Adieu a La Dictature Militaire - Joao Roberto Martins Filho

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1 Adieu à la dictature militaire? João Roberto Martins Filho Universidade Fede ral de São Carlos  No dia 19 de janeiro de 1970, o adido de defesa da Embaixada Britânica no Rio de Janeiro, um certo coronel Winstaley, encaminhou rotineiramente ao Foreign Office em Londres, seu relatório sobre a situação militar do Brasil em 1969. Para ele, o caráter do regime implantado em 1964 era evidente: “As if to emphasis e the political dominance of the Armed Forces in Brazil, which has hardly been necessary since 1968 when Congress was suspended, the demise of Marshall Costa e Silva was followed first by a Military Triumvirate at the head of affairs and then by the selection of General Medici as the new President, with Admiral Rademaker as his Vice- President”.  Numa nação onde a democracia parecia fadada à demagogia esquerdis ta e à instabilidade econômica, dizia o oficial, as Forças Armadas brasileiras constituíam-se nas fiadoras de um regime de estabilidade política e crescimento econômico. Os militares detinham seis ministérios e ocupavam a chefia de todas as empresas estatais. Depois de prestar lip service à democracia como regime idealmente preferível ao sistema que imperava no Brasil, ele concluía: “For better, for worse these men are running the country”. 1  Um regime civil-militar? A certeza do observador estrangeiro foi compartilhada por parte considerável dos pesquisadores brasileiros e estrangeiros, durante algumas décadas. Nos últimos anos, porém, uma nova corrente da literatura adotou para caracterizar o período pós- 1964 denominação diferente, passando a falar de um “regime civil-militar” ou uma “ditadura civil- militar” . Embora o termo anterior ainda prepondere amplamente, é inegável o sucesso do novo aporte, evidenciado principalmente pelo número crescente 1  “Report on Brazil´s Armed Forces”, Winstaley to Foreign and Colonial Office, Rio de Janeiro, 19th January 1970, p.1. National Archives, Kew, FCO 7-1512.

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Adieu à la dictature militaire?

João Roberto Martins Filho

Universidade Federal de São Carlos

 No dia 19 de janeiro de 1970, o adido de defesa da Embaixada Britânica no Rio

de Janeiro, um certo coronel Winstaley, encaminhou rotineiramente ao Foreign Office

em Londres, seu relatório sobre a situação militar do Brasil em 1969. Para ele, o caráter

do regime implantado em 1964 era evidente:

“As if to emphasise the political dominance of the Armed Forces in Brazil,

which has hardly been necessary since 1968 when Congress was suspended, the

demise of Marshall Costa e Silva was followed first by a Military Triumvirate at

the head of affairs and then by the selection of General Medici as the new

President, with Admiral Rademaker as his Vice-President”. 

 Numa nação onde a democracia parecia fadada à demagogia esquerdista e à

instabilidade econômica, dizia o oficial, as Forças Armadas brasileiras constituíam-se

nas fiadoras de um regime de estabilidade política e crescimento econômico. Os

militares detinham seis ministérios e ocupavam a chefia de todas as empresas estatais.

Depois de prestar lip service à democracia como regime idealmente preferível ao

sistema que imperava no Brasil, ele concluía: “For better, for worse these men are

running the country”.1 

Um regime civil-militar?

A certeza do observador estrangeiro foi compartilhada por parte considerável

dos pesquisadores brasileiros e estrangeiros, durante algumas décadas. Nos últimos

anos, porém, uma nova corrente da literatura adotou para caracterizar o período pós-

1964 denominação diferente, passando a falar de um “regime civil-militar” ou  uma

“ditadura civil-militar”. Embora o termo anterior ainda prepondere amplamente, é

inegável o sucesso do novo aporte, evidenciado principalmente pelo número crescente

1  “Report on Brazil´s Armed Forces”, Winstaley to Foreign and Colonial Office, Rio de Janeiro, 19thJanuary 1970, p.1. National Archives, Kew, FCO 7-1512.

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de trabalhos acadêmicos que usam o novo nome.2  Daniel Aarão Reis  –   um dos

 principais defensores da mudança - assim explicou suas motivações:

“Tornou-se lugar-comum denominar o regime político que existiu de 1964 a

1979 de ‘ditadura militar’. Trata-se de um exercício de memória, em contradiçãocom numerosas evidências, e que só se mantém graças a poderosos e diferentes

interesses, e também a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é

que esta memória em nada contribui para a compreensão da história recente do

 país e da ditadura em particular. É inútil esconder a participação de amplos

segmentos da população no movimento que levou à instauração da ditadura em

1964. É como tapar o sol com a peneira” (Reis Filho 2012a, 31)3.

