Amor, Medicina e Milagres - Bernie Siegel

381
Bernie S. Siegel, M.D. AMOR, MEDICINA E MILAGRES A cura espontânea de doentes graves, segundo a experiência de um famoso cirurgião norte-americano. Tradução de João Alves dos Santos EDITORA BEST SELLER

Transcript of Amor, Medicina e Milagres - Bernie Siegel

Bernie S

Bernie S. Siegel, M.D.

AMOR,

MEDICINA E

MILAGRES

A cura espontnea de doentes graves,

segundo a experincia de um

famoso cirurgio norte-americano.

Traduo de

Joo Alves dos Santos

EDITORA BEST SELLER

Ttulo original: Love, Medicine and Miracles

Copyright B. H. Siegel, S. Korman e A. Schiff - curadoresdo The Bernard S. Siegel, M. D., Children's Trust.

Todos os direitos reservados

Trechos de livros e artigos reproduzidos

com a devida permisso dos editores originais.

No permitida a venda em Portugal.

Direitos exclusivos da edio cm lngua portuguesa no Brasil

adquiridos por EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.,

que se reserva a propriedade desta traduo

EDITORA BEST SELLER

uma diviso da Editora Nova Cultural Ltda.

Av. Brig. Faria Lima, 2000- CEP 01452 -Caixa PostaI 9442

So Paulo, SPISBN 85-7123-105-7

Dados de Catalogao na Publicao (CIP) Internacional

Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Siegel, Bernie S.

Amor, medicina e milagres / Bernie Siegel; traduo Joo Alves dos Santos. - So Paulo: Best Seller, 1989.

1. Controle (Psicologia) 2. Cura 3. Esprito e corpo 4. Medicina e psicologia 1. Ttulo.

CDD-6I5.5

-155.2

-610.19

89-0414 -615/.851

Fotocomposto na Editora Nova Cultural Ltda.

Impresso e Acabamento: Grfica Crculo

Ao Ato de Criao

A meus pais, Si e Rose, por me ensinarem o amor e a esperana

A minha mulher, Bobbie, pelo apoio que me deu, pela presena constante,

pela vontade de aprender e de amar

A meus sogros, Merle e Ado, pela coragem e pelo bom humor

A meus filhos, Jonathan, Jeffrey, Stephen e os gmeos Carolyn e

Keith, pelo amor e pela beleza que emprestaram. a nossa vida

A meus companheiros doentes especiais, pacientes e amigos, pelo

tempo que despenderam para me ensinar, apoiar e aceitar

A Victoria Pryor, Carol Cohen e Gary Selden, por perceberem de

quanta estima, boa vontade e generosidade um cirurgio precisa para

completar um livro

Sumrio

INTRODUO9

PRIMEIRA PARTE - Conscientizando-se do Corpo

1. O Ouvinte Privilegiado21

2. A Participao na Cura49

3. A Doena e a Mente87

4. A Vontade de Viver128

SEGUNDA PARTE - O Corpo Atento Mente

1. O Incio da Jornada161

2. Concentrando a Mente para a Cura186

3. As Imagens na Doena e na Cura198

4. Tornando-se Especial203

5. O Amor e a Morte256

APNDICE280

Amor, Medicina e Milagres trata de realidades concretas, embora os nomes, a localizao e as caractersticas ind:v: duais tenham sofrido alteraes em respeito privacidade das pessoas.

IntroduoQue na realidade a mente governa o corpo, apesar de a biologia e a medicina no prestarem ateno a isso, o fato mais essencial que conhecemos sobre o processo da vida.

DR. FRANZ ALEXANDER

Anos atrs, um grupo de enfermeiras de um hospital prximo pediu-me que falasse com Jonathan, mdico em que se detectara, pouco antes, um cncer no pulmo. Quando da internao, Jonathan estava em boas condies fsicas e de bom humor, brincando com todas as enfermeiras. Mas, ao saber do diagnstico, entrou em profunda depresso, retraindo-se.

Conversei com ele sobre a correlao entre atitude e doena. Debatemos a experincia de Norman Cousin, com uma suspeita de tuberculose (TB, no jargo mdico), que ele descreveu em Anatomia de uma Doena:

Minha primeira experincia com um diagnstico mdico desanimador aconteceu aos 10 anos de idade, quando me mandaram para um sanatrio de tuberculosos. Eu estava magro e muito fraco, parecendo mesmo tomado por sria molstia. Descobriu-se, mais tarde, que os mdicos haviam se enganado, interpretando uma calcificao normal como indcios de TB, pois, naquela poca, as radiografias no constituam uma base totalmente segura para diagnsticos complexos. Em todo o caso, passei seis meses no sanatrio.

Para mim, o mais interessante nessa experincia to precoce foi verificar que os doentes se dividiam em dois grupos: o dos que confiavam em sua capacidade de recuperao (e de retomada de uma existncia normal) e o dos que se resignavam ante uma enfermidade prolongada e mesmo fatal. Ns, os que aderamos expectativa otimista, tornamo-nos excelentes amigos, envolvidos em atividades criadoras e pouco ligados aos doentes resignados com o pior. Quando entrava um novato no hospital, fazamos todos os esforos para atra-lo para nosso lado, antes que a brigada do desnimo entrasse em ao.

Impressionou-me a constatao de que os meninos de meu grupo tinham uma porcentagem de "alta por cura" bem mais elevada do que os do outro grupo. J aos 10 anos eu estava sendo filosoficamente condicionado, tomando conscincia do poder da mente na luta contra a doena. As lies que aprendi acerca da esperana desempenharam importante papel em minha completa recuperao e nos sentimentos que desde ento alimento sobre o carter precioso da vida.

- Sei de tudo isso - comentou Jonathan. - Tambm estive tuberculoso e me disseram que precisaria ficar dois anos num sanatrio. Mas eu respondi que no, que estaria de volta para passar o Natal com a famlia. E, de fato, seis meses depois, no dia 23. de dezembro, recebi alta.

- Voc pode proceder do mesmo jeito com o cncer - encorajei.

Duas semanas mais tarde, no entanto, Jonathan estava morto. A viva teve a gentileza de agradecer meus esforos e explicou que o marido no queria lutar pela recuperao porque a vida e o trabalho haviam perdido todo o significado para ele.

Sir William Osler, brilhante mdico e historiador da medicina canadense, dizia que a contrao da tuberculose relaciona-se mais com o que se passa na mente do enfermo do que com aquilo que ocorre em seus pulmes. Estava repetindo Hipcrates, que considerava mais fcil saber que gnero de pessoa tem determinada doena do que descobrir que gnero de doena tem deter-minada pessoa. Louis Pasteur e Claude Bernard, dois gigantes da biologia do sculo 19, polemizavam a respeito do fator mais importante na doena: seria o "terreno" o organismo humano - ou o germe? Em seus ltimos momentos de vida, Pasteur admitiu que Bernard tinha razo ao declarar que era o "terreno".

No obstante a capacidade de percepo desses grandes vultos, a medicina ainda se concentra na doena, enveredando por uma orientao falsa. Os mdicos continuam procedendo como se fosse a doena que ataca as pessoas, em vez de compreender que as pessoas que contraem a doena, por se tornarem suscetveis a sua causa, qual todos ns sempre estamos expostos. Embora os mdicos de primeira ordem saibam disso muito bem, a medicina em geral raramente estuda as pessoas que no adoecem. Poucos mdicos procuram saber como a atitude do paciente em relao vida modela a durao e a qualidade da vida.

imensa a variedade dos pacientes. Alguns se recusam a alterar sua forma de viver para aumentar as possibilidades de cura. Quando lhes dou a escolher entre operar e mudar de vida, 80 por cento respondem:

- Opere. Custa menos. S preciso procurar uma bab para a semana em que estiver no hospital.

No extremo oposto esto aqueles que chamo de pacientes especiais, os sobreviventes. No aceitam a derrota - como certa mulher entregue a meus cuidados, diabtica, cega e com cncer, que sobreviveu a todas as previses estatsticas e hoje passa a maior parte do tempo ao telefone encorajando outros pacientes. Ela e outros enfermos especiais ensinaram-me que a mente pode afetar de modo singular o corpo e que a doena fsica no limita a capacidade de amar.

A teoria de Freud segundo a qual ao instinto de conservao se ope uma espcie de instinto de morte foi refutada por vrios psiclogos mais recentes. No entanto, muita gente vive como se quisesse abreviar o tempo de vida. J os pacientes especiais superam as presses, os conflitos e os hbitos que levaram outros a agir de acordo com essa consciente ou inconsciente "vontade de morrer". Ao contrrio, tudo o que os pacientes especiais pensam e fazem destina-se a levar avante a causa da vida.

Creio que existem dentro de ns mecanismos biolgicos de "vida" e de "morte". A pesquisa cientfica de outros mdicos e minha prpria experincia clnica diria convenceram-me de que o estado de esprito altera o estado fsico, agindo por meio do sistema nervoso central, do sistema endcrino e do sistema imunolgico. A paz de esprito envia ao corpo uma mensagem de "viva", ao passo que a depresso, o medo e o conflito por resolver transmitem-lhe a mensagem de "morra". Portanto, todas as curas so cientficas, embora a cincia ainda no seja capaz de explicar exatamente como ocorrem os inesperados "milagres".

Os pacientes especiais manifestam a vontade de viver da forma mais vigorosa. Tomam conta de sua vida como jamais fizeram antes, esforando-se para conquistar a sade e a paz de esprito. No deixam a iniciativa por conta dos mdicos, que passam a ser vistos apenas como membros de uma equipe que exige o mximo em tcnica, engenho, dedicao e vistas largas. Se no estiverem satisfeitos, os pacientes especiais mudam de mdico. Mas, ao mesmo tempo, mostram-se carinhosos e compreendem as dificuldades que o mdico enfrenta. Na maioria dos casos, aconselho o doente insatisfeito a dar um abrao no mdico. Isso normalmente torna o mdico mais solcito, pois ele passa a ver e tratar o paciente como indivduo, e no como uma doena.

Certa paciente disse que voltou ao mdico com meu conselho na cabea, mas no conseguiu abra-lo.

- Em vez disso, lancei-lhe o olhar mais compassivo que pude - comentou ela. - Ento, o mdico sentou-se e ficou falando que precisava perder peso, fazer mais exerccio. E, afinal, foi ele quem me abraou!

Se o abrao no der certo, tempo de procurar outro clnico, pois muita gente sofre horrores por causa de seu relacionamento com o mdico.

Todo mundo pode ser um paciente especial, e a melhor ocasio para comear antes de ficar doente. Muitas pessoas no utilizam plenamente sua fora vital at que uma molstia quase fatal obrigue a isso. Mas no est escrito que deva ser um despertar de ltima hora. O poder da mente se encontra sempre disposio, e seu espao de manobra mostra-se maior antes da ameaa de um desastre. um processo que no exige submisso a qualquer f religiosa ou sistema psicolgico em particular.

A maior parte das experincias aqui abordadas trata de casos de cncer, a doena ameaadora mais comum em minha vida profissional. Mas os mesmos princpios se aplicam a todas as enfermidades.

