Biografia de Carlos Drummond de Andrade

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    TESTEMUNHODA EXPERIÊNCIAHUMANA

         D    R 

     U M  M O  

    N   D     

    DRUMMOND,

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    FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL

    Presidente Jorge Alfredo Streit

    Diretor Executivo de Desenvolvimento Social Éder Marcelo de Melo

    Diretor Executivo de Gestão de Pessoas,Controladoria e Logística Dênis Corrêa

    Gerente de Educação e Cultura Marcos Fadanelli Ramos

     Assessoria técnica  Juliana Mary M. Ganimi Fontes

     ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS DA CASA DE RUI BARBOSA

    Presidente

     João Maurício de Araújo

    Vice-PresidenteIrapoan Cavalcanti

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    FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA

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    Diretora do Centro de Pesquisa Rachel Teixeira Valença

    Diretora do Centro de Memória e InformaçãoAna Maria Pessoa dos Santos

    Coordenador-Geral de Planejamento e AdministraçãoCarlos Renato Costa Marinho

    Chefe do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira Eduardo Coelho

    PETROBRAS

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     Texto e Pesquisa  João Camillo Penna

    Coordenação Geral Elizabete Braga

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    Digitalização e Tratamento de Imagens Trio Studio

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     Análise Pedagógica Rosa GensMartha AlkiminAna Crelia DiasManoel Santana

    Design GráficoRuth Freihof | Passaredo DesignChistiane Krämer

    Supervisão Geral Ruy Godinho

    Imagem da capa e 4.a  capa Drummond e sua filha Maria Julieta | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRBDrummond sentado | Luiz Alphonsus/Arquivo Carlos Drummond de Andrande - AMLB/FCRB

      Penna, João Camillo.

    F866r Drummond : testemunho da experiência humana /

     João Camillo Penna. – Brasília: A bravídeo, 2011 .

    137 p. : il.

      ISBN 978-85-61467-09-8 

      1. Andrade, Carlos Drummond de, 1902-198 7. 2. Escritor brasileiro – biograf ia. 3.

    Biografia (Carlos Drummond de Andrade). I. Título.

      CDD 928.69

    Homenagear Carlos Drummond de Andrade (1902–1987), na 13.ª edição do Projeto Memória, uma

    parceria entre a Fundação Banco do Brasil, Associação de Amigos da Casa de Rui Barbosa e Petrobras, é um

    pretexto para lançar um novo olhar sobre a fundamentação do problema da memória, que atravessa a obra do

    poeta. Memória de uma história da vida privada e pública, nacional e mundial, material e imaterial, que está

    na origem da discussão sobre a preservação da memória histórica brasileira. Os exemplos mais evidentes são

    os poemas ou crônicas que tematizam acontecimen tos históricos brasileiros ou mundiais, muitas vezes escritos

    no calor da hora e colados à notícia de jornal, notas de protesto contra a morte ou desaparecimento, notícias

    que lembram a n ecessidade de lembrar. Ou aquelas que “fotograf am” cidades históricas, artistas, monumentos

    do período colonial mineiro, em comunicação direta com aquele que trabalhou durante 17 anos no Serviço

    do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Sua vida e poesia são contemporâneas do programa

    de fundamentação institucional da memória histórica e artística brasileira como construção da nação peloEstado. Em sua poesia, delineia-se, antes de tudo, um diagnóstico sobre o grande perigo que corre o humano

    em nossos dias, junto com seu emblema maior, a poesia. Eis o diagnóstico proferido pelo poeta estreante:

    “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade” [...] O último trovador morreu em

    1914. E o que indicia o início da Primeira Guerra Mundial? “Os homens não melhoram/e matam-se como

    percevejos.” O poeta é portanto nada mais do que um “sobrevivente”, e sua vida junto com sua obra, uma

    sobrevida, que a própria poesia tenta preservar, fixando-a precariamente como a flor que nasce no asfalto. É

    assim que o poeta anuncia o nascimento de sua feia e precária flor: “Uma flor nasceu na rua!/Passem de longe,

    bondes, ônibus, rio de aço do tráfego./Uma flor ainda desbotada/ilude a polícia, rompe o asfalto./Façam com-

    pleto silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.” Cantor do acontecimento, do presente, o

    poema absolutamente moderno se desfaz de sua feição tradicional passadista para nomear o agora : “O tempo

    presente é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes/a vida presente.” Suas crônicas e poemas

    são pequenas intervenções na vida brasileira e mundial, numa tarefa sutil de salvamento do humano onde

    quer que ele se refugie, sinalizando o perigo iminente de sua destruição terminal. Cronista do presente e do

    passado, Drummond fixa a memória, patrimonializa a vida, testemunha sobre os fatos e coisas do presente no

    momento em que viram passado, atravessadas pela luminosidade opaca do tempo. Ou, como diz ele próprio

    no poema “Memória”:

     Mas as coisas fi ndas,

    muito mais que lindas,

    essas ficarão.

    ApresentaçãoCréditos

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    A foto tem, no fundo, sob a luz, a vista dos fundosda igreja da Irmandade Virgem Mártir Santa Luzia. Em primeiro pla-

    no, o perfil escuro de Drummond, fora de foco, recorta parte da igreja

    e da rua lá fora. Abaixo de seu rosto, um carro estacionado ao lado de

    uma ilha calçada e gramada. O ponto de vista, de onde a foto é tira-

    da, é o Ministério da Cultura, atual prédio Gustavo Capanema, onde

    Drummond trabalhou de 1945 a 1962. A foto é uma montagem de

    elementos contrastantes: capta o mundo da rua, desde o espaço interno

    do edifício. Fora, em pleno dia, o espaço público da cidade. Dentro e na

    sombra, a silhueta espectral e sem espessura do poeta, sisudo e calado,

    não poderia mais privado, roubando à rua o seu quinhão, situa-se entre

    a exterioridade da rua e o interior do edifício. A igreja setecentista rea-

    loca no Rio de Jan eiro, logradouro de adoção do poeta, capital do Brasil

    no momento em que a foto foi tirada, a memória barroca das Minas

    Gerais de onde ele vem. A própria igreja, que dava para o mar antes do

    aterro do morro do Castelo, proeminente na foto, conta a história de

    destruição e permanência urbanística, pública, da fundação da cidade.

    Contrastando com ela, a r ua moderna, o automóvel, o edifício, emble-

    ma da instalação da arquitetura moderna no Brasil.

    Drummond no palácio Gustavo Capanema. Rio de Janeiro, década de 1940 | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

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    Nascido em Itabira do Mato Dentro, no interior de Minas Ge-rais, em uma família patriarcal de proprietários de terras, Carlos Drummond de An-

    drade (1902-1987) sempre terá com esse passado, e com a sua família, uma relação

    marcada pela ambivalência.

    O sobrado de Carlos Paula de Andrade, pai de Drummond, era “todo um sistema

    de poder”: a frente dava para a câmara municipal (onde Carlos de Paula Andrade era

     vereador valetudinário), para a visão de uma parte da Fazenda do Pontal, de proprie-

    dade da família, e para a cadeia.1 Três elementos essenciais à obra de Drummond: a

    política, a terra e o sentimento de culpa.

    O sobrado, vendido pela família nos anos 1920, é, aos olhos do menino, um

    lugar habitado por fantasmas. Após a venda, a casa é conservada no texto, veículo

    da memória, que a transforma em monumento da própria perda. Perdida enquanto

    patrimônio material, e ganha enquanto memória imaterial.

    Fazenda do Pontal ou dos Doze Vinténs, propriedade da família de Drummond onde ele passava as férias na infância| Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/ FCRB

    2 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Vila de utopia. (Confissões de Minas, 1944) Prosa seleta. Rio de Janeiro: Aguilar, 2003. p. 212-3.

    3 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Liquidação. (Boitempo , 1968). Poesia completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2006. p. 943.

    [...] Os passos ecoavam ainda nos mesmos imensos corredores, nas mesmas

    salas infi nitas. E nela existiam desvãos que nós nunca havíamos explorado. Por

    baixo da escada, por cima da copa, aqui, ali, o mistério abria-nos os seus lares.

     Mas nós crescíamos depressa e não púnhamos reparos na casa grande.

    Sabíamos que a casa tinha muitos anos, que ali morreram avós, tios e primos;

    em tal quarto nasceu meu pa i, naquele outro meu avô estendeu, até à morte, uma

     perna baleada nas últimas eleições sangrentas do município; mas nós circuláva-

    mos livremente através do ar coalhado de lembranças e eflúvios familiares, de

     pesadas e obscuras memórias dos coronéis e das damas antigas, dos vestidos de

    dona Joana e das festas do comendador Paula Andrade.

    Com a mesma inconsciência natural crescemos e nos dispersamos; um dia a

    casa foi vendida, e então o amargor sem aviso prévio, uma angústia nos subi-

    ram à boca, aos olhos; verificamos como aquela casa fazia parte da nossa vida,e como essa vida ficava sem explicação, despregada das enormes paredes azuis

    que o Andrade dominador salvara da ruína para compor com elas o nosso quadro

    infantil e humano. 2

    Um poema de Boitempo  (1968) fala da venda do sobrado com seus espectros

    “imponderáveis” pelo valor de mercado:

    LIQUIDAÇÃO

    A casa foi vendida com todas as lembranças

    todos os móveis todos os pesadelos

    todos os pecados cometidos ou em via de cometer

    a casa foi vendida com seu bater de portas

    com seu vento encanado sua vista do mundo

      seus imponderáveis

      por vinte, vinte contos.3

    1 | CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu : Biografia de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Globo, 2006. p. 35.

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    Impassível, o pico do Cauê, centro totêmico de Itabira,“primeira visão do mun-

    do”,4 a “pedra” do topônimo tupi, “árvore de pedra ou pedra que brilha” (ita=pedra;

    bira=árvore ou brilha)” , conta a história da extração de ferro e da fabricação de

    aço no Brasil. Inicialmente fora vendido a um grupo de investidores internacionais,

    que no entanto não começam a exploração do minério. Alguns anos mais tarde, a

    Companhia Vale do Rio Doce se instala na cidade e faz dela o centro de suas ativi-

    dades.5 O pico de hematita eventualmente terminará no Japão, mas já aqui é sim-

    bolicamente de todos, como traço identitário: há um pouco dele em tudo, repartido

    entre os habitantes da cidade, sobretudo em suas almas — “Noventa por cento de

    ferro nas calçadas./Oitenta por cento de ferro nas almas”,  escreverá Drummond em“Confidência do itabirano”6. Ao mesmo tempo, o pico não é de n inguém, e o que se

    reparte é a falta dele, vendido, transformado em mercadoria. O pico, desde sempre,

    e de antemão, falta a seu lugar, é a testemunha de uma derrota.