Seu argumento central é poderoso: a caracterização do regime político pós-64

como “ditadura militar” ignora o apoio civil ao golpe e aos sucessivos governos

militares. No mesmo artigo, o autor define o que seriam os “poderosos  e diferentes

interesses” favoráveis a deixar as coisas como estão:

“São interessadas na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram

a ditadura. Se ela foi ‘apenas’ militar, todas elas, automática e sub-repticiamente,

 passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem do radar oscivis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina

repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos

expressivos segmentos sociais que em algum momento apoiaram  –   direta ou

indiretamente –  a ditadura”.4 

A estes se acrescentariam outros setores, compreendidos nas áreas sociais que

Aarão Reis avalia serem merecedoras de estudos mais atentos: “As empresas estatais, os

ministérios, as comissões e os conselhos de assessoramento, os cursos de pós-

graduação, as universidades, as academias científicas e literárias, os meios de

2  Até o ano 2000, 18 textos, encontrados em fevereiro de 2013 no Google Acadêmico, utilizam os termos“regime civil-militar” e “ditadura civil-militar”. No período 2001-2008, essas expressões surgem em 291textos. De 2009 a 2012, o número de trabalhos que usam os mesmos termos sobe bastante, para 1059.Depois de 2001, a última expressão aparece numa razão de 4 para 1 em relação à primeira. Enquanto isso,o termo tradicional aparece em 2420 textos até o ano 2000, 14300 de 2001 a 2008 e 15100 de 2009 até2012.3 O artigo reproduz texto anterior publicado na imprensa , com pequenas modificações e um acréscimorelevante ao qual voltaremos a seguir (Reis Filho, 2012b).4

  Na segunda versão do texto, há uma qualificação adicional: “E mesmo muitas forças de esquerda, porque de suas concepções míticas fazia e ainda faz parte a ideia não demonstrada, mas assumida comoverdade inquestionável, de que a maioria das pessoas sempre fora –  e foi –  contra a ditadura”. 

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comunicação, a diplomacia, os tribunais”. Talvez ele devesse mencionar também a

Igreja Católica, com sua capacidade insuperável de construir uma narrativa histórica

capaz de ocultar seu apoio inicial ao regime (Beozzo 1984). Mas de todo modo o elenco

de setores a serem investigados é significativo.

Menos claro fica para o leitor a que setores caberia a carapuça de “preguiça

intelectual”, mas é justo pensar que seriam os próprios intelectuais, aos qua is, em sua

condição de produtores de idéias, se ajustaria também a acusação de “tapar o sol com a

 peneira”. Finalmente, Daniel Aarão aumenta a área da polêmica ao propor que a

ditadura, militar ou civil-militar, durou apenas até 1979 e não até 1985, datação clássica

e tradicional. Vale ouvir, mais uma vez, suas razões:

“Nada tem impedido a incongruência de estender a ditadura até 1985. O adjetivo

“militar” o requer. Ora, desde o início de 1979, “o estado de exceção”, que

existe enquanto os governantes podem editar, revogar ou ignorar as leis pelo

exercício livre  –  e arbitrário  –  de sua vontade, estava encerrado. Não existiam

mais presos políticos. O Poder Judiciário recuperara a autonomia. Havia

 pluralismo político-partidário e sindical. Liberdade de expressão e de imprensa.

Grandes movimentos sociais e políticos livres de repressão, como, para citar o

mais emblemático, a Campanha das Diretas-Já, que mobilizou milhões de

 pessoas entre 1983 e 1984. Como sustentar que tudo isso podia ocorrer no

contexto de uma ditadura?” 

 Neste artigo, pedindo de antemão um crédito de confiança que me exclua

 provisoriamente dos erros interessados expostos acima, procurarei remar contra a

corrente da nova caracterização. Isso não quer dizer, contudo, que não se reconheça a

 pertinência da ideia do apoio civil ao regime do pós-64. Com efeito, onde quer que seolhe  –  para empresários e sindicalistas, bispos e padres, professores e intelectuais não

acadêmicos, trabalhadores, donos de jornais e jornalistas, médicos, advogados, policiais

e burocratas de alto e baixo escalão  –   é possível encontrar exemplos de apoio ou

simpatia, colaboração direta ou indireta, silêncio cúmplice ou omissão interessada, em

algum momento ou de forma mais permanente, com os generais no poder. A pesquisa

dessas formas de apoio é necessária e fundamental e foi assim reconhecida há muito

tempo, bastando lembrar a obra monumental de René Armand Dreifuss sobre a frente

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civil-militar responsável pelo golpe (Dreifuss 1981). Na apresentação de uma agenda de

 pesquisa, a nova historiografia marca, sem dúvida, um tento.