O problema fundamental da maioria dos pacientes a incapacidade de se amar, j que no foram amados durante algum perodo decisivo de sua vida. Em geral esse desamor ocorre na infncia, quando as relaes com os pais estabelecem a forma caracterstica de reagir tenso. Na idade adulta, repetimos essas reaes e, assim, nos tornamos vulnerveis doena, cuja natureza especfica depende muitas vezes de nossa personalidade. A capacidade de nos amarmos, juntamente com a de amar a vida, aceitando por inteiro que ela no dura para sempre, permite melhorar sua qualidade. Como cirurgio, meu papel consiste em ganhar tempo para que as pessoas possam se curar por si mesmas. Procuro ajud-las a ficar bem e, ao mesmo tempo, compreender por que adoeceram. A partir da, podero obter uma verdadeira cura e no uma simples reverso de determinada molstia.

Este livro constitui um guia para semelhante transformao e um registro da forma pela qual meus pacientes me educaram. Procuro agir como uma ponte para o amor pela vida que eles dolorosamente adquiriram e que nos ensina a lutar eficazmente por nossa sade. No dou apenas conselhos sobre o que fazer, embora eles sejam muitos; apresento um guia, repito, para essa parte de ns mesmos em condies de lazer a melhor opo e de ordenar vontade que a siga. Tenho a esperana de chegar alm do esprito racional, j que os milagres no provm do frio intelecto. Provm da descoberta de nosso eu autntico e da perseverana naquilo que sentimos ser nosso verdadeiro rumo.

Se o leitor esta sofrendo de alguma doena que lhe ameace a vida, a transformao de que estou falando pode salv-lo ou prolongar-lhe a sobrevivncia para muito alm das expectativas da medicina. No mnimo, permitir maior proveito do tempo que lhe resta. Se o problema de sade do leitor de menor importncia, ou se no estiver doente mas tambm no estiver gozando realmente a vida, os princpios que adquiri junto de pacientes especiais podem trazer-lhe alegria e ajud-lo a evitar qualquer doena.

Se o leitor mdico, espero que o livro lhe proporcione algumas estratgias de que h muito vem sentindo necessidade, tcnicas que a formao universitria no lhe incutiu. Raramente os mdicos percebem que falam aos pacientes cancerosos de modo distinto do que usam com os outros. A um enfartado explicamos que deve mudar de hbitos - comear uma dieta, praticar exerccios e assim por diante -, participando de sua prpria cura. Mas, se o paciente sofrer de cncer, os mdicos, na maioria, diro: "Se este tratamento no der certo, no sei mais o que fazer". Precisamos aprender a dar aos pacientes a oportunidade de participar na recuperao de qualquer tipo de doena.

No estou querendo dizer que sou melhor que os outros mdicos, mas eu me sentia um fracasso at que os pacientes me ensinaram que na medicina h mais do que drgeas e incises.

Sei que os consultrios vivem lotados de pessoas que esgotaram a energia de meus colegas e continuam enfermas. Conheo a dor que os mdicos sentem. Temos todos os problemas que os outros tm, mais aquele que a faculdade nos inculca: o papel de mecnico salva-vidas. Por ele, a doena e a morte so falhas nossas. Ningum vive para sempre, mas o objetivo no a morte- a vida. E a morte no um fracasso. Fracasso a incapacidade de assumir o desafio da vida.

Deixe que lhe apresente pacientes capazes de repor sua energia, aqueles que ficaram bons quando ningum supunha que isso fosse possvel. Gostaria de demonstrar como aprender com os pacientes de maior xito e ajudar os outros a despertar de novo a "vontade de viver". O processo contribuir inevitavelmente para ajudar o leitor mdico a curar-se e a fazer de si mesmo um terapeuta mais bem-sucedido.

Temos de eliminar do nosso vocabulrio a palavra "impossvel". Conforme observou David Ben-Gurion, em outro contexto: "Quem realmente no acredita em milagres no realista". Alm disso, h uma lio na forma como nos desorientamos com expresses como "remisso espontnea" e "milagre". Elas indicam que o paciente deve estar feliz por ter sarado, mas a verdade que a cura se deu graas a um trabalho rduo. No um ato de Deus. Algo que, para uma gerao, milagroso, talvez seja um fato cientfico, para outra. No feche os olhos para acontecimentos imensurveis: eles ocorrem graas a uma energia interior que todos possumos. Eis a a razo pela qual prefiro expresses como "cura criadora" ou "cura auto-induzida", que enfatizam o papel ativo do doente. Vejamos como esses doentes especiais agem para se curar.

Dr. Bernie S. Siegel

New Haven, Connecticut, Abril de 1986

- Tudo o que estou dizendo que no devemos nos comportar como coelhos e depositar confiana completa nos mdicos. Eu, por exemplo, estou lendo este livro - disse Kostoglotov.

Pegou um grande livro aberto no cadeiro prximo janela e anunciou:

- De Abrikosov e Stryukov, Anatomia Patolgica, um manual de medicina. Reza aqui que a ligao entre o desenvolvimento de tumores e o sistema nervoso central foi at agora muito pouco estudada. E a ligao uma coisa espantosa! Est descrita com todas as palavras.

Folheando, localizou o trecho:

- "Raras vezes acontece, mas h casos de cura auto-induzida." Entendeu a colocao? No recuperao por meio de tratamento, mas cura de verdade. Compreende?

Sentiu-se um alvoroo na enfermaria, como se a "cura auto-induzida" tivesse batido asas para fora do grande livro aberto, qual borboleta das cores do arco ris, para que todos a vissem - e todos ergueram a fronte e as faces espera do toque salvador, medida que ela voejava.

- Auto-induzida - disse Kostoglotov, deixando o livro de lado e abanando as mos com os dedos afunilados. - Isso quer dizer que, de sbito, por qualquer razo desconhecida, o tumor parte em direo oposta: vai se reduzindo, se decompondo e, finalmente, desaparece! Compreende?

Estavam todos em silncio, embasbacados com o conto de fadas. Um tumor, nosso prprio tumor, o tumor destrutivo que nos estraalhava a vida, repentinamente entra em processo de drenagem, seca e morre por si mesmo?

Estavam todos em silncio, ainda de cabea erguida para a borboleta. S o desanimado do Podduyev, fazendo estalar a cama, resmungou, com uma obstinada expresso de desespero na face:

- Suponho que, para isso, necessrio ter... a conscincia limpa.

ALEKSANDR I. SOLJENTSIN

Pavilho dos Cancerosos

Primeira Parte

Conscientizando-se do Corpo

1

O Ouvinte Privilegiado

Uma nova filosofia, uma forma de vida, no se d por nada. preciso pagar caro por ela, e s a adquirimos com muita pacincia e grande esforo.

Fiodor Dostoisvski

Na faculdade de medicina no se toca no assunto dos doentes especiais, pela qual s me interessei ao fim de extenso perodo de infelicidade e de mergulho na alma de minha profisso. No recebi uma nica aula sobre cura e carinho, como falar aos pacientes ou por que ser mdico. No me curaram durante o curso, mas esperavam que eu curasse os outros.

No comeo da dcada de 70, com mais de dez anos de experincia como cirurgio, estava achando meu trabalho muito cansativo. No era um caso tpico de cansao mortal, pois eu me encontrava em condies de enfrentar os interminveis problemas, a intensidade das tarefas e as constantes decises de vida ou morte. Mas fora preparado para pensar que todo meu trabalho consistia em fazer maquinalmente coisas para deixar as pessoas melhor, para salvar-lhes a vida. assim que se avalia o xito de um mdico. Como as pessoas nem sempre melhoram e todas acabam morrendo, algum dia, era de esperar que eu me sentisse um fracasso. Intuitivamente, sentia que deveria haver algum meio de ajudar os casos "sem esperanas", indo alm de meu papel de mecnico. No entanto, precisei dedicar anos a laboriosas conquistas at descobrir o que fazer.

No comeo, esperava enfrentar novos problemas todos os dias. O desafio era excitante, pois quebrava a rotina. Ao fim de alguns anos, porm, os prprios desafios se tornaram montonos. Claro que eu apreciaria um dia dos bons, em que tudo corre pelo figurino e surgem apenas casos rotineiros. No entanto, no havia dias "normais". S muito mais tarde passei a me interessar pelas emergncias e at pelo colapso do atendimento hospitalar como oportunidades extraordinrias para ajudar os outros.

No ha cirurgies perfeitos. Procuramos fazer o melhor e lutar contra as complicaes. Elas so desalentadoras, mas contribuem para que mantenhamos os ps na terra e no comecemos a nos ver como deuses. O caso que mais abalou a f que eu depositava em mim mesmo, no incio da carreira, foi o dano causado ao nervo facial de uma menina que operei. Ao v-la com a metade do rosto paralisada, tive vontade de me esconder para sempre. Desfigurar algum constitui experincia chocante sobretudo para quem se especializou em cirurgia com o objetivo de ajudar os outros. Infelizmente, eu ainda no aprendera que minha reao tpica de mdico - esconder a dor quando algo de errado acontece - no era boa para ningum.

A presso nunca afrouxava. Quando um paciente dava entrada no centro cirrgico com uma sria hemorragia, a equipe ficava tensa, em pnico - at que o cirurgio chegava. A partir da, era meu estmago que se contorcia, enquanto todos relaxavam. Eu no podia transferir o problema a ningum: tudo o que me restava era refluir para dentro de mim, em busca de tranqilidade. Na hora de iniciar uma cirurgia, o suor porejava. Mas, medida que as coisas iam ficando sob controle, eu esfriava, embora as luzes continuassem quentes como antes. Sentia-me desesperadamente sozinho, esperando de mim mesmo a perfeio. E voltava para casa ainda tenso. Dias antes de uma operao difcil, ficava remoendo o problema no esprito, rezando para que tudo desse certo. Depois dela, ainda que tudo tivesse corrido bem, costumava acordar de madrugada pondo em dvida minhas decises. Hoje em dia, aps tantos anos da educao que recebi dos doentes, sinto-me apto a tomar qualquer deciso, a mant-la e a segui-la, certo de que estou fazendo o melhor que posso. Como um pastor evanglico que se sentisse sozinho por no ter aprendido a falar com Deus, o mdico se isola, se no aprender a falar com os pacientes.

Uma das dificuldades mais sofridas o escasso tempo que temos para dedicar famlia. O atleta pode tomar um banho de chuveiro e ir para casa, aps o jogo, mas a regra, para os mdicos, uma jornada de trabalho sem fim. Fui obrigado a aceitar a idia de que um fim de semana com a famlia era um prmio, e no alguma coisa com que pudesse contar. Estava, alis, experimentando uma culpa dupla: gazetear algumas horas era como se estivesse roubando um tempo que pertencia aos doentes, ao passo que os expedientes de dezesseis horas significavam roubar um tempo que pertencia a minha mulher e a nossos filhos. No sabia de que maneira remir a culpa ou unificar minha vida. Muitas vezes, noite, j em casa, o cansao era demasiado para que eu pudesse desfrutar do convvio familiar. Certa vez, estava to exausto que, ao levar a empregada domstica para sua casa, tomei automaticamente o rumo do hospital. Talvez ela tenha imaginado que eu a estivesse raptando.

At as horas que eu conseguia passar em casa pareciam estar sempre a ponto de serem interrompidas. As crianas estavam constantemente perguntando se eu seria chamado naquela noite e todos ficavam tensos quando isso acontecia, porque a tarde com a famlia no duraria muito. A campainha do telefone - que, para a maioria das pessoas, emite um som amistoso - implicava, para ns, ansiedade e separao.