    ITABIRA

    Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.

    Na cidade toda de ferro

    as ferraduras batem como sinos.

      Os meninos seguem para a escola.

      Os homens olham para o chão.

      Os ingleses compram a mina.

    Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.7

    Casario de Itabira com pico do Cauê ao fundo. Início do século XX| Secretaria de Turismo de Itabira/Museu de Itabira

    4 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Vila de Utopia. (Confissões de Minas, 1944) Prosa seleta. Loc. cit. p. 213

    5 | A Vale do Rio Doce foi criada em 1.° de junho de 1942, pelo Decreto-Lei n.º 4.352, assinado por Getúli o Vargas.

    6 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Confidência do Itabirano (Sentimento do mundo, 1940). Poesia completa. Loc. cit. p. 68.

    7 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Itabira ( Alguma poesia , 1930). Poesia completa. Loc. cit. p. 12.

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    Primeira vila operária com o pico do Cauê ao fundo. Itabira, 1945 | Arquivo Público Mineiro

    Bloco de hematita retirado da primeira explosão do pico do Cauê, em 1944 | Arquivo Público Mineiro

     Anúncio da Compan hia Vale do Rio Doce . Década de 1970 | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Mina do Cauê, Itabira, 2009 | Rogério Reis/Tyba Imagens

    Estátua de Drummond no jardim do Memorial Carlos Drummond de Andrade, em Itabira. Ao fundo, a mina do Cauê, 2009| Rogério Reis/Pulsar Imagens

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    O poema “Infância” reconstrói a lembrança da cena familiarda vida em fazenda. Os personagens são: o pai que sai a cavalo, a mãe que cose, o

    irmão que dorme, a preta ex-escrava que chama para o café. O protagonista é o lei-

    tor da história de Robinson Crusoé, na versão infantil, com imagens do romance de

    Defoe, editada em série na revista O Tico-Tico, “publicação da maior importância na

    formação intelectual das crianças do começo deste século”8 e uma de suas primeiras

    leituras, conforme confessará anos depois.

    INFÂNCIA  A Abgar Renault 

    Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

    Minha mãe ficava sentada cosendo.

    Meu irmão pequeno dormia.

    Eu sozinho menino entre mangueiras

    lia a história de Robinson Crusoé,

    comprida história que não acaba mais.

    No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

    a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu

    chamava para o café.Café preto que nem a preta velha

    café gostoso

    café bom.

    Minha mãe ficava sentada cosendo

    olhando para mim:

    — Psiu... Não acorde o menino.

    Para o berço onde pousou um mosquito.

    E dava um suspiro... que fundo!

    Lá longe meu pai campeava

    no mato sem fim da fazenda.

    E eu não sabia que minha história

    era mais bonita que a de Robinson Crusoé.9

    Modelo da relação entre vida e literatura, entre província vivida e metrópole lida, em

    que se negocia o ler, o viver e o escrever, Robinson Crusoé serve ao menino Carlos de

    “mediação alegórica”, para pensar a existência de meni no, no dizer de Silviano Sant iago.10

    Família Drummond de Andrade no jardim interno da casa de Itabira. Carlos é o primeiro àesquerda, 1915 | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    9 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Infância. ( Alguma poesia , 1930). Poesia completa. Loc. cit. p. 6.

    10 | SANTIAGO. Silviano. Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2006. p. xxii, xxiii, xxiv.8 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Mal obrigado. (Tempo, vida, poesia. Confissões no rádio, 1986). Prosa seleta. Loc. cit. p. 1.214.

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    Ilustração de Robinson Crusoé. Revista O Tico-Tico, 1911. Drummond leu esta adaptação deRobinson Crusoé, aos nove anos. No poema“Infância”, publicado em Alguma poesia , elecompara a sua vida à do personagem| Lucia Loeb/Biblioteca José e Guita Mindlin

    Primeiro capítulo da adaptação de As avent urasde Robinson Crusoé de Daniel Defoe, publicadana revista O Tico-Tico, em 1911| Lucia Loeb/Biblioteca José e Guita Mindlin

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    Estuda com os padres alemães do Verbo Divino, no Colé-gio Arnaldo, em Belo Horizonte, e no Colégio Anchieta, em Friburgo, no estado do

    Rio de Janeiro, de onde é expulso por “insubordinação mental”. Anos depois, avalia

    a importância que a expulsão teve em sua vida: “[...] perdi a confiança na justiça dos

    que me julgavam. Mas ganhei vida e fiz alguns amigos inesquecíveis.”11

    11 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Autobiografia para uma revista. ( Confissões de Minas, 1944). Prosa seleta. Loc. cit. p. 197.

    Diploma de conclusão do primário do grupo escolar Dr. Carvalho Brito. Itabira, 1913 | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Colégio Anchieta, Friburgo, RJ | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Colégio Arnaldo, Belo Horizonte, MG, década de 1920 | Arquivo Público Mineiro

    Boletim do Colégio Anchieta. Friburgo, 1918 | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Página 16 | “Aula de francês de Mestre Emílio. Itabira, 191...” Legenda de Drummond  | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Página 19 | Capa do jornal  Aurora co llegial,  onde Drummond publicou seu segundo texto, “Maio”. Nova Friburgo, 1918| Marcella Azal/Arquivo-Museu de Literatura Brasileira/FCRB

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    “Onda” é o seu o primeiro poema publicado, quando Drummond tinha 15 anos, sob o pseudônimo WIM-

    PL, no jornal Maio, com um único número, editado pelo irmão Altivo.

    ONDA

    Uma onda veio, mansamente, espreguiçar-se na prai a, numa carícia dolente...

    Parecia o corpo de uma mulher...

    Era imensamente triste. Foi rolando sobre a areia, rolando...

    Perto havia uma árvore onde folhas secas punham olheiras... A onda beijou-a longamente,

    [num beijo de gaze, de espumas.]

    Algo me leva a crer que isso seria no verso seguinte e eu copiei errado. Conferir.

    A árvore, então, derramou duas lágrimas verdes que a onda levou... 12

    Onda de um mar necessariamente ausente, na terra “ilhada entre cones de hematita”13

     de Itabira, onda feitade desejo, de mãos que acariciam o corpo erótico da natureza, fixada pelo voyeurismo do olhar: a árvore. O

    resíduo, a lágrima, a árvore é o que a onda leva: não sobra nada, só o poema, em que não falta já a marca da

    lida poética com as palavras, a incerteza sobre a inserção do verso, “copiado”.

    “Maio”, publicado no jornal estudantil Aurora collegial , o segundo texto publicado por Drummond, parece

    citar o nome do jornal de Altivo. A ode em prosa ao mês de maio retoma o fio das reminiscências literárias,

    ainda consideradas pelo autor mais bonitas que a história de sua vida. A representação alegorizada das figuras

    da Natureza (em caixa alta), em tom encomiástico, mostra um Drummond bom moço, praticante do “dever e

    da virtude”, saudando “o mês das manhãs radiosas e das tardes perfumadas”. Custa crer que este Drummond

    católico, que homenageia o mês consagrado à “V irgem Imaculada, Mãe de Deus e dos Homens”, seja o mesmo

    que será expulso, no ano seguinte, do Colégio Anchieta, em que  Aurora collegial   era editado.

    Drummond vê nessa experiência a antecipação de sua carreira como jornalista-cronista profissional, “a única

    coisa na vi da que eu faria com c erto prazer” , e que não pôde realizar a contento pela ocupação na burocracia.14 

    Fala do cotidiano na redação de jornal como uma submissão cotidiana aos fatos, em oposição evidente ao métier  

    da poesia, que sempre descreveu como esporádico, incidental, assistemático. Mas, ao fazer isso, revela uma verdade

    profunda de sua poesia. Não a confissão de uma vida pessoal desprovida de fatos, como costumava descrever a

    sua, mas uma declaração sobre a única liberdade que existe, ancorada no tempo e na história, a ser distinguida da

    “novidade”, fatos transformados em confissões poéticas feitas só de “palavras essenciais”. Fatos como obstáculos:

    Sempre gostei de ver o sujeito às voltas com o fato, tendo de captá-lo e expô-lo no calor da hora. Transformar

    o fato em notícia, produzir essa notícia do modo mais objetivo, claro, marcante, só palavras essenciais. [...] E

    renovado todo dia! Não há pausa. Não há dorzinha pessoal que possa impedi-lo. O fato não espera. Então você

    adquire o hábito de viver pelo fato, amigado com o fato. Você se sente infeliz se o fato escapou à sua percepção.15 

    12 | Reproduzido por José Condé em Confidências do itabirano, no Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 05 set. 1948. Segunda seção, página 8.

    13 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Colóquio de estátuas. Prosa seleta. Loc.cit . p. 246.

    14 | ANDRADE, Carlos Drummond de. O jornal manuscrito e o de verdade. ( Tempo, vida, poesia, 1986). Prosa seleta. Loc. cit. p. 1221.

    15 | Idem, ibidem.

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     Vista aérea de Belo Horizo nte, MG, 1934 | Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto

    Ao mudar para Belo Horizonte,passa por uma fase errática, morando em di-

     versas pensões, hotéis, e em dois números na

    rua Silva Jardim, em contraste com o enraiza-

    mento domiciliar de sua infânci a, plantada nas

    propriedades da família.16 Estranha a largueza

    e a retidão geométrica “traçada com régua”17 

    das ruas da capital mineira, em oposição à

    tortuosidade das ruas de sua cidade natal. As

    cidades determinam um estilo de andar e um

    esquema de visibilidade: andar torto e irregu-

    lar, na cidade de becos e passagens estreitas,

    em que as casas se ocultam e aparecem entreas curvas; a cidade interiorana, por oposição

    à capital simétrica, iluminista, disposta em

    tabuleiro de xadrez, de avenidas largas, onde

    tudo é visível, o que Angel Rama denominou

    de “cidade letrada”.18

    16 | NAVA, Pedro. Beira-Mar . São Paulo: Ateliê Editorial/Giordano, 2003. p.