Mas há outro traço fundamental na nova onda: ela não se resume à fria análise

acadêmica ou à proposição de novas fronteiras para os estudos sobre aquele período.Para Daniel Aarão, no texto até aqui citado, no exercício da memória seletiva, “absolve-

se a sociedade de qualquer tipo de participação neste triste  –  e sinistro  –  processo”. A

mesma ideia aparece em outros autores. Denise Rollemberg fala em “uma memória

estruturada no mito da resistência. Golpe militar , ditadura militar , sínteses que

absolvem a sociedade de qualquer responsabilidade” (Rollemberg 2010, 2).  Sempre

atenta a novidades, a imprensa captou cedo o ímpeto polêmico das novas ideias. É o

caso de matéria publicada por ocasião dos 40 anos do Ato Institucional 5, editado emdezembro de 1968 e considerado o marco da nova fase de endurecimento do regime de

1964. Aí, o jornalista Chico Otavio de O Globo (um dos grandes órgãos de apoio ao

regime, do início ao fim) assinou uma série de reportagens propagando que algo de

novo existia no meio acadêmico:

“Na semana em que o país lembra os 40 anos do gesto mais extremo da ditadura,

um grupo de historiadores desafia os próprios colegas, ao trazer para o debate o

 papel desempenhado pela sociedade civil no processo. Eles afirmam que o ato

não foi apenas produto dos quartéis” (Octavio, 2008).

O texto destacava declarações de Daniel Aarão Reis, Denise Rollemberg,

Janaína Cordeiro e Lucia Grinberg. Para o jornalista, graças ao trabalho destas últimas,

“a parte esquecida ou omitida desta história, a da participação civil, começa agora a ser

detalhada”.

Talvez haja aí um pequeno exagero. Do ponto de vista historiográfico, aafirmação parece inexata. Para ficar em poucos exemplos, a obra já citada de Dreifuss

dedicara 495 páginas de texto e 300 páginas de apêndices exatamente a este tema.

Heloisa Starling tinha defendido em trabalho acadêmico em 1985  –   e publicado em

forma de livro um ano depois –  um estudo de 375 páginas sobre a participação das elites

mineiras no golpe de 1964 (Starling, 1985). Em 2001, a organização independente

Observatório de Imprensa  reconhecia o caráter polêmico da tese de Doutorado

defendida na Unicamp por Beatriz Kushnir, sobre a colaboração de jornalistas com oregime militar (para usar os termos do autor da nota), depois publicada em livro

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(Kushnir, 2004)5. As próprias expressões “ditadura civil-militar” e “r egime civil-

militar” tinham sido usadas, sem caráter polêmico, pela primeira vez, por Marcelo

Ridenti, pelo menos quinze anos antes, em seu livro hoje clássico O fantasma da

 Revolução Brasileira  (Ridenti, 1993). O autor voltou a usar a expressão em artigo

(Ridenti, 1998) e no livro Em busca do povo brasileiro (Ridenti, 2000).

Por fim, vale lembrar que a nova faca historiográfica corta dos dois lados. Sob

ataque constante da opinião pública, os chefes militares mais ligados ao passado se

defendem alegando que a intervenção das Forças Armadas na política foi legítima

expressão dos anseios da população brasileira. Embora não se possa negar que estão

 parcialmente certos, pois houve apoio civil ao golpe, é preciso cuidado com esse andor,

 pois esse santo pode, afinal, ser de barro. Como lembrou recentemente uma jovem pesquisadora, sempre interessou ao regime e a seus atuais defensores nos clubes

militares dividir a responsabilidade dos atos ditatoriais com os civis:

“Durante 21 anos, os detentores do poder negaram a natureza militar do regime,

alegando o apoio popular à ‘revolução’, a manutenção do Legislativo e da

Justiça civil, bem como a presença de numerosos tecnocratas nos arcanos do

governo. Essa mistificação, segundo a qual a política é e sempre foi, no Brasil,

assunto de civis, terminou por constituir a base da memória militar - todas as

facções e orientações políticas misturadas –  sobre o regime” (Chirio 2012, 73).

Mas voltemos a nosso ponto central: o próprio sucesso da nova historiografia

nos obriga a considera-la criticamente, mais não fosse para escapar à acusação de

 preguiça intelectual. O propósito deste artigo é recuperar um pouco do antigo debate

sobre o caráter do regime, apresentando à nova historiografia quatro problemas que secolocam ao uso do termo ditadura ou regime “civil-militar”. O primeiro se refere à

heterogeneidade do mundo civil, em contraposição à maior homogeneidade do mundo

militar. O segundo compreenderia a questão da ideologia do regime, e da contribuição

que civis e militares deram à sua construção e emprego. Em seguida, viria o tema

5 "Há um petardo pronto para virar livro. Trata-se de Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 àConstituição de 1988. A tese de doutorado da historiadora carioca Beatriz Kushnir, 35 anos, aprovada

com louvor em outubro no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual deCampinas (Unicamp), lança suspeitas sobre um dos mitos cultuados pela imprensa brasileira: o de que jornais e jornalistas foram quixotes na luta contra o regime militar” (Vasconcellos, 2001).