Uma das provaes mais dilacerantes que o mdico experimenta reside no fato de a morte sobrevir quase sempre no meio da noite, particularidade que hoje compreendo. No h como evitar uma crispao nervosa quando um paciente em coma dois dias falece s 2 horas da madrugada, sendo preciso acordar o mdico e a famlia para dar a notcia. "Por que os mortos no tm um pouco de respeito pelos vivos?", pensamos ns. So raros os profissionais da medicina que fazem meno a essa hostilidade, pois nos sentimos culpados por ela. A estafa aumenta com a obrigao de chegar animado e alerta sala de cirurgia s 7 horas, no obstante os problemas familiares e dois ou trs telefonemas durante a noite.

No dia de ano-novo de 1974, comecei a escrever um dirio. No incio, quase no passava de uma vlvula de escape para meu desespero. Certa noite, escrevi o seguinte: "s vezes parece que o mundo est morrendo de cncer. Cada abdome que a gente abre est tomado por ele". Mais adiante encontra-se este desabafo: "Vivo com o estmago embrulhado e sinto horror ao pensar no futuro. Quantas faces ainda terei de encarar, dizendo que sinto muito, mas um tumor inopervel?"

Eu me lembro muito bem de Flora, uma paciente que tive nessa poca. Seu marido falecera havia pouco e, agora, era ela quem estava morrendo de um cncer no tero, cuja evoluo duas cirurgias no haviam detido. Ela se agoniava ao ver que suas economias, j legadas aos netos, se reduziam a cada diria hospitalar. Queria prolongar a vida e, ao mesmo tempo, queria morrer; para que o dinheiro destinado educao deles no fosse malbaratado por seu dbil organismo.

Eu me perguntava onde iria buscar foras para ajudar tanta gente em dificuldades. E, graas introspeco propiciada pelo dirio, acabei por compreender que tinha de modificar a forma como encarava a atividade mdica. Foi uma poca em que pensei seriamente em mudar de carreira. Imaginei seguir o magistrio - ou ento, ser veterinrio, j que os veterinrios podem afagar seus pacientes. No chegava a nenhuma concluso, mas compreendia que minhas opes se relacionavam aos seres humanos. At na pintura, meu passatempo predileto, s me interessava por retratos.

Um belo dia, tudo clareou. L estava eu, assistindo uma poro de doentes todos os dias, avistando dezenas de mdicos e de enfermeiras e, ainda assim, andando atrs de criaturas humanas. At ento, eu cuidara de casos, grficos, doenas, remdios, equipes e prognsticos - e no de pessoas. Vivera pensando em meus pacientes como mquinas que eu tinha de consertar. Comecei a entender de outra forma a linguagem de meus colaboradores. Fiz, nesse ano, uma palestra para pediatras. Muitos chegaram atrasados, explicando, excitados, que haviam estado s voltas com um "caso interessante" - uma criana s portas do coma diabtico, por exemplo. Compreendi, chocado, que distncia essa atitude colocava entre o mdico e seu "caso", que vinha a ser uma criana gravemente doente e assustada e pais atormentados.

Ganhei ento conscincia de que, apesar do quanto lutara contra isso, eu tambm adotara aquela norma de defesa contra a dor e o fracasso. Como me sentia ferido, retraa-me quando os pacientes mais precisavam de mim. Foi o que me saltou aos olhos no regresso de frias prolongadas, em agosto de 1974. Durante alguns dias, reagi apenas como um ser humano. Depois, as emoes comearam a esmaecer, substitudas pelo verniz profissional. Eu queria, no entanto, manter viva a sensibilidade, uma vez que, na realidade, a frieza no livra ningum do sofrimento; ela apenas enterra a dor num nvel mais profundo. Nessa poca, eu considerava fundamental manter certo distanciamento. Mas, em minha opinio, esse distanciamento muito grande, na prtica de certos colegas. Em muitssimos exemplos, a presso elimina em ns a natural compaixo. O "interesse neutro" que nos ensinam um absurdo. Convm, isso sim, que se ensine um interesse racional, que permita a expresso dos sentimentos sem prejudicar a capacidade de tomar decises.

Mas eu ainda me interrogava: devia continuar sendo um cirurgio ou abandonar toda uma vida de trabalho e adotar outra especialidade? Pensei na psiquiatria, com a qual teria condies de ajudar as pessoas sem usar o bisturi. Foi ento que um de meus pacientes cancerosos, o pianista Mark, me ajudou a compreender que eu podia ser feliz sem mudar de profisso. medida que ele melhorava, os amigos insistiam para que voltasse a dar concertos. Ele recusava os convites dizendo saber que j no pertencia ao mundo do palco. Agora, sentia-se mais feliz tocando em casa. Continuava a fazer aquilo que apreciava, mas alterara o contexto para atender a suas prprias necessidades. Percebi que precisava fazer o mesmo.

Procurei "dar uma escapada" e abrir a porta do corao e a do consultrio. Encostei a mesa contra a parede, para que eu e o paciente nos encarssemos como iguais. Um funcionrio da companhia telefnica, um carpinteiro e um estudante disseram que o consultrio no se achava bem instalado, uma vez que a mesa j no ocupava o centro da sala. Expliquei que pretendia ver o paciente sem nenhum obstculo entre ns, em vez de me exibir como autoridade em fracassos.

Comecei ento a pedir aos doentes que me tratassem pelo prenome. A princpio, era esquisito ser apenas Bernie e no doutor Siegel, ser conhecido pelos outros como uma pessoa, e no como um ttulo. Entendia que precisava gostar de mim mesmo e merecer respeito no pelo que aprendera na faculdade, mas sim pelo que eu fazia. Valeu a pena. um meio simples mas eficaz de romper a barreira entre mdico e paciente.

O deslocamento da mesa e o tratamento pelo prenome no passavam de sintomas de uma transmutao mais ampla. Cometi o pecado mortal do mdico: "envolvi-me" com os doentes. Era a primeira vez que eu percebia a fundo o que era viver com cncer, ter noo do receio de que ele esteja se espalhando at quando falamos com o mdico, lavamos os pratos, brincamos com os filhos, trabalhamos, dormimos ou amamos. Como difcil manter a integridade de ser humano tendo semelhante conhecimento.

Deixei de me esconder emocionalmente das cenas de tristeza a que assistia no cotidiano. Um dia, em meu planto, encontrei um doente deitado de lado, babando, com a face letrgica por efeito dos medicamentos. Ele empregava todas as foras que lhe restavam no ato de segurar o urinol, completamente alheio magnfica paisagem ensolarada que se podia ver pela janela sua frente. Estava estendido em cima de uma poa do que parecia suco de laranja misturado com blis - e me descobri olhando, espantado, para o chocante colorido do lenol manchado. Fiquei acabrunhado perante o contraste de beleza e sofrimento. No tardei, porm, a descobrir que era possvel mobilizar foras no ntimo dos pacientes. Diante de um casal, ele com grave doena cardaca e ela com avanado cncer mamrio, cada qual tentando sobreviver a fim de ajudar o outro, senti diminuir minha impresso de impotncia. A compaixo de outra mulher, com os dois braos fraturados, sofrendo dores terrveis, e que, apesar disso, ainda se preocupava comigo por estar trabalhando at tarde, eliminou minha fadiga. Ao dizer a um doente em estado agnico "Mais tarde nos veremos" e ouvi-lo responder com o gracejo "Espero que sim", a sensao de derrota iminente desapareceu. Verifiquei que o medo da morte no vencera o esprito daquele homem. Primeiramente, comecei a abraar os pacientes, imaginando que precisassem de uma prova de confiana de minha parte. Mais tarde, porm, j me via dizendo "Sinto necessidade de lhe dar um abrao". E, mesmo que estivessem com respirao assistida, eles erguiam a cabea para eu tocar neles ou beij-los, com o que se evaporavam minha culpa, meu cansao, meu desespero. Eram eles que estavam me salvando.

Em face de tanta coragem, volta e meia sentia vontade de fazer alguma coisa que facilitasse a agonia. A meu ver, os mtodos adotados pela medicina para prolongar a vida e curar a doena - um dos objetivos mais nobres da civilizao - eram por vezes mais cruis que os dos selvagens, que aliviam com a morte as doenas graves. costume dizer que nunca se sabe ao certo quando chega a hora da morte, mas estou convencido de que algumas pessoas sabem, ao sopesar o fardo das horas, dos dias ou dos meses que lhes restam de dor. comum os velhos estranharem por que viver tanto tempo, s para sofrer tormentos e humilhaes to demoradas. Deveramos ter meios de auxiliar o tranqilo desenlace de uma pessoa, j que nada representa o valor de um dia de sobrevida. (Estou falando de meios naturais de desenlace, aos quais todos ns temos acesso quando j no se considera a morte um desastre.)

Nunca senti to forte necessidade de compaixo, para equilibrar o herosmo dos mdicos, como por ocasio da morte de Stephen, um amigo de meu scio. Aps um violento ataque cardaco, ele foi amarrado a um leito, com tubos em todos os orifcios. Seu estado era to desesperador que foi emitida uma ordem proibindo a ressuscitao. O homem chorava de dor e de medo. mas ningum autorizava a aplicao de analgsicos, com receio de que a medicao apressasse o inevitvel, dando a impresso de se tratar de eutansia. Afinal, meu scio acabou intercedendo, embora o amigo fosse paciente de outro mdico. Aplicou-lhe uma injeo de Nembutal e, com isso, Stephen conseguiu relaxar e abandonar o corpo em paz. Sussurrou um "Obrigado" e apagou-se tranqilamente em cinco minutos. Seria melhor para ele se tivesse ficado na rua do que no hospital, pois o fim viria mais depressa e seria menos penoso para todas as pessoas envolvidas. At que ponto vale dizer que estamos prolongando a vida, se o doente se transmutou em nada mais do que uma vlvula entre os fluidos intravenosos que entram e a urina que sai? Tudo o que estamos prolongando a agonia. O editorial "No Em Meu Turno", publicado no Journal of the American Medical Association, refletiu o dilema de um mdico quanto ao prolongamento da agonia e no-extenso da vida.

A palavra "hospital" deriva de um vocbulo latino que significa "hospedaria", mas raras vezes a instituio hospitalar hospitaleira. Pouca ateno se d ao carinho e cura, como se fossem prejudiciais medicao. J meditei muitas vezes por que os arquitetos, pelo menos, no pensam em tetos mais bonitos, j que os internados passam tanto tempo olhando para cima. H um aparelho de televiso em cada quarto, mas onde est o vdeo musical, criador, meditativo ou humorstico que ajude a estabelecer um ambiente saudvel? Que liberdade se d aos doentes para que mantenham sua identidade?

Recentemente, um deles, de nome Sam, que se curou rapidamente de uma operao de hrnia, explicou, numa carta, como a atmosfera mais livre lhe foi benfica:

Uma dvida me intrigava: por que eu estava me tornando o modelo do "bom paciente", caladinho e cooperante? Justo eu, que sempre dei a perceber que estou por a, fazendo onda s para fazer onda.

Fiquei pensando nisso e a nica resposta a que cheguei foi esta: como a decorao do hospital no era autoritria (especialmente com os novos uniformes, que me deixavam confuso) e a equipe se mostrava muito eficiente, eu no tinha contra o que me rebelar. Tambm acho que a rapidez da cura e o fato de eu no me sentir desesperanado nem dependente me fizeram sentir que tudo estava sob controle - ento, no era necessrio fazer grande alarde.

