inteiro mescladas à umidade das

salivas germinadas pelas imutáveis angústias

onde definidamente nossos elos se incendeiam

porque somos sempre uma cadeia de salmos

uma corrente de conflitos

laços perdidos em nosso íntimo trancafiados os

temores e as coragens quebradiças sombra

cintilante a da morte imprevisível

que paira provisória distante da planície

atordoando-nos o murmúrio da lua na pupila das

montanhas enquanto um pesado fio de cabelo

divide o espaço entre pronomes

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como se fôssemos um brinquedo pequeno quase

imperceptível sutilíssimo na reduzida

colheita de desassombros

o mistério ali permanece guardado como uma joia

lacrado em soberbo sigilo sem que as tintas o

deformem

espelho refletindo a própria solidão

e o caráter da ilusão que pusemos do lado de fora da

caixa outro corpo talhado na delicada madeira

do sonho e da memória

o tempo naufragado no olho do pássaro a escada

repleta de curvas para melhor uso de seus degraus

o piano impossível nas dobras do lençol ela

toda ela como um raio que nos levasse de um

tempo a outro

a branca pepita que ao tocar nos desafia a deixar de

ser o que somos

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LAMPADARIUM

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selva ateada por todo o corpo sibilante selva com

seu lamento disfarçado de ardis

visões deixadas para trás como vitrais esquecidos

profetas com seus verbos esculpidos em sombras

para onde vamos com tantas dores inquietas?

quantas lâmpadas escutamos gemendo enquanto

a escuridão se refaz?

teus passos acendem as pegadas no jardim de cheiros

úmidos de pele

a que distância estás de mim? o candeeiro da

madrugada acende o branco da lua

um chumaço de seda cai da haste das horas maduras

movem-se as pequenas labaredas no dorso dos

cavalos de papel trazem boas mensagens de

ti? o fumo esverdeado das promessas sobe os

outubros e alumia o pó da noite

nos estábulos dos sonhos desembesta o delirante

cavalgar da ansiedade

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quantas vezes minhas asas hão de derreter?

quantas vezes ainda terei de ser Ícaro ou a

mariposa errante até pousar meu corpo na terra

macia da tua vigília?

a percussão dos gemidos em nossas vértebras celebra

a paisagem que começa a tomar forma

mundo visível do desejo corpos escrevendo-se no

calor das luzes fábula recostada em tua silhueta

lâminas que avançam no preparo das delícias

quantas noites consumidas no despenhadeiro de

tuas ancas? quantos estábulos construídos para

o repouso de tua cavalgada?

agita-se a selva dilatando o enigma das tempestades

juntos tateamos a idade do fogo e a rota da seda

impressa em teu ventre

deixemos apagadas as lamparinas azuis da aurora

que vem cobrar a rapidez do ir-se

deixemos apenas sussurrando os relâmpagos e as

viagens por eles traçadas em nosso olhar

deixemos os ovos tateando a antiguidade do voo

um povoado de casebres vislumbrados no íntimo

das brasas uma orquestra de labirinto

por onde passas com tuas mãos por onde passo

com as minhas

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CASULANIMUS

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descortinamos a sombra avulsa que mastiga o sol

faminta por entre os monturos da tarde surge

nas vértebras do tempo uma nuvem de abismos

estática da agonia que não se comunica com seus

vultos abandonados

feixe de evasivas o pavor diante da pilha de

cenários vazios a cidade regurgitando a própria

memória como último recurso para evitar a asfixia

mas o cansaço reveste os corpos de desamparo

e as esculturas perambulam pelas galerias sem

ninguém

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no chão o ruído de madeira reclama as tiras das

frestas que atam as cenas germinando lentas

diáfanas tendo que relutar

contra o espaço desabitado dos cenários recolhem

o movimento imperceptível dos sentimentos

nos fios das travessias emaranhados como um

casulo na curva da clavícula tecemos nossa

ausência com as fibras das garoas finas

caída nas costas do crepúsculo são corpos que

mudam de lugar cruzam as artérias de um

mundo desolado

enlutam os cabides gastos pela melancolia

escrevem os nomes trocados para confundir a dor

há muito que reúnem as estações para pequenos

tragos na madrugada quando revivem as

imagens desfeitas e destacam passagens

incongruentes da narrativa de suas vidas incomuns

sedimentando desvios nos fósseis da ressonância

urbana

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as pernas sonâmbulas dos sonhos no branco do