    192.

    17 | CANDIDO, Antonio. Fazia frio em São Paulo. Recortes . Rio de Janeiro:

    Ouro sobre azul, 2004. p. 23.

    18 | RAMA, Angel.  A cidade das letras.   Tradução Emir Sader. São Paulo:

    Brasiliense, 1985.

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    RUAS

    Por que ruas tão largas?

    Por que ruas tão retas?

    Meu passo torto

    foi regulado pelos becos tortos

    de onde venho.

    Não sei andar na vastidão simétricaimplacável.

    Cidade grande é isso?

    Cidades são passagens sinuosas

    de esconde-esconde

    em que as casas aparecem-desaparecem

    quando bem entendem

    e todo mundo acha normal.

    Aqui tudo é exposto

    evidente

    cintilante. Aqui

    obrigam-me a nascer de novo, desarmado.19

     Andando em Bel o Horizonte, 1932 | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    19 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Ruas. ( Boitempo , 1968). Poesia completa. Loc. cit. p. 1.093-1.094.

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    Dolores e Drummond, década de 30 | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Casa-se em 1925 com Dolores Dutra de Moraes, a primeira ou se-gunda mulher em Belo Horizonte a trabalhar fora de casa, como contadora em uma fábrica

    de sapatos.20 Em 1926, volta para Itabira e tenta conciliar a administração do patrimônio

    familiar com a profissão, lecionando Geografia e Português no Ginásio Sul-Americano. Fra-

    cassa e retorna a Belo Horizonte em 1926, “como redator de jornais oficiais e oficiosos”. 21 

    20 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Cronologia da vida e da obra. Poesia completa. Loc. cit. p. 197.

    21 | ANDRADE, Carlos Drummond de. ( Confissões de Minas, 1944). Prosa seleta. Loc. cit. p. 197.

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    Grande Hotel na rua da Bahia. Local do encontro com os modernistas paulistas | Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto

    Em 1924, uma caravana modernista de São Paulo, que incluíaMário de Andrade, Oswald de Andrade, seu filho, Nonê, Tarsila do Amaral e

    o poeta franco-suíço Blaise Cendrars, aporta em Belo Horizonte. Drummond

    e seus amigos Pedro Nava, Martins de Almeida, João Alphonsus e Emílio

    Moura, todos jovens mineiros escritores que se iniciavam nas atividades lite-

    rárias, acorrem ao Grande Hotel, onde estava hospedada a trupe paulistana.

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    “Grupo dos cinco”: Mário de Andrade e Tarsila do Amaral tocando piano; Oswald de Andrade e Menotti Del Picchiadeitados no tapete; e Anita Malfatti deitada no sofá. Anita Malfatti, 1922| Lucia Loeb/Coleção Mário de Andrade/Instituto de Estudos Brasileiros-USP

    Assim relata Drummond o episódio:Uma tarde, em 1924, tivemos notícia de que no Grande Hotel se hospedava uma caravana modernista

    de São Paulo. [...] Assistimos ao final de jantar (mineiros e precavidos, já tínhamos jantado). Depois, sa-

    ímos todos, rua da Bahia abaixo, em direção à avenida Afonso Pena. Conversa generalizada e alegre, com

    Oswald em sua natural desenvoltura, Cendrars expandindo sua curiosidade de francês interessa do em tudo,

     principalmente em captar a cor local da vida mineira. No desenvolver desse multidiálogo sem rumo, foi-se

    logo revelando, para mim e meus companheiros, a personalidade de Mário. Mesmo bri ncando, ele inspirava

    uma confiança intelectual que Oswald, muito mais brilhante e imprevisto, seria incapaz de despertar. 22

    Retrato de Mário de Andrade por Lasar Segall. Óleo

    sobre tela, 1927| Lucia Loeb/Coleção Mário de Andrade/Instituto de Estudos Brasileiros-USP

    22 | Ibidem, p. 1.247.

    23 | SANTIAGO, Silviano. Suas cartas, nossas cartas. In: SANTIAGO, Silviano (org.) Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Rio de Janeiro

    Bem-Te-Vi, 2003. p. 16.

    24 | SANTIAGO, Silviano. Carlos & Mário: Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002. p. 46-48.

    O encontro é de grande importância para os jovens, que iniciam assíduas correspondências com Mário

    de Andrade, que se estenderão pelos próximos anos. Para os paulistas, a “viagem de descober ta do Brasil”, na

    expressão de Mário, significava injetar uma profundidade histórica na reflexão sobre a modernidade que o mo-

     vimento modernista de 1922 encarnava. O périplo pelas cidades históricas mineiras, que permite documentar

    o auge da extração do ouro, dá perspectiva histórica à economia cafeeira e industrial paulista da atualidade,

    intrinsecamente ligada ao Modernismo. Os veios de ouro exauridos de ontem são o futuro da opulência do

    café de então. O vanguardismo modernista do presente correspondia aos monumentos históricos, à arte reli-

    giosa de Aleijadinho, no passado. Para os mineiros, os paulistas vieram lhes fazer descobrir Minas, eles que só

    tinham olhos para a Europa.23 Para os paulistas, Minas lhes mostra o Brasil. Para Drummond, a relação com

    Mário, desenvolvida em correspondência extensa e profunda até a morte deste último em 1945, será deter-

    minante. Mário é o modelo de Drummond não só enquanto mentor intelectual e literário, mas no que toca

    à vida. O primeiro livro de Drummond,  Alguma poesia  (1930) — cuja dedicatória é: “A Mário de Andrade,

    meu amigo” —, contém a marca do reconhecimento e da importância da amizade com o paulista para que o

    livro fosse publicado na forma em que o foi. Mas é como mestre da vida que Mário intervém inicialmente na

    obra de Drummond. “Tudo está em gostar da vida e saber vivê-la”, escreve Mário. Considera a juventude que

    conhece “um pouco gabinete demais. Depois do estudo do livro e do gozo do livro [...]”, é preciso interrompera leitura, passear, “puxar conversa com gente chamada baixa e ignorante! Como é gostoso! [...] [É] com essa

    gente que se aprende a sentir e não com a inteligência e a erudição livresca. Eles é que conservam o espírito

    religioso da vida e fazem tudo sublimemente num ritual esclarecido de religião” .24

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    Antes da publicação de Alguma poesia , Drummond publica vários dos poemas que depois integrariam seu primeiro volume de poesias em revis-

    tas que desdobram a lição do Modernismo de 1922.

    A  pedra   do modernismo brasileiro, “No meio do caminho”, foi publicada na  

    Revista de antropofagia  (São Paulo, julho de 1928), editada por Oswald de Andrade.

    “Trata-se de um manifesto do nosso Modernismo.” O veredito de Mário: “Acho isto

    formidável. Me irrita e me ilumina. É símbolo.”25 Alegoria do obstáculo, a pedra do

    “não” é a marca inicial de sua poética da aporia, do movimento do negativo contido

    nela, que será explorado em sua obra madura. Drummond historia:

    Como podia eu imaginar que um texto insignificante, um jogo monótono,

    deliberadamente monótono, de palavras causasse tanta irritação, não só nos

    meios literários como ainda na esfera da administração, envolvendo seu autor

    numa atmosfera de escárnio? Professores de português , ainda sem curso de letras,

     geralmente bacharéis de formação literária convencional espalhavam pelo Brasil

    inteiro, nos ginásios, que o modernismo era uma piada ou uma loucura, e como

     prova liam o poeminha da pedra. Sucesso absoluto da galhofa. Imagem gravada

    na mente de milhares de garotos, que daí por diante assimilariam o conceito de

    modernismo-pedra-burrice-loucura.26

    25 | Ibidem , p. 232.

    26 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Prosa seleta. Loc. cit. p. 1.227.

    Capa do número três da Revista de antropofagia, primeira publicação de “No meio do caminho”.São Paulo, julho de 1928| Lucia Loeb/Biblioteca José e Guita Mindlin

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    Revista Verde, onde o poema “Quadrilha” foi publicado pela primeira vez. Cataguazes, novembro de 1927| Lucia Loeb/Biblioteca José e Guita Mindlin

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    Em 1929,  por iniciativa de seu editor, Rodrigo Mello Franco deAndrade, O Jornal publica um número especial sobre Minas Gerais, com ensaios de

    Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Paulo Prado, Aníbal Machado, Drummond,

     João Alphonsus e do própri o Rodrigo, com desenhos de Manuel Bandeira (o de-

    senhista, não o poeta). A ênfase é o barroco mineiro. As cidades-monumentos de

    Ouro Preto, Mariana, Sabará, a arte de Aleijadinho recebem ensaios individuais.

    Em O Jornal , aprofunda-se a lição da “Viagem de descoberta do Brasil” de 1924,

    consolidando-se a colaboração dos modernistas paulistas (Mário, Paulo Prado) e

    de um pernambucano radicado no Rio (Bandeira), modernista de primeira hora,

    com o grupo de mineiros (Dr ummond, Rodrigo, João Alphonsus, Aníbal Machado),

    sob a égide do barroco mineiro. Modernidade e Barroco, o agora e o passado, são

    articulados como reflexão ao mesmo tempo histórica e artística sobre o Brasil. O

    objetivo que se indicia: a fundação moderna do Brasil a partir da pedra mineira de

    sua tradição. Reúne-se aqui, pela primeira vez, um núcleo de pessoas congregadas

    em torno de Rodrigo M. F. de Andrade, que formará adiante, em 1937, o Serviço

    do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), onde Drummond tra-

    balhará por muitos anos (1945-1962). Nessa publicação, podemos encontrar já o

    plano-piloto do SPHAN, oito anos antes de sua fundação. Ponto intermediário

    entre a Semana de Arte Moderna de 1922 e a fundação do SPHAN, formula-se,

    pela primeira vez, um projeto de arte pública sobre o tema do patrimônio histórico

    e artístico brasileiro, que tem como modelo a patrimonialização dos monumentos

    das cidades históricas mineiras, o salvamento e a restauração da memória brasileira.