Enquanto algum est internado, a equipe se torna parte da famlia dessa pessoa, pois o paciente visto com mais freqncia e com mais intimidade. Temos de enfrentar essa responsabilidade oferecendo o tipo de apoio afetivo supostamente proporcionado pela famlia. Os parentes no conseguem fazer tudo durante as poucas horas da visita. Penso num doente meu, com um carcinoma no clon e metstases nos pulmes e no crebro. Ele se recusava a receber tratamento porque queria morrer ao sol, na varanda da frente de sua casa, escutando os passarinhos. Por que os hospitais no se mostram to agradveis assim?

Entregando-me ao mesmo sofrimento e ao mesmo medo que os doentes sentiam, acabei por compreender que existe um aspecto da medicina mais importante que todos os processos tcnicos. Aprendi que eu tinha a oferecer muito mais que cirurgia e que minha contribuio era extensiva aos moribundos e aos sobreviventes. Conclu que o nico motivo vlido para permanecer na profisso consistia em oferecer s pessoas aquilo de que mais se ressentiam, no momento: estima. Cito, a propsito, as Lies Mortais, de meu scio Dick Selzer, um grande ensasta e tambm um grande cirurgio:

No sei quando compreendi que precisamente este inferno onde lutamos pela vida que nos oferece a energia, a possibilidade de cuidar uns dos outros. Um cirurgio no se despede do ventre materno j revestido da compaixo como uma placenta. Ela nasce muito mais tarde. No cai sobre ele como um estado de graa, mas como o murmrio acumulativo das inmeras feridas que enfaixou, das incises que fez, de todas as chagas, lceras e cavidades em que tocou para medicar. No comeo, um sopro que mal se ouve... Pouco a pouco, vai se avolumando, erguendo-se da carne porejante at se tornar, por fim, puro apelo - um som exclusivo, como o grito de certas aves solitrias -, revelando que, da ressonncia entre o doente e aquele que o atende, pode brotar essa profunda reverncia a que os religiosos chamam de Amor.

SURGE UM GUIA

Em junho de 1978, minha clnica cirrgica transformou-se devido a uma experincia inesperada que tive num seminrio de atualizao. O oncologista Carl Simonton e a psicloga Stephanie Matthews (na poca, sua esposa) deram um curso intensivo sobre Fatores Psicolgicos, Tenso e Cncer, no Instituto Elmcrest, em Portland, Connecticut. Os Simonton foram os primeiros, no mundo ocidental, a empregar tcnicas ideativas contra o cncer e, em associao com James L. Creighton, expuseram seus mtodos no livro Ficando Bem de Novo. O casal j divulgara seus primeiros resultados com cancerosos "terminais". Dos primeiros 159, dos quais no se esperava que algum deles vivesse mais que um ano, 19 por cento ficaram curados por completo e 22 por cento viram a doena regredir. Os que acabaram morrendo tiveram, em mdia, o dobro do tempo previsto de sobrevida.

Ao observar os participantes da primeira sesso do curso, fiquei espantado e enraivecido ao descobrir que eu era o nico "mdico do corpo" ali presente. Estavam um psiquiatra e um clnico holstico, mas nenhum mdico atendente de emergncia, entre os 75 participantes. A maioria era constituda por assistentes sociais, doentes e psiclogos. Fiquei ainda mais furioso ao ouvir muitos participantes afirmarem que j conheciam tais tcnicas, pois o que eu estava aprendendo nem sequer fora citado em meu curso. E l estava eu, um Doutor em Medicina, uma "Divindade Mdica", sem saber nada do que se passava na mente das pessoas! A literatura sobre a interao mente-corpo era separada e, por conseqncia, desconhecida para os especialistas de outras reas. Tive, pela primeira vez, a noo de quanto esto frente, nesse terreno, a teologia, a psicologia e a medicina holstica.

Refleti ento nos ndices de morbidade dos mdicos, categoria profissional que acusa mais problemas com drogas e lcool, bem como uma taxa de suicdios mais elevada que a de seus pacientes. Sentem-se mais desamparados do que estes e morrem mais depressa aps os 65 anos. No admira que tanta gente evite consultar os clnicos gerais. Voc levaria seu carro a um mecnico que no consegue fazer o dele pegar?

Os Simonton ensinaram-nos a meditar. A certa altura, conduziram os participantes numa meditao dirigida, para que cada um encontrasse seu guia interior. Aceitei o exerccio com todo o ceticismo que de se esperar de um mdico mecanicista. No entanto, l me sentei, fechei os olhos e segui as instrues. Se funcionasse - no que eu no acreditava -, esperava ver Jesus ou Moiss. Quem mais ousaria aparecer dentro da cabea de um cirurgio?

Mas, em vez deles, conheci George - um jovem de comprida cabeleira, vestido com uma toga drapejada, imaculadamente branca, e de solidu na cabea. Foi um choque, pois eu no esperava que nada acontecesse. Como os Simonton nos haviam orientado a entrar em comunicao fosse quem fosse a pessoa a quem tivssemos apelado por meio do esprito inconsciente, achei que falar com George era como jogar xadrez comigo mesmo, mas sem saber qual seria a jogada seguinte de meu alter ego.

George era espontneo, conhecia meus sentimentos e mostrou-se excelente conselheiro. Deu-me respostas honestas, algumas das quais no apreciei de incio. Eu ainda admitia a hiptese da mudana de carreira. Quando lhe falei nisso, George disse que eu era muito orgulhoso para abandonar a proficincia tcnico-cirrgica, to dificilmente conquistada, para engatinhar em outra rea. Eu seria mais til continuando a operar, mas mudando de personalidade, a fim de ajudar os pacientes a mobilizar sua capacidade mental contra a doena. Teria condies para conjugar o apoio e a orientao de um sacerdote ou psiquiatra com os recursos e a experincia de um mdico. Exerceria clerurgia (neologismo cunhado por minha mulher a partir de "clero" e "cirurgia"). Faria, no hospital, o papel de modelo para alunos, funcionrios e at mdicos.

- Voc circula por todo o hospital, coisa que um pastor ou um psiclogo no podem fazer - lembrava George. - Fica vontade para complementar o tratamento mdico com afeto ou conselhos sobre a agonia e a morte, o que est vedado a quem no mdico.

Suponho que o leitor considere George uma viso meditativamente liberada de meu inconsciente, ou algo semelhante, caso precise de uma classificao intelectual para ele. Tudo o que sei que ele tem sido um companheiro inestimvel, desde que me apareceu. Agora vivo muito melhor, visto que ele se encarrega do trabalho pesado.

Outra coisa que ele fez foi me ajudar a ver aspectos da medicina que me escapavam. Verifiquei que, em matria de curar doenas, as excees no confirmam a regra. Se ocorre um "milagre", a exemplo da resoluo permanente de um cncer, vlido e no h por que desprez-lo como um lance de sorte. Se ocorreu com um paciente, no h razo para no ocorrer com outros. Entendi que a medicina se dedica ao estudo daquilo em que falhou, quando deveria extrair lies de seus xitos. Conviria prestar mais ateno aos pacientes especiais, aqueles que de repente saram, em vez de olhar obtusamente para aqueles que morrem, como de hbito. Conforme dizia Ren Dubos, "s vezes, que mais fcil de medir desloca para fora o que mais importante".

Vi ento como a confiana em estatsticas deformara meu modo de pensar. Anos antes, havia operado Jim, que estava com cncer no clon. Isso foi no tempo em que eu fazia previses quanto sobrevida dos pacientes, e avisei a famlia de que ele contava com, no mximo, seis meses de vida. Jim demonstrou meu erro. Sempre que ele entrava em meu consultrio, acudia-me o pensamento: Ah! Finalmente l veio a recidiva. Mas, em geral, tratava-se de um pequeno problema, sem relao com o cncer. E, se eu oferecia terapia de acompanhamento para o mal maior, ele recusava. Estava muito ocupado com a vida e no tinha tempo para meu tratamento, baseado em estatsticas. Faz mais de dez anos que Jim goza de boa sade.

No extremo oposto esto pacientes como Irving, consultor financeiro; que investia as economias da vida inteira de outras pessoas conforme as estatsticas. Quando me consultou, tinha cncer no fgado. O especialista com quem se tratava mostrou-lhe as estatsticas sobre suas possibilidades. Isso bastou para que Irving se recusasse a lutar pela vida.

- Passei a vida fazendo previses com base em estatsticas - comentava ele. - Agora, elas me dizem que provavelmente vou morrer. Se no morro, minha vida inteira perde o sentido.

Foi para casa e morreu.

Um dos problemas correlacionados com a estatstica do cncer est em que as curas auto-induzidas no fazem parte da literatura mdica. Um levantamento dos estudos sobre cncer colo-retal localizou apenas sete casos de curas auto-induzidas entre 1900 e 1966, embora o nmero deva ser bem maior. A pessoa que se sente bem, embora se suponha que no deveria estar, no volta ao mdico. Se voltar, muitos profissionais admitiro automaticamente que houve um erro de diagnstico. Alm disso, a maior parte dos mdicos considera esses casos "msticos" demais para serem descritos numa revista de medicina, ou ento acha que no se referem aos outros pacientes, os "desesperados".

No entanto, desde que passei a me interessar por essas raridades, ouo falar em curas "milagrosas" aonde quer que eu v. Estando a par de que eu sei dessas coisas, as pessoas sentem-se mais vontade para me falar delas. Por exemplo, depois de uma conversa na igreja de certa localidade, determinado homem entregou-me um carto e me disse, em voz baixa, que o lesse mais tarde, saindo em seguida. Dizia a nota, manuscrita:

H coisa de dez anos, seu scio operou meu pai, removendo-lhe parte do estmago. Nessa ocasio, o senhor descobriu que todo o sistema linftico de papai era canceroso. Como eu era o filho mais velho, o senhor me aconselhou a informar os outros membros da famlia sobre o estado de meu pai. Preferi no informar. No domingo passado, ns lhe oferecemos, de surpresa, uma bela festa de aniversrio. Ele completava 85 anos, e mame, com seus 80, sorria a seu lado!

Fui ver no arquivo e, no havia dvidas, ns tnhamos considerado terminal a doena daquele homem, mais de dez anos antes. Ele sofria de cncer no pncreas, com metstases nos ndulos linfticos. Reexaminei as lminas do laboratrio de patologia e no havia erro diagnstico. A resposta de qualquer mdico a tal caso seria "tumor em desenvolvimento lento". Atualmente, esse antigo paciente est com 90 anos. Portanto, o tumor deve ser daqueles que crescem bem devagar. um dos tais casos em que os mdicos deveriam correr casa do doente e perguntar por que ele no morreu na data prevista. De outro modo, a cura espontnea no ser registrada na literatura mdica e nunca saberemos se no se trata de exemplos de boa sorte, erros de diagnsticos, tumores de desenvolvimento lento ou cnceres bem-comportados.

O GRUPO DOS ESPECIAIS

Depois da experincia com os Simonton, instalei, com a cooperao de minha mulher, Robbie, e de Marcia Eager, ento enfermeira de meu consultrio, o grupo teraputico PCE -Pacientes de Cncer Especiais, para ajudar as pessoas a mobilizar todo seu potencial contra a doena. Adotamos como manual o livro dos Simonton, Ficando Bem de Novo, e remetemos uma circular aos clientes, dando a entender que podamos contribuir para que levassem uma vida melhor e mais duradoura, seguindo as tcnicas ministradas pelo PCE. Espervamos centenas de respostas, imaginando que a pessoa que recebesse a circular contaria a outro doente do mesmo mal e o traria reunio. Afinal de contas, pensava eu, todos querem viver. Muitos doentes vo ao fim do mundo atrs de tratamentos alternativos que ofeream uma rstia de esperana! Comecei mesmo a ficar tenso diante da possibilidade de enfrentar uma multido.