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crucial das estruturas de poder. Por fim, cumpre examinar a própria dinâmica das crises

 políticas no período 1964-1985. Nossa hipótese principal é que, caso o exame desses

temas mostre um lugar desigual dos militares em relação aos civis, ou diferenciações

fundamentais no próprio meio civil, eles se constituem em problemas a serem

enfrentados pela nova escola.6 

A questão da homogeneidade: que “civis”?

O problema da homogeneidade tem vários aspectos. Um primeiro ponto a ser

enfrentado pelos defensores da nova denominação é a da dissolução do caráter de classe

do regime pós-64 que pode resultar no uso da categoria “civil”, empregada

genericamente. Voltemos ao trabalho pioneiro de Dreifuss, cujo subtítulo era  Ação

 política, poder e golpe de classe. Seu alvo polêmico era mostrar como as elites

empresariais atuaram organicamente aliadas aos militares golpistas no movimento que

 pôs fim ao regime do pos-1945. Mas seu uso do conceito de elites está intimamente

vinculado à ideia de classes sociais. Em sua análise da “elite orgânica” do regime,

 principalmente nos capítulos VI a VIII, Dreifuss analisa a ação ideológica e política da

burguesia  depois do golpe frustrado de 1961, em termos de ação de classe  da elite

orgânica.

Outro autor que pode ser considerado precursor da idéia do regime civil-militar é

Fernando Henrique Cardoso. São conhecidas suas teses sobre o papel gêmeo dos

militares e da burocracia no “modelo político brasileiro” do pós-64, que ele descreve

como uma autocracia militar-burocrática economicamente desenvolvimentista. No

entanto, Cardoso caracteriza o golpe de 1964 como uma revolução econômica burguesa,

ou como a revolução possível da burguesia local (Cardoso 1979, 69 e segs.). Aqui,

interessa apenas salientar a lacuna da nova historiografia no que diz respeito ao tema

das classes sociais.

Evidentemente, caberia também lembrar as decisivas manifestações de oposição

civil ao regime. O movimento estudantil de 1964-68 foi a expressão mais radical dessa

tendência. Mas é preciso lembrar também as eleições de 1974, com a ampla derrota dos

candidatos da ARENA, o partido civil da ditadura, as manifestações empresariais contra

6 Depois que terminei este artigo, tomei conhecimento da crítica de Renato Lemos às ideias de Daniel

Aarão, onde o primeiro defende argumentos próximos dos meus (Lemos 2012).

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a chamada “estatização” a partir de 1974, as declarações de empresários de destaque

defendendo a volta do Estado de Direito em 1977 (Velasco e Cruz & Martins 1983, p.54

e segs).7 Desnecessário mencionar a oposição de setores do movimento operário e do

movimento estudantil depois de 1978. Isso aponta para outro aspecto do problema: ao

contrário do mundo paisano, que se apresenta dividido, o mundo militar caracteriza-se,

após os expurgos do pós-golpe como muito mais homogêneo. Há ampla concordância

com na recusa da esfera “corrupta”  e “irracional”  da política e na aceitação de que

caberia aos militares mudar o país (Alves 1984, 118-24). Celso Castro (1990) já tinha

demonstrado a força da construção da contraposição a uma ideia genérica do “civil” 

como elemento definidor da identidade militar. Depois de 1964, essa característica foi

levada ao extremo.

Isso não quer dizer que não houve tensões no meio militar, mas que o mundo

castrense , depois do golpe, um poderoso elemento unificador na decisão de que o limite

das divisões militares seria dado pela não abertura ao mundo civil. Em outro trabalho,

 propus que essa característica poderia ser entendida como um processo de “unidade na

desunião” (Martins Filho 1995)8. Apesar das agudas tensões no seio da hierarquia em

torno das sucessões presidenciais e dos conflitos entre a oficialidade e o governo

característicos de regimes militares, havia uma homogeneidade política básica nouniverso militar do pós-64. Essa homogeneidade era, sobretudo, ideológica, e fundava-

se na aceitação de um conjunto de visões de mundo e de doutrinas elaboradas no

interior da Escola Superior de Guerra (ESG). Passemos então a esse tema.