    “Viagem de Sabará”, texto de Drummond publicado em O Jornal. Rio de Janeiro, 1929| Lucia Loeb/Coleção Mário de Andrade/Instituto de Estudos Brasileiros-USP

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    Em “Viagem de Sabará”, Drummond opõe com precisão a experiência estética à

    experiência vital, histórica (e relig iosa), da cidade. O interessante de Sabará, se com-

    parada às outras “cidades mortas de Minas, que são as cidades mais viv as de Minas”,

    é justamente o fato de nela escassearem os personagens e acontecimentos históri-

    cos que, nas outras, assombram o visitante a cada esquina. Mas essa desvantagem

    histórica é a vantagem artística de Sabará. As cidades são organismos funcionais,

    “máquinas primitivas”, construídas para satisfazer a certo fim: as casas são “máquinas

    de habitar”; as igrejas, “máquinas de rezar”. A autoria da expressão “máquina de ha-

    bitar” é de Le Corbusier, aqui designado por Drummond “um arquiteto maluco”. A

    experiência estética, por outro lado, é propiciada pelo arruinamento das funções vi-tais da cidade, sua “desmaquinação”, por assim dizer, que dá ao visitante a percepção

    repentina do silêncio e do tempo, surgindo como musgo incorpóreo nos edifícios,

    em uma parceria entre a arquitetura e o tempo.

     A melhor emoção, a mais cheia de pudor e a mais profunda, é para certas

     formas de beleza que o homem e o tempo cr iaram e vão destruindo de parce-

    ria; certas igrejas que envelheceram caladas e orgulhosas no seu incomparável

    silêncio; certos becos; certas ruas tristes e tortas por onde ninguém passa, nem a

    saudade; este chafariz, com uma cruz e uma data, como um túmulo; a sucessão

    dos Passos; muros em ruína mesmo, sem literatura, inteiramente acabados; tudo

    que no passado não é nem epopeia nem romance nem anedota; o que é arte. 27  

    “Aleijadinho”, texto de Mário de Andrade publicado em O Jornal. Rio de Janeiro, 1929| Lucia Loeb/Coleção Mário de Andrade/Instituto de Estudos Brasileiros-USP

    27 | Ibidem , p. 220.

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    É interessante contrastar essa estética da ruína com a proposição de Mário de

    Andrade em seu estudo sobre “O Aleijadinho”. Para Mário, Antônio Francisco Lis-

    boa é a primeira manifestação verdadeiramente nacional da aclimatação de influên-

    cias portuguesas e europeias na terra brasileira. A entidade nacional está encarnada

    na figura étnica do “mulato”, nem português, nem negro, mas fluidez, plasticidade

     vagabunda e malandra, que abrasileira a coisa lusa, lhe dando graça, delicadeza e dengue

    na arquitetura .28 O tempo tem aqui também, como na síntese de Drummond, um

    lugar importante: Aleijadinho nasce quando o fausto produzido pelas minas aurífe-

    ras das Gerais já havia se esgotado: ele vem “economicamente atrasado”, um “aborto

    luminoso, como abortos luminosos foram a valorização da borracha e do café, e pormuitas partes a industrialização de São Paulo”.29 Abortos, todas as expressões artísti-

    cas brasileiras relacionadas com a bolsa econômica de produtos de que são o sint oma

    decadente e brilhante. Ao mesmo tempo, Aleijadinho profetiza uma solução brasi-

    leira para a arte, é já independente, enquanto o Brasil ainda depende de Portugal,

    independência que sua obra contém de forma precária e diletante, que desaparece

    após a sua morte e que precisará esperar a modernidade, isto é, o Modernismo, para

    se fixar de maneira adequada. Não esqueçamos que Mário escreve o ensaio em 1928,

    o mesmo ano de Macunaíma  e do Ensaio sobre a música brasileira , ambas atualizações

    maduras do que se prefigurava como utopia fora do tempo na obra de Aleijadinho.

    De um lado, Aleijadinho nasce tarde demais e, de outro, nasce cedo demais. Entre os

    dois, no espaço sem espaço da utopia, se fixa sem se fixar a fórmula do Brasil por vi r.

    No mesmo ano da publicação em O Jornal do ensaio de Mário, Lúcio Costa,

    aquele que será o grande introdutor da moderna arquitetura no Brasil, escreve “O

    Aleijadinho e a arquitetura tradicional”, que se comunica com as teses de Mário.

    Para Lúcio Costa, a síntese arquitetural brasileira já está toda projetada nos mestres

    anônimos do período colonial, num processo que depois se interromperia, com a

    adoção de parâmetros estrangeiros.30

     Seria preciso retomar o fio da meada, estu-dar cuidadosamente as soluções cristalizadas no barroco mineiro, para encontrar a

    fórmula de nossa arquitetura.31 Anos depois, Lúcio verá em Oscar Niemeyer, que

    32 | Ibidem, p. 188.

    33 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Contemplação de Ouro Preto. Prosa seleta. Loc. cit. p. 253.

    28 | ANDRADE, Mário de. Aspectos das artes plástic as no Brasil . 3. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1984. p. 42.

    29 | Ibidem, p. 41.

    30 | WISNIK, Guilherme. Plástica e anonimato: modernidade e tradição em Lúcio Costa e Mário de Andrade. Novos estudos, São Paulo, n.

    79, p. 170, nov. 2007.

    31 | Ibidem, p. 180.

    começara sua carreira em seu escritório de arquitetura, o elo perdido com a arte

    colonial, ao integrar a curva barroca na arquitetura por meio do material dúctil que

    é o concreto armado. Oscar Niemeyer seria algo como o Aleijadinho da arquite-

    tura moderna.32 

    Em Mário e Lúcio se alinham duas poderosas reflexões sobre a refundação na-

    cional moderna a partir da repetição atualizada da memória do passado como con-

    ciliação entre tradição artística anônima e modernidade artística. Ambos, não por

    acaso, concluirão seus projetos de construção moderna do país pelo levantamento

    de um arquivo patrimonial da tradição histórica e artística brasileira, trabalhando

    em um aparelho do estado, mais precisamente no SPHAN, no final dos anos 1930 ,como complemento necessário de suas obras assinadas. Arqueologia da tradição,

    arquitetura da nação e arquivo público se articulam no trabalho do paulista e do

    carioca.

    Futuro companheiro dos dois n o SPHAN, Drummond, em 1929, lê o Barroco

    de forma bastante distinta: enquanto aqueles apostam suas fichas em uma refunda-

    ção ou atualização moderna do Barroco, Drummond, ainda de forma incompleta,

    mas com grande acuidade, liberta  o Barroco da necessidade fundaci onal e funcional.

    Barroco é emoção, apresentação do tempo, síntese  imaterial  e poética, que não se

    fixa em uma entidade ou fundação nacional, no que ele denominará adiante de

    uma poesia das ruínas .33 A parceria com o tempo é o que transpira no monumento

    histórico, o patrimônio material deixa transparecer uma lacuna não preenchida,

    irreconstruível, radicalmente perdida, e salva, enquanto experiência fixada no cristal

    da arte, em torno de seu centro vazio de tempo.

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    Em 1930, Drummond publica, depois de muita hesitação,  Alguma poesia . Os poemas que o compõem co-

    meçaram a ser escritos em 1923. Drummond pensava chamá-lo “Minha terra tem palmeiras”. Num dado mo-

    mento, pensa em destruir o volume. O amigo, Mário de Andrade, a quem o volume é dedicado, o impede: “Isso

     você não tem direito de fazer e seria covardia. Você pode ficar pratiquíssimo na vida se quiser porém não temdireito de rasgar o que já não é mais só seu, que você mostrou pros amigos e eles gostaram. [...] Eu quero uma

    cópia de todos os seus versos para mim. Quero e exijo, é claro”.34 O poema de abertura é “Poema de sete faces”.

    34 | SANTIAGO, Silviano. Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade . Loc. cit. p. 215.

    Capa da primeira edição de Alguma p oesia . Belo Horizonte, Edições Pindorama, 1930| Marcella Azal/Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB FCRB

    Página 41 | Datiloscrito do poema “Nota social” de 1923, com intervenções manuscritas de Mário de Andrade. A versãodefinitiva será incluída em Alguma poesia | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

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    POEMA DE SETE FACES ( Alguma poesia , 1930) 

    Quando nasci, um anjo torto

    desses que vivem na sombra

    disse: Vai, Carlos! ser gauche  na vida.

    As casas espiam os homens

    que correm atrás de mulheres.

    A tarde talvez fosse azul,

    não houvesse tantos desejos.

    O bonde passa cheio de pernas:

    pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

    Porém meus olhos

    não perguntam nada.

    O homem atrás do bigode

    é serio, simples e forte.

    Quase não conversa.

     Tem poucos, raros amigos

    o homem atrás dos óculos e do bigode.

    Meu Deus, por que me abandonaste

    se sabias que eu não era Deus

    se sabias que eu era fraco.

    Mundo mundo vasto mundo,

    se eu me chamasse Raimundo

    seria uma rima, não seria uma solução.

    Mundo mundo vasto mundo,

    mais vasto é meu coração.

    Eu não devia te dizer

    mas essa lua

    mas esse conhaque

    botam a gente comovido como o diabo.

    Apresentação inicial e programática da   persona   frágil e desajeitada

    do poeta gauche , o poema se escreve a partir de elementos heterogêneos

    e desencontrados:35 a narrativa biográfica (primeira estrofe); a descrição

    da vida urbana, de bondes e das multidões metonimicamente designa-

    das pelas pernas (segunda e terceira estrofes); o autorretrato de si mesmo

    como outro (O homem atrás do bigode  — quarta estrofe); o tema niilista

    da morte de deus, inscrito na frase de Cristo (quinta estrofe);36 a inade-

    quação entre nome próprio e mundo, marcada pela rima problemática

    (mundo/Raimundo)37, tornando necessário o recurso ao verso livre (sex-

    ta estrofe); e o final melancólico, pseudorromântico e sentimental da lua

    decalcada no céu (sétima estrofe).