Apareceram doze pessoas. Foi ento que aprendi a identificar os doentes. Descobri que abrangem trs tipos. Uns 20 por cento querem morrer, consciente ou inconscientemente. De certa forma, acolhem bem o cncer ou outra doena grave como um meio de escapar dos problemas. Pertencem ao nmero daqueles que no do sinais de angstia ao saber do diagnstico. Enquanto os mdicos lutam para lhes poupar a vida, eles resistem e procuram a morte. Se lhes perguntamos como vo, respondem: "Bem, obrigado". Alguma coisa os incomoda? "Nada." Quando eu comeava a compreender esse modo de ser, encontrava-me, certa tarde, no quarto de um paciente de meia-idade, com cncer no clon, enquanto um de meus scios discutia o tratamento com ele e com a esposa. Sentia a resistncia dele a todas as opes. Entrei na conversa e disse:

- Acho que o senhor no quer viver.

A esposa ficou furiosa, mas Harold, o doente, replicou:

- O senhor tem razo. Meu pai tem 90 anos, est senil e vive numa casa de repouso. Ora, eu no quero ser como meu pai e por isso est certo que eu morra agora, de cncer.

Com isso, a questo mudou de figura. Tratava-se de faz-lo sentir que podia dirigir a vida e a morte, compreendendo que no estava obrigado a abrir mo de tantos anos de bem-estar s para fugir possibilidade de um final desagradvel. No temos de chegar aos 90 anos e ficar senis, se estivermos em condies de dizer "no" a quem queira prolongar artificialmente nossa vida - ou melhor, nossa agonia. Ao fim de vrios dias de discusso sobre o assunto e de avaliao do valor que ele dava vida, Harold aceitou o tratamento do cncer e ainda hoje se acha bem.

Pouco tempo depois, um amigo psiquiatra comentou um caso que mostra at onde a vontade de morrer pode chegar. Certo dia, um paciente seriamente deprimido entrou todo sorridente no consultrio. O psiquiatra perguntou o que havia acontecido e o homem respondeu:

- No preciso mais de voc! Estou com cncer.

Ao meditar em tais respostas, chego a perguntar a mim mesmo por que motivo nos esforamos para conquistar maior longevidade, se tanta gente quer morrer de infelicidade e de impotncia.

H que ter em mente o sofrimento das pessoas e redefinir nossos objetivos. Que curar? um transplante de fgado ou o tratamento de uma doena, ou conseguir que as pessoas tenham paz de esprito e vivam uma vida plena? Conheo quadriplgicos que respondem "Tudo bem" quando lhes perguntam "Como vai?", j que aprenderam a amar e a dar-se ao mundo. No esto negando, mas transcendendo suas limitaes fsicas.

No centro do espectro dos pacientes est a maioria, cerca de 60 por cento. So como atores ensaiando um papel: representam para satisfazer o mdico. Atuam do modo como acham que o mdico apreciaria v-los atuar, esperando ento que ele faa tudo o que deve fazer e que o remdio no seja amargo. Tomam fielmente todos os comprimidos e chegam para a consulta na hora certa. Fazem aquilo que lhes mandam fazer - a no ser que lhes proponham uma alterao radical em seu estilo de vida. Nunca lhes ocorre pr em dvida as decises do mdico nem se rebelar em nome daquilo que julgam "correto". Pertencem ao gnero de pessoas que, se pudessem escolher, prefeririam ser operadas a se esforar para ficar boas.

No extremo oposto esto os 15 ou 20 por cento que so especiais. No esto representando, mas sendo sinceros. No querem desempenhar o papel de vtimas. Quando o desempenham, os pacientes no se ajudam, j que tudo se faz por eles.

Recebi muitas cartas de grupos intitulados Ajude as Vtimas do Cncer, ou coisa parecida. Minha primeira reao aconselhar que mudem de nome, uma vez que vtimas, por definio, no tm o domnio necessrio para redirecionar sua forma de viver. Na sociedade a que pertencemos, o doente automaticamente considerado vtima. J se passaram muitos anos desde que Herbert Howe, antigo doente de cncer e autor de Do Not Go Gentle (No Esmorea), apareceu no programa Good Morning, America, da rede ABC, contando como sua doena sumiu depois que ele abandonou o tratamento mdico normal, passando a fazer exerccios como vlvula para sua angstia. Ora, ainda que estivesse livre do cncer, o nome dele surgiu na tela da televiso com a chamada de "Vtima de Cncer".

Os pacientes especiais se recusam a ser vtimas, preferindo aprender a especialidade de cuidar de si mesmos. Questionam o mdico porque desejam compreender o tratamento e participar dele. Exigem dignidade, personalidade e controle, seja qual for a evoluo da doena.

Ser um doente especial reclama coragem. Tenho em mente uma senhora que, ao saber que precisava ir ao departamento de radiologia, respondeu:

- No vou. Ningum me explicou para que serve esse exame.

- A senhora pode morrer esta noite, se no tirar a chapa - comentou o atendente.

- Ento morro esta noite, mas no deixo meu quarto.

Logo apareceu algum que explicou para que servia a radiografia.

Kathryn e Cornelius Ryan captaram a atitude do paciente especial em A Private Battle (Uma Batalha Particular), relato da luta de Cornelius contra um cncer na prstata e morte subseqente, em funo da molstia, em 1974. Escreveu Kathryn: "Partiu para sempre como um leo, e no como um cordeiro assustado". Foi por cansao que ele finalmente se abandonou. O fator decisivo no foi o medo.

Esse tipo de paciente quer conhecer todos os detalhes das radiografias, todo o significado das cifras dos resultados laboratoriais. Se o mdico souber aproveitar essa preocupao to intensa do doente consigo mesmo, em vez de menosprez-la e de se mostrar "atarefado demais", melhorar imensamente a possibilidade de recuperao.

Os mdicos devem entender que os pacientes considerados difceis e no-cooperadores so os que tm maior probabilidade de sarar. Num estudo com 35 mulheres que sofriam de cncer da mama com metstase, o psiclogo Leonard Derogatis descobriu que as sobreviventes de longo prazo tinham ms relaes com os mdicos - segundo o critrio destes. Faziam muitas perguntas e manifestavam livremente as emoes. Da mesma forma, a psicloga Sandra Levy, do Instituto Nacional do Cncer, dos Estados Unidos, demonstrou que as pacientes graves de cncer nos seios que manifestavam depresso, ansiedade e hostilidade em alto grau sobreviviam por mais tempo. Sandra Levy e outros pesquisadores descobriram igualmente que os "maus" pacientes, os agressivos, tendiam a ter mais clulas T (clulas brancas que perseguem e destroem as do cncer) que os "bons" pacientes, os dceis. Recentemente, uma equipe de pesquisadores de Londres noticiou uma taxa de sobrevivncia de dez anos entre 75 por cento dos pacientes de cncer que reagiam ao diagnstico com "esprito combativo", contra 22 por cento de sobrevivncia por igual perodo entre aqueles que reagiam com "estica aceitao" ou com sentimentos de desamparo e desespero.

Para saber se voc tem probabilidades de vir a ser um paciente especial, faa a si mesmo a seguinte pergunta: "Quero viver 100 por cento?". No PCE, verificamos que a capacidade para ser um paciente especial prevista com exatido quando a resposta um quero! imediato e visceral, sem condicionantes. Mas muitas pessoas dizem: "Bem, quero, desde que voc garanta que terei sade". Os especiais sabem que no existe uma garantia dessas. Aceitam de boa vontade todos os riscos e desafios. Desde que estejam vivos, sentem-se ao leme de seu destino, contentes por receber um pouco de felicidade para si mesmos e para dar aos outros. Tem aquilo que os psiclogos chamam de "localizao interior de controle". No temem o futuro nem os acontecimentos externos, sabendo que a felicidade um problema interno.

Quando peo que se responda pergunta erguendo o brao, o resultado invariavelmente o mesmo: de 15 a 20 por cento. Mas h muito menos respostas positivas - apenas 5 por cento - no caso de uma platia de mdicos. Os alunos de medicina no so assim to pessimistas. Adquirimos essa atitude. uma tragdia que to poucos mdicos tenham a autoconfiana necessria para motivar os outros a crer no futuro e a cuidar de si mesmos. Quem trabalha na rea de sade est to acostumado a ver apenas doenas e dificuldades que raramente adota uma viso positiva. Se visito um grupo de sade holstico ou uma rea rural, onde vivem indivduos seguros de si, quase todos os braos se levantam. Essa gente olha para o futuro com confiana, sabendo que h amor e respeito em todas as idades.

A meu ver, todos os mdicos deveriam trabalhar, como parte de sua formao profissional, com pessoas portadoras de doenas "incurveis". Eles seriam proibidos de receitar medicamentos ou intervenes cirrgicas; precisariam, isso sim, sair a campo e ajudar os doentes afagando-os, rezando com eles, participando, no nvel emocional, de suas dores. Tambm seria conveniente organizar reunies anuais de sobreviventes de molstias graves, para que os mdicos pudessem falar com os reabilitados, as pessoas para cuja sade eles contriburam.

ENSINO RECPROCO

As exigncias feitas pelos pacientes especiais e pelos comuns diferem entre si como diferiam os mtodos empregados pelos mdicos de escravos e de homens livres na antiga Grcia, conforme Plato os descreve no "Livro IV", das Leis:

J observaste que h duas classes de pacientes [...], os escravos e os homens livres? E os mdicos-escravos correm de um lado para outro e curam os escravos, quando no os atendem nos dispensrios. Estes clnicos nunca falam com os clientes pessoalmente nem permitem que eles exponham suas prprias queixas. O mdico-escravo receita o que a mera experincia indica, como se tivesse conhecimento exato e, depois que d suas ordens, como um tirano, sai correndo com a mesma petulncia para ver outro servo doente. [...] No entanto, o outro mdico, que um homem livre, atende e trata homens livres; faz uma anamnese recuada e entra a fundo na natureza da desordem; trava conversa com o paciente e com seus amigos e, ao mesmo tempo que obtm informaes dele, vai lhe dando instrues na medida do possvel. Mas no lhe receitar nada at que o tenha convencido. [...] Se um desses mdicos empricos, que praticam a medicina sem cincia, encontrasse o mdico distinto falando com seu cliente distinto e utilizando quase a linguagem da filosofia, comeando pelo incio da doena e discorrendo sobre toda a natureza do organismo, desataria numa sonora gargalhada. Diria aquilo que a maioria dos chamados mdicos sempre tem na ponta da lngua: "Meu nscio camarada, tu no ests tratando de curar o doente, mas sim de educ-lo; ora, ele no quer que o transforme em mdico, s quer ficar bem".

Na verdade, os pacientes especiais querem aprender e virar "mdicos" de seus prprios casos, exigindo sobretudo que nos tornemos seus professores.

medida que eu me transformava, passei a ouvir coisas que nunca me haviam dito. Por exemplo, como se comportam os mdicos no consultrio. Gritam e obrigam os clientes a esperar duas horas para serem atendidos, mas no lhes permitem cinco minutos de dilogo. Segundo me contou uma senhora, quando ela quis saber a razo do tratamento prescrito, seu antigo mdico exclamou-. "Nesta cozinha s cabe um cozinheiro!". Um colega ralhou comigo por eu ter dado livros a um seu paciente:

- Se voc quer que eu continue a lhe mandar doentes, tem de me consultar de antemo sobre tudo.