O papel da ideologia

O segundo problema a ser enfrentado pela nova historiografia é colocado pelo

caráter fundamentalmente militar da ideologia da ditadura. O ideário que unificou o

meio militar e forneceu uma ideologia ao regime constituiu-se num blend de liberalismo

norte-americano, doutrina francesa e autêntico conservadorismo brasileiro cuja marca

maior foi a intolerância política, aguçada pelo contexto da guerra fria. Elaborada no

interior da ESG, tal ideologia foi em geral identificada com a chamada Doutrina da

Segurança Nacional, fundada no Segurança e Desenvolvimento. O trabalho pioneiro de

7 Os autores do artigo reconhecem que o surgimento de uma direita militar ativa no governo Geisel fezem seguida com que os mesmos setores empresariais de oposição se alinhassem com o candidato do

 presidente à sua sucessão, o general Figueiredo, como fiador mais confiável da abertura.8 Em seu livro já citado , Maud Chirio voltou com competência a esse tema, revelando inúmeros processosque eu não havia percebido.

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Eliézer Rizzo de Oliveira inaugura a análise da construção dessa ideologia (Oliveira

1976).

Outro estudo da mesma época apresenta a ESG como uma exceção na América

Latina, por sua capacidade em construir uma teoria econômica e um conjunto de pontosde vista sobre o sistema político, sem constituir um “implante externo”, uma vez que

seus formuladores eram oficiais “intelectuais” brasileiros.  Nessa perspectiva, a

ideologia da ESG coloca no centro de sua visão de mundo a centralidade do conceito de

segurança nacional e o anticomunismo, o nacionalismo, em sua versão militar de direita

e o papel do Estado do desenvolvimento nacional, em conjunto com o conceito de poder

nacional (Flynn 1978, 317-24). Com base no papel central dessa ideologia no período

militar, Maria Helena Moreira Alves propôs em sua obra já citada o conceito de “Estadode segurança nacional” para caracterizar o regime do pós-64 (Alves 1984). 

Mais recentemente, chamou-se a atenção para a importância da doutrina militar da

 guerra revolucionária, importada da França. Ao contrário da ideologia acima, este

ideário, também elaborado e adaptado no interior da ESG, permitia uma aplicação

 prática mais direta. Os preceitos dessa doutrina, que defendiam a obsolescência dos

conceitos clausewitzianos, diante da ascensão da ameaça da guerra revolucionária

comunista, constituíram a espinha dorsal da visão militar sobre o conflito ideológico da

guerra fria nos anos 1960 e 1970. Antes e depois do golpe de 1964, sua vulgata foi

adotada por políticos civis, mas sua origem militar é inegável (Martins Filho, 2008).

A doutrina francesa constitui no final dos anos 1950 a retomada dos laços

militares entre Brasil e França, cuja origem remonta à influência da missão francesa

atuante no país desde o início dos anos 1920. O foco na influência norte-americana

sobre o Exército depois do início da Segunda Guerra Mundial ocultou por algum tempo

esse processo de reconstrução de laços com o Exército francês. Como mostrou

Frederick Nunn, no começo do século XX, o ethos militar gaulês do antipoliticismo e da

superioridade moral do militar face aos civis, bem como do papel crucial a ser

desempenhado pelos militares no desenvolvimento industrial do país, adaptou-se bem a

visões semelhantes já existentes em setores do Exército brasileiro (Martins Filho,

2012a). Nos anos 1950, o Exército colonial francês produziu um conjunto de ideias

anticomunistas marcadas por profunda intolerância política, cuja manifestação mais

extrema foi o emprego da tortura como método de luta. Combinado com as tradições

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domésticas brasileiras, esse conjunto de ideias forneceu ao regime um cimento

ideologico sem paralelos no mundo civil. É interessante notar que inexiste no Brasil

uma direita civil capaz de articular uma visão de mundo com essa organicidade. Em

geral, coube a personagens inexpressivos  –   parlamentares da Arena e jornalistas de

direita, principalmente –  defender publicamente as práticas repressivas da ditadura.

Aparentemente, o anticomunismo militar seria incongruente com as ideias

liberais americanas muitas vezes citadas pelos teóricos militares brasileiros. No entanto,

o estudo recente de Michael Desch sobre o liberalismo americano, ao recuperar as idéias

 propostas por Louis Hartz em seu livro de 1955, The liberal tradition in America,

mostra como o ideário lockeano assumiu nos Estados Unidos um caráter de Liberalismo

Absolutista. Sua principal característica é a reação negativa diante de um mundoexterior aparentemente ininteligível, porque diferente dos EUA. Segundo Hartz, o

dogma de que os benefícios de tal liberalismo são autoevidentes conduziu à noção de

que não há razão legítima para não aceitá-los. De tal modo, os inimigos externos dos

EUA são vistos com indignação moral e há uma forte “incapacidade de imaginar honra

em um antagonista”. Não por acaso, no Vietnã e em guerras mais recentes, os militares

americanos utilizaram métodos que fazem lembrar os da guerra colonial francesa

(Desch 2009).