    Davi Arrigucci identifica aqui o cerne da poética drummondiana: a marca

    estruturante do intervalo entre as partes, resíduos, fragmentos, como conjun-to mal costurado que o poema não chega a unificar, a mesma lição do adverso

    e do contraditório que a poesia de Drummond transcreverá. 38

    35 | ARRIGUCCI JR. Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond. São Paulo: C. Naify, 2002. p. 36.

    36 | “Meus Deus, por que me abandonaste”, é a tradução literal sem a repetição inicial de “Deus”, do “Eli Eli lama sabachtani”, de Mateus, 27:46 e de Marcos, 15:34.

    37 | CORREIA, Marlene de Castro. Drummond:a magia lúcida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 70.

    38 | AR RIGUCCI JR. Davi. Loc. cit. p. 32.

    Drummond em seu gabinete. Belo Horizonte, década de 1930 | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB“O homem atrás do bigode”. Belo Horizonte, 1930 | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

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    Drummond entra no funcionalismo ainda em Belo Horizonte, em1929, como redator do jornal Diário de Minas , órgão do Partido Republicano Mi-

    neiro (PRM), partido das oligarquias regionais. Sua entrada no serviço público se

    faz, portanto, pela porta do “jornalismo cultural”, atividade que ocupará por mais de

    60 anos, em uma rotina de emprego em três turnos: a do emprego público, que lhe

    dará essencialmente o sustento; a de poeta de edições raras, de pequena tiragem; e

    a de jornalista contratado que escreve com grande assiduidade, em jornais diversos,

    em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.

    Redação do Diário de Minas, por Pedro Nava. Drummond está incluído na sala de revisão (9 bis ) | Arquivo Pedro Nava - AMLB/FCRCine Teatro Glória. Drummond escreveu em diversos jornais, fazendo assiduamente crítica de cinema. Belo Horizonte, 1929| Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto

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    12.º Batalhão de Belo Horizonte, antes da rendição, durante a Revolução de 1930 | Fundação Getulio Vargas - CPDOC

    12.º Batalhão de Belo Horizonte, depois da rendição, durante a Revolução de 1930 | Fundação Getulio Vargas - CPDOC

    Em 1930, trabalhando na Secretaria do Interior de Minas Gerais como auxiliar de ga-binete de Cristiano Machado, se engaja na Revolução de 1930. A revolução é deflagrada na crise sucessória

    de Washington Luís, presidente paulista que pretendia fazer um sucessor também de São Paulo, quebrando

    a alternância Minas—São Paulo, “café com leite”, que se mantivera de maneira precariamente equilibrada

    durante a República Velha.

    O poema “Outubro 1930”, incluído nas edições posteriores de  Alguma poesia  (1930), e dizendo respeito a

    algo ocorrido após o lançamento do volume, é uma reação ao fato bruto da história visto a partir da refração

    do poema. Trata-se de testemunho multifacetado, de primeira hora, do ponto de vista margi nal de burocrata,

    que era o de Drummond, dos dias cruciais da chamada Revolução de Outubro. A Secretaria do Interior de

    Cristiano Machado em Belo Horizonte se transforma no estado-maior das forças revolucionárias mineiras. A

     visão retrospectiva é necessariamente autoirônica: “Durante a campanha contra o XII Regimento de Cavalaria[Drummond se engana: era o de Infantaria], em Belo Horizonte, sob a fuzilaria intermitente e insistente, que

    durou dias e noites angustiosos, eu não tinha incumbência grave a executar; apenas a redação de telegramas

    explosivos contando vitóri as, e esboços de comunicados, igualmente cheio de brio e segurança.” 39 A desocupa-

    ção do burocrata contrasta com a importância histórica do fato, mas revela algo sobre a sua posição de escolha

    e vocação. O poema alterna prosa e poesia, o presente (poesia) e o passado (prosa).

    40 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Outubro 1930. ( Alguma poesia , 1930). Poesia completa. Loc. cit. p. 34.

    41 | Ibidem, p. 35.

    O inimigo resistia sempre e foi preciso cortar a água do quartel. Como resistisse ainda, a água circulou

    de novo, desta vez azul, de metileno. A torneira aberta escorre desi nfetante. O canhão fabricado em Minas

    — suave temperamento local — não disparou.40 

    É a resistência do XII R.I. Os revolucionários envenenam a água do quartel, mas respeitam a lei de guerra,

    que exige que o veneno seja sin alizado. O “inimigo” aparece entre aspas e com ponto de interrogação, adiante,

    apontando para o absurdo da guerra civil e de qualquer guerra. Adiante, Drummond escreverá sob o impacto

    da Segunda Guerra Mundi al. No meio de tudo, a gratuidade da morte, escrita como um reclame, ou como um

    “divertissement  de vadios”, segundo Silviano Santiago.

    Olha a negra, olha a negra,

    a negra fugindo

    com a trouxa de roupa,olha a bala na negra,

    olha a negra no chão

    e o cadáver com os seios enormes, expostos, inúteis. 4 1

    Vinheta terrível, que mostra de que lado estão os verdadeiros óbitos da revolução: quem morre não são

    os líderes revolucionários, as elites mineiras, paulistas, ou gaúchas, mas a lavadeira negra, remanescente da

    escravidão. O cadáver de seios nus, lúgubre memória deslocada da erotização das amas de leite, evidencia a

    inutilidade da morte.

    39 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Doce revolução em Barbacena. Prosa seleta. Loc. cit. p. 1.250.

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    O general, com seus bigodes tumultuosos, era o mais doce dos seres, e destilava uma ternura vaporosa em

    seu costume de usar culotte sem perneiras. A um canto do salão atulhado de mapas e em que telefones es tica-

    dos retiniam trazendo fatos, levando ordens, eu fazia, exercício fácil, a caricatura do seu imenso nariz. Que

    todos acharam ótima e reprovaram com indignação cívica. .42

    O “general” era, na verdade, o coronel Aristarco Pessoa, o irmão de João Pessoa, sobrinho do ex-presidente

    Epitácio Pessoa, governador da Paraíba, cujo assassinato foi um estopim da Revolução de 1930. “General”

    paradoxalmente “terno”, de que se comenta o figurino, o rosto caricaturável, e não a firmeza do mando. A

    posição ocupada por Drummond na sala, “a um canto”, descreve o lugar deste burocrata sem convicção na

    operação revolucionária. O próprio Cristiano Machado observa a caricatura e a desaprova.43 Num ambiente

    de mortes nacionais — “homens estão se matando/com as necessárias cautelas” — e assassinatos, como os da

    negra, narrados na estrofe anterior, sua posição é a de distância irônica. A caricatura é a redução humorísticaem que reside a fórmula satírica de grande parte dos poemas de  Alguma poesia .

    Com a substituição de Cristiano Machado por seu amigo Gustavo Capanema, na Secretaria do Interior,

    Drummond passa a oficial de gabinete. A Revolução Constitucionalista de 1932 o encontra no cargo de chefe

    de gabinete de Capanema, do lado das forças contrarrevolucionárias, mais uma vez vitorioso, contra a insur-

    reição paulista.

    Acompanha Capanema na Batalha de Passa Quatro e, quando volta do  front , lê o texto “O soldado do tú-

    nel” na rádio. Faz a propaganda oficial, incita o leitor a engajar-se na guerr a contra São Paulo, ao mesmo tempo

    em que destaca a matéria verdadeira da guerra, de todas as guerras, a morte do soldado anônimo:

     Visitando com Gustavo Capanema o  front  da Revolução de 1932. Estação do Túnel em Passa Quatro, MG, fronteira comSão Paulo | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    Soldados nos arredores daEstação do Túnel em Passa

    Quatro, MG, durante a Revoluçãode 1932 | Fundação Getulio Vargas - CPDOC

    42 | Idem, ibidem.

    43 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Doce revevolução em Barbacena. Prosa seleta. Loc. cit. p. 1.250.

    44 | FORÇA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS. Movimento de 9 de julho de 1932 . Belo Horizonte, 1933. p. 129-131. Apud. VILLA, Marco Antonio. 1932.  Imagens de uma Revolução . São

    Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008.

    45 | SANTIAGO, Silviano. Carlos & Mário: Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Loc.cit. p. 428.

    [...] estive diante do túnel e vi o soldado lutando. O soldado não me viu porque estava lutando. Estava

    integralmente lutando, com o corpo dentro da terra, sua cabeça se alçava à superfície. Era como um aconte-

    cimento humano na paisagem da serra. Corpo, cabeça e fuzil faziam um só indivíduo e acusavam uma só

    decisão. A princípio, meus olhos não distinguiram bem porque, da luminosidade da terra, haviam passado

     para a escura e silenciosa trincheira e onde a luz não guiava, porque ausente, guiou-nos um ruído seco, me-

    tálico, pontuado das armas que detonavam.

    Foi então que vi o soldado desenhando-se vagamente na estreita fita de luz, onde havia a paisagem e

    havia o cano da arma. A presença humana denunciava-se naquelas alturas pelo som capcioso das balas, de

    uma parábola instantânea. Mas na ser ra enorme vi apenas um homem feito de pau, de ferro, de substâncias

    diferentes, um ser sem necessidades e sem desvios, agindo certo, visando o certo, atirando firme. Vi o soldado

    lutando. Cá embaixo estava a rua cheia de músicas e vestidos. Estavam também as imagens do amor. Esta-

    va a vida para a qual só há um adjetivo, qualquer que ela seja: maravilhosa. Mas o soldado não via nada

    disso porque estava lutando. Desci o morro trazendo comigo o recorte daquela figura imensa, destacando-sena serra como uma árvore, como uma torre. E o trouxe para meu trabalho miúdo e medíocre, a admiração

    daquele soldado perfeito, anônimo e formidável que lá está lutando na serra. 44

    Mário de Andrade se encontra do lado oposto da guerra, conduzido que foi às trincheiras do movimento

    paulista. Assim Mário desabafa ao amigo: “No momento, eu faria tudo, daria tudo pra São Paulo se separar do

    Brasil. [...] Você, nacionalmente falando, é um inimigo meu agora. Você talvez não sinta isso. [...]” 45

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     Avenida Central. Centr o do Rio de Janeiro, décad a de 1940 | Arquivo G

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    No fim de 1934, Gustavo Capanema, seu amigo de adolescência, o novo ministro daEducação e Saúde Pública, convida Drummond par a ser seu chefe de gabinete no Rio de Janeiro. Drummondse instala com sua mulher Dolores e sua filha Maria Julieta, então com seis anos, na av. Princesa Isabel, no

    Leme, em Copacabana.46

    Quando se aposenta, em 1962, havia passado mais de 30 anos no funcionalismo público, ocupando cargos

    diversos. Sua geração integra um processo de modernização e racionalização do aparelho de estado brasileiro,

    ocorrido com a Revolução de 1930, substituindo o modelo dos bacharéis, membros das famílias oligárquicas

    dos estados, que dividiam seu tempo entre a gestão do patrimônio familiar e os negócios do governo, durante

    a República Velha.