Repliquei que no sabia que a mente e o corpo do bibliotecrio canceroso lhe pertenciam.

Outro paciente contou que, ao entrar num consultrio, viu sobre a mesa um dstico que rezava: "Entrar em acordo significa fazer as coisas do meu jeito". Meu conselho a quem veja um letreiro assim virar as costas e ir embora.

A princpio, eu ficava furioso com certos colegas, sentimento intensificado pela raiva que os membros do grupo PCE abrigavam no ntimo, qual podiam agora dar livre expanso. Depois, ao verificar quanta dor muitos mdicos suportam em silncio, dominei esse estado de esprito. Alis, os problemas dos clnicos podem reverter em benefcio do paciente. O poeta alemo Reiner Maria Rilke escreveu, a respeito de seus esforos para incentivar um jovem poeta:

No acredite que aquele que procura confort-lo viva sem problemas entre as singelas e tranqilas palavras que s vezes lhe fazem bem. Sua vida tem muitas dificuldades e tristezas, que permanecem ocultas. Se fosse diferente, jamais conseguiria encontrar essas palavras.

Fiquei surpreso com os resultados depois que comecei a ensinar meus pacientes do primeiro grupo de especiais. Pessoas cujas condies se achavam estabilizadas ou vinham se deteriorando muito lentamente ganharam sade, de sbito, ante meus olhos. No comeo, inquietei-me com isso, pensando que estavam melhorando por razes ilegtimas. A melhora no se correlacionava com medicamentos, radiao ou qualquer outro tratamento de rotina. Sentia-me um charlato, um trapaceiro, e cheguei a sugerir a disperso do grupo.

Nessa altura, foi a vez de os pacientes me explicarem o que estava acontecendo.

- Estamos melhorando - comentou um deles - porque voc nos deu esperana e nos entregou o controle de nossas vidas. Voc no compreende porque mdico. Sente-se e faa o papel de doente.

Foi o que eu fiz, passando a t-los como meus professores. A partir da, adotamos por divisa uma frase do livro dos Simonton: "Em face da incerteza, no h nada de errado na esperana". Alguns colegas aconselharam os pacientes a ficar longe de mim, para no acalentarem "falsas esperanas". Respondi que, ao lidar com a doena, uma coisa dessas no existe na cabea do paciente. A esperana no estatstica, fisiolgica! Os conceitos de falsa esperana e de interesse distante precisam ser eliminados do vocabulrio da medicina, pois so destrutivos para o mdico e para o paciente.

Quando trabalho com estudantes de medicina ou com outros mdicos, peo uma definio de falsa esperana. Sempre se mostram reticentes e no conseguem apresent-la. Explico ento que, para a maioria dos colegas, "dar falsas esperanas" significa apenas contar ao paciente que ele no est obrigado a se comportar como uma estatstica. Se nove entre dez pessoas com determinada doena morrero presumivelmente dela, parte-se do princpio de que estamos alimentando "falsas esperanas" se no dissermos a todos os dez que provavelmente vo morrer. Eu, pelo contrrio, digo que cada pessoa pode ser a sobrevivente, pois todas as esperanas so verdadeiras no esprito do doente.

Shlomo Breznitz, psiclogo da Universidade Hebraica de Jerusalm, demonstrou recentemente que a expectativa positiva e a negativa tm efeitos contrrios nos nveis de dois hormnios importantes para a ativao do sistema imunolgico, no sangue. Breznitz acompanhou uma extenuante marcha forada de vrios grupos de soldados israelenses durante 40 quilmetros. A alguns, disse que marchariam 60 quilmetros, mas deu voz de alto aos 40 quilmetros; a outros, informou que marchariam 30 quilmetros, mas, chegando l, avisou que a marcha continuaria por mais 10 quilmetros. A alguns, foi permitido ver marcos quilomtricos; a outros, no se deu a menor noo de quanto haviam andado ou qual a distncia total a percorrer. O psiclogo verificou que os grupos dotados de mais informaes suportaram melhor a marcha, mas os nveis hormonais de tenso refletiam invariavelmente as estimativas dos soldados, e no a verdadeira distncia.

Mesmo que aquilo por que voc mais espera - a cura completa - no se concretize, a prpria esperana pode impulsion-lo realizao de muitas coisas, nesse intervalo. Recusar a esperana equivale deciso de morrer. Sei da existncia de pessoas que esto vivas porque lhes incuti esperana, porque lhes disse que no morreriam breve e forosamente.

Graas ao que aprendi com os doentes especiais, fui mudando radicalmente minha prtica da medicina. Cheguei enfim sincera concluso de que deveria prosseguir na carreira cirrgica, para manter contato direto e duradouro com os pacientes, ampliando contudo minha atuao de mero mecnico com algumas das funes do pregador, do professor e do curandeiro. Aceitei os pacientes como indivduos com alternativas e opes. Assim, constitumos uma equipe.

Um ano antes da criao dos grupos de PCE, raspei a cabea com mquina zero. Muitos associados pensaram que se tratava de uma mensagem de empatia com os doentes que perdem o cabelo devido quimioterapia, mas no havia qualquer relao. Compreendi mais tarde que era um smbolo da descoberta que estava procurando levar a termo, desnudando o que havia em mim de emoes, espiritualidade e amor. Com efeito, certa enfermeira lembrou-me que raspar a cabea a preparao normal de qualquer operao no crebro.

Houve muitas reaes reveladoras. As pessoas comearam a falar comigo de maneira diferente, como se eu sofresse de alguma incapacidade, partilhando de boa vontade sua dor. Alguns colegas censuraram-me por ser diferente - uma razo a mais para manter a nova aparncia.

Os motivos que me levaram a raspar a cabea ficaram mais claros durante um curso intensivo com Elisabeth Kbler-Ross. Uma de suas tcnicas consiste em levar os participantes a fazer desenhos que ilustrem aspectos de sua vida. Desenhei uma montanha nevada, traada com crayon branco em papel branco. Em baixo, via-se um pequeno lago com um peixe fora da gua. A moral era que alguma coisa estava sendo encoberta (branco sobre branco) e que o smbolo (o peixe) estava fora do lugar. Entendi que aquilo que eu pretendia descobrir era o amor e a espiritualidade em mim e no meu couro cabeludo. Nessa noite, tive um sonho maravilhoso, em que eu figurava com uma vasta cabeleira. Depois do curso intensivo, contei famlia que sabia por que tinha raspado a cabea e, por isso, j podia deixar que o cabelo crescesse de novo, mas minha filha Caroline foi contra:

- No! Assim mais fcil para encontr-lo no cinema.

Minha cabea continua calva, mas Caroline s vezes senta-se por acaso ao lado de outros carecas.

Dato nessa poca o incio de minha verdadeira carreira mdica, pois s ento descobri o pleno significado do trabalho. Seu objetivo reside em ensinar os pacientes a viver - no do alto de um pedestal, mas sim com o conhecimento de que ensinamos aquilo que desejamos aprender. Os mdicos tanto devem instruir os pacientes como aprender com eles. A dedicao ao ensino foi minha salvao, j que me considero o maior beneficirio dos PCE.

Nas palavras de Bobbie, virei um "ouvinte privilegiado", escutando toda a sorte de coisas que, para os pacientes, eram demasiadamente emocionais ou estranhas para se contar a outros mdicos. Contavam-me seus sonhos, premonies e autodiagnsticos, os tratamentos heterodoxos que gostaram de ver acrescentados, as chamadas coincidncias que davam sentido a casos aparentemente insignificantes, os sentimentos de amor, de medo e de raiva, os momentos em que desejavam morrer.

H poucos anos, uma senhora chamada Mary veio falar comigo depois de consultar um de meus cirurgies associados.

- O senhor aquele que faz visualizao e coisas assim?

Confirmei, e ela continuou:

- Muito bem. Quero lhe contar uma coisa. Algum anda sempre comigo. Usa uma bata branca, com faixa roxa, tem maus dentes e est sempre em meu quarto.

- Bem, qual o nome dele? - perguntei. - O que ele tem para dizer?

- No tenho coragem de falar com ele - confessou Mary. Ela tinha medo de revelar famlia e a seu prprio mdico o segredo daquele companheiro, com receio de que a julgassem louca. Mas, uma vez que, aos olhos dela, eu tambm era um tanto esquisito, sentiu confiana para me contar. Uma abertura dessas constitui enorme vantagem para os mdicos. Como poderemos ajudar pessoas que no conseguem revelar-nos tudo o que as perturba? Que alvio sentiu aquela senhora ao saber que seu companheiro de quarto bem poderia ser uma verso de meu prprio guia, George!

Uma das razes que levam outros mdicos a desconfiar de meus mtodos que no se tornaram ouvintes privilegiados. Chegam a examinar meu trabalho perguntando a um paciente o que ocorre na vida dele. Recebem como resposta um nada. Ento, perguntam como ele est se sentindo, ao que o paciente retruca:

- Estou timo.

E s conseguem ficar admirados.

J que tantos doentes me desvendaram seus pensamentos ntimos, estou em condies de dizer a outros que sei o que se passa de errado na vida deles. Consigo muitas vezes indicar exatamente quais os problemas emocionais do paciente, a partir dos sintomas e da localizao da doena. A eles derramam seus verdadeiros sentimentos. Depois de uma cirurgia de emergncia para lhe remover uma boa extenso de tecido intestinal morto, ouvi o seguinte de uma terapeuta da escola de Jung:

- Estou contente por ser voc o cirurgio. Venho lecionando psicanlise. No conseguia lidar com toda a merda que me aparecia nem digerir toda a porcaria de minha vida.

A outro mdico talvez no ocorresse a conexo com os sentimentos dela, mas no era coincidncia que os intestinos constitussem o ponto focal de sua doena. Outra mulher, aps uma mastectomia, disse-me que precisava tirar alguma coisa do peito.

Fiquei muitssimo animado com as primeiras experincias com os PCE. Eu estava aprendendo coisas inteiramente novas, que haveriam de revolucionar a prtica da medicina da noite para o dia. Escrevi alguns artigos sobre essas descobertas, mas as revistas mdicas no os aceitaram. Segundo os editores, o tema seria mais interessante para revistas de psicologia. Os psiclogos, no entanto, no necessitavam dessas informaes, pois j aceitavam o papel da mente nos estados patolgicos. Mais ou menos por essa poca, li um artigo de Wallace C. Ellerbroek, antigo cirurgio e, agora, psiquiatra. O tema original tinha sido o papel da mente no cncer, mas Ellerbroek passou sete anos sem conseguir public-lo. Deslocou o foco para a acne e o ensaio saiu numa revista de primeira ordem.

Em seguida, tentei apresentar minhas experincias em congressos mdicos. A reao foi ceticismo, narizes torcidos e at desprezo escancarado. Cada debate virou uma batalha de dados da memria, um jogo de "minhas estatsticas contra as suas". Quase ningum se dispunha a admitir que talvez houvesse alguma dose de verdade no que eu dizia e a fazer a experincia. Conseqentemente, embora haja, nos dias atuais, abundantes dados cientficos que falam a favor da psicoterapia no tratamento do cncer e de outras doenas, convenci-me de que as estatsticas raramente alteram a fundo as opinies adquiridas, pois possvel manipular os nmeros para que as tendncias paream lgicas. Em vez de insistir em estatsticas, preferi concentrar-me nas experincias individuais. Para mudar de opinio, cumpre muitas vezes falar ao corao... e escutar. As crenas pertencem ao domnio da f, e no da lgica.