A estrutura do poder

Um terceiro problema que não pode ser ignorado pela nova historiografia é o da

especificidade dos novos arranjos de poder erigidos depois de 1964. Pela primeira vez

no século XX, os militares mostraram-se dispostos a não devolver o poder aos civis

depois de derrubar o governo constitucional, o que me fez afirmar em outro texto:

“Desde o alvorecer do regime, a hipótese de uma intervenção cirúrgica das Forças Armadas –  

que preparasse o retorno dos líderes civis  –   passou a se apresentar como improvável” (Martins

Filho 1995, 47). Alfred Stepan (1971) percebeu esse novo traço como o fim do histórico

 padrão “moderador” nas intervenções militares no processo político do país. O relato

memorialístico do ex-governador Carlos Lacerda oferece um vivo retrato da precoce

desilusão dos líderes civis do movimento de 31 de março diante dos primeiros indícios

de que algo de novo estava no ar depois do golpe (Lacerda 1978). A tosca narrativa de

um oficial do Exército intensamente envolvido nas tarefas anônimas de mobilização dos

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quartéis nos meses que antecederam o golpe mostra o outro lado da moeda: o da

consciência castrense de que estava na caserna o motor do golpe (Mello 1979).

Tais processos logo se manifestaram em medidas concretas de militarização do

Estado. A história é conhecida, mas é oportuno lembrar aqui seus traços mais gerais.Com o primeiro Ato Institucional, a Constituição de 1946 é mantida, embora a

autoridade passe a emanar do exercício de fato do poder, ou seja, do governo militar. Na

letra do Ato, o Executivo ganha o poder de cassar mandatos e atropelar as garantias do

Judiciário, bem como realizar expurgos no pessoal civil e militar do Estado. Em outubro

de 1965, o AI-2 renova o poder constituinte do regime e extingue os partidos políticos,

inclusive a União Democrática Nacional (UDN), bastião do golpismo e reduto por

excelência dos apoiadores civis do golpe. Em seguida, o AI-3 transforma em indiretasas eleições para governadores de Estado e prefeitos das capitais. No início de 1967, a

Carta Constitucional imposta pelo novo regime com participação apenas formal do

Congresso expurgado incorpora as medidas de militarização do Estado constantes nos

atos institucionais e decide que o Executivo militar tem a prerrogativa de legislar em

matérias de Segurança Nacional e finanças públicas. Em dezembro de 1968, o Ato

Institucional número 5 consolida o Estado Militar (Alves, 1984).

 No ano seguinte, na crise da sucessão de Costa e Silva, nem se considerou a

hipótese de entregar constitucionalmente o cargo vago para o vice-presidente civil,

Pedro Aleixo. A Emenda Constitucional de 1969 incorporou à Carta de 1967 os

 preceitos do AI-5. Quanto aos civis, não há dúvida de que sem a colaboração de juristas

autoritários seria impossível redigir a legislação do pós-64, mas é preciso lembrar que

eles atuaram a convite e sob a vigilância dos chefes militares (Gaspari 2002a, 317 e

segs).

Em Fascismo e ditadura, Nicos Poulantzas já descrevera a particular modificação

dos “aparelhos de Estado” ocorrida nos Estados de exceção: depois dos golpes, surgem

as condições para uma reorganização da hegemonia (Poulantzas, 1978). A tradicional

distribuição de poder é substituída pelo controle estrito do aparelho estatal por um único

aparelho: no caso das ditaduras militares, as Forças Armadas, no caso das ditaduras

 bonapartistas, a administração civil. O Exército passa a ser um aparelho ideológico

 poderoso. Ocorrem modificações importantes do sistema jurídico e o Direito não mais

regula o processo político. O princípio do sufrágio é profundamente alterado e a

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circulação do poder deixa de ser feita pelo processo eleitoral e passa a ser basicamente

 burocrática. Enfim, surgem redes e correias de transmissão do poder dominadas pelo

aparelho militar e  –   Alas!  –   o caráter de classe da dominação é estruturalmente

mascarado.

Fernando Henrique Cardoso contribuiu para o entendimento desse processo no

Brasil ao propor o acréscimo do termo “burocrático” ao autoritarismo histórico da

América Latina a fim de enfatizar o novo na situação dos anos 1960. Após os golpes, é

a instituição militar como tal que assume o poder a fim de reestruturar o Estado e a

sociedade. Cardoso percebe bem que os novos regimes são basicamente

desmobilizadores, no que se distinguem do fascismo. Contudo, eles permitem às classes

capitalistas-liberais sobreviver sem laços orgânicos com o Estado e tendem a excluir asorganizações de classe dos processos de tomada de decisões. Além do mais, o fazem

“preservando uma estrutura hierárquica rígida que é burocraticamente controlada por

várias agências de segurança nacional e pelos comandantes das Forças Armadas”  

(Cardoso 1982, 44). E conclui: “É essencial diferenciar estes regimes autoritários

decididamente militares dos outros, como o regime mexicano que, embora não

completamente destituídos de traços autoritário-burocráticos, são indubitavelmente civis

em seu modo de controle” (p.45). No novo arranjo de poder, cabe aos chefes militaresdecidir quais grupos civis serão chamados a participar das decisões e tal participação

será fundamentalmente ad hoc.9  Os interesses do poder econômico conectam-se ao

 poder militar por meio de “anéis” ou “círculos” burocráticos. 