    O sociólogo Sergio Miceli, em Intelectuais e classe dirigente no Brasil  (1920-1945), um estudo sobre a cons-

    tituição do estamento estatal brasileiro, demonstra o quanto o significativo crescimento de postos no governo

    federal, a federalização e racionalização da administração do estado, ocorrida com a Nova República, foi feita

    com o loteamento de cargos entre membros de famílias de elite dos estados que perderam seus respectivos

    patrimônios familiares. Segundo Miceli, a ocupação de cargos no governo seria “paga” por esses intelectuais

    provenientes de oligarquias decadentes com certo silêncio crítico em relação ao seu emprego, conhecedores

    que são da mão que os alimenta.47 

    A ocupação ou não de cargos no funcionalismo é o divisor de águas que determinará as diversas opções

    aos filhos da velha oligarquia no momento de renegociar o poder após a Revolução de 1930. A radicalização

    à direita, com o integralismo ou a militância católica, ou à esquerda, com o Partido Comunista, será abraçada

    por aqueles que não conseguiram postos na nova administração, e se transformarão nos ideólogos das décadas

    por vir. Um segundo grupo de membros de famílias decadentes, incapaz de ocupar posições na administração,

    resultaria na safra de romancistas que começa a escrever em 1930. Estes têm que se haver com as demandasheterogêneas de um público leitor em um mercado editorial ainda incipiente no Brasil, e vão se estabelecer

    estritamente por meio do suces so de vendas de seus livros. Por fim, um terceiro grupo seria formado por aque-

    les que, bem formados, tendo logrado com sucesso traduzir o patrimônio material familiar perdido em capital

    intelectual, constituiriam a nova classe dirigente br asileira, na verdade uma reconfiguração da antiga oligarquia

    dos estados, agora na esfera federal. Apenas os romancistas são capazes de realizar uma verdadeira objetivação 

    da sua história familiar, por não precisarem silenciar sobre a origem familiar de seu emprego, vertendo-a inte-

    gralmente em matéria literária e produzindo os grandes romances da decadência patriarcal de Lúcio Cardoso,

     José Lins do Rego etc.

    A tese é esquemática e padece de certo determinismo economicista; pode ser questionada nos detalhes e

    em suas conclusões demasiadamente gerais, como aponta Antonio Candido em sua introdução. As categorias

    de oligarquia e de “campo intelectual”, por exemplo, solicitam nuances que a tese não admite, o que não tira o

    seu interesse. Valoriza-se, com razão, a importância libertadora do mercado como espaço impermeável à solici-

    tude das elites, seus pontos cegos de silênci o, e segredos secretariais, mas não se estabelece a justa contr apartida

    do aliciamento conservador e pacificador do mesmo mercado, com suas tiranias específicas, tão conhecidas, e

    diante das quais o refúgio funcional pode constituir a condição necessária para uma produção artística genui-

    namente livre. Drummond tem um lugar curioso no livro de Miceli. É ele quem arma o argumento central

    do livro, pontuando-o em lugares estratégicos, com epígrafes ou referências estrutu rantes. Afinal, é ele o autor

    dos versos:

    Tive ouro, tive gado, tive fazendas,

    Hoje sou funcionário público.48 

    Carlos, Dolores e a filha Maria Julieta na praia de Copacabana. Rio de Janeiro, 1935  | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    46 |   CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu : Biografia de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Globo, 2006. p.150-151.

    47 |   Miceli adapta ao Brasil em seu estudo a metodologia de Pierre Bourdieu, por exemplo, em La distinction. Critique sociale du jugement. Paris, 1979: Editions de Minuit.

    48 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Confidência do itabirano. Poesia completa. Loc. cit. p. 68.

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    Capa da primeira edição de Sentimento do mundo. Rio de Janeiro, Editora Pongetti, 1940 | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

    49 | As refer ências de Drummond são frequentes . O capítulo I se inicia com epígrafes de três poemas de Drummo nd: “Os bens e o sangue”, precisamen te o documento de venda das

    lavras de ouro da família do poeta, transcritas na primeira parte do poema; “Confidência do itabirano”; “Explicação” (p. xxviii). O capítulo III se inicia com uma longa citação da crônica

    “A rotina e a quimera” de Passeios na ilha , que contém a lista de intelectuais-funcionários (p.129-130). O papel de Drummond, como exemplo de “escritor-funcionário”, duranteo Estado Novo, juntamente com Augusto Meyer e Rodrigo Mello Franco de Andrade, é analisado na p. 178. O livro se encerra com nova citação da crônica “A rotina e a quimera”

    (p.187). Drummond comenta o livro, na seção “Esclarecimentos” da crônica do JB, “O Yanomami sem sorte”, de 23/02/1980. Na verdade, reagia a uma resenha maldosa feita um

    pouco antes pela revista Veja. Cita a reportagem da revista, dizendo citar o livro de Miceli: “Em livro recente, Intelectuais e classe dirigente no Brasil , o sociólogo Sérgio Miceli ( sic) me

    coloca entre os escritores que ‘situados entre os objetos de devoção da crítica militante nos aparelhos de celebração que circulam entre as panelas de letrados, buscam minimizar

    o quanto suas obras devem aos laços clientelísticos de que são beneficiários’. Cita mais dois nomes: Rodrigo M.F. de Andrade e Augusto Meyer. Fiquei em excelente companhia,

    mas a exemplificação é inteiramente errada”. Drummond argumenta que nem os dois, nem ele próprio, foram favorecidos por laços de clientela. Defende-se explicando que exerceu

    “mera função burocrática, destituída de qualquer implicação política ou ideológica, sem vinculação direta ou indireta com Getúlio Vargas”, como “auxiliar de confiança de Gustavo

    Capanema, de quem sou amigo desde os bancos escolares”. Rodrigo M.F. de Andrade e Augusto Meyer “dirigiram serviços culturais com independência, e nada devem ao Estado

    nem ao sistema de clientelas políticas”. Capanema é definido como um “promotor de cultura nada oficial, pois aberta à livre criação e às inquietaçõe s e indagações de seu tempo”.

    Obviamente a defesa de Drummond não toca no cerne da hipótese de Miceli. Responde, sim, às ilações maldosas da Veja. Miceli analisa o caso de Drummond, como exemplo

      de “escritor-funcionário”, a que opõe os exemplos de Osvaldo Orico, Herman Lima, Peregrino Jr., como “funcionários-escrito res”. Os primeiros entraram no serviço público federal

    chamados pelos chefes políticos da Revolução de 1930, num grande movimento de esfacelamento das oligarquias estaduais; o segundo grupo não contava com o apoio dos

    funcionários dirige ntes, e viveram em busca de um lugar ao sol (MICELI. Loc. cit. p. 178-179).

    50 | MICELI, Sergio. Loc. cit. p. 130-131.

    É dele a lista de quase uma página de funcionários intelectuais, que atravessa o sistema literário brasileiro

    entre o século XIX e o XX; é dele a distinção entre escritor-funcionário e funcionário-escritor, utilizada por

    Miceli; e são dele o diagnóstico do comportamento do “poeta ajuizado” (a expressão é de Miceli) e o registro

    da escrita funcionária como “mediania que elimina os cuidados imediatos”, a “tradição meditativa e irônica,

    certo jeito entre desencantado e piedoso”, “o edifício de nuvens”, que o funcionário, “louco manso e subven-

    cionado”, constrói com a proteção da “Ordem Burocrática”. 49 Todos índices que apontam para o “trabalho de

    dominação” e de manutenção oligárquica, representada pelos intelectuais, desde a República Velha, e acentua-

    da com a intervenção crescente do Estado nos diversos domínios de ati vidades com o Estado Novo.50 O “poeta

    ajuizado” é precisamente aquele que “vende” a sua agudeza crítica contra o Estado que o contrata, em troca

    do sustento que este lhe fornece. De um lado, a tese do juízo funcionário é furada pela poesia participante

    de Drummond: os três livros do período — Sentimento do mundo (1940),  José  (1942) e A rosa do povo (1945),

    publicados durante o Estado Novo e assinados pelo chefe de gabinete do Ministério da Educação e Saúde

    Pública, cujas simpatias com o Partido Comunista Brasileiro, à época, eram conhecidas — revolucionam apoesia política no Brasil. Mas a tese é confirmada, por outro lado, pela função de Drummond no gabinete do

    ministro, encarregado, ao longo dos anos, dentre outras coisas, de escrever os discursos de Capanema, função

    necessariamente cercada de reserva e segredo. Embora a prática de intelectuais escreverem discursos para po-

    líticos seja corrente, não só no Brasil, o fato acrescenta um sentido verdadeiramente abissal à posição ambígua

    que Drummond ocupava no ministério, sintoma talvez bem mais geral de uma perturbadora ambiguidade do

    sistema político-literário brasileiro como um todo. O que não o impede, no entanto, de realizar uma poderosaobjetivação de sua história familiar e de seu vínculo funcional, mostrando em forma de poesia a relação entre

    perda patrimonial, oligarquia e funcionalismo público, parte de sua obra se aproximando tematicamente da

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    O poema em prosa “O operário no mar” constrói um símbolo messiânico do trabalhador, despojando-o do que virá a ser a retórica danonista do

    realismo socialista.52 Drummond parte das representações codificadas do operário,

    “no conto, no drama, no discurso político”, como figura do sofrimento e da opressão.