Agora j comeo a receber apoio e as idias tambm comeam a mudar. O caso vem sendo estudado em Yale e em outras escolas superiores. A medida que vai se modificando a poltica da medicina, h mudanas no financiamento da pesquisa e novas questes recebem ateno.

2

A Participao na Cura

A medicina no apenas uma cincia, mas tambm a arte de deixar nossa individualidade interagir com a individualidade do paciente.

Albert Schweitzer

Um homem chamado Wright, cliente, em 1957, do dr. Bruno Klopfer, tinha um linfossarcoma bem avanado. Todos os tratamentos conhecidos haviam se demonstrado ineficazes. Tumores do tamanho de laranjas brotavam-lhe no pescoo, nas axilas, nas virilhas, no peito e no abdome. O bao e o fgado mostravam-se enormemente ampliados. O ducto linftico do trax estava tumefacto e entupido, sendo indispensvel drenar-lhe do peito 1 ou 2 litros de lquido turvo, todos os dias. Estava com respirao assistida e o nico remdio, ento, era um sedativo para ajud-lo a partir.

Apesar disso, Wright ainda alimentava esperanas. Ouvira falar de um medicamento novo, o Krebiozen, que seria examinado na clnica onde se encontrava. Seu caso no apresentava condies para entrar nesse programa, visto que as pessoas que conduziam a experincia planejavam submet-la a doentes com uma expectativa de vida de trs meses, no mnimo, e, de preferncia, seis meses. Wright tanto implorou, porm, que o dr. Klopfer resolveu aplicar-lhe uma injeo, numa sexta-feira, pensando que ele estaria morto na segunda, poupando o remdio para outros doentes. Foi uma surpresa para ele:

Tinha-o deixado febril, arquejante, com falta de ar, completamente desgastado. E, agora, l estava ele, andando em volta da enfermaria, batendo papo com as enfermeiras, transmitindo uma mensagem de nimo a quem quisesse ouvi-lo. Corri logo a ver os outros. [...] Nenhuma mudana, nem sequer para pior. Somente Wright dava mostras de extraordinria melhora. As massas tumorais tinham se dissolvido como bolas de neve ao fogo e, em questo de dias, estavam reduzidas metade do tamanho original. Tratava-se de uma regresso muito mais rpida do que a observvel com a aplicao diria de raios X em doses macias. Alis, j sabamos que seus tumores eram insensveis radiao [...].

O fenmeno exigia explicao e reclamava que abrssemos a mente para aprender, mais do que para tentar explicar. Por isso, foram aplicadas trs injees por semana, conforme o previsto, para grande alegria do paciente. [...] Passados dez dias, ele estava em condies de sair de seu "leito de morte". Nesse curto espao de tempo, desapareceram praticamente todos os sintomas da doena. Por incrvel que parea, o doente "terminal", que arquejava a ltima respirao por meio de uma mscara de oxignio, no s respirava normalmente como estava ativo, a ponto de embarcar em seu prprio avio e voar a mais de 3.500 metros de altura sem o menor desconforto.

Decorridos dois meses, comearam a surgir notcias contraditrias na imprensa, pois nenhuma clnica que estava fazendo exames acusava resultados. [...] Wright ficou muito perturbado com isso. [...] Ele pensava de maneira lgica e cientfica e comeou a perder a f em sua ltima esperana. [...] Aps dois meses de sade praticamente perfeita, regrediu ao estado inicial, ficando muito deprimido e infeliz.

No entanto, Klopfer viu a uma oportunidade de indagar o que de fato se passava - ou, como ele dizia, de descobrir como que os curandeiros obtm certas curas perfeitamente documentadas. (Lembre-se de que toda cura cientfica.) Falando com Wright, disse-lhe que o Krebiozen estava realmente altura das expectativas, mas que as primeiras remessas tinham entrado em rpido processo de deteriorao na embalagem. E falou a respeito de um novo produto, super-refinado, de capacidade dupla, que deveria chegar no dia seguinte.

A notcia constituiu uma grande revelao para ele. Mesmo doente como estava, Wright voltou a se mostrar o otimista de sempre, ansioso por recomear. A remessa demorou alguns dias, e a antecipao da salvao causou-lhe uma tremenda ansiedade. Avisado de que logo teria incio a nova srie de injees, ele ficou em xtase, com uma f imensa.

Com muita encenao, representando bem [...], apliquei a primeira injeo do novo preparado, de potncia dupla - na verdade, gua pura. Os resultados da experincia foram inacreditveis para ns, naquela poca, embora devssemos ter antecipado um pouco as possveis e remotas conseqncias, j que fizemos a tentativa.

A recuperao do segundo estado quase terminal foi ainda mais espetacular que a do primeiro. As massas tumorais dissolveram-se, o fluido torcico desapareceu e o doente passou a andar a p e at voltou a voar. Era, nesse momento, a imagem da sade. As injees de gua prosseguiam, j que realizavam maravilhas. Wright, pelo espao de dois meses, no apresentou nenhum sintoma da doena. Foi ento que a imprensa divulgou o pronunciamento da Associao Mdica Americana: "Testes em escala nacional demonstram que o Krebiozen intil no tratamento do cncer".

Dias aps este noticirio, Wright foi de novo internado no hospital, in extremis: perdera a f, sua ltima esperana se desvanecera - e ele sucumbiu em menos de dois dias.

Uma das melhores maneiras de fazer com que alguma coisa acontea est em prediz-la. Ridicularizado durante uns vinte anos pela instituio mdica, o efeito placebo - pelo qual entre um quarto e um tero dos pacientes apresentam melhoras por acreditarem que esto tomando um medicamento eficaz, ainda que o comprimido no contenha nenhuma substncia ativa - hoje plenamente reconhecido.

O dr. Howard Brody, do Estado de Michigan, afirma que se verifica uma reao positiva ao placebo na presena de trs fatores: o significado da doena se altera de maneira positiva para o paciente; ele apoiado por um grupo de proteo; e aumenta nele o sentido do domnio e do controle sobre a doena. Quase toda a "medicina primitiva" lana mo do fator placebo, via rituais que estimulam a confiana na fora curativa, seja ela represent-la por um deus externo ou por uma energia interna. A f na cura se assenta na crena do doente num poder superior e na capacidade do curandeiro para servir de intermedirio. Por vezes, basta como condutor de transmisso um mero artefato ou a relquia de um santo. Para um catlico, uma garrafa com a etiqueta de gua benta de Lourdes tem propriedades curativas, ainda que ela s contenha gua da torneira. Assim, os adeptos da Cincia Crist conseguem, s vezes, sarar de uma doena, pois so doutrinados para procurar a paz de esprito e confiar numa fora superior. Por isso to importante que o mdico tenha boa reputao de "mecnico" e capacidade de transmitir confiana. A esperana e o crdito induzem a um "relaxamento" que neutraliza a tenso e, muitas vezes, oferece a chave do restabelecimento.

Infelizmente, a paz, em regra, s vem quando a morte est prxima. ento que o doente pode afrouxar. J vi muitos s portas da morte e ainda preocupados com a conta de luz e com a hora em que os filhos voltam para casa. Se lhes sugiro esquecer isso tudo e viver um dia agradvel ("Pode ser seu ltimo dia sobre a terra"), na manh seguinte esto melhor e comendo um lauto caf da manh. Pergunto o que houve e me respondem: "Segui seu conselho".

A CONFIANA D ESPERANA

A "medicina primitiva", na realidade, muito mais elaborada que a nossa, quanto ao uso da mente - talvez porque disponha de menos substncias que sejam eficazes sem a contribuio do efeito placebo. Robert Mller, secretrio-geral adjunto da Organizao das Naes Unidas e autor de Most of All They Taught Me Happiness (Acima de Tudo, Eles Me Ensinaram Felicidade), escreveu a respeito de um delegado africano a quem um mdico de Nova York disse que estava com cncer e no teria mais de um ano de vida. O delegado disse a Mller e a outros amigos que ia voltar ptria para morrer, mas que pediria famlia que os avisasse do funeral, a fim de que eles estivessem presentes. Dezoito meses se passaram. Sem notcias, Mller, supondo que o amigo estivesse morto, telefonou para seu lugarejo natal, em busca de informaes. Teve a agradvel surpresa de escutar a voz do prprio delegado - que, alis, soava bem saudvel.

Ele contou que, to logo chegara, recebera a visita do curandeiro local. Ao v-lo, o homem comentou que o achava muito deprimido. Sabendo do motivo, convidou-o a visitar sua choa, no dia seguinte.

O tratamento do curandeiro comeou com um simples gesto simblico. Tirou uma tigela de lquido de um enorme caldeiro e disse:

- Esta tigela representa a parte do crebro que voc est utilizando. O caldeiro o resto. Vou ensin-lo a utilizar o resto.

O delegado africano est vivo e bem de sade.

No estou querendo dizer que se abandone a medicina tecnolgica do Ocidente e se volte escola rudimentar, mas sugiro que sejamos receptivos capacidade de cura que existe dentro de ns. Os psiclogos no se cansam de nos lembrar que, na prtica, s empregamos 10 por cento de nossa capacidade mental. Tratemos ento, conforme a lio do curandeiro, de utilizar os outros 90 por cento. A cincia ensina que precisamos ver para crer, mas tambm temos de crer para ver. Devemos ser receptivos s possibilidades que a cincia ainda no abarcou. Caso contrrio, elas estaro perdidas. absurdo no empregar tratamentos eficazes, s porque no os compreendemos.

A abertura de esprito tem de ser a caracterstica de todos os mdicos interessados em ajudar os pacientes. O dr. William S. Sadler, adepto da medicina de base farmacolgica, examinou por vrios anos as "curas mentais", como se dizia na virada do sculo. Eis aqui o que ele dizia na introduo a uma srie de artigos publicados pelo Ladies' Home Joumal de agosto de 1911:

Eu costumava fazer prelees populares para demonstrar a loucura dessas "curas", mas observei que nunca fiz uma converso entre os adeptos do psiquismo. Enquanto isso, alguns sistemas psicolgicos conseguiam curar pacientes que eu no tinha curado e jamais curaria.

Sadler abriu o esprito, pesquisou a fundo a matria e convenceu-se de que o poder da sugesto, embora no fosse uma panacia, constitua valioso aliado da farmcia, da cirurgia e da higiene.

O efeito placebo depende da confiana do paciente no mdico. Estou convencido de que essa relao, a longo prazo, mais importante que qualquer remdio ou tratamento. O psiquiatra Jerome Frank, da Universidade Johns Hopkins, encontrou provas para essa tese ao estudar 98 pacientes operados de descolamento da retina. Depois de avaliar a independncia, o otimismo e a f de cada doente em seu respectivo mdico, verificou que os mais confiantes se curavam mais depressa que os outros.

Para despertar uma relao de confiana, tanto o mdico como o doente devem ter conhecimento de suas crenas recprocas. A f do mdico em determinado tratamento pode ser negada pela muda rejeio do paciente. Eu estudo os desenhos e os sonhos de meus doentes para conhecer seus sentimentos inconscientes acerca da teraputica. Caso contrrio, pode ser que eu adote um esquema a meu ver excelente e venha a encontrar uma srie de efeitos colaterais que me obriguem a interromp-lo: O paciente talvez no desejasse esse tratamento desde o incio, mas no teve coragem para me revelar seu pensamento, ou ento o rejeitasse a nvel do inconsciente. No entanto, se eu vir um desenho onde o paciente mostre encarar o tratamento como algo venenoso ou prejudicial, podemos comear a partir da, procurando mudar sua atitude ou optando por outra teraputica. O desenho positivo tambm contribuiu para atenuar receios e abrir caminho para o tratamento.

H uma interao entre os sistemas de crenas de mdicos e de pacientes, mas o organismo destes reage diretamente a suas crenas e no s do mdico. Os profissionais da medicina tendem a ser mais lgicos, estatsticos e rgidos, alm de menos inclinados esperana, do que os doentes. Mas eles deveriam compreender que a falta de f na possibilidade de cura um grave fator limitante para o doente. Nunca devemos dizer que esgotamos todos os recursos, pois sempre resta alguma coisa para pr em prtica, mesmo que seja apenas sentar e bater papo, ajudando o doente a ter f no poder da esperana e da orao.

A atitude normal dos mdicos est perfeitamente sintetizada no caso de Stephanie, que fazia parte de um de nossos grupos de PCE. Diagnosticado o cncer, o mdico delineou o curto resto de sua vida de acordo com as estatsticas. Ela perguntou o que lhe cabia fazer.

- Tudo o que lhe resta esperar e rezar - respondeu o mdico.

- Como hei de esperar e rezar?

- No sei. No sou desse ramo.

A experincia dos PCE ensinou Stephanie a esperar e a rezar, alterando o curso da doena, que excedeu as expectativas. Agora, seu mdico est tomando nota do caso invulgar. Depois, Stephanie escreveria que ele "estava na realidade receitando o nico remdio capaz de me curar, sem que soubesse".

O efeito contrario pode ser mortal. Uma senhora na casa dos 80 anos, chamada Frances, veio me consultar depois de ter perdido a f em seu mdico, que tinha uma atitude negativa. Desanimada com muitas e repetidas doenas, foi atrs dele para ter alguma certeza.

- Bem, em todo o caso, quanto tempo a senhora quer viver? - perguntou ele.

Frances teve o bom senso de compreender o que estava implcito na questo e foi embora.

Entretanto, lembro-me tambm de um homem que no teve tanta sorte. Ellen, integrante de um grupo de PCE, ligou para o marido, Ray, hospitalizado com cncer, para saber como ele se sentia.

- timo - garantiu ele.

Quinze minutos depois, Ray estava morto. Em todo o processo, ele fora internado vrias vezes e, depois do telefonema da mulher, perguntou ao mdico em que data teria alta. Rplica deste:

- Ah, acho que desta vez voc no sai...

Normalmente, o prognstico dos mdicos quanto sobrevida dos pacientes constitui um erro terrvel, porque se trata de uma profecia de auto-realizao. obrigatrio resistir tentao de faz-la, mesmo que os doentes fiquem insistindo em quanto tempo lhes resta de vida, preferindo que outrem defina os limites de sua existncia. H quem goste tanto de seu mdico a ponto de morrer na data prevista, como se fosse para provar que ele tinha razo.

Os mdicos no devem permitir que as estatsticas determinem suas crenas. Elas so importantes quando se escolhe a melhor teraputica para determinada doena, mas, uma vez feita a escolha, deixam de se aplicar ao individuo. Todos os doentes tm o direito convico de que podem ficar bons, sejam quais forem os percalos.

Os pacientes especiais tm o dom de anular as estatsticas, garantindo que vo sobreviver, mesmo se o mdico for incompetente para isso. Basta pensar na coragem necessria para superar certa espcie de cncer que ningum conseguira vencer anteriormente. A esperana incutiu essa coragem em William Calderon, paciente do primeiro caso de recuperao documentada de Aids. O dr. Jean Shinoda Bolen publicou um estudo detalhado do caso na edio de maro/abril da revista New Realities. O diagnstico de Calderon foi realizado em dezembro de 1982, quando os mdicos lhe deram seis meses de vida. Quase de imediato, o sarcoma de Karposi (o tipo de cncer que em geral acompanha a Aids) instalou-se e disseminou-se rapidamente por toda a pele e pelo trato gastrointestinal.

Pouco depois, chegava ao salo de cabeleireiro de Calderon, na hora previamente marcada, Judith Skutch, fundadora, juntamente com o astronauta Edgar Mitchell, do Instituto de Cincias Noticas e atual presidente da Fundao para a Paz Interior. Reparando que ele tinha chorado, quis saber o motivo. Calderon falou-lhe de seu desespero e sua depresso. As palavras que Judith proferiu a seguir representaram a chave da salvao de sua vida:

- William, voc no obrigado a morrer. Voc pode ficar bom.

Em seguida, descreveu o trabalho dos Simonton com pacientes de cncer.

Graas ao carinho e ao apoio de seu amante e de Judith, Calderon acabou acreditando na possibilidade de sobreviver. Continuou a trabalhar naquilo que mais apreciava, sem se entregar doena. Passou, ao contrrio, a meditar e a empregar imagens mentais para combat-la. Fez fora para reatar as relaes com a famlia, at ento estremecidas, ao mesmo tempo que readquiria a paz de esprito perdoando as pessoas que o tinham ofendido. Alimentou o organismo com amor, exerccios, boa nutrio, suplementos vitamnicos. E, a partir da, seu sistema imunolgico passou a reagir. Os tumores regrediram. Dois anos aps o diagnstico, Calderon no apresentava nenhum sintoma de Aids.

comum ver o paciente especial furioso com as previses fatais do mdico. Linda, uma enfermeira minha amiga, no quis fazer quimioterapia e ouviu do mdico a seguinte "praga":

- Vai se arrepender. Daqui a uns seis meses, voltar correndo.

Mas ela nunca deixou de pensar: Que filho da me! No vou morrer, s para provar que ele estava errado.

E sobreviveu por mais de cinco anos sem o tratamento receitado por ele, para depois resolver segui-lo na inteno de viver mais tempo.

Tenho cpia de uma carta de certa jovem, chamada Louise, a um "doutor roqueiro", mdico que mantinha um programa de rdio em que misturava msica e conselhos teraputicos. Louise travara estreita amizade com ele, quando hospitalizada. Com menos de 20 anos, ela desenvolvera cncer nos ovrios, com metstases nos pulmes e no abdome. O oncologista "deu-lhe" de seis a doze meses de vida, com quimioterapia. Louise respondeu que s Deus sabia quando o dia chegaria e decidiu tomar a vida nas prprias mos. Deixou a casa dos pais devido tenso nela existente, alugou um apartamento e gastou seus ltimos 10 dlares na publicao de um anncio dirigido a outros cancerosos que precisassem de ajuda. A certa altura, o oncologista recusou-lhe qualquer medida teraputica, j que o caso estava "muito adiantado". Mas, seis meses depois de ela ter resolvido seguir seu prprio caminho, todos os tumores haviam sumido. O mdico nem sequer teve foras para lhe dizer isso, preferindo escrever num papel de receita, com lgrimas nos olhos:

"Seu cncer desapareceu". No dia em que supostamente deveria estar morta, Louise remeteu-lhe um bilhete brincalho, perguntando: "Para onde mando o caixo?".

O "doutor roqueiro" escreveu-me contando que, se no me tivesse ouvido falar em doentes especiais, talvez no tivesse estabelecido uma conexo entre a "miraculosa" recuperao de Louise e seu desenvolvimento espiritual. Agora, tudo fazia sentido, e ambos passaram a freqentar as reunies de PCE para compartilhar a experincia.

Louise preferiu o amor e a doao de si mesma, seguindo as opes espirituais e psquicas de quem passa pela cura auto-induzida. preciso ter uma fora extraordinria para agir assim, quando a voz da autoridade nos diz que vamos morrer. O problema que os pacientes especiais so minoria. Se, entre dez pacientes, oito morrero, fcil ignorar os dois que potencialmente sobrevivero.

Cuido de divulgar esses casos para aumentar o nmero de mdicos que procuram as pessoas especiais entre seus doentes. Vero, assim, que a cura no obra de coincidncia. Quando definida desse modo, como na frase "remisso espontnea", a cura nada ensina aos mdicos e no estimula nenhuma pesquisa sobre sua origem. A cura um ato criador, que exige todo o esforo e toda a dedicao que as outras formas de criatividade reclamam.

Recebo muitas cartas de colegas sobre pacientes a quem fao referncia. Quando um mdico relata melhorias extraordinrias num doente, quase nunca faz aluso s crenas e ao estilo de vida da pessoa - mas, se fao a indagao, verifico que o paciente sempre operou drstica mudana para um ponto de vista mais afetuoso e aceitvel. S que ele raras vezes conta isso a um mdico que no seja receptivo.

to comum a cura inesperada que os mdicos devem alimentar esperanas em todos os casos, mesmo nas horas aparentemente finais. Quem est doente no espera os resultados de uma pesquisa mdica, mas sim um relacionamento voltado para o xito. Fica esperando que algum lhe diga: "Fique firme, tudo vai dar certo. Ns vamos ajud-lo, desde que tenha vontade de viver".

No nos cabe avaliar quanto vale a continuao da vida para outra pessoa, mas, uma vez que meus pacientes estejam vivendo de forma digna para eles, estou pronto a ajud-los a prosseguir.

Porm, se algum decide que tempo de morrer, no vejo a menor contradio em ajud-lo tambm nessa resoluo. Posso contribuir para a soluo de conflitos que despendem energia, sabendo que depois ter incio a cura. Muito embora dizer s pessoas que elas vo morrer em tal dia seja destrutivo e no faa sentido na prtica mdica, a aceitao da morte no desvanece obrigatoriamente a esperana. A preparao para a morte pode ter a capacidade de promover a causa da vida.

Uma doente de cncer estava com aspecto horrvel, numa sexta-feira. Falando comigo, disse que queria morrer.

- Conte a seus filhos e a seus pais como se sente - sugeri. - A partir da, tudo bem. Eles no tm noo do estado em que voc se acha.

Ao voltar ao hospital, na segunda-feira, ela estava com timo aspecto: de peruca, tailleur, maquilagem. Perguntei o que acontecera.

- Contei a meus pais e a meus filhos como estava me sentindo e, a, fiquei to bem que no quis morrer.

Recebeu alta.

Embora o otimismo seja indispensvel, no se deve esconder nenhuma parte do diagnstico. Sempre possvel revelar a verdade junto com a esperana, j que ningum domina o futuro. Agora, aceito a doena e, para mim, a tarefa primordial consiste em ajudar os pacientes a alcanar a paz de esprito - o que relativiza os problemas fsicos. Ficar bom no o nico objetivo. Muito mais importante aprender a viver sem medo, estar em paz com a vida e, em ltima anlise, com a morte. Nesta hiptese, a cura pode ocorrer e j no somos candidatos ao fracasso (por acreditar que somos capazes de curar todos os problemas fsicos e de no deixar ningum morrer).

H coisa de vinte anos, era comum a "impostura por bondade", mas hoje as atitudes mudaram por completo. Pesquisa realizada em 1979 pelo dr. Dennis Novack e seus colaboradores, publicada pelo Joumal of the Arnerican Medical Association, concluiu que 97 por cento dos mdicos preferiam revelar aos pacientes o diagnstico, em comparao com 90 por cento que afirmavam que no o revelariam, em sondagem feita vinte anos antes.

Os clnicos descobriram que os doentes acabam normalmente sabendo da verdade. Inconsciente e mesmo conscientemente, tm cincia do que se passa em seu organismo. Bili, um colega que eu atendia, certa noite sentiu dificuldade para engolir. Confessou saber que estava com cncer,