teto deixam marcas longas e frágeis de nervos de

folha desgastada de verão devoram as cicatrizes

rudimentares de umas poucas utopias que

rastejam por monturos cartazes aniquilados

detritos surpresos orquestração de misérias

fomos descortinando a pele dos desgastes tateavas

um palimpsesto aqui eu mascava uma imagem

putrefata ali a memória não alcançava o dia

seguinte

perdemos a história

já não sabemos em que tempo conjugar os verbos

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MIRADEIRO

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quando a noite desmaia sobre teu corpo com suas

asas úmidas abrigando uma fonte vigilante de

miragens os lençóis se dissolvem como bosques

devorados por esfinges famintas

a gravidade se liquefaz em murmúrios os ventos

gritam como pernas pintando a paisagem

nossos olhares abocanhando uma instalação de

horizontes que se multiplicam quanto mais são

caçados por tua língua

as visões progridem como seios lambidos pela noite

no ínfimo tremor das pálpebras abertas não nos

arrisquemos ao outro lado da margem

onde o horror do reverso da seda flutua sobre o

campo suspenso dos trancos

e as ondas esbranquiçadas de fadiga se quebram nas

ancas do farol vesgo tu querias me mostrar

a quietude das tempestades e o lume das distâncias

cegas mas também o mar é cheio de

vicissitudes e as demandas bolinam alhures

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na cadência e nos formatos das espumas noturnas a

pele arde exposta sob a duvidança escura no

limo das rochas

de onde estamos podemos mirar a alienação nos

anseios calados dentro das bocas afogadas de

muito sal e tempo perdido

rumamos à direção oposta em busca dos flamejantes

tatos

as margens suspiram ante o bailado de engalfinhadas

sombras a vizinhança do abismo é um truque

da linguagem que não quer revelar seus planos

trafegamos pelo espinhaço da paisagem que se abre

aos nossos passos como a visão de uma estação

sem pausa

beija-me antes que o lábio assuma outra forma

toca-me antes que o corpo se converta em estátua

soletre-me antes que o verbo se ocupe de outras

correntes marítimas se ocupe do mármore

da mudez talhado nos talantes ressequidos as

sépalas da tua mão sustentam incólumes

a rosa das carícias e os anéis dos lagos aquietados

alargam-se nos dedos da vivência delineamos o

longínquo derradeiro no olho

do intervalo que medeia entre um e outro pouso da

mão aberta no ventre da madrugada

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MUSICINTO

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o sol negro guardado dentro da esquadria de janela

nenhuma tire-o dali e é o sol posto gira e a

agulha sobre os finos caminhos circulares

de terra inexistente a andança da música percorre

crepúsculos e orvalhos de jacintos e um sopro

de pretérito fresco movimenta o ar

no museu das antigas invenções os objetos se

eternizam como tudo que fica preso na teia

transparente do resgatável se fôssemos esticar

e unir todas as faixas dos discos que existiam

quantos mundos envolveríamos?

quantos medos se afrouxariam? se me cingires

com todas as músicas que amaste qual o

tamanho do imago para me sustentar?

quantas presilhas na pele do encanto? e o braseiro

do imaginário a desafiar a anatomia de teu ventre

as luas emocionadas com o pingente com que

disfarças tuas vertigens a música

que vem da gruta escavada sem que a noite

percebesse a ventania com sua língua

inspiradora

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o dínamo que começa a cantar sem os moinhos

das claves terias que mastigar os vidros quebrados

de mensagens nunca lidas

o sinete dos bons momentos estampa nos refrões das

estações a correnteza das melodias inesquecíveis

que preservaste dentro de teus calçados mais

usados as melodias que reservaste para a hora

do avanço sobre o ébano

a luz entrecortada que se derrama em teu coração

pequena fábula a retocar os lábios de sua moral

entrevista silêncio antes que o sol negro se

refaça

ensino o teu lápis a compor novas frases enquanto

soletras em meus seios os vultos que encarnam a

melodia de teus sonhos

escava o teu nome profundo eu saberei como

jamais esquecê-lo

meu hálito freme os pelos de orfeu no antebraço

das calmarias dormem as sirenas

guardei as orquestras dentro do caracol do meu

ouvido e as cigarras carregam as guitarras

guizalhadas na trompa de eustáquio

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por onde se vá nos refazemos a cada nova