     Todos os estereótipos da representação operária, com finalidade manipulativa, são

    listados com ironia no poema. A hipótese revolucionária da fraternidade entre os

    homens é vista corrosivamente. A relação entre o operário e o autor é ambígua e

    impossível, marcada pelo desprezo imaginário do operário pelo autor, e pelo fascí-

    nio deste por aquele. A contradição não é passível de uma solução conciliatória. O

    operário, um homem comum, se ergue como figura crística andando sobre as águas,

    enigma incompreensível e incontrolável por qualquer política classista.

     Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no

    drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso,

    nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem

    comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no

    corpo, que carrega desígnios e segredos. [... ] Teria vergonha de chamá-lo meu ir-

    mão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca.

     E me desp reza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. [...]

     Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns

    santos e navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas

    nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e

    deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? [...] 53

    Vários poemas sugerem a possibilidade de uma utopia coletiva, um amanhecer

    adiado, mas pressentido, situado entre o passado e o futuro, distinto do “mundo ca-

    duco”, ou simplesmente “antigo”, que é o mundo em que se vive, e que deve mudar.O poema consiste no anúncio dessa mudança. A aurora que não chega se opõe à noi-

    te, aos espaços infinitos, ao mar, onde se ausculta a presença da gu erra no continente

    europeu, que inspiram medo, ou terror.

    Comício comunista no estádio do Vasco. Primeira aparição pública de Luís CarlosPrestes, recém-saído da cadeia, após a anistia de abril de 1945. Rio de Janeiro, 23de maio de 1945 | Acervo Iconographia

    52 | Andrei Zdanov (1896-1948 ), político proeminente da União Soviética, sistematizad or do realismo soviético, na chamada “Doutrina Zdanov”.

    53 | ANDRADE, Carlos Drummond de. O operário no mar.   (Sentimento do mundo, 1940). Poesia completa. Loc. cit. p.71-72.

    narrativa da decadência familiar do ciclo de romancistas dos anos 1930. Falta-lhe,

    é verdade, recuo crítico para avaliar objetivamente o significado oligárquico das re-

    lações de “amizade”, em suas próprias palavras, que guiaram a sua entrada e perma-

    nência no serviço público. Esse o seu ponto cego.

    Sentimento do mundo muda o diapasão da chamada poesia participante no Brasil.

    O momento era de censura absoluta, por isso o livro “saiu numa tiragem fora do

    comércio, de cento e cinquenta exemplares, que, no entanto, se difundiram razo-

    avelmente por meio de cópias feitas para leitores de empréstimo”. 51 Poeta político

    clandestino, de um lado, e  ghost writer  do ministro, de outro, temos aqui a justa me-

    dida da tênue materialidade da existência propriamente fantasmal de Drummond

    no Ministério da Educação e Saúde Pública.

    51 | CANDIDO, Antoni o. Fazia frio em São Paulo. Loc. cit. p. 24.

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    54 | ANDRADE, Carlos Drummond de. A noite dissolve os homens.   (Sentimento do mundo, 1940). Poesia completa. Loc. cit. p. 83-84.

     A NOITE DI SSOLVE OS HOMENS  A Portinari 

    A noite desceu. Que noite!

     Já não enxergo meus irmãos.

    E nem tão pouco os rumores

    que outrora me perturbavam.

    A noite desc eu. Nas casas,nas ruas onde se combate,

    nos campos desfalecidos,

    a noite espalhou o medo

    e a total incompreensão.

    A noit e caiu. Tremenda,

    sem esperança... Os suspiros

    acusam a presença negra

    que paralisa os guerreiros.

    E o amor não abre caminho

    na noite. A noite é mortal,

    completa, sem reticências,

    a noite dissolve os homens,

    diz que é inútil sofrer,

    a noite dissolve as pátrias,

    apagou os almirantes

    cintilantes! nas suas fardas.

    A noite anoiteceu tudo...

    O mundo não tem remédio...

    Os suicidas tinham razão.

    Aurora,

    entretanto eu te diviso, ainda tímida,

    inexperiente das luzes que vais ascender

    e dos bens que repartirás com todos os homens.

    Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.

    O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,

    teus dedos frios, que ainda se não modelaram

    mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.

    Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,

    minha carne estremece na certeza de tua vinda.

    O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,

    os corpos hirtos adquirem uma fluidez,

    uma inocência, um perdão simples e macio...

    Havemos de amanhecer. O mundo

    se tinge com as tintas da antemanhã

    e o sangue que escorre é doce, de tão necessário

    para colorir tuas pálidas faces, aurora.54

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    A utopia coletiva, para ser efetiva e não apenas um programa abstrato, deve partir deuma nova posição do eu. A relação do eu com o mundo se dá pelo “sentimento”, o “sentimento do mundo”,

    transformado em programa poético. É pelo sentimento, entendido como identificação com as dores do mundo,

    ampliação dos limites individuais, que o sujeito transformado ou implodido se comunica com o que há fora

    dele. É o sentimento do mundo que marc a de uma profunda insufici ência o eu, sempre em falta em relação ao

    mundo, que nega o eu afirmando-o como abertura para fora de si mesmo. Em “Mundo grande”, o poeta revê

    a posição inicial do eu, formulada no “Poema de sete faces”, de ter um coração mais vasto do que o mundo.

     Não, meu coração não é maior do que o mundo.

     É muito menor.

     Nele não cabem nem as minhas dores.

    Por isso gosto tanto de me contar.

    Por isso me dispo, por isso me grito,

     por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:

     preciso de todos.

    [...] 

    Tu sabes como é grande o mundo.

    Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.

    Viste as diferentes cores dos homens,

    as diferentes dores dos homens,

    sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso

    num só peito de homem... sem que ele estale.

    [...] 

     Então, meu coração também pode crescer.

     Entre o amor e o fogo,entre a vida e o fogo,

    meu coração cresce dez metros e explode.

    — Ó vida futura! nós te criaremos.55 

    55 | ANDRADE, Carlos Drummond. Mundo grande.   (Sentimento do mundo, 1940). Poesia completa. Loc. cit. p. 87-88. Drummond diante da fachada do Palácio Capanema. Rio de Janeiro, 1945  | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

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    A relação entre o ministro da Educação e da Saúde Pública,Gustavo Capanema, e seu secretário é um lugar instigante para se pensar a re-

    lação entre o intelectual e o Estado. Simon Schwartzman fala de uma complemen-

    taridade entre os dois no que diz respeito à relação entre intelectualidade e poder:

    ambos detendo potencialmente a capaci dade de exercer os dois papéis, mas cada um

    assumindo exclusivamente um deles. Drummond renuncia ao poder, mas Capanema

    não renuncia inteiramente à pretensão intelectual, mantendo-a sobretudo vicaria-

    mente pela amizade com seus amigos i ntelectuais, homens das artes e da cultur a, que

    circulavam à sua volta.56 Poeta e ministro são uma espécie de duplo um do outro.No que toca à questão da cultura, é Drummond quem faz a ponte do projeto do

    ministério com o programa artístico e cultural modernista, responsável pela institu-

    cionalização de certa ideologia do modernismo.57

    56 | SCHWARTZMAN, Simon. et al. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra; FGV, 2000. p. 42.

    57 | Esta, a tese de João Luiz Lafetá, a de que nos anos 1930 o programa estético modernista se transformara em ideologia. LAFETÁ, João

    Luiz. 1930: A crítica e o modernismo. São Paulo: D. Cidades, 1974.

    ustavo Capanema em debate sobre ortografia na Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, 1942 | Fundação Getulio Vargas - CPDOC

     VII Congresso Nacional de Educação no estádio do Vasco. Drummond é o pr imeiro em p é,à esquerda. Em primeiro plano, Getúlio Vargas ladeado por Gustavo Capanema e PedroErnesto, prefeito do Distrito Federal. Agachado, atrás de Vargas, Anísio Teixeira. Rio deJaneiro, 1935 | Fundação Getulio Vargas - CPDOC

    O legado de Capanema no minist ério é ambíguo. Segue, inicialmente, os passos

    de Francisco Campos na Secretaria do Interior — e depois no Ministério da Edu-

    cação e Saúde. Por alguns anos, aquele que se transformará num grande ideólogo

    conservador, com posições próximas ao fascismo, é seu mentor.58 É ele um dos orga-

    nizadores, ainda em Belo Horizonte, da “Legião de Outubro”, composta de grupos

    paramilitares, inspirados em formações fascistas italianas; é ele o autor da Consti-

    tuição de 1937, do Estado Novo, e do Ato Institucional número 1, do golpe militar

    de 1964. Capanema rompe, no entanto, com Campos em 1934. Ao longo dos anos

    na chefia do Ministério da Educação e Saúde, Capanema permanece fundamental-

    mente dúbio, tentando manter-se, sempre que possível, acima dos conflitos entre os

    intelectuais à sua volta, que representam posições contraditórias e exercem sobre ele

    pressões frequentemente opostas.

    58 | SCHWARZMAN, Simon. Loc. cit. p. 53-61.

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    A contradição interna ao projeto de governo é emblematiza-da, de um lado, por Drummond, encarnando a presença da revolução progressista do

    Modernismo, ligado a pessoas que ocuparão funções diversas na administração do

    ministério: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Rodrigo M. F. de Andrade, Lúcio

    Costa; e, de outro, por Alceu Amoroso Lima, o líder cristão, diretor do jornal cató-

    lico A Ordem, porta-voz dos segmentos conservadores do ministério, caracterizados

    por seu profundo anticomunismo. Capanema se move entre essas duas ideologias,

    tendendo mais para o lado de Alceu Amoroso Lima. Esses dois grupos se tencio-

    nam no episódio do fechamento da Universidade do Distrito Federal, com vitória

    definitiva do lado católico.

    Com projeto de Anísio Teixeira, aluno de John Dewey, ligado ao Movimento

    da Escola Nova, a UDF, criada em 1935, encarnou o sonho de uma universidade

    pública de qualidade e independente no Rio de Janeiro, com envergadura semelhan-

    te à da Universidade de São Paulo, inclusive no que toca à missão francesa. Alceu

    Amoroso Lima pressiona Capanema, acusando o projeto da UDF de comunista. O

    fracasso da insurreição da Aliança Nacional Libertadora, a “Intentona Comunista”,

    em novembro de 1935, determina o expurgo de funcionários do governo, dentre os

    quais Anísio Teixeira, Diretor do Departamento Municipal de Educação do Dis-

    trito Federal.59 Capanema acaba cedendo e, em 1939, fecha a universidade.60 Os

    grupos de pressão, portanto, se dividem no interior do ministério, com predominân-

    cia da presença modernista na cultura e nas artes, e do grupo católico na educação.