Quando tal processo está consolidado, organismos fundamentalmente militares,

que num sistema democrático são periféricos ao processo político, como o Conselho de

Segurança Nacional, assumem papel central. Ao mesmo tempo, os ministérios militares,

a chefia do Serviço Nacional de Informações, e, sobretudo, o Alto Comando das ForçasArmadas adquirem o lugar de poder real. Sintoma disso é que o leitor de jornais da

época conhecia bem o nome dos membros e chefes desses organismos, o que

dificilmente ocorre num regime civil. A partir do governo Geisel, depois de realizar

seus objetivos políticos e econômicos e massacrar a esquerda –  armada e desarmada –  o

 poder militar resolve iniciar uma distensão e depois uma abertura políticas controladas,

9

  Os novos governantes “nunca concordarão com a ideia de representação. A delegação de autoridade pela base não é encorajada. Pelo contrário, a decisão sobre quem será chamado a colaborar, e por quantotempo, é tomada no ápice do poder” (Cardoso 1982, 50).

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que culminam com a anistia política de 1979, a permissão da reorganização dos partidos

 políticos, logo a seguir, e a volta das eleições diretas para prefeitos de capitais e

governadores já para 1982.

 No entanto, o uso do ano de 1979 como ponto final do regime ditatorial esquececoisas importantes: em primeiro lugar os governantes não abriram mão de ditar o ritmo

e o escopo dessa descompressão  –   cujo objetivo central era o de permitir uma

transmissão de poder que não ameaçasse as Forças Armadas como instituição. Nesse

sentido, já se disse que a Lei da Anistia “buscava preservar membros da corporação e

 por extensão a própria instituição militar de ações que procurassem pagar dívidas para

com o passado”. Além disso, ela “estava fortemente marcada pelos limites impostos

 pela própr ia característica da transição”  (Soares & Prado 2009). Dessa forma, 1979 pode ser visto como um capítulo de uma transição controlada. Como aponta a mesma

análise, foi isso o que permitiu a permanência da autonomia militar mesmo depois da

extinção do regime ditatorial, em 1985. Ou seja, as medidas tomadas naquele ano não

apenas não significaram o fim da ditadura como colaboraram para que o regime civil

demorasse décadas para se livrar das prerrogativas militares herdadas do período

anterior. Não por acaso, somente 30 anos depois do final do regime militar foi criada a

Comissão Nacional da Verdade e no momento da redação deste artigo ainda sãoincertos os avanços efetivos que ela será capaz de desencadear.

Ao lado disso, inúmeros processos ocorridos no período 1979-1985 nos

desestimulam a falar de fim da ditadura em data tão precoce, dada a própria

 precariedade da descompressão, sujeita a recaídas até o último suspiro da ditadura. O

exemplo mais famoso desse traço é o atentado frustrado ao Riocentro, em fins de abril

de 1981, ponto culminante de uma série de ações da direita remanescente dos aparelhos

repressivos, e cujo desfecho levou à saída do general Golbery do Couto e Silva dogoverno Figueiredo.10 Por outro lado, os civis continuaram a não ter acesso aos centros

de decisão militarizados, como o evidencia o secretíssimo Programa Nuclear Paralelo,

elaborado depois de 1979, voltado para criar capacidade nacional de produzir um

artefato atômico. Tal projeto se desenvolveria por meio de programas específicos em

10  Para o ex- presidente Geisel, “Golbery deixou o governo por causa do problema do Riocentro. Eleachava que o Figueiredo tinha que mandar apurar direito o que tinha acontecido e punir os responsáveis,isto é, que ele tinha que enfrentar a área militar, ou área radical que tinha atuado nesse episódio, O

 problema do Riocentro era o fato em si. Com a abertura, deveria estar encerrado o problema da repressão.O Riocentro foi um recrudescimento, uma nova explosão reacionária con tra a abertura”  (D’Araujo  &Castro 1997, 435). 

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cada uma das Forças Armadas, ainda que com apoio de setores importantes da

comunidade científica e da burocracia civil nacionalista (Martins Filho 2012b). De

resto, foi necessária a histórica campanha pelas  Diretas-Já, em 1984, para aguçar as

contradições militares e finalmente pôr um fim ao regime, ainda que com eleições

indiretas, em 1985. Parece difícil propor que movimento de tais dimensões tivesse como

alvo um moinho de vento.

A dinâmica do regime

Por fim, até o surgimento da nova historiografia, corrente expressiva da literatura

sobre o período ditatorial via no conflito entre governo e oposição o processo definidor

da dinâmica política do regime. Expressa de forma mais acabada no livro de Maria

Helena Moreira Alves, essa perspectiva é um dos alvos da corrente revisionista, que

ataca, como vimos, a “mitologia” da postura oposicionista da sociedade civil. De nosso

 ponto de vista, o ponto fraco das teses de Moreira Alves não é a superestimação da

força da oposição civil, mas sua subestimação dos conflitos internos ao mundo

castrense, na definição dos rumos do regime do pós-1964.

Em livro publicado em 1995, procurei mostrar como as crises militares foram o

dínamo das definições e redefinições do processo político entre 1964 e 1969, ao propor

que as divisões militares do período poderiam ser melhor entendidas num quadro que

envolvia quatro correntes militares –  castelistas, palacianos, linha dura e albuquerquistas

 –  e não apenas a tradicional oposição entre “duros” e “castelistas”. Pode-se argumentar

que no ano crucial de 1968 esteve presente uma efetiva oposição de classe média,

 principalmente no Rio de Janeiro. Mas não é menos verdade que, a partir de agosto

daquele ano, a crise é inegavelmente alimentada por grupos militares, num processo que

começou com a invasão da Universidade de Brasília e resultou no “golpe dentro do

golpe” de dezembro de 1968 (Martins Filho, 1995)11.

Mais recentemente, o jornalista Elio Gaspari atribuiu o sucesso ou o insucesso

das maquinações dos sucessivos governantes militares à sua capacidade de perceber “as

características do processo de anarquia militar” que, segundo ele, passou a caracterizar o

11 Com acesso a documentação conseguida diretamente com protagonistas-chave do período  –  e que atéhoje ele só disponibiliza a pesquisadores de sua escolha  – , Elio Gaspari fez alguns anos depois análise

 bastante parecida da crise de 1968, destacando o papel central do chefe do Gabinete Militar daPresidência, general Jayme Portella e apresentando um número semelhante de grupos militares (Gaspari2002a, 69-70, 74, 77, 80 e 84).

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 processo político depois do golpe de 1964 (Gaspari 2002a, 270). Nessa visão, em

outubro de 1965, foi a capacidade do general Costa e Silva de fazer-se porta-voz da

inquietação militar o que garantiu seu nome como sucessor do general Castelo Banco.

Mas o segundo governo militar foi tão prisioneiro dos quartéis quanto o primeiro:

“Capturado pelo  processo de anarquia militar desde o alvorecer de sua candidatura,

Costa e Silva, como Castello, governava sob a pressão dos generais que o garantiam”  

(Gaspari 2002a, 315). Na crise desencadeada pelo afastamento de Costa e Silva, em

agosto de 1969, “a anar quia que por cinco anos tivera seus altos e baixos entrou no

 período mais caótico de sua trajetória”. Nessa conjuntura, foi um processo

exclusivamente militar que desembocou na escolha do general Emílio Médici para

suceder Costa e Silva (Gaspari 2002b, 77)12.

Mas a compreensão do caráter fundamentalmente militar da dinâmica política da

ditadura não foi percebida apenas por analistas da velha geração. Recentemente, a

 jovem pesquisadora francesa Maud Chirio recuperou a ideia de que o processo político

no período 1964-1968 deve ser entendido como um constante aprofundamento da

militarização do regime:

“Com efeito, nesse período não se constrói apenas uma ditadura cuja pedra

angular seria o AI-5, mas um regime militar. A militarização é, em primeiro

lugar, um fato: a maior parte do governo Costa e Silva usa farda, enquanto

órgãos dominados por oficiais-generais (como o Conselho de Segurança

 Nacional) ganham uma importância cada vez maior no aparelho de Estado. A

militarização é igualmente simbólica: os quartéis alcançam, nos discursos de

todos os atores, uma forma de soberania que, no entanto, eles não têm mais

oportunidade de exercer pelo viés de oficiais superiores, como no pós-golpe (...).

Agora (...), apenas os generais têm autorização para serem seus arautos, uma vezque a geração intermediária de oficiais foi progressivamente reduzida ao

silêncio”(Chirio 2012, 134).

Considerações finais

Como dissemos no início, a nova historiografia pode se considerar vitoriosa.

Pesquisadores jovens e maduros adotam cada vez mais os termos “ditadura civil-

 12  Como se sabe, Gaspari apresenta como objetivo de seus livros entender a ação política de dois personagens militares Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva.

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