composição que nos colore e camufla

deusa de escamas deus das migalhas música

imersa em um labirinto de metamorfoses

por onde passamos as ruas estão repletas de milagres

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MANHÃNÇAS

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debaixo das unhas do dia há restos do ontem no

bolso direito da camisa guardo o ruído das

maçanetas das portas se abrindo

faz bem ao coração um xale de hamádrias ajuda

as flores a se sentirem sagradas e o esconderijo

da cesta cheia de maçãs mordidas pelo pecado

encontra-se no fundo de um armário de madeira

maciça na casa de uma desconhecida

ao lado do vidro de aplausos em conserva trazidos

de uma antiga peça teatral foi abri-lo e um

corpo de baile invadir a sala derramando-se pelas

prateleiras cada um dos corpos como que

saídos de uma árvore

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um bosque sendo montado a partir de seus

fragmentos membros saltitantes silhuetas

encorpadas a perfeição austera dos sexos

o meu desejo contagiado pelos murmúrios que

dialogavam entre si

abismados com a realidade repentina diante dos

olhos ainda se entregando à dramaturgia das

mudanças

no chão as peles descascadas são as farsas caídas

que se refazem a cada papel ensaiado e nas

letras dos títulos o ingresso à verossimilhança

libélulas brilhantes sobrevoando os cabelos fartos

do enredo

como as manhãs dípteras que rondam a fruteira e os

insetos coloridos dançantes debaixo das axilas das

dafnes um coro de ninfas esvoaçando os ramos

de teu mistério o capinzal guarda uma tigela de

incontáveis vertentes

renomeio os temperos para que o milagre não se

perca enquanto vestes uma nudez que soletra

todos os voos eu me aproximo sorrateiro de

sombras que são túnicas de um espanto que se

renova a cada movimento de tuas ancas

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FULVORECER

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lá onde as almas das folhas caídas nos olhos abertos

do outono se juntam e se transformam

no murmúrio fulvo que as tardes de sol espalham

com o vento macio

na memória o tempo fragiliza demais a tua imagem

quebradiça fina transparente

tenho medo de me lembrar e espatifar não como

terra não como pedra não como chama

como te escreve o relógio de areia traçando os

rastros da velocidade dos grãos amadurecidos

lá onde a selva líquida floresce no interior de seus

ramos ressequidos e se prepara

para as perguntas flamejantes da fábula que começo

a intuir

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na memória o espaço se retempera com ângulos

insuspeitos e um oratório de vertigens

anuncia o caminho no labirinto que deixaste

desenhado em meu olhar

escrevo teu nome em meu caderno de rasuras uma

sílaba em cada página

ouro de espelhos teatro de vísceras chave

vulcânica tudo a teus pés como um colégio

misterioso

e a premonição de tuas vozes

lá onde as nozes se quebram e os pensamentos se

soltam das hastes a pele ferrugem dos espinhos

enrola-se

com a chegada da noite sem íris onde as

promessas se esmaecem

sob o poder da despedida que nasce em cada coisa

nova

não como pássaro não como névoa não como

ruína de papilhos

como te ameaça o grito das horas os ponteiros

circulando os anéis dos algarismos o pretérito

ruminando

alvorecer e vestígios até a gosma de um filete de

trilha brilhar no girar da fechadura

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abrindo outras respostas outros soslaios outros

vislumbres

silêncio que estamos aprendendo a ser

e o tempo não sabe o que fazer com nosso segredo

quando a madeira estala no meio da palavra

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HABITALMA

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a minha casa começa dentro de teu ser quando a

tua ausência de tudo anota uns versos e são como

um pomar de desejos a maçã repleta de mitos

o bosque de ouro

com a sombra gasta dos inimigos o reino que

ainda não se formou

eu tenho o teu nome rascunhado em minha alma e

sei não serás outra até que te deites sob meu

corpo até que o calendário lunar decifre a

ondulação de teu mistério

enquanto isso me movo no meio do cardume de

solidão no sussurro dolente da cidade que me

recria na quina das novas tentativas

nos andares frenéticos da busca inchada das fauces

oscilam as falsas propagandas da felicidade

mastigo a carne dura da espera

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somo as cascas queimadas da monotonia pita de

cigarros pisoteados nas esquinas

consumido sôfrego o fumo e te aguardo no umbral

do gineceu nos carpelos dos lírios rosas da

minha clara ânsia escavo tuas roupas à procura

de um sinal

um truque do instinto acervo secreto de miragens

a minha casa começa no quarto escuro de tua

ausência

a palavra a repetir-se até que surjas em meio ao nada

mantra lascivo que esculpe tua nudez em minerais

inesperados

o que ouvimos ao longe é o salto de um sítio a outro

deslocamento de vertigens

a tua imagem projetada em diversos precipícios

como uma engrenagem de sílabas traquinas

por onde passas espelhos refazem o cenário ardente

do vidro teus lábios nunca estão

onde os procuro não há espaço em branco na

parede viva da minha letra de onde ecoa

incessante o grito do meu caminhar da

aventura para estar próxima de ti

sigo colecionando as farpas das estações enfiadas na

minha pele

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a caligrafia do absurdo percorre o dorso do amanhã

entregando-me as páginas sem as tuas queixas

com a indiferença das marcas tranquilas do

caracol

a minha casa começa no âmago da saudade para

terminar na ponta dos meus pelos no limite do

meu corpo lasso estendido nos teus rastros

indeléveis dentro de mim

bem ali onde o tempo aprimora suas agulhas beijo

tua geografia visionária

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ANIMARES

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eu beijo a febre da noite e teu nome resplende ali

escrito há tempos não o vejo como agora

detalho suas cores na paleta da memória já tivemos

de tudo na pele da ilusão

o mundo jamais evitou refazer-se em nosso abraço

orgasmo florido ambição estradeira uma

curiosa refeição de abismos

saímos juntos a tomar aulas de metamorfose tu

somos eu

e somos o berro das águas caindo das montanhas

o suor da manhã nas matas despertas a cascata

de fogo na pele da memória

ruminamos o tempo dentro do útero dos tijolos no

pasto das nuvens vagamos em busca de escadas

suculentas mascamos trilhas gordas

na boca do geodo germina a saliva dos cristais e

no quarto o elísio passa a língua seca na crina do

assoalho encharcado de guias

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somos a cuia e a enchente do desejo os perfis que

se acumulam como um bosque decidido a nos

proteger das dores irreparáveis

relva cósmica ânforas da alegria livros anímicos

em que o amor pode ser relido

eu beijo os teus pés em pleno voo e as sombras

aladas se multiplicam até que a vastidão ecoe o

que viemos saber

tão encravado em nossos papéis avulsos

desgarrado das soleiras preso na fita de mel

palavras feito moscas no verão de ventilador ligado

babando vento nas hélices

nos papéis espalhados acrescidos das viagens oníricas

do fogo do barco da corda

do rastro de desejos adocicados dos laivos

das chuvas nas veias dos muros no fofo do

lodo no meio das páginas a lúcula luzida

transpiração granulada das matizes dos cacos

guardada no frasco de elixir derramamos brechas

e frestas no corpo do existir na plumagem furta-

cor com que os tremores que sentimos se refazem

no labirinto anotado nas ranhuras da pele

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eu beijo o santuário de vultos e sua saliva vulcânica

a pedra que transpira e levita a tua casa

suspensa repleta de sons que brotam de um baile

agitado de espelhos

o teu nome começa então a pressentir-se a

qualquer momento um de nós o dirá

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MASCARALVO

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a noite e o problema confinado jogo de despistar

o solitário

noite de sexo sem a coroa de estrelas não te

conhecem as cigarras o bafo quente das

sombras macias

somente as silhuetas dirimidas no breu dissolvidas

as cores do dia na saliva da boca

para dizer que tudo se esvai mas permanece este

delírio

arrancar a ilusão do duro das paredes

buscar as amarras o equilíbrio das gotas de chuva

no limiar do arame na ponta dos espinhos

minto carnavais e feriados noite de sexo sem a

purpurina vermelha sem a pérola branca

o estranho gosto do amor na boca amanhecida com

atraso

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lençóis rachados como os lábios do deserto de teu

olhar contrariar a roupa ao vesti-la

gemidos entranhados entre a meia e o sapato não

te vás não me sigas

o sol se retrai indeciso sobre o disfarce que usará

a janela se espreguiça com um gato decalcado em

suas vértebras

o mundo não vai a parte alguma nem sei ao certo

quem és

rumino as penumbras dos gestos e algo quebra a

casca fina da manhã gelada onde as primeiras

luzes surgem indiferentes inventam o cotidiano

no gargalo dos recintos

imperturbável na hora do despertar

nascem os corredores de reflexos matizes

promissoras e lembranças viajantes que vagueiam

no vasto do dia que vem sem ti

e precisamente onde não estás recupero o que houve

de melhor entre nós

e o faço entornando a jarra de felicidade com que sei

que nada voltará a se dar

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AVELUME

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seiva adentro o teu corpo desmatava a vertigem

uma chuva de móbiles como lágrimas suspensas

tu me apontavas as sacadas azuis onde víamos

estranhos animais

nossos corpos nus refletiam o cenário como um jogo

de cristais embaralhando tempo e espaço

neste momento eu me gabava de possuir todas as

jornadas das luzes as revoluções das palavras na

minha boca

as reviravoltas das cores no olhar das paisagens

pacíficas julgava a descoberta do negro e do

branco em tudo o que eu via

e regulava a intensidade do destino sonhava com

os fios das horas caindo sobre os ombros do

futuro

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as pinturas naïf da infância apareciam expostas no

meio das minhas relíquias e os acidentes do

silêncio não envolviam minhas mãos

a liberdade tinha cheiro de terra e bronze e

impregnava as minhas narinas como as de um

cavalo noturno

como a garoa temperando a madrugada antes que o

dia reconhecesse sua marcha imperativa

um sorriso afoito golpeava tua respiração tecia

uma oração de sigilos no bosque de teu ventre

relicário de uma fauna inimaginável a céu aberto

sem que ainda soubéssemos o paradeiro de

nossas inquietudes

livres no interior dos ninhos nos espaços em

branco da grafia nas distorções dos corpos

como imagens de kertész

dispostas em algum momento da nossa desfiguração

desenrolamos quintais feito a língua das janelas de

boca aberta

escapamos sem querer das patas do onírico de

repente como o derreter da cera na saliva da vela

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de repente sobre a noite emborcas o teu corpo

repleto de pequenas astúcias sem saber por

onde nasce a escrita afoita de sua pele eu te

celebro não importa em que parte de mim estejas

qual seja o voo que tomas a caminho de mitla

pequena luz do mundo que se espatifa rindo contra

tempo e espaço permaneces como uma

pincelada única na tez da eternidade nos lábios

do horizonte

na têmpera abismada de meu olhar

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Poslúdio: NÓS em NÓS

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FM | Eu faço as minhas melhores associações quan-do tomo uma cerveja e ponho música e me ausento do mundo. Na verdade, não tem a ver com a cerveja ou a música, e sim com a ausência do mundo. Música e cerveja entram como um estalo, um auxílio luxuoso que me permite fazer boas conexões entre os chama-dos ambientes dissociados. Melhor dizer ambientes cujos enlaces intrínsecos resultam imperceptíveis. A música cuida de uma orientação de tempo e espaço, me conduz a um cenário de aceleração dos sentidos. A cerveja me dá uma cadência letárgica mais vibrante que o vinho ou a maconha, e sem o desenfreio que se possa alcançar com o whisky ou a cocaína. Rimbaud queria desordenar os sentidos. Eu busco sua equa-lização. Ativar uma corrente em isolado nunca me pareceu fascinante. Uma overdose erótica, política, mística. Nada disto interessa à criação em separado. A minha memória é um caos. Tenho uma facilidade

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quase suicida de esquecer coisas. Ao mesmo tempo esses golpes de esquecimento são enriquecidos por uma sinfonia aparentemente sem sentido de verbetes do acaso objetivo, eloquências empíricas, suspeitas de um plano ideal ou seu revés etc. Recordo um poeta sem nome na minha adolescência que sofria muito ao parir cada poema. Eu não creio que uma mulher recorde o parto como um momento sofrido de sua vida. Aquela explosão de êxtase – sou naturalmente suspeito, por não haver parido em sentido literal – é um capítulo da alegria e não do sofrimento. Não me dói criar. Porém a cerveja e a música, com o tempo, foram me estimulando a buscar um insight distante delas. As sombras são um indicativo tanto de nossa aflição diante do que somos como uma sugestão de avançar nesse labirinto existencial. Quando escrevo um poema o que faço é pôr ali na mesa uma peça até então inexistente. Se eu me ponho a repetir o mesmo a cada minuto, logo a mesa não suportará a frequên-cia do inexistente. Um dia chegaremos ao status do perfeitamente razoável, pela frequência de emissão e a satisfação da recepção. Nada pior pode acontecer na vida da criação artística. Os meus argumentos em defesa do indefensável que é a (minha) criação, me levam a começar este nosso diálogo expondo a alma bem abertinha, janela plena, para que sejamos o que verdadeiramente somos: seres criativos.

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VSP | Existe a brincadeira de criança: “eu vejo o que você não vê”, e a criança descreve a coisa e a outra precisa adivinhar sobre o que ela está falando. A po-esia possui esta característica de revelar, àqueles que não possuem a capacidade de ver, um aspecto diferen-te da realidade, ou ela revela um mundo permeado de fantasia. E o leitor adivinha, isto é, interpreta o poema. A poesia define alguns estados de espírito ou simples-mente atribui imagem à realidade, ao pensamento, e mediante a imaginação e reflexão o poeta deforma a linguagem, a realidade, ou chama a atenção para uma visão singular da vida, subjacente ou não em nosso co-tidiano e intelecto. O poeta possui o talento de ver o que muitos não veem. Mas qual o processo de criação para isso? No meu caso, possuo um cotidiano atarefa-do, quase não tenho tempo para escrever. Entretanto, as associações borbulham constantemente na minha mente. Carrego sempre papel e caneta, escrevo no que estiver ao alcance: guardanapo ou lenço de papel, em uma conta de telefone que está casualmente em minha bolsa, convite de concerto… Escrevo dentro do vagão do metrô, na lanchonete na hora do almoço, na cozinha esperando o arroz ficar pronto, à noite antes de dormir, nos cafés espalhados por Berlim (do que mais gosto, de simplesmente sentar em um café e fi-car escrevendo)… As ideias advêm das reflexões sobre

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determinados temas ou lances cotidianos, e das inten-sas leituras. Em uma reportagem na televisão sobre agrotóxicos, por exemplo, surgiu uma rápida imagem daquilo que parecia ser um espantalho, e logo veio à mente o início de um poema sobre espantalhos.

FM | Escrever em cafés é mesmo fascinante e já o fiz em cidades como São Paulo, Porto, Caracas, Teneri-fe e a capital panamenha. A existência de cafés silen-ciosos tornava possível este prazer. Recordo que Eric Satie compôs muitas de suas peças em cafés em Paris. Já escrevi em quartos de hotel, bares de aeroporto, até mesmo em um cinema – em plena projeção de um filme –, porém sempre essa escrita resultava na integri-dade do poema. Muito raramente em minha vida fiz anotações de versos. A memória tece sua fiação mági-ca, a rede elétrica de imagens, os truques da linguagem etc., até o ponto de explosão. Mesmo nos poemas extensos, algo comum em dado momento de minha poesia, as anotações inexistiam. O poema, por sua ex-tensão em tais casos, exigia ser fracionado em diversas seções, que se sucediam até a sua finalização, porém sem anotações intermediárias. É como tenho feito em nossa parceria. Quando te envio um trecho que acres-cento ao nosso poema eu o esqueço por completo. Até que me retornas e então eu o deixo abrir sua casa

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secreta de relâmpagos. Ali o retomo e logo segue de volta a teus braços. O que mais me encanta no que es-tamos fazendo é que damos passagem à ideia de uma criação coletiva. Sempre me fascinaram os cadáveres deliciosos do Surrealismo e recordo momentos em que os pratiquei com poetas em Portugal ou Panamá. A Internet mais recentemente propiciou um encon-tro meu com um poeta mexicano, com a curiosidade agregada de que estávamos um nos Estados Unidos e o outro na Austrália, e ali, naquela mesa virtual on-li-ne, escrevemos uma série de poemas que resultou em um livro. O nosso caso tem sua distinção porque há uma variação de tempo, cada fragmento de poema vai se desdobrando com base no ritmo de vida de cada um, o que inclui o teu cotidiano atarefado. Porém uma coisa me alegra, acima de todas as demais, que é o fato de haver alcançado essa intimidade criativa com um poeta brasileiro. O Brasil me parece um dos paí-ses mais contraditórios do mundo. Os danos causados à nossa cultura pela matriz católica apostólica romana são imensos. Ao mesmo tempo, os cultos negros e ín-dios, mesmo considerados periféricos, enriqueceram o ideário popular muito mais do que os preconceitos impostos pela religião oficial. Aníbal Machado abre seu impagável ABC das catástrofes dizendo que “as grandes catástrofes são, em geral, filhas da explosão,

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ou fruto da instantânea ruptura de equilíbrio das mas-sas”. Teus anos de residência na Alemanha permitem avaliar bem o comportamento de uma sociedade que entende de catástrofes. A ausência delas na cultura brasileira foi moldando uma tipologia de circunstân-cias, o que não deixa de ser aterrador, embora não passe de um desastre local.

VSP | Há a cultura dos cafés na Europa. Como os jo-vens, e também alguns adultos moram sozinhos e não com a família, procuram um local longe do ambiente doméstico para espairecer ou trabalhar, ler, escrever. Os cafés são quase uma extensão da sala de estar. Há os jornais para ler, há quem traz um livro e permanece lendo enquanto toma um cappuccino e come um pe-daço de bolo. Os cafés são muito aconchegantes. No Brasil possuímos uma natureza belíssima, exuberante, que poderia ser acoplada ao nosso cotidiano, mas in-felizmente não é. Sou paulistana e em São Paulo exis-te uma correria desumana, as pessoas não conseguem parar para pensar, vivem no centro de uma voragem mecânica infalível. Sinto muita falta da natureza em São Paulo, de lugares aconchegantes, sem chiqueria, onde você possa sentar em um sofazinho, tomar um café e ler um livro observando os transeuntes na rua. Certamente, o Brasil é um país muito contraditório.

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Em alguns casos isto é criativo e em outros cansativo. Trata-se de um país que sempre teve um grande po-tencial, mas precisa desenvolver uma consciência po-lítica e cívica. Quais são os meus direitos e deveres na sociedade? Como posso contribuir para o progresso da sociedade? Questões que deveriam ser discutidas e integradas no cotidiano dos brasileiros. A Alemanha só se ergueu de duas guerras porque o pensamento é coletivo: “vamos organizar o país e se for necessá-rio abrir mão de alguns privilégios em prol dos meus compatriotas, em prol da nação, eu abro mão”. A elite alemã, assim como seus políticos, se sentem respon-sáveis pelo progresso da nação e procuram ajudar a administrar o país de forma que todas as classes se-jam incluídas. A pobreza é um sinônimo de má ad-ministração e, a longo prazo, possui efeitos maléficos para toda a sociedade, por esta razão é combatida antes que se alastre incontrolavelmente. Retornando ao processo de criação, também sou muito esquecida (talvez seja uma característica típica dos poetas: viver no mundo da lua), não consigo memorizar nenhum poema meu nem de ninguém. Acredito que isso tam-bém se deva ao fato de eu não ter aprendido na escola a arte de recitar. Para escrever os nossos poemas não é possível eu fazer anotações porque não sei quais serão os próximos versos. Tento me colocar no seu lugar e

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imaginar o que você por ventura poderia estar ima-ginando ou simplesmente dar outro rumo e a partir disso desenvolver os próximos versos. Quando sou eu que inicio um poema, procuro imaginar um tema ou uma imagem que possa ser interpretada através de metáforas. Mas cada poema foi um desafio porque es-crever poesia é algo muito íntimo e não acreditava que poderia ser escrito por duas pessoas distintas, ainda mais duas pessoas que não se conhecem pessoalmen-te e vivem em dois continentes diferentes. E algumas vezes eu não sabia como continuar. Mas a criação significa dar continuação às coisas ou reconstruí-las através da invenção. Procurei enveredar os versos nas alamedas da realidade contemporânea, distorcendo-a, a fim de não me limitar somente ao enleio do surrea-lismo onírico.

FM | Foram fundamentais à construção dessa voz comum que atingimos com nossos poemas o sentido de entrega e a afirmação de uma poética distinta da minha, segura de si e igualmente apaixonada pelo ris-co. Quando eu te convidei o que mais me atraía em tua poesia era exatamente o que faltava na minha. Eu vinha de uma metáfora mais abstrata, com uma sensu-alidade transbordante, enquanto que a tua intensidade – não menor do que a minha – vinha dessa mineração

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da vertigem do cotidiano, atenção aos vitrais e à fer-rugem da paisagem urbana. Graças a essa busca de um equilíbrio a linguagem poética foi costurando uma voz muito especial e com um grau de intimidade tão fascinante que não há quebra na passagem dos versos de um para outro em nenhum poema. Eu considero este nosso encontro uma imensa felicidade que atesta nossa liberdade de criação, a maturidade da aventura de busca do outro, uma entrada naquele plano que Jung chamou de imaginação ativa onde o ego não re-presenta conflito ou obstáculo. E note que no caso de Abismanto acrescentamos mais uma ousadia, pelo ambiente erótico, tomado de ardis que por um descui-do mínimo nos levaria à reiteração ou a uma cafonice amatória. Creio que nos saímos bem, tanto que agora mesmo já avançamos para um outro capítulo.

VSP| A criatividade ultrapassa fronteiras e os indiví-duos criativos aceitam, até mesmo procuram os de-safios que entremeiam o universo da invenção, estão sempre atentos às novas possibilidades, para tanto é preciso não ter medo do fracasso e aprender com ele, e se entregar à aventura. Para escrever poemas a qua-tro mãos não pode faltar o respeito mútuo e a admi-ração recíproca pelo trabalho um do outro, a ponto de se aceitar as críticas e sugestões de ambos. Não há

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aqui espaço para a vaidade. Entretanto, não é algo que se atinge facilmente. Às vezes, pode-se haver respeito e admiração mútuos e mesmo assim não se alcança a devida afinidade para escrever poemas a quatro mãos. Realmente, trata-se de um trabalho complexo que en-volve a psicologia de cada um. Coincidimos em mui-tos casos com a mesma visão e julgamento de mundo, e possuímos formas diferentes de interpretá-los, o que levou um a incluir elementos distintos no poema do outro, alternativamente. Graças a você, Floriano, pude lidar com este tipo de experiência que contribui para aumentar os mecanismos da criação.

[Fortaleza, Berlim, agosto de 2012]

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VIVIANE DE SANTANA PAULO (1966). Poeta, en-saísta e tradutora. Com formação acadêmica em Literatura Comparada e Filologia Germânica, reside em Berlim, Ale-manha, há quase 20 anos. Neste país publicou Passeio ao longo do Reno (2002) e Estrangeiro de mim (2005). Já no Brasil, recentemente publicou Depois do canto do Gurinha-tã (2011). Além disto, está presente em duas importantes antologias de poesia brasileira, respectivamente publicadas na Espanha (2007) e no Brasil (2009). Através de ensaios e entrevistas publicados na Agulha Revista de Cultura tem dado, ao conhecimento do leitor brasileiro, importantes nomes da cultura alemã. Juntamente com Floriano Martins tem em preparo, para uma editora mexicana, uma antolo-gia de poetas vivos da Alemanha. Contato: [email protected].

FLORIANO MARTINS (1957). Poeta, ensaísta, fotógra-fo, tradutor e editor. Desde 1999 criou e dirige a Agulha Revista de Cultura (www.revista.agulha.nom.br). Sua po-esia conta com títulos como Tumultúmulos (1993), Duas mentiras (2007), Fogo nas cartas/Fuego em las cartas (Es-panha, 2009) e Autobiografia de um truque (2010). Pela Sol Negro Edições publicou O livro invisível de William Burroughs (2012), peça teatral. Tem traduzido livros de Carlos Pellicer, Federico García Lorca, Guillermo Cabre-ra Infante, Hans Arp, Jorge Luís Borges, Juan Calzadilla e Vicente Huidobro. Estudioso do Surrealismo, sobre o tema tem livros publicados no Brasil, na Costa Rica, na Vene-zuela e em Portugal. Juntamente com Viviane de Santana Paulo tem em preparo, para uma editora mexicana, uma antologia de poetas vivos da Alemanha. Contato: [email protected].

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ÍNDICE

08 Luvnis

12 Falhandras

16 Almavagava

20 Nudisforme

24 Suspirança

28 Passaguada

32 Trevilocus

38 Cirkus

42 Cortinavis

46 Milacorum

50 Luníssono

54 Lampadarium

58 Casulanimus

62 Miradeiro

66 Musicinto

70 Manhãnças

76 Fulvorecer

78 Habitalma

82 Animares

86 Mascaralvo

90 Avelume

95 Poslúdio: NÓS em NÓS

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