    Admite-se a presença de intelectuais de esquerda na cultura, e, na educação, essa

    presença é duramente combatida.

    59 | Ibidem, p. 228.

    60 | Em 16 de junho de 1935, Alceu Amoroso Lima escreve a seguinte carta a Capanema: ‘’A recente fundação de uma universidade

    municipal, com a nomeação de certos diretores de faculdades, que não escondem suas ideias e pregações comunistas, foi a gota

    d’água que fez transbordar a grande inquietação de católicos. Para onde iremos, por este caminho? Consentirá o governo em que, à sua

    revelia mas sob a sua proteção, se prepare uma nova geração inteiramente impregnada dos sentimentos mais contrários à verdadeira

    tradição do Brasil e aos verdadeiros ideais de uma sociedade sadia?’’ Apud SCHWARZMAN, Simon. Loc.cit. p. 227.

    Com Getúlio Vargas e Gustavo Capanema na inauguração de novas seções da Colônia JulianoMoreira, atual Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira. Rio de Janeiro, 1938  | Fundação Getulio Vargas - CPDOC

    Cerimônia de lançamento da pedra fundamental do edifício do Ministério da Educação e Saúde, atualPalácio Capanema. Rio de Janeiro, abril de 1937  | Fundação Getulio Vargas - CPDOC

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    O edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde Pública,o “Palácio da Cultura”, atual Palácio Capanema, no centro do Rio de Janeiro,

    marca o advento da arquitetura moderna no Brasil.64 O projeto é baseado em

    risco de Le Corbusi er, um dos mais eminentes representantes do modernismo na

    arquitetura, que visitou o Brasil em 1936, a convite de Capanema. O risco é subs-

    tancialmente modificado por Lúc io Costa, em colaboração com um pool de arqui-

    tetos, dentre os quais Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão e Oscar Niemeyer.65 

    Para a escolha do projeto, foram realizados dois concursos. A correspondência

    de Drummond mostra que ele teve papel importante na anulação do primeiro

    concurso, na realização do segundo e na vitória de Lúcio Costa.

    64 | WISNIK, Guilherme. Lúcio Costa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 52, 125.

    65 | Sobre a visita de Le Corbusier, ver TSIOMIS, Yannis (Ed.) Le Corbusier – Rio de Janeiro: 1929, 1936 . Paris; Centro de Arquitetura e

    Urbanismo do Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1998.

    Edifício do Ministério da Educação e Saúde no centro do Rio de Janeiro| Fundação Getulio Vargas - CPDOC

    Página 68 | Pilotis do edifício do Ministério da Educação e Saúde | Fundação Getulio Vargas - CPDOC

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    66 | COSTA, Lúcio. Apud SCHWARTZMAN, Loc.cit. p. 112.

    67 | PEDROSA, Mário. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981. p. 318.

    68 | ANDRADE, Carlos Drummond de. A flor e a náusea. ( A rosa do po vo, 1945). Poesia completa. Loc. cit. p. 118-119.

    69 | Ibidem, p. 149-150.

    70 | ANDRADE, Carlos Drummond de. Consideração do poema. ( A rosa do po vo, 1945). Poesia completa. Loc. cit. p. 115-116.

    Projetado por dois arquitetos comunistas, o Palácio da Cultura é o emblema do pro-grama estadonovista para a educação e a cultura. O prédio é coberto em sua base por azulejos com motivos

    aquáticos desenhados por Cândido Portinari, tem jardins de Burle Marx, é suspenso sobre pilotis e dotado

    de revolucionárias janelas brise-soleil , assinatura de Le Corbusier, que abrem os ambientes internos à lumino-

    sidade natural. Os pilotis constroem um espaço público vazado por todos os lados, que pode ser atravessado

    pelos transeuntes. O gabinete do ministro é decorado com 12 afrescos de inspiração obreirista de autoria do

    próprio Portinari, alegorias dos ciclos históricos e tipos histórico-culturais do Brasil. Em seu todo, o edifício

    materializa o projeto da fundação moderna do Brasil pela arquitetura, em um monumento patrimonial, síntese

    da tradição artística brasileira, refletida por Lúcio Costa, num processo que se iniciara nos anos 1920, com os

    estudos sobre a arte colonial, e que se concluirá com a construção de Brasília.

    Em carta a Capanema, Costa descreve o prédio como uma “pura flor”, plantada “neste oásis circundado

    de pesados casarões de aspecto uniforme e enfadonho”, o “prenúncio certo de que o mundo para o qual ca-minhamos inelutavelmente poderá vir a ser [...] não somente mais humano e socialmente mais justo, senão

    também, mais belo”.66 Anos depois, Mario Pedrosa descreverá a utopia de Brasília, de autoria dos mesmos dois

    arquitetos, nos mesmos termos: um oásis artificial, plantado no desert o do planalto central, dando seguimento

    à ocupação territorial americana fei ta por intermédio da ocupação por vilas, fazendas, cidades surgidas na selva

    bruta, que contém, no entanto, a cifra do futuro utópico, da cidade fechada em si mesma, como programa para

    uma revolução por vir.67

    Drummond também investiga a condição de possibilidade de nascimento do poema como flor no asfalto,

    em “A flor e a náusea”:

    Parte do projeto-piloto da cidade de Brasília | Acervo Casa de Lucio Costa

    Preso à minha classe e a algumas roupas,

    vou de branco pela rua cinzenta.

     Melancolias, mercadorias espreitam-me.

    Devo seguir até o enjoo? 

    Posso, sem armas, revoltar-me? 

    [...] 

    Uma flor nasceu na rua! 

    Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

    Uma flor ainda desbotada 

    ilude a polícia, rompe o asfalto.

    Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

     garanto que uma flor nasceu.68

    [...]

    Ou em “Anúncio da rosa”:

     Imenso trabalho nos custa a flor.

    Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.

    Primavera não há mais doce, rosa tão meiga 

    onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.

    [...] 

    Rosa na roda,

    rosa na máquina,

    apenas rósea.69

    Esse é o “comércio incompreendido”, destilado na produção da última rosa,

    que não se vende por oito contos, e enfeixado no programa de  A rosa do povo:

    [...] tal uma lâmina,

    o povo, meu poema, te atravessa.70

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    Crianças integrantes do coral de canto orfeônico, regidas por Villa-Lobos no estádio do Vasco da Gama. Rio de Janeiro,1940 | Acervo Iconographia

     Villa-Lobos rege ndo coral de can to orfeônic o, no estádio d o Vasco da Gama.Rio de Janeiro, 1940 | Acervo Iconographia

    71 | BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política.   Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo:

    Brasiliense, 1994. p. 196.

    72 | WISNIK, José Miguel. Villa-Lobos e o modernismo. In: CICLO DE CONFERÊNCIAS — 50 ANOS DE MORTE DE VILLA-LOBOS, 7. 2009, Rio de Janeiro.

    O povo atravessa o poema, que com o povo se identifica (povo=meu poema). O poeta fabrica o poemado povo, a sua rosa. Ele é a “t erra” do poeta, edificada em linguagem; é “qualquer homem”, forma do humano,

    “beijo”, gestos não comerciáveis. A poesia funda uma ordem exterior ao mercado e à mercadoria, construída

    pelas palavras libertas de suas “amarras”, palavras que “saltam, se beijam e se dissolvem”.

    O palácio, o poema, formas ao mesmo tempo de estetização da política e de politização da arte, para usar

    a dicotomia de Walter Benjamin,71 assim como o canto orfeônico, organizado por Heitor Villa-Lobos, pro-

     jetado para ser realizado em e ventos coletivos de grande por te. Um exemplo, a exibição do 7 de setembro de

    1940, no estádio do Vasco da Gama no Distrito Federal, reunindo 40 mil crianças e mil músicos de banda,

    regidos por Villa-Lobos. O compositor-regente é um duplo de Getúlio Vargas: enquanto ele rege o coro como

    Getúlio Vargas governa o Brasil, Getúlio Vargas estetiza o Brasil ao promover o canto orfeônico como forma

    em miniatura do país que governa.72

    A palestra radiofônica “A educação em face da guerra”, proferida em 1942, põe em debateas implicações do nazifascismo para a educação. Em última análise a função da educação deveria ser eliminar

    a possibilidade da guerra, o que dizer portanto sobre a educação possível durante uma guerra que ocorre? Eis

    o mote da educação nazifascista: “a criança submetida a um treinamento moral e psicológico para o ódio é,

    sem dúvida, o mais tri ste exemplar humano”. Essa a formação do “menino alemão” que aprende “uma gramá-

    tica, uma filosofia, uma poesia, uma arte preconceituosas, agressivas e totalitárias”. Qual é o papel da educação

    nesse quadro? E o funcionário do Ministério da Educação e Saúde Pública responde citando Voltaire: “culti-

     vemos nosso jardim”. Retornemos aos padrões da cultura iluminista. Restabeleçamos uma “educação natural, a

    pura e desinteressada educação do espírito, destinada a formar homens de boa vontade e calma coragem, não

    autômatos ou possessos”.

    Páginas 74/75 | Datiloscrito da crônica “Educação em face da guerra”, proferida por Drummond no rádio em 1942  | Arquivo Carlos Drummond de Andrade - AMLB/FCRB

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    Em “Carta a Stalingrado”, escrito no calor da hora do cerco nazista à cidade soviética deStalingrado, em 1943, Drummond transcreve o programa hegeliano-marxiano da abolição e realização da arte:

    Stalingrado...

    Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades! 

    O mundo não acabou, pois que entre as ruínas

    outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,

    e o hálito selvagem da liberdade

    dilata os seus peitos, Stalingrado,

    seus peitos que estalam e caem,

    enquanto outros, vingadores, se elevam.

     A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.Os telegramas de Moscou repetem Homero.

     Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo

    que nós, na escuridão, ignorávamos.

    Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,

    